Acessibilidade / Reportar erro

Usos de substâncias psicoativas por mulheres: a importância de uma perspectiva de gênero

The Use of Psychoactive Substances by Women: the Importance of a Gender Perspective

Resumo:

O objetivo do artigo é promover, através de pesquisa teórica bibliográfica, uma reflexão sobre os usos de substâncias psicoativas por mulheres. Reconhecer a necessidade de uma abordagem interdisciplinar, mas investir nos aspectos socioculturais relativos a tais práticas é o foco. O gênero, enquanto um determinante sociocultural, é priorizado. Homens e mulheres - enquanto diferentes atores sociais/culturais - conservam envolvimentos distintos com o consumo de substâncias psicoativas. Assim, considera que as mulheres constituem um segmento diferenciado de usuárias, com características e necessidades particulares, que devem ser consideradas pelas políticas públicas. As próprias mulheres, porém, não constituem um grupo homogêneo. Portanto, uma abordagem aos seus consumos de substâncias psicoativas deve ser feita integralmente, levando em conta os seus contextos e particularidades, e pautada em uma perspectiva de Redução de Danos.

Palavras-chave:
gênero; usos de substâncias psicoativas; mulheres; políticas públicas

Abstract:

The objective of this article is to promote, through literature theoretical research, a discussion on women's use of psychoactive substances. It recognizes the need for an interdisciplinary approach, but invests in socio-cultural aspects of such practices. Gender, as a socio-cultural determinant, is prioritized. Men and women - as different social / cultural actors - retain distinct involvements with the consumption of psychoactive substances. So, this work believes that women are a differentiated segment of users, with particular characteristics and needs that should be considered by public policies. However, women themselves are not a homogeneous group. Therefore, an approach to their psychoactive substance consumption should be fully made, considering their contexts and particularities and based on a perspective of harm reduction.

Keywords:
Gender; Psychoactive Substances Use; Women; Public Policy.

Introdução

Um desafio a ser superado sobre a compreensão/intervenção do/no campo dos usos de substâncias psicoativas (SPA) é a separação entre fatores biológicos, psicológicos e sociais que influenciam, simultaneamente, a tendência de alguma pessoa vir a utilizar a SPA. Embora haja o reconhecimento do valor de outras abordagens, há, ainda, uma hegemonia atribuída aos estudos sobre as SPA, desenvolvidos no âmbito que trata dos seus aspectos biológicos. Abordagens sociais continuam a desempenhar papel de coadjuvantes no debate público sobre a questão das substâncias psicoativas (FIORE, 2013FIORE, M. Uso de drogas: substâncias, sujeitos e eventos Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, 2013. 210f.).

Neste sentido, reconhecemos a importância da substância (e suas propriedades farmacológicas), do set (atitudes e personalidade do indivíduo), mas o foco deste trabalho é nos aproximarmos do setting (meio físico e social onde ocorre o uso), para usar os termos de Norman Zinberg (1984ZINBERG, N. Drug, set and setting: the basis for controlled intoxicant use. New Haven: Yale University Press, 1984.), ou seja, do contexto sociocultural das mulheres que usam SPA. Isto nos permite captar e analisar os determinantes sociais que deram origem à prática de uso, aos modos variados de consumo, às repercussões do uso dessas substâncias nas vidas das mulheres, à definição de substâncias enquanto problemáticas ou não, pois, como afirmam Veloso, Carvalho e Santiago (2004VELOSO, L.; CARVALHO, J.; SANTIAGO, L. "Redução de Danos decorrentes do uso de drogas: uma proposta educativa no âmbito das políticas públicas". In: BRAVO, M. I. S. et al. (Orgs.). Saúde e serviço social. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: UERJ, 2004.), tais determinantes sociais podem ser vetores produtores de saúde, doença, vida ou outros significados. Essa possibilidade não implica, porém, desconsiderar os riscos e complexidades bioquímicas presentes nos usos.

Ao considerar os contextos das mulheres que consomem SPA, um enfoque sociocultural engloba um dos elementos que atravessa as experiências de usos de SPA: o gênero. No Brasil, há ainda uma escassez de análises sobre o uso de SPA a partir de uma perspectiva de gênero, especialmente entre as mulheres, dado que um olhar de gênero pode revelar a fragilidade das políticas públicas voltadas para as pessoas que consomem, que não têm suas reais necessidades identificadas e atendidas.

Em contrapartida, há estudos que investigam o uso de SPA por mulheres a partir de um enfoque sociocultural de gênero, conforme veremos nos tópicos seguintes. Para já, pode-se dizer que algo que estes estudos têm em comum é o distanciamento de uma abordagem voltada essencialmente para questões biológicas e a promoção das vozes de mulheres usuárias de SPA. Incorporar um olhar de gênero aos "mundos" das SPA supõe uma revisão metodológica e possibilita gerar novos conceitos e novas formas de entender as distintas realidades do uso e dos consumidores e consumidoras.

Tal como os significados sobre os usos de SPA variam conforme o contexto sociocultural e histórico, os significados sobre "ser mulher" também sofrem variações. Mas, muitas vezes, esses significados (e suas variações) são negligenciados ou ignorados nos âmbitos da investigação, das intervenções ou políticas a respeito das SPA. As mulheres estão mais visíveis, por um lado, pois aumentou o consumo de SPA entre elas. Por outro, apesar deste aumento, continuam invisibilizadas porque o envolvimento com SPA permanece sendo visto predominantemente a partir da etiologia masculina, o que, frequentemente, as põe enquanto alvo de intervenção tardia e dupla estigmatização ("ser mulher + usar drogas"). Acabam sendo esquecidas e negligenciadas quando a maioria dos sujeitos estudados são homens, portanto, "o padrão" masculino no qual se baseiam diagnósticos, terapias e outras intervenções (USPPA et al., 2011USPPA (Unidad de Seguimiento de Políticas Públicas en Acciones) - El ocultamiento de las mujeres en el consumo de sustancias psicoactivas. Despacho diputada: Diana Maffia; Dirección: Patricia Colace; Asesoría técnica: Santiago Lerena. Legislatura de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, CABA, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://dianamaffia.com.ar/archivos/El-ocultamiento-de-la-mujer-en-el-consumo-de-sustancias-psicoactivas.pdf >. Acesso em: mai. 2014.
http://dianamaffia.com.ar/archivos/El-oc...
).

Sendo assim, longe de finalizar ou dar respostas definitivas sobre o assunto, este trabalho apregoa a incorporação de um olhar de gênero ao campo dos usos de SPA e o faz a partir de alguns questionamentos e reflexões de suas autoras, juntamente de um levantamento bibliográfico a respeito de tal interface. Esta conduta está mais de acordo com uma perspectiva pautada na Redução de Danos, ao reconhecer os distintos padrões de usos de SPA (não foca apenas naqueles usos considerados "problemáticos") realizados por pessoas de diferentes condições socioculturais, a partir dos pertencimentos de gênero, classe social, etnia, orientação sexual e religiosa etc.

1 Respostas do Estado brasileiro para a questão dos usos de substâncias psicoativas: e o gênero?

Historicamente, a saúde pública brasileira deixou a questão do consumo de SPA a cargo de instituições como a justiça, a segurança pública, a pedagogia, a benemerência, as associações religiosas, dentre outras (BRASIL, 2005BRASIL, Ministério da Saúde. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.). Apenas em 2002, dentro do movimento de Reforma Psiquiátrica, é que foram lançadas as portarias: nº 336, que cria o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), voltado para as pessoas com transtornos mentais decorrentes do uso e dependência de substâncias psicoativas, e a n° 816, que institui o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada a Usuários de Álcool e outras Drogas, fazendo o reconhecimento do consumo nocivo enquanto sério problema de saúde pública, enquadrado no campo da saúde mental. Em 2003, foi lançada a Política do Ministério da Saúde (MS) para Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas, passando a se orientar pela Redução de Danos (RD), que estabeleceu o acesso ao cuidado e à compreensão integral e dinâmica do problema, fundada na promoção de direitos e na cidadania. Esta ampliação e redefinição da RD fez com que a mesma fosse não mais somente uma "estratégia" (em nível local, como ocorreu na cidade de Santos/SP, com a prevenção e troca de seringas), mas "um novo paradigma ético, clínico e político para a política pública brasileira de saúde de álcool e outras drogas" (PASSOS; SOUZA, 2011PASSOS, E. H.; SOUZA, T. P. "Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de "guerras às drogas"". Psicologia & Sociedade, v. 23, n. 1, p. 154-162, 2011. Acesso em: 25 jul. 2015. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/psoc/v23n1/a17v23n1.pdf .
http://www.scielo.br/pdf/psoc/v23n1/a17v...
, p. 154), alternativo à política global de "guerra às drogas".

Em 2005, foi aprovada a Política Nacional sobre Drogas/PNAD (substituindo a anterior Política Nacional Antidrogas, de 2002), que reconhece o uso de SPA como um fenômeno complexo, que envolve o tráfico, de um lado, e o uso em si, que demanda medidas assistenciais. Em 2006, foi aprovada a lei 11.343, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD). Em 2007, pelo decreto nº 6117/2007, foi desenvolvida a Política Nacional sobre o Álcool (SENAD). O MS criou, em 2009, o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e, em 2010, junto a outros órgãos governamentais, instituiu o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras drogas.

A lei nº 10.216 (Reforma Psiquiátrica), a política de Redução de Danos e outras medidas referentes às políticas públicas brasileiras de saúde mental/drogas representam avanços no campo da legislação e, também, no sentido de humanizar e redirecionar a assistência, evidenciando o/a usuário/a como sujeito de direitos. Porém, como afirma Bokany (2015BOKANY, V. Drogas no Brasil: entre a saúde e a justiça - proximidades e opiniões. São Paulo: Perseu Abramo, 2015. Disponível em: <Disponível em: http://www.fpabramo.org.br/publicacoesfpa/wp-content/uploads/2015/05/DrogasNoBrasil.pdf >. Acesso em: 13 jun. 2015.
http://www.fpabramo.org.br/publicacoesfp...
), as complexidades, contradições e conflitos envolvidos na questão, bem como o preconceito que envolve os usuários, indicam a sua dupla penalização: social e legal. A hegemonia de um paradigma do discurso moral abafa a totalidade da questão e a coloca em trânsito de um problema de polícia para o campo da saúde pública. Assim, subsistem desafios quanto à cidadania e autonomia das pessoas que usam SPA. Questões relativas ao gênero estão entre esses desafios.

No cenário da saúde mental, o que inclui as pessoas que usam SPA, peculiaridades referentes à heterogeneidade das pessoas não foram contempladas, como no que diz respeito à diversidade de diagnósticos, experiências e às diferenças de gênero de usuários/as. Em uma pesquisa sobre os sentidos do cuidado, associados ao CAPS, presentes nos textos técnicos do MS que servem de apoio à Reforma Psiquiátrica, Pedrosa (2006PEDROSA, C. H Cuidar? Sim; Olhar de gênero? Não. Os sentidos do cuidado no CAPS em documentos técnicos do Ministério da Saúde. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006. 200f.) concluiu que os documentos analisados englobam uma função explicitamente normativa e primordialmente terapêutica, onde a figura humana é objetivada enquanto "figura do paciente". Pouco ou nada se considera a respeito de questões críticas de gênero ou étnico-raciais. Este fato perpetua a distância que até então existe entre a Reforma Psiquiátrica, os princípios do Sistema Único de Saúde e as políticas de promoção de igualdade racial e de gênero (Idem), tal como as políticas voltadas para as mulheres e ao segmento LGBT.

Por sua vez, a temática do gênero ou, pelo menos, a menção às masculinidades/feminilidades em documentos oficiais em políticas públicas de saúde ainda são insuficientes. A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas, de 2003, por exemplo, não cita ações específicas para homens ou mulheres ou faz referência às socializações masculina e feminina como um dos fatores determinantes das condições de saúde. Também a Política Nacional sobre o Álcool, de 2007, não menciona questões de gênero (MORAES et al., 2011MORAES, Maristela; MEDRADO, Benedito; LYRA, Jorge; GRANJA, Edna. "Homens, violência contra mulheres e atenção em saúde mental: algumas reflexões sobre interfaces complexas". In: MORAES, Maristela; CASTRO, Ricardo; PETUCO, Dênis (Orgs.). Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral à saúde. Recife: Instituto PAPAI, 2011., p. 78).

Somam-se, também, várias disputas circunscrevendo o campo das SPA, mesclado, por um lado, pelo paradigma proibicionista, e, por outro, pelo paradigma da RD. Quanto ao primeiro, alguns preconceitos sobrevivem na abordagem às pessoas que utilizam SPA, principalmente as mulheres, o que dificulta seu acesso e uso dos serviços de saúde. Além de as mulheres sofrerem com os efeitos do uso nocivo/arriscado, com a discriminação e a exclusão social, não raro se encontram em situação de vulnerabilidade (SANTOS; ALBUQUERQUE, 2011SANTOS, Naíde T. V.; ALBUQUERQUE, Rossana C. H. "Saúde mental, álcool e outras drogas na atenção primária". In: MORAES, Maristela; CASTRO, Ricardo; PETUCO, Dênis (Orgs.). Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral à saúde . Recife: Instituto PAPAI, 2011.).

Têm sido apontados os limites da política do Estado sobre drogas, predominantemente proibicionista: a regularização e a fiscalização enquanto suas atribuições fundamentais e inalienáveis acabam desconsiderando certas especificidades culturais das nações latino-americanas (casos de tradições culturais de populações indígenas e afrodescendentes). Além disso, a distinção entre o consumo próprio (individual ou coletivo) e o tráfico ainda não foi adequadamente estabelecida, o que conduz a um tratamento de desconfiança moral, policial e legal em face de usuários/as, independente dos seus hábitos ou contextos culturais (GIL; FERREIRA, 2008GIL, G.; FERREIRA, J. "Apresentação". In: LABATE, Bia et al. (Dir.). Drogas e cultura: novas perspectivas Salvador: EDUFBA, 2008, p. 9-12.). Na prática, o enquadramento em tráfico ou consumo é arbitrário e acaba elevando as taxas de encarceramento (BOKANY, 2015BOKANY, V. Drogas no Brasil: entre a saúde e a justiça - proximidades e opiniões. São Paulo: Perseu Abramo, 2015. Disponível em: <Disponível em: http://www.fpabramo.org.br/publicacoesfpa/wp-content/uploads/2015/05/DrogasNoBrasil.pdf >. Acesso em: 13 jun. 2015.
http://www.fpabramo.org.br/publicacoesfp...
), inclusive de mulheres.

Frequentemente a legislação, e, mesmo, as políticas, ignoram o fato de os usos serem ou não problemáticos, e determinados por inúmeras razões: o tratamento médico, a diminuição das inibições, a tentativa de lidar melhor com os percalços da vida, o desejo de pertencimento a determinado grupo social, a curiosidade, a procura por prazer, a redução de tensões, o uso em rituais religiosos (GALDUROZ et al., citados por BARRETO NETO, 2013BARRETO NETO, H. "Padrões de uso de drogas, vulnerabilidade e autonomia: uma análise jurídico-bioética sobre o art. 28, caput, da lei n. 11.343/2006". In: SILVA, Monica Neves Aguiar da; ENGELMANN, Wilson (Orgs.). Biodireito. XXII Congresso Nacional do Conpedi. 1.ed., v. único, São Paulo: Fundação José Arthur Boiteux, 2013, p. 33-62. Disponível em: <Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=9e69fd6d1c5d1cef >.Acesso em: 20 nov 2014.
http://www.publicadireito.com.br/artigos...
). Essa questão suscita tensões entre "o dever de respeito à autonomia dos indivíduos e a necessidade de proteção da vulnerabilidade humana, na medida em que, se admitindo a existência de grupos de usuários que têm potencial autônomo e outros que não o têm, se releva a necessidade de dar a cada um o tratamento apropriado" (Idem, p. 3). A partir dessa lógica, também faz diferença se esses consumos e suas implicações são vivenciadas por homens ou mulheres situadas nos seus respectivos contextos socioculturais.

A atual lei de drogas, nº 11.343, não faz qualquer distinção com foco na perspectiva de gênero e direitos humanos. Convém considerar situações de vulnerabilidade de mulheres nos crimes de tráfico ilícito de SPA, mas a lei, em vários de seus artigos, não prevê "as circunstâncias históricas, socioeconômicas e culturais que levam a mulher - esposa, companheira, namorada, avó, mãe, filha, tia, sobrinha, prima, ou mesmo sem vínculo com o preso - a praticar a conduta de tráfico ilícito de drogas" (CUNHA JUNIOR, 2015CUNHA JUNIOR, R Encarceramento: cegueira e indiferença da perspectiva de gênero e de direitos humanos na lei de drogas, 2015. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/tag/ronio-neves-da-cunha-junior/>. Acesso em: jun. 2015.
http://emporiododireito.com.br/tag/ronio...
). Nesse sentido, a lei funciona sem considerar a realidade das mulheres quanto aos aspectos históricos, socioeconômicos e culturais.

Por outro lado, a Redução de Danos tem investido em uma direção diferente do proibicionismo. Ela pode ser considerada enquanto um paradigma, pois engloba um olhar diferenciado para a questão das SPA, especialmente quanto ao respeito às diferentes formas de ser e estar no mundo das pessoas que consomem SPA; pode ser considerada um conjunto de estratégias de promoção de saúde e cidadania, pois é construída pelos próprios atores, que tentam minimizar as consequências dos usos de SPA lícitas ou ilícitas e não têm a abstinência como única meta; pode, ainda, ser denominada enquanto política pública, pois, ao reconhecer a saúde como um direito de todos (e todas), promove a cidadania das pessoas que consomem SPA (SANTOS; ALBUQUERQUE, 2011SANTOS, Naíde T. V.; ALBUQUERQUE, Rossana C. H. "Saúde mental, álcool e outras drogas na atenção primária". In: MORAES, Maristela; CASTRO, Ricardo; PETUCO, Dênis (Orgs.). Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral à saúde . Recife: Instituto PAPAI, 2011., p. 66).

Nessa conjuntura, permanecem os desafios relacionados às diferentes políticas e paradigmas, à intersetorialidade, à integralidade, à expansão dos serviços oferecidos de forma usuáriocentrados (centrados nas necessidades de seu público-alvo) e à disciplina legislativa para populações que fazem o uso de SPA; há de se considerar a singularidade e a diversidade das pessoas porque "não existem soluções prontas que sirvam a todos/as" (MEDEIROS; CECCHIN, 2011MEDEIROS, R.; CECCHIN, R. "Marchas da maconha: para além da neblina sensacionalista". In: MORAES, Maristela; CASTRO, Ricardo; PETUCO, Dênis (Orgs.). Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral à saúde. Recife: Instituto PAPAI, 2011., p.44). Refletir sobre as questões de gênero significa, certamente, avançar em consonância com a Redução de Danos quanto ao cuidado para com pessoas que usam SPA.

2 Gênero e uso de SPA por mulheres: pensar na diversidade

Enumeramos alguns aspectos que consideramos importantes no debate sobre o gênero. São eles: gênero deve ser analisado para além de dualismos/essencialismos/binarismos; gênero traduz um sistema não apenas de diferenciação, mas, sobretudo, de hierarquia entre homens e mulheres; gênero está articulado a outros determinantes sociais produtores de desigualdades, como a raça/etnia, classe, geração etc.

Quanto ao primeiro aspecto, convém se afastar de uma análise que englobe binarismos, dualismos e essencialismos no plano teórico e nas realidades culturais, sociais e políticas dos contextos. As demandas por serviços e direitos que se fazem hoje evidentes demonstram que é inviável e inadequado continuar a pensar a agenda de gênero, políticas públicas e direitos humanos a partir de uma perspectiva dualista (ALVES; CORRÊA, 2009ALVES, J. E.; CORRÊA, S. "Igualdade e desigualdade de gênero no Brasil: um panorama preliminar, 15 anos depois do Cairo". In: SEMINÁRIO BRASIL, Belo Horizonte, 2009, p. 121-231.). Gênero não diz respeito, apenas, à cultura, tal como sexo não diz respeito, estritamente, à natureza. Também gênero não se reduz ao que está sancionado tradicionalmente como "feminino" ou "masculino" enquanto polos opostos de um binário. Significa, sobretudo, multiplicidade, pois abrange uma diversidade de grupos de pessoas, a exemplo de travestis e transexuais.

Depois, ao falar em relações de gênero, estamos falando em formas de dar significado a relações de poder (SCOTT, 1995). Isto implica dizer que o gênero não é apenas um critério de diferenciação e classificação dos seres e das coisas, mas um sistema de desigualdade, de assimetria, hierárquico, que traduz certo estado das relações de poder (BRANDÃO, 2007) uma vez que valoriza certos pertencimentos de gênero em detrimento de outros.

Por fim, quanto ao terceiro aspecto, tal conceito não pode ocultar a pluralidade, sendo que as próprias disparidades de gênero são cruzadas e potencializadas por outras formas de desigualdades sociais e econômicas, como as de classe, raciais, étnicas, de geração ou capacidade (ALVES; CORRÊA, 2009ALVES, J. E.; CORRÊA, S. "Igualdade e desigualdade de gênero no Brasil: um panorama preliminar, 15 anos depois do Cairo". In: SEMINÁRIO BRASIL, Belo Horizonte, 2009, p. 121-231.). Nesse sentido, Connell chama o gênero de linking concept porque as relações de gênero não são uma esfera autônoma que permeiam a vida social juntamente com outras esferas (BUSFIELD, 1996BUSFIELD, Joan. Men, women and madness: understanding gender and mental disorder. New York: New York University Press, 1996., p. 34).

Há evidências de que o uso de SPA está permeado pelas relações de poder que determinam variados modos de acesso e consumo entre os gêneros (OLIVEIRA; NASCIMENTO; PAIVA, 2007OLIVEIRA, J.; NASCIMENTO, E.; PAIVA, M. "Especificidades de usuários(as) de drogas visando a uma assistência baseada na heterogeneidade". Esc Anna Nery Rev Enfermagem, v. 11, n. 4, dez, 2007, p. 694-698. Acesso em: 24 mai. 2014. Disponivel em: Disponivel em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4a22
http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4...
). Por exemplo, quanto: às diferenças e peculiaridades que introduz nas determinações para consumir SPA; aos distintos padrões de uso das substâncias e os efeitos e consequências derivadas do consumo; às desvantagens ou desigualdades que estabelece no momento de ter acesso aos programas e serviços de prevenção ou assistência às diversas modalidades de consumo (SANCHEZ PARDO, 2008aSANCHEZ PARDO, Lorenzo. "Guía informativa: género y drogas. Documento Macro". Plan de atención integral a salud de la mujer de Galicia. Xunta de Galicia, Servizo Gallego de Saúde, 2008a.).

Segundo Oliveira (2008OLIVEIRA, J. (In)visibilidade do consumo de drogas como problema de saúde num contexto assistencial: uma abordagem de gênero. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva), Universidade Federal da Bahia, UFBA, Salvador, 2008. 207f.), na literatura, há um consenso quanto aos determinantes que estruturam o envolvimento e interferem na manutenção do consumo por homens e mulheres. Os homens sentem mais necessidade de ampliar as relações sociais, de buscar novas sensações, de aliviar os aborrecimentos, de melhorar a autoestima e o desempenho sexual. As mulheres iniciam o envolvimento por conta de experiências traumáticas vivenciadas, como: o abuso sexual, o incesto, a violência doméstica, a perda de familiares, a depressão, sentimentos de isolamento social, pressões familiares e profissionais, o fato de ter pais e/ou parceiros usuários. Oliveira, Paiva e Valente (2007OLIVEIRA, J.; PAIVA, M.; VALENTE, C. "A interferência do contexto assistencial na visibilidade do consumo de drogas por mulheres". Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 15, n. 2, 2007. Acesso em: 23 mai. 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n2/pt_v15n2a09.pdf .
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n2/pt_v...
) acrescem, sobre as determinações das mulheres, situações e necessidades relacionadas com a gravidez, a responsabilidade nos cuidados com as crianças, o trabalho com o sexo, o sistema judiciário e, ainda, com os níveis mais altos de problemas de saúde mental e crônica em relação aos homens.

Anderson (2001ANDERSON, T. "Drug use and gender". In: FAUPEL, C. E.; ROMAN, P. M. (Eds.). Encyclopedia of criminology and deviant behavior, v. IV: Self destructive behavior and disvalued identity. Philadelphia: Taylor & Francis Publishers, 2001, p. 286-289. Disponível em: <Disponível em: http://www.udel.edu/soc/tammya/pdfs/Drug%20Use%20and%20Gender.pdf >. Acesso em: ago. 2014.
http://www.udel.edu/soc/tammya/pdfs/Drug...
) aponta que pesquisas nos Estados Unidos também mostram que as "carreiras" de pessoas que usam SPA são diferentes por conta de questões de gênero. A entrada no "mundo das SPA" por mulheres é atribuída de forma significativa às suas relações com homens (incluindo experiências de abuso físico e sexual), ao passo que a sua saída do mesmo mundo acontece, mais frequentemente, devido a razões familiares - mais que para os homens.

As informações levantadas por Sanchez-Pardo (2008aSANCHEZ PARDO, Lorenzo. "Guía informativa: género y drogas. Documento Macro". Plan de atención integral a salud de la mujer de Galicia. Xunta de Galicia, Servizo Gallego de Saúde, 2008a.), na Espanha, convergem para o supracitado: o consumo de tranquilizantes, bem como soníferos, está relacionado com um papel tradicional feminino, centrado na reprodução e no cuidado do lar (incluindo o cuidado com os filhos, além de pessoas dependentes), o que pode favorecer situações de falta de comunicação ou isolamento social, ausência de reconhecimento, valorização social, assim como a carência de projetos próprios e espaços próprios para a realização pessoal. Os dados também associam o início do consumo de SPA ilícitas ou o abuso de álcool - principalmente por parte de jovens e adultas - às relações afetivas com parceiros consumidores e como resposta a conflitos pessoais ou familiares (violências, abusos etc). Mas o autor traz uma informação contrastante: o consumo do álcool e do tabaco também pode se relacionar com a participação feminina na vida social e na assimilação de hábitos tidos enquanto mais comuns aos homens.

Oliveira, Nascimento e Paiva (2007OLIVEIRA, J.; NASCIMENTO, E.; PAIVA, M. "Especificidades de usuários(as) de drogas visando a uma assistência baseada na heterogeneidade". Esc Anna Nery Rev Enfermagem, v. 11, n. 4, dez, 2007, p. 694-698. Acesso em: 24 mai. 2014. Disponivel em: Disponivel em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4a22
http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4...
), em uma revisão de literatura sobre a temática, chamam a atenção para aspectos do uso de SPA que são influenciados pelas diferenças de gênero. Um deles diz respeito à taxa de consumo, sobre o qual as autoras alegam que estudos epidemiológicos - sejam com populações específicas ou com a população geral -, em diversos países, mostram que os homens consomem mais que as mulheres, porém, tem sido registrada a diminuição da proporção entre os dois sexos de um modo geral. Há, inclusive, SPA (medicamentos benzodiazepínicos/estimulantes/orexígenos) que são mais consumidos pela população feminina. No Brasil, conforme dados do Relatório sobre Drogas no Brasil (OBID, 2007OBID - Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas. Tratamento/populações específicas/mulheres, 2007. Disponível em: Disponível em: https://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/conteudo/index.php?id_conteudo=11423&rastro=TRATAMENTO%2FPopula%C3%A7%C3%B5es+espec%C3%ADficas/Mulheres . Acesso em: 30 jun. 2014.
https://www.obid.senad.gov.br/portais/OB...
), o gênero masculino faz maior uso na vida e sofre mais dependência do álcool, tabaco, maconha, solventes, cocaína, alucinógenos, merla, esteroides e crack que o gênero feminino, praticamente em todas as faixas etárias. As mulheres, por sua vez, fazem o maior uso de benzodiazepínicos, orexígenos e opiáceos.

Sobre o tipo, é constatado que os homens tendem a utilizar SPA ilícitas mais precocemente, por mais tempo e em maior quantidade e frequência (OLIVEIRA; NASCIMENTO; PAIVA, 2007OLIVEIRA, J.; NASCIMENTO, E.; PAIVA, M. "Especificidades de usuários(as) de drogas visando a uma assistência baseada na heterogeneidade". Esc Anna Nery Rev Enfermagem, v. 11, n. 4, dez, 2007, p. 694-698. Acesso em: 24 mai. 2014. Disponivel em: Disponivel em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4a22
http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4...
). Anderson (2001ANDERSON, T. "Drug use and gender". In: FAUPEL, C. E.; ROMAN, P. M. (Eds.). Encyclopedia of criminology and deviant behavior, v. IV: Self destructive behavior and disvalued identity. Philadelphia: Taylor & Francis Publishers, 2001, p. 286-289. Disponível em: <Disponível em: http://www.udel.edu/soc/tammya/pdfs/Drug%20Use%20and%20Gender.pdf >. Acesso em: ago. 2014.
http://www.udel.edu/soc/tammya/pdfs/Drug...
) também ressalta, através de um estudo da Universidade de Michigan, dados que mostram que o uso de SPA não é distribuído igualmente pelos gêneros: homens são os que mais usam SPA ilícitas e mais cedo ao longo da vida, mas algumas exceções têm sido notadas. No Brasil, por exemplo, Oliveira, Nascimento e Paiva (2007OLIVEIRA, J.; NASCIMENTO, E.; PAIVA, M. "Especificidades de usuários(as) de drogas visando a uma assistência baseada na heterogeneidade". Esc Anna Nery Rev Enfermagem, v. 11, n. 4, dez, 2007, p. 694-698. Acesso em: 24 mai. 2014. Disponivel em: Disponivel em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4a22
http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4...
) informam que, em algumas comunidades periféricas (em Salvador, Bahia), as mulheres vêm aumentando e até superando os homens nas taxas de consumo de crack, especialmente entre aquelas que se dedicam ao trabalho com o sexo. Nestes casos, o fácil acesso, o baixo valor da SPA e a aceitação do sexo como moeda de troca são tidos como fatores facilitadores para tal quadro.

Ainda, as mulheres usuárias estão mais vulneráveis a danos e agravos pessoais e à saúde, seja por questões fisiológicas (metabolismo menos tolerante aos efeitos da SPA) ou por questões socioculturais sobre a feminilidade, pois, geralmente, o maior poder de decisão nas relações heterossexuais é favorável aos homens, o que pode interferir sobre o uso de preservativo (OLIVEIRA; NASCIMENTO; PAIVA, 2007OLIVEIRA, J.; NASCIMENTO, E.; PAIVA, M. "Especificidades de usuários(as) de drogas visando a uma assistência baseada na heterogeneidade". Esc Anna Nery Rev Enfermagem, v. 11, n. 4, dez, 2007, p. 694-698. Acesso em: 24 mai. 2014. Disponivel em: Disponivel em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4a22
http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4...
). Segundo o Observatório Brasileiro de Informações sobre as Drogas (2007) - OBID -, as mulheres que consomem SPA relatam mais frequentemente comportamentos sexuais de risco e descuido no manuseio de seringas do que homens, o que também gera um maior risco de serem infectadas pelo vírus HIV.

As diferenças entre usuários e usuárias são verificadas, também, quanto às formas de aquisição das SPA. Embora a literatura aponte que as mulheres, principalmente no caso do crack, se inclinem mais a utilizar o corpo como moeda de troca e os homens estejam mais envolvidos com o tráfico, vem sendo observado, mesmo discretamente, que elas estão cada vez mais envolvidas no mercado das drogas como "mulas", ou, mesmo, como autoridades em pontos de venda (BOITEUX, 2014BOITEUX, L. "Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas". In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.). Drogas: uma nova perspectiva São Paulo: IBCCRIM, 2014.; OLIVEIRA; NASCIMENTO; PAIVA, 2007OLIVEIRA, J.; NASCIMENTO, E.; PAIVA, M. "Especificidades de usuários(as) de drogas visando a uma assistência baseada na heterogeneidade". Esc Anna Nery Rev Enfermagem, v. 11, n. 4, dez, 2007, p. 694-698. Acesso em: 24 mai. 2014. Disponivel em: Disponivel em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4a22
http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4...
). Nesse sentido, Boiteux (2014BOITEUX, L. "Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas". In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.). Drogas: uma nova perspectiva São Paulo: IBCCRIM, 2014.) informa que, apesar de, em termos absolutos, haver mais homens presos devido ao tráfico, em termos relativos, as mulheres super-representam entre os condenados por esse crime, pois, entre 2007 e 2012, o crescimento das presas por tráfico foi de 77,11%, tendo quase dobrado o número de mulheres aprisionadas por este fato no Brasil, sendo que elas, em sua maioria, são não brancas e empobrecidas.

Especificamente sobre as mulheres, dos estudos que averiguam o seu consumo de SPA, muitos priorizam as repercussões associadas aos efeitos das substâncias psicoativas sobre o organismo feminino, nomeadamente sobre seu sistema reprodutor e à saúde do bebê, quando engravidam. As repercussões mais discutidas são sobre as alterações no ciclo menstrual, infertilidade, risco de aborto e mau desenvolvimento fetal (Síndrome do Alcoolismo Fetal, por exemplo), além do desenvolvimento de diferentes tipos de câncer e contaminação pelo HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis (SOUZA, 2013SOUZA, M. R. R. Repercussões do envolvimento com drogas para a saúde de mulheres atendidas em um CAPSAD de Salvador - BA Dissertação (Mestrado em Enfermagem), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013. 123f.). Seus resultados apontam que as consequências para a saúde estão diretamente relacionadas ao tipo de substância consumida, com foco na substância e sem considerar as particularidades da usuária e do contexto onde ela se insere. Esta tendência pode ser analisada a partir do fato de a tradição científica salientar o papel reprodutivo das mulheres como a parte mais importante de suas vidas, o que acaba por deixar omissões em relação a outros aspectos do cotidiano feminino (Idem).

Por outro lado, há estudos (de cunho predominantemente qualitativo), no Brasil, que investigam os aspectos socioculturais do uso de SPA por mulheres. Carvalho e Dimenstein (2004CARVALHO, L.; DIMENSTEIN, M. "O modelo de atenção à saúde e o uso de ansiolítico entre mulheres". Revista Estudos de Psicologia, v. 9, n. 1, 2004, p. 121-129. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/epsic/v9n1/22388.pdf>. Acesso em: out. 2014.
http://www.scielo.br/pdf/epsic/v9n1/2238...
), em uma pesquisa sobre o uso de ansiolíticos por mulheres na cidade de Natal-RN, concluíram que o modelo hegemônico de atenção em saúde não oferece novas possibilidades existenciais para as mulheres, pois está centrado no sintoma, na doença e na crença da neutralidade das técnicas e intervenções. As autoras sugerem que uma compreensão ampliada do fenômeno deve se ancorar em seu contexto sociocultural e econômico. Lenz Cesar (2005LENZ CESAR, Beatriz. O beber feminino: a marca social do gênero feminino no alcoolismo em mulheres. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública), Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2005. 116fls.) enfocou o "beber feminino" através de uma ótica de gênero, observando a conexão entre as relações e ideologias de gênero no alcoolismo feminino na cidade do Rio de Janeiro-RJ. De acordo com a autora, o beber feminino engloba fatores relacionados ao ser mulher no espaço social e ser mulher alcoolista, numa relação dialética entre o plano identitário e os processos de subjetivação hegemônicos de gênero, onde a violência doméstica surgiu de forma significativa.

Barbosa (2008BARBOSA, L. C. "O fundo de poço pode se transformar em fundo de posso!": trabalho com um grupo de mulheres alcoolistas sob a perspectiva da redução de danos. Dissertação (Mestrado em Ciências na Saúde Pública). Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/ENSP, Fundação Oswaldo Cruz, FIOCRUZ, Rio de Janeiro, RJ, 2008. 139f.) abordou o trabalho de um grupo terapêutico para mulheres alcoolistas de um serviço público de saúde mental do Rio de Janeiro e concluiu que os significados das ações desenvolvidas pelo grupo apontam para questões de gênero e saúde no cuidado às mulheres. O estudo de Vianna (2012VIANNA, Cristina. Gênero e psicologia clínica: risco e proteção na saúde mental de mulheres. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura). Universidade de Brasília, Brasília, 2012. 186 fls.) levantou informações sobre os fatores de risco presentes nas histórias de vida de mulheres usuárias de crack na cidade de Goiânia-GO, cujo conjunto de dados apontou para dimensões coletivas e subjetivas, tais como o fato de terem iniciado o uso por influência dos parceiros, conflitos familiares e violência doméstica.

Destacamos, ainda, fora do cenário brasileiro, o estudo de Miroslava (2012MIROLASVA, Z. Narrations of women who use drugs: towards a gender sensitive approach to drug-related services in Slovakia. Dissertation (Master of Arts in Gender Studies). Central European University, Department of Gender Studies, Budapeste, Hungria, 2012. 85f.), que investigou as experiências de mulheres em situação de uso de SPA ilícitas em Bratislava, capital da Eslováquia. Na análise da autora, algumas mulheres entrevistadas pensaram ter "falhado" face à feminilidade tradicional, que foi descrita através de termos como maternidade, cuidado com o lar, heterossexualidade e abstinência devido ao uso de SPA. A maioria das entrevistadas narrou uma experiência que demonstrava culpa e uma imagem negativa de si mesma, decorrente do uso de SPA.

De acordo com Sanchez Pardo (2008aSANCHEZ PARDO, Lorenzo. "Guía informativa: género y drogas. Documento Macro". Plan de atención integral a salud de la mujer de Galicia. Xunta de Galicia, Servizo Gallego de Saúde, 2008a.), embora a percentagem de mulheres com problemas quanto ao uso de SPA seja sensivelmente menor que a de homens, elas acabam por sofrer efeitos de maior gravidade, não apenas no tocante ao organismo, mas, também, às relações sociais. No Brasil, a mulher tem sido a eleita como personagem central da política de assistência à saúde, mas, ainda assim, suas demandas e necessidades exclusivas não têm sido observadas na implantação das ações nos serviços de saúde (OLIVEIRA, 2008OLIVEIRA, J. (In)visibilidade do consumo de drogas como problema de saúde num contexto assistencial: uma abordagem de gênero. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva), Universidade Federal da Bahia, UFBA, Salvador, 2008. 207f.), restritas à díade mãe-bebê, excluindo a multiplicidade do ser mulher.

Várias barreiras de ordem sistêmica, estrutural, social, cultural e pessoal quanto ao acesso aos serviços são enfrentadas pelas mulheres com uso de SPA em nosso país (OLIVEIRA; NASCIMENTO; PAIVA, 2007OLIVEIRA, J.; NASCIMENTO, E.; PAIVA, M. "Especificidades de usuários(as) de drogas visando a uma assistência baseada na heterogeneidade". Esc Anna Nery Rev Enfermagem, v. 11, n. 4, dez, 2007, p. 694-698. Acesso em: 24 mai. 2014. Disponivel em: Disponivel em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4a22
http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4...
). As sistêmicas mostram a falta de habilidade - tanto da parte de pesquisadores e formuladores de políticas, como da população feminina - em identificar as diferenças de gênero, o que, evidentemente, influencia as políticas e as decisões para programas que atendam às necessidades específicas das mulheres. As estruturais estão relacionadas às práticas e políticas dos programas e serviços de assistência à saúde da mulher no tocante: às abordagens utilizadas, à localização dos serviços e aos seus custos de acesso, à rigidez nas programações e nos critérios de admissão etc. Por fim, as barreiras social, cultural e pessoal se referem aos comportamentos e aos papéis predeterminados social e culturalmente às mulheres (Idem). Quanto a isso, reconhecer a necessidade da produção de um cuidado diferenciado para homens e mulheres é importante, mas o problema, aqui, é a intervenção orientada por visões cristalizadas, dicotômicas e tradicionais a respeito do gênero, das masculinidades e feminilidades. Há, nesse caso, uma naturalização de condutas relacionadas aos homens e às mulheres. Um modelo binário exerce forte influência sobre as percepções sociais, distorcendo o conhecimento e análise da realidade dos diferentes padrões de consumo de SPA e da heterogeneidade de segmentos sociais envolvidos na matéria.

Outra distorção se refere ao fato de o modelo masculino de consumo das SPA comumente ser tido como padrão, tanto por profissionais da saúde, como pela sociedade em geral, de modo que o consumo feminino fica subsumido a este padrão, o que pode fazer com que programas de prevenção e cuidado abordem suas respectivas populações como se fossem um todo monolítico. Ou seja, é como se todos os usuários pertencessem a uma mesma categoria social e devessem ser vistos a partir de um mesmo enfoque (OLIVEIRA; PAIVA e VALENTE, 2007OLIVEIRA, J.; PAIVA, M.; VALENTE, C. "A interferência do contexto assistencial na visibilidade do consumo de drogas por mulheres". Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 15, n. 2, 2007. Acesso em: 23 mai. 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n2/pt_v15n2a09.pdf .
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n2/pt_v...
; SANCHEZ PARDO, 2008aSANCHEZ PARDO, Lorenzo. "Guía informativa: género y drogas. Documento Macro". Plan de atención integral a salud de la mujer de Galicia. Xunta de Galicia, Servizo Gallego de Saúde, 2008a.; 2008b______. "Intervencións preventivas sensibles a la perspectiva de género". Plan de atención integral a salud de la mujer de Galicia. Xunta de Galicia, Servizo Galego de Saúde, 2008b.). Nesse caso, o erro habitual é o de se supor que o consumo de SPA envolve as mesmas medidas para homens e mulheres. Isto acaba por oferecer uma resposta social inadequada para as mulheres, uma vez que não há atenção voltada para as diferentes faixas etárias e padrões de consumos femininos, ignorando-se a evidência de que tanto homens como mulheres consomem substâncias, mas há especificidades (ainda mais porque este universo é comumente tido como "coisa de homens"). As mulheres com problemas voltados às substâncias psicoativas são submetidas a um nível maior de rechaço social que os homens. Além disso, não se percebe que as consequências advindas do uso são diferenciadas para homens e mulheres (SANCHEZ PARDO, 2008aSANCHEZ PARDO, Lorenzo. "Guía informativa: género y drogas. Documento Macro". Plan de atención integral a salud de la mujer de Galicia. Xunta de Galicia, Servizo Gallego de Saúde, 2008a., 2008b______. "Intervencións preventivas sensibles a la perspectiva de género". Plan de atención integral a salud de la mujer de Galicia. Xunta de Galicia, Servizo Galego de Saúde, 2008b.).

Assim, se consumir SPA pode não ter o mesmo significado para homens e mulheres, tampouco é visualizado da mesma forma pelas demais pessoas. Quando pensamos em comportamentos/papéis determinados socioculturalmente, se praticado por homens, o consumo pode ser tido como uma conduta ou até ritual de reforço à masculinidade, consequentemente, social e culturalmente aceitável (exceções para os casos de condutas violentas ou antissociais). Por outro lado, se realizado por mulheres, é considerado uma transgressão aos valores sociais dominantes, o que implica um maior grau de reprovação social e, comumente, em menos apoio familiar ou social (SANCHEZ PARDO, 2008aSANCHEZ PARDO, Lorenzo. "Guía informativa: género y drogas. Documento Macro". Plan de atención integral a salud de la mujer de Galicia. Xunta de Galicia, Servizo Gallego de Saúde, 2008a.).

O uso por mulheres é tido como um comportamento desviante e aquelas que o fazem contrariam as normas sociais duplamente: primeiro, pelo fato de usarem substâncias psicoativas; depois, porque assumem a possibilidade de não cumprir ou negligenciar os papéis segundo o script social, tais como o de mãe, esposa ou cuidadora da família. Tudo isto faz com que elas tendam a fazer um consumo de forma discreta, no âmbito privado, procurando pouco os serviços de saúde quando há a finalidade de cuidado contra a dependência, acabando, por conseguinte, se constituindo como uma "fração oculta da sociedade" (OLIVEIRA; NASCIMENTO; PAIVA, 2007OLIVEIRA, J.; NASCIMENTO, E.; PAIVA, M. "Especificidades de usuários(as) de drogas visando a uma assistência baseada na heterogeneidade". Esc Anna Nery Rev Enfermagem, v. 11, n. 4, dez, 2007, p. 694-698. Acesso em: 24 mai. 2014. Disponivel em: Disponivel em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4a22
http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4...
).

Sanchez Pardo (2008aSANCHEZ PARDO, Lorenzo. "Guía informativa: género y drogas. Documento Macro". Plan de atención integral a salud de la mujer de Galicia. Xunta de Galicia, Servizo Gallego de Saúde, 2008a.) concorda que a estigmatização das mulheres usuárias reforça o seu isolamento social, o que, muitas vezes, leva à ocultação do problema, à ausência ou à demora de pedido de ajuda para superar o mesmo - o que pode fazer com que as consequências sobre sua saúde física e mental ou em sua vida familiar, social ou laboral fiquem insustentáveis. Mesmo entre os usuários em geral, as mulheres são vistas com maior rechaço, haja vista que homens manifestam sua preferência por parceiras "livres das drogas" (ROMO AVILÉS, 2005ROMO AVILÉS, N. "Repensar la diferencia. Género en la prevención y uso de drogas". In: Observatorio de Drogodependencias de Castilla La Mancha, n. 1, 2005, p. 29-34. Disponível em: <Disponível em: http://digibug.ugr.es/bitstream/10481/22318/1/P%C3%A1ginas%20desderepensar%20la%20diferencia-3.pdf >. Acesso em: jun. 2014.
http://digibug.ugr.es/bitstream/10481/22...
).

O Observatório sobre Drogas - OBID (2007) - também toca na questão do estigma, que paira, sobremaneira, entre as mulheres, o que decorre, ainda, da noção seguidora do modelo hegemônico de feminilidade de que as usuárias sejam mais promíscuas e disponíveis para o sexo. Consequentemente, muitas mulheres ficam envergonhadas de admitir o problema e, assim, deixam de procurar o cuidado. Ademais, muitos profissionais da saúde não se sentem à vontade em inquirir sobre o uso de SPA às mulheres, retardando possíveis diagnósticos e os devidos encaminhamentos (Idem).

Ainda, segundo o OBID (2007), quando recorrem ao cuidado especializado, muitas mulheres consideram menos difícil falar sobre problemas sexuais e/ou outros quando não há homens no grupo. Assim, o abandono tende a ser menor nos grupos compostos apenas por mulheres. Outra barreira engloba eventos comuns na vida das usuárias, como: não ter com quem deixar os filhos ou o medo de perder a guarda deles quando admitem o problema.

Até aqui, foram mencionadas algumas especificidades constatadas à "categoria mulheres usuárias de SPA", mesmo o grupo "mulheres" não sendo uma população homogênea. Tampouco os usos de SPA são unívocos. Assim, não convém falar na relação "feminilidade x uso de substâncias psicoativas", e, sim, em "feminilidades x usos de SPA". Há diversos grupos de mulheres que se envolvem com o consumo de substâncias nos mais diversos contextos.

A este respeito, Oliveira, Nascimento e Paiva (2007OLIVEIRA, J.; NASCIMENTO, E.; PAIVA, M. "Especificidades de usuários(as) de drogas visando a uma assistência baseada na heterogeneidade". Esc Anna Nery Rev Enfermagem, v. 11, n. 4, dez, 2007, p. 694-698. Acesso em: 24 mai. 2014. Disponivel em: Disponivel em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4a22
http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4...
) argumentam como a idade e o tipo de substância são aspectos demarcadores de diferença entre elas. Pesquisas apontam, de forma geral, que as mulheres jovens, além do álcool, tendem a consumir mais maconha, crack e cocaína. As adultas e idosas, por sua vez, consomem, mais frequentemente, tabaco, álcool e medicamentos (em especial os tranquilizantes). Há, também, os consumos igualadores: os medicamentos inibidores do apetite são consumidos de maneira similar por jovens e adultas como uma forma de acompanhar os padrões de beleza difundidos na contemporaneidade.

As autoras citam um estudo realizado em Salvador, Bahia, onde foram identificados três grupos de mulheres usuárias, que se diferenciaram devido ao tipo de substância consumido e à forma de aquisição - o que corresponde a papéis e atividades sociais culturalmente relacionadas à mulher. O primeiro diz respeito às "donas de casa": de variadas faixas etárias (uso preferencial por maconha e álcool), usam no espaço privado e, geralmente, na companhia do parceiro; o segundo grupo é formado por mulheres adultas jovens que são profissionais do sexo e fazem o consumo de álcool, maconha, crack e cocaína; por fim, o terceiro grupo, nomeado "piriguetes", é constituído por mulheres jovens que se sujeitam a certas situações para terem acesso às SPA, como, por exemplo, ter relações sexuais com um/a ou mais usuários/as de drogas sem preservativo (Idem).

As autoras identificaram, ainda, a necessidade de especializar serviços voltados para mulheres grávidas, mulheres responsáveis por crianças, trabalhadoras do sexo, presidiárias e pertencentes a minorias raciais/étnicas. Sobre a assistência à pessoa usuária de SPA no Brasil, é necessário, também, considerar as mulheres vinculadas aos grupos de baixo capital sociocultural. Algumas questões são urgentes: quais os agravantes à saúde de grupos específicos de mulheres usuárias?; quais os impactos para a saúde por conta do uso, no sistema presidiário, por mulheres que praticam o sexo casual/prostituição com o objetivo de conseguir SPA, para mulheres que têm relacionamento sexual com homens usuários sem a devida proteção, para mulheres que fazem sexo com outras mulheres usuárias? (Idem). Acrescentamos: qual a importância de investigar os usos "não problemáticos" por mulheres?

Romo Avilés (2005) sugere, igualmente, uma atenção para o olhar dado aos grupos de usuárias de substâncias "ilegais" e "legais". A autora alerta: o menos importante é assinalar que as mulheres que usam substâncias ilegais são uma minoria. Não se pode abafar o fato de que há outras substâncias que podem ter consequências adversas para a saúde, que se diferenciam, unicamente, por serem "lícitas", portanto, mais aceitas socialmente e, em muitos casos, prescritas pelo sistema sanitário - vide os casos de inúmeras variedades de medicamentos (além do álcool e do tabaco).

Acrescentamos as questões intergeracionais, que também devem ter uma atenção redobrada, haja vista a tendência das mulheres mais jovens em se aproximarem do padrão de consumo masculino, com uso mais precoce em termos etários. O tipo de ocupação no mercado de trabalho e o território (se vive em áreas urbanas ou rurais) também são itens que merecem igual atenção.

A orientação sexual é outro aspecto importante, mas comumente negligenciado. São poucos os estudos que investigam o consumo de SPA por mulheres lésbicas, bem como por outros pertencimentos de gênero (por travestis e mulheres transexuais) - as quais, sabemos, também são vulneráveis ao uso abusivo.

Questão importante também diz respeito à classe social e raça/etnia, tal como observaram Silva e Menezes (2013SILVA, R.; MENEZES, J. Interseccionalidade em ação: o uso de álcool entre quilombolas de Garanhuns/PE. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013.) em um estudo sobre o uso de álcool entre jovens quilombolas de Garanhuns (PE). As autoras concluíram que a existência de um contexto atravessado pela violência sexista, pelo preconceito vivenciado devido à raça/etnia (relativamente aos/às outros/as moradores/as da cidade) e por outras desigualdades (como a falta de oportunidade de educação, trabalho, saúde etc.) pode vulnerabilizar as mulheres jovens/de classe social desfavorecida/quilombolas ao abuso de álcool quando o consumo funciona enquanto estratégia de sobrevivência para conseguir lidar com o sofrimento ocasionado por dificuldades cotidianas. Além disso, muitas dessas mulheres enfrentam preconceitos em certos espaços na comunidade (bares mais populares), onde são vistas como "piriguetes", "mulheres sem futuro", "que não são para casar". Se são "mães solteiras", a desqualificação torna-se mais profunda. De maneira diversa, outro grupo de mulheres da mesma cidade e mesma faixa etária, mas que trabalha e/ou estuda, porém bebem "moderadamente" em espaços destinados para dançar em grupo, são tidas como "moças direitas".

Em suma, marcadores de classe social, raça/etnia e gênero, associados, ampliam o estigma e dificuldades em geral para as mulheres pobres e não brancas que usam SPA. E, como afirma Saffioti (2004SAFFIOTI, H. "Diferença ou indiferença: gênero, raça/etnia, classe social". In: GODINHO, Tatau; SILVEIRA, Maria Lúcia da (Orgs.). Políticas Públicas e Igualdade de Gênero. Cadernos da Coordenadoria Especial da Mulher, n. 8, 2004, p. 35-42.), "esta soma/mescla de dominação e exploração é aqui entendida como opressão. Ou melhor, como não se trata de fenômeno quantitativo, mas qualitativo, ser explorada e dominada significa uma só realidade. Uma mulher não é só discriminada por ser mulher + por ser pobre + por ser negra" (p. 11), ou seja, associa as várias identidades estigmatizadas em muitos cenários.

Considerações finais

Vimos, nas páginas anteriores, que o uso de SPA tem sido abordado por diversas matérias e, sem desprezar a importância de uma discussão interdisciplinar e um cuidado integral, priorizamos, neste artigo, uma abordagem sociocultural de gênero, pois possibilita compreender a situação social e político-econômica das mulheres junto das determinações, da continuidade e das implicações dos seus consumos. Isto nos auxilia a conhecer e analisar os usos femininos, expandindo o debate para além do campo simplesmente moral, biológico, para o campo político. Propicia a oportunidade de desconstruir situações, intervenções e posturas cristalizadas e estereotipadas. Dito isto, reforçamos a necessidade de discussões que priorizem o foco nos direitos e ouçam as demandas específicas de mulheres em suas experiências com o uso de substâncias psicoativas. Mais: ponderar a heterogeneidade inerente ao grupo das mulheres, pensando em como a produção de conhecimento pode auxiliar a construir práticas de atenção e políticas mais cidadãs às usuárias em suas diversas modalidades de uso, circunstâncias sociais e ciclo vital.

Observamos que existem importantes estudos acerca da relação gênero x uso de SPA, mas frente a este conjunto de publicações, destacamos ser preciso pensar mais sobre aqueles usos "não institucionalizados". Se o debate é incipiente a respeito de usos "diagnosticamente" indevidos, o que se dirá daqueles que estão mais escondidos ainda? Por exemplo, consumos considerados "problemáticos", que por "n" determinantes não acederam aos serviços ou, também, a consumos "não problemáticos" ("não doentios"), mas potencialmente estigmatizados como os primeiros. E o que se dirá sobre os consumos de SPA que servem, supostamente, para produzir saúde, mas, ao contrário, correm risco de engessar alternativas (como em casos de medicamentos ansiolíticos)? Desta maneira, propõe-se conhecer as experiências das mulheres que usam SPA para além de sintomas, sinais, quadros nosográficos, aspectos legais e morais.

Convém enfatizar a importância da escuta e da apreensão dos campos de sentido que estão em jogo nesses consumos, tão desconhecidos por profissionais de várias categorias que atuam na questão. Aproximar-se das histórias, ter acesso ao universo heterogêneo dessas mulheres possibilita reconhecer as determinações sociais presentes nos seus consumos. Interessa-nos, enquanto aposta ético-política, desindividualizar a questão d@ usuári@ e manter a tensão entre o particular e o geral: ao passo que é preciso atuar sobre o singular, isto deve ser circunscrito pelas determinações sociais dos padrões e sentidos de uso - algo que os serviços têm dificuldade em pensar. Interessa-nos que o reconhecimento de tais determinações possa estimular a operação de outros campos de cuidado para com este público; possa fazer abandonar o paradigma da abstinência que lida com o "doente-criminoso"; possa fazer apregoar um projeto societário mais afinado ao paradigma da Redução de Danos.

Referências

  • ALVES, J. E.; CORRÊA, S. "Igualdade e desigualdade de gênero no Brasil: um panorama preliminar, 15 anos depois do Cairo". In: SEMINÁRIO BRASIL, Belo Horizonte, 2009, p. 121-231.
  • ANDERSON, T. "Drug use and gender". In: FAUPEL, C. E.; ROMAN, P. M. (Eds.). Encyclopedia of criminology and deviant behavior, v. IV: Self destructive behavior and disvalued identity. Philadelphia: Taylor & Francis Publishers, 2001, p. 286-289. Disponível em: <Disponível em: http://www.udel.edu/soc/tammya/pdfs/Drug%20Use%20and%20Gender.pdf >. Acesso em: ago. 2014.
    » http://www.udel.edu/soc/tammya/pdfs/Drug%20Use%20and%20Gender.pdf
  • BARBOSA, L. C. "O fundo de poço pode se transformar em fundo de posso!": trabalho com um grupo de mulheres alcoolistas sob a perspectiva da redução de danos. Dissertação (Mestrado em Ciências na Saúde Pública). Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/ENSP, Fundação Oswaldo Cruz, FIOCRUZ, Rio de Janeiro, RJ, 2008. 139f.
  • BARRETO NETO, H. "Padrões de uso de drogas, vulnerabilidade e autonomia: uma análise jurídico-bioética sobre o art. 28, caput, da lei n. 11.343/2006". In: SILVA, Monica Neves Aguiar da; ENGELMANN, Wilson (Orgs.). Biodireito. XXII Congresso Nacional do Conpedi 1.ed., v. único, São Paulo: Fundação José Arthur Boiteux, 2013, p. 33-62. Disponível em: <Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=9e69fd6d1c5d1cef >.Acesso em: 20 nov 2014.
    » http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=9e69fd6d1c5d1cef
  • BOITEUX, L. "Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas". In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.). Drogas: uma nova perspectiva São Paulo: IBCCRIM, 2014.
  • BOKANY, V. Drogas no Brasil: entre a saúde e a justiça - proximidades e opiniões. São Paulo: Perseu Abramo, 2015. Disponível em: <Disponível em: http://www.fpabramo.org.br/publicacoesfpa/wp-content/uploads/2015/05/DrogasNoBrasil.pdf >. Acesso em: 13 jun. 2015.
    » http://www.fpabramo.org.br/publicacoesfpa/wp-content/uploads/2015/05/DrogasNoBrasil.pdf
  • BRANDÃO, A. M. E se tu fosses rapaz? Homo-erotismo feminino e construção social da identidade. Porto: Afrontamento, 2010.
  • BRASIL, Ministério da Saúde. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.
  • ______. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem Brasília: Ministério da Saúde, 2008.
  • ______. Secretaria Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Legislação e Políticas Públicas sobre Drogas Brasília: Presidência da República, 2010.
  • BUSFIELD, Joan. Men, women and madness: understanding gender and mental disorder. New York: New York University Press, 1996.
  • CARVALHO, L.; DIMENSTEIN, M. "O modelo de atenção à saúde e o uso de ansiolítico entre mulheres". Revista Estudos de Psicologia, v. 9, n. 1, 2004, p. 121-129. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/epsic/v9n1/22388.pdf>. Acesso em: out. 2014.
    » http://www.scielo.br/pdf/epsic/v9n1/22388.pdf
  • CUNHA JUNIOR, R Encarceramento: cegueira e indiferença da perspectiva de gênero e de direitos humanos na lei de drogas, 2015. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/tag/ronio-neves-da-cunha-junior/>. Acesso em: jun. 2015.
    » http://emporiododireito.com.br/tag/ronio-neves-da-cunha-junior/
  • FIORE, M. Uso de drogas: substâncias, sujeitos e eventos Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, 2013. 210f.
  • GIL, G.; FERREIRA, J. "Apresentação". In: LABATE, Bia et al. (Dir.). Drogas e cultura: novas perspectivas Salvador: EDUFBA, 2008, p. 9-12.
  • LENZ CESAR, Beatriz. O beber feminino: a marca social do gênero feminino no alcoolismo em mulheres. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública), Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2005. 116fls.
  • MEDEIROS, R.; CECCHIN, R. "Marchas da maconha: para além da neblina sensacionalista". In: MORAES, Maristela; CASTRO, Ricardo; PETUCO, Dênis (Orgs.). Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral à saúde. Recife: Instituto PAPAI, 2011.
  • MIROLASVA, Z. Narrations of women who use drugs: towards a gender sensitive approach to drug-related services in Slovakia. Dissertation (Master of Arts in Gender Studies). Central European University, Department of Gender Studies, Budapeste, Hungria, 2012. 85f.
  • MORAES, Maristela; MEDRADO, Benedito; LYRA, Jorge; GRANJA, Edna. "Homens, violência contra mulheres e atenção em saúde mental: algumas reflexões sobre interfaces complexas". In: MORAES, Maristela; CASTRO, Ricardo; PETUCO, Dênis (Orgs.). Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral à saúde. Recife: Instituto PAPAI, 2011.
  • OBID - Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas. Tratamento/populações específicas/mulheres, 2007. Disponível em: Disponível em: https://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/conteudo/index.php?id_conteudo=11423&rastro=TRATAMENTO%2FPopula%C3%A7%C3%B5es+espec%C3%ADficas/Mulheres Acesso em: 30 jun. 2014.
    » https://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/conteudo/index.php?id_conteudo=11423&rastro=TRATAMENTO%2FPopula%C3%A7%C3%B5es+espec%C3%ADficas/Mulheres
  • OLIVEIRA, J. (In)visibilidade do consumo de drogas como problema de saúde num contexto assistencial: uma abordagem de gênero. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva), Universidade Federal da Bahia, UFBA, Salvador, 2008. 207f.
  • OLIVEIRA, J.; PAIVA, M.; VALENTE, C. "A interferência do contexto assistencial na visibilidade do consumo de drogas por mulheres". Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 15, n. 2, 2007. Acesso em: 23 mai. 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n2/pt_v15n2a09.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n2/pt_v15n2a09.pdf
  • OLIVEIRA, J.; NASCIMENTO, E.; PAIVA, M. "Especificidades de usuários(as) de drogas visando a uma assistência baseada na heterogeneidade". Esc Anna Nery Rev Enfermagem, v. 11, n. 4, dez, 2007, p. 694-698. Acesso em: 24 mai. 2014. Disponivel em: Disponivel em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4a22
    » http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n4/v11n4a22
  • PASSOS, E. H.; SOUZA, T. P. "Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de "guerras às drogas"". Psicologia & Sociedade, v. 23, n. 1, p. 154-162, 2011. Acesso em: 25 jul. 2015. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/psoc/v23n1/a17v23n1.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/psoc/v23n1/a17v23n1.pdf
  • PEDROSA, C. H Cuidar? Sim; Olhar de gênero? Não. Os sentidos do cuidado no CAPS em documentos técnicos do Ministério da Saúde. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006. 200f.
  • ROMO AVILÉS, N. "Repensar la diferencia. Género en la prevención y uso de drogas". In: Observatorio de Drogodependencias de Castilla La Mancha, n. 1, 2005, p. 29-34. Disponível em: <Disponível em: http://digibug.ugr.es/bitstream/10481/22318/1/P%C3%A1ginas%20desderepensar%20la%20diferencia-3.pdf >. Acesso em: jun. 2014.
    » http://digibug.ugr.es/bitstream/10481/22318/1/P%C3%A1ginas%20desderepensar%20la%20diferencia-3.pdf
  • SAFFIOTI, H. "Diferença ou indiferença: gênero, raça/etnia, classe social". In: GODINHO, Tatau; SILVEIRA, Maria Lúcia da (Orgs.). Políticas Públicas e Igualdade de Gênero. Cadernos da Coordenadoria Especial da Mulher, n. 8, 2004, p. 35-42.
  • SANCHEZ PARDO, Lorenzo. "Guía informativa: género y drogas. Documento Macro". Plan de atención integral a salud de la mujer de Galicia. Xunta de Galicia, Servizo Gallego de Saúde, 2008a.
  • ______. "Intervencións preventivas sensibles a la perspectiva de género". Plan de atención integral a salud de la mujer de Galicia. Xunta de Galicia, Servizo Galego de Saúde, 2008b.
  • SANTOS, Naíde T. V.; ALBUQUERQUE, Rossana C. H. "Saúde mental, álcool e outras drogas na atenção primária". In: MORAES, Maristela; CASTRO, Ricardo; PETUCO, Dênis (Orgs.). Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral à saúde . Recife: Instituto PAPAI, 2011.
  • SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. SOS Corpo. Recife, 2005.
  • SILVA, R.; MENEZES, J. Interseccionalidade em ação: o uso de álcool entre quilombolas de Garanhuns/PE. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013.
  • SOUZA, M. R. R. Repercussões do envolvimento com drogas para a saúde de mulheres atendidas em um CAPSAD de Salvador - BA Dissertação (Mestrado em Enfermagem), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013. 123f.
  • USPPA (Unidad de Seguimiento de Políticas Públicas en Acciones) - El ocultamiento de las mujeres en el consumo de sustancias psicoactivas. Despacho diputada: Diana Maffia; Dirección: Patricia Colace; Asesoría técnica: Santiago Lerena. Legislatura de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, CABA, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://dianamaffia.com.ar/archivos/El-ocultamiento-de-la-mujer-en-el-consumo-de-sustancias-psicoactivas.pdf >. Acesso em: mai. 2014.
    » http://dianamaffia.com.ar/archivos/El-ocultamiento-de-la-mujer-en-el-consumo-de-sustancias-psicoactivas.pdf
  • VELOSO, L.; CARVALHO, J.; SANTIAGO, L. "Redução de Danos decorrentes do uso de drogas: uma proposta educativa no âmbito das políticas públicas". In: BRAVO, M. I. S. et al. (Orgs.). Saúde e serviço social. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: UERJ, 2004.
  • VIANNA, Cristina. Gênero e psicologia clínica: risco e proteção na saúde mental de mulheres. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura). Universidade de Brasília, Brasília, 2012. 186 fls.
  • ZINBERG, N. Drug, set and setting: the basis for controlled intoxicant use. New Haven: Yale University Press, 1984.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2014
  • Aceito
    10 Nov 2015
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br