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Não há igualdade sem diferença, nem diferença sem igualdade

FEMENÍAS. María Luisa. . Sobre sujeto y género: re-lecturas feministas desde Beauvoir a Butler. 2. ed.Rosario: Prohistoria Ediciones, 2012. 214 p.

No ano de 2012, a filósofa María Luisa Femenías lançou a segunda edição do livro Sobre sujeto y género - publicado primeiramente em 2000 - com o objetivo de rever e acrescentar algumas discussões que, a seu ver, aparecem na versão de 2012 de forma mais desenvolvida e amadurecida. Essa obra, que possui diferentes camadas de escrita, é de fato, segundo a autora, o seu primeiro livro em feminismo e teoria de gênero.1 1 Ver entrevista da filósofa realizada pela antropóloga Miriam Pilar Grossi e publicada na Revista Estudos Feministas, v. 17, n. 3, Florianópolis, set./dez. 2009. No escrito, María Luisa Femenías se dedica a um dos temas mais difíceis e complexos da teoria feminista contemporânea: a construção da categoria de sujeito e os diferentes mecanismos históricos e filosóficos que fizeram as mulheres serem constantemente excluídas de sua definição. Fruto também do trabalho dessa filósofa em um projeto de pesquisa sobre "Las criticas pos-modernas al sujeto moderno", assim como da influência da feminista Celia Amoròs,2 2 A filósofa espanhola Celia Amoròs, foi uma das grandes interlocuções de María Luisa Femenías em sua inclinação para os estudos feministas e para as teorias de gênero. Com ela, desenvolveu doutorado na Espanha e travou intenso diálogo sobre uma abordagem feminista ao que denominou de "sistema aristotélico". Muito do caminho trilhado pela filósofa argentina, de estudiosa de filosofia clássica aos estudos de temáticas e de teorias feministas, possui influência dessa relação. É aportando-se a essa pensadora que Femenías desenvolve muitas das principais discussões propostas nesta obra. sua orientadora de doutorado, essa obra traz diferentes reflexões - aproximações e distanciamentos - sobre o tema do sujeito em distintas obras teóricas feministas.

Já no momento de apresentação das problemáticas que norteariam as reformulações da nova edição, a autora afirma que dois questionamentos centrais permaneceram: "¿Cuáles han sido los cercenamientos materiales de una categoría formal como la de sujeto para las mujeres (y otros grupos minoritarios también excluidos)? ¿Cuál es la pertinencia de mantenerla, fragmentarla o anularla? (p. 11). Tais perguntas se articularam durante toda a obra. A intenção de Femenías é, a partir dessas questões, explorar duas perspectivas centrais do feminismo contemporâneo que, em muitos aspectos, aparecem de forma divergente: os ditos feminismos da igualdade e os feminismos da diferença.

Para estabelecer essa problematização, a autora parece atentar para os cuidados propostos por Clare Hemings,3 3 Clare HEMMINGS, 2009. sobre a importância de se contar a história dos feminismos de uma forma não etapista - em que os feminismos anteriores à década de 60 seriam marcados por análises mais biologizantes enquanto os feminismos pós-estruturalistas emergidos nas décadas de 90 estariam marcados por um vislumbre teórico mais amplo e capaz de desconstruir de forma mais poderosa os discursos sobre o sujeito masculino hegemônico. A autora complexifica a contribuição e as possibilidades desconstrucionistas de mais de meio século de desenvolvimento das teorias feministas ocidentais, assim como busca entender a forma com que essas contribuições responderam (e ainda respondem) a demandas específicas de determinados lugares e tradições filosóficas.

Nesse sentido, suas reflexões iniciam com um exercício de "por para dialogar" duas filósofas representativas dessas duas matrizes de interpretação - Simone Beauvoir e Judith Butler - que em consequência de sua mediação são lidas "uma pela outra", ou seja, é com os suportes teóricos elaborados por cada uma que a autora tenta mostrar as aproximações, as divergências, mas, especialmente, os diálogos, que, mediante uma metodologia arqueológica, podem ser estabelecidos entre as autoras.

Simone Beauvoir representaria, para os feminismos da diferença pós-modernos, uma teorização feminista que, apesar de romper com uma série de determinismos colocados para o sujeito universal, ainda possuiria, de acordo com Butler, um entendimento essencialista e biologizante da ideia de "mulher". Segundo as principais críticas das teóricas pós-modernas - exemplificadas por Femenías, as críticas da filósofa estadunidense Butler -, em O Segundo Sexo, ao construir suas reflexões sobre "o outro" como sujeito da ilustração ocidental, Beauvoir aceitaria a compreensão de dimorfismo sexual, típicos da racionalidade universalista e patriarcal. Dessa forma, a teórica francesa contribuiria de forma limitada para uma real desconstrução dos determinismos que marcam a construção do sujeito ou da impossibilidade mesma dessa noção, pois aceitaria uma compreensão apriorística do discurso racional sobre o sexo, e, portanto, sua obra estaria marcada por um essencialismo universalizante da categoria mulheres.

Ponderando essas críticas, a filósofa argentina parte de um conceito que, a seu ver, marca todo o livro de Beauvoir e que demonstra a gama de possibilidades não essencialistas trazidas pela autora: a ideia de situação. Primeiramente, Femenías entende que a obra de Beauvoir deve ser compreendida como uma ruptura profunda com o sujeito universal sartreano e com as tradições filosóficas que veem a liberdade como um definidor da noção de sujeito. Para Beauvoir, diz Femenías, a liberdade depende de um "conjunto de determinaciones que señalan la situación" (p. 19), e, nesse sentido, a filósofa francesa separaria a liberdade - em um sentido metafísico e de plenitude do sujeito - da situação, que introduziria a uma limitação histórica e contingente dessas assertivas. Para Beauvoir, diz Femenías: "El sujeto ni es absoluto ni tiene libertad absoluta: se trata de un sujeto social en interacción con otros sujetos, en parte intrínsecamente libre, en parte socialmente construido y limitado." (p. 19).

Embora a filósofa argentina aceite a crítica efetuada por Butler, de que Beauvoir não problematiza o corpo como um construto social, entende que os escritos beauvoirianos são um marco para a descentração das bases universalistas, ao introduzir as mulheres como um sujeito "situacional" que põe em xeque as perspectivas patriarcais das definições de sujeito de até então. Na interpretação proposta por Femenías, Beauvoir, apesar de adotar a linguagem do dimorfismo sexual, não veria a biologia como um fator de determinação, mas como um campo de possibilidades historicamente situado: "El sexo es, en primer término, sexo vivido; es decir, vivido culturalmente."(p. 21).

Após estabelecer os diálogos entre Beauvoir e Butler, e demarcar a importância da obra de Simone Beauvoir para o desenvolvimento da teoria feminista, Femenías apresenta as tensões colocadas entre o pensamento feminista que propõe a igualdade - representado principalmente pelas teóricas europeias - e os feminismos da diferença, especialmente os de matriz pós-moderna norte-americana, que buscariam criticar as grandes narrativas e pulverizar a categoria central do discurso político feminista: as mulheres.

A autora apresenta para as/os leitoras/es as principais influências da perspectiva teórica pós-moderna, ressaltando a importância das suas contribuições. Ao enfatizarem a diferença entre o sujeito mulher, defendido por aquelas feministas da igualdade, o feminismo da diferença estabelecia a questão da interseccionalidade como fundamental na definição dessa categoria. Introduzir as diferenças étnico-raciais, de classe, de idade, de religião, de sexualidade, dentre outras, passou a ser imprescindível para minar qualquer projeção universalista e essencialista dessa categoria. Mostrando as influências da noção de poder desenvolvida por Foucault,4 4 Michel FOUCAULT, 1988 e 2012. a compreensão do corpo e do sexo como construtos discursivos e situacionais também é apresentada pela autora como um deslocamento fundamental realizado por essa perspectiva teórica do feminismo. Como situa Femenías, as teóricas pós-modernas puseram em xeque a possibilidade de um sujeito mulher estável, naturalizado, marcado por um denominador comum biológico, que pretensamente estaria fora de uma enunciação histórica, ou seja, que estivesse fora de uma enunciação disciplinar, marcada por relações de poder.

Ao apresentar as diferenças entre essas duas concepções, Femenías privilegia, durante toda a obra, a apresentação dos diálogos possíveis e as principais contribuições dessas perspectivas. A filósofa considera que, apesar de algumas limitações essencialistas que fizeram parte dessas abordagens da igualdade, elas foram fundamentais para o questionamento do universalismo das construções humanistas do sujeito e possibilitaram uma visibilidade das demarcações patriarcais de tal categoria. Nesse sentido, elevar as mulheres a uma categoria que se introduz na inteligibilidade do discurso ilustrado foi de suma importância para o desenvolvimento da própria teoria feminista na segunda metade do século XX.

Além dessas questões, Femenías problematiza a abordagem teórica das feministas pós-modernas, assim como suas principais críticas e contribuições. A autora atenta para os cuidados necessários para que a concepção de sujeito descentrado pós-moderno não se configure em uma nova "invisilidade" ou "indizibilidade" das mulheres, tal como acontecia com diferentes categorias modernas. Essa ponderação aparece como uma tentativa de pensar que a fragmentação da categoria mulheres não deva aparecer como uma compreensão incompatível com um projeto emancipatório feminista, que inviabilize a articulação de importantes lutas em níveis coletivos e mais internacionalistas. A diferença não poderia significar uma contraposição à igualdade. A diferença é uma contraposição à identidade, aos preceitos estabilizantes do sujeito, enquanto a igualdade é uma contraposição às relações que sustentam as desigualdades. Construindo o argumento central da autora, essa polarização é uma falsa antítese, uma falsa questão que deve ser superada na construção das teorias feministas.

Para retomar essa questão, Femenías se apropria de algumas problematizações colocadas pelos feminismos pós-coloniais sobre a importância de se conceituar o sujeito político do feminismo dentro de uma contingência histórica, conceitual e geográfica, sem perder de vista as intersecções que fortalecem as lutas internacionais. María Luisa Femenías retoma o termo emancipação como forma de dizer que ainda é necessária uma preocupação do feminismo com lutas que articulem outras demandas constituintes dessa própria definição descentrada de mulheres.

Ao apontar que a absoluta maioria das pessoas pobres do mundo são constituídas por pessoas identificadas como mulheres;5 5 A "feminização da pobreza" e a violência são dois dos conceitos mais trabalhados nas obras de Femenías. Ver: FEMENÍAS, María L. y Rossi, Paula S. "Poder y violência sobre el cuerpo de las mujeres". Sociologias, Porto Alegre, ano 11, n. 21, p. 42-65, jan./jun. 2009. que grande parte da infração dos direitos humanos são praticadas contra mulheres, em especial, nos lugares que fogem aos eixos centrais de produção de conhecimento, a autora relança o desafio de se pensar que a diferença como um discurso contra-hegemônico da identidade e a igualdade como um projeto de emancipação feminista interseccional podem ser uma das chaves centrais para a luta feminista contemporânea e para a produção de teoria feminista.

Esboçando suas conclusões, após uma extensa reflexão desses estudos feministas, a filósofa argentina apresenta a importância de se apropriar das diferentes críticas e ferramentas teóricas apresentadas por essas perspectivas, propondo uma leitura que busca diluir as compreensões polarizadoras do que seriam os pensamentos da diferença e da igualdade. É importante ponderar que, nessa releitura da obra, inicialmente lançada em 2000, a autora poderia ter explorado mais intensamente as crescentes produções teóricas da América Latina, em especial, as feministas que se apropriam das discussões pós-coloniais, fator que pode ser destacado como uma ausência na obra relida. No entanto, a grande contribuição do trabalho se faz na provocação de alguns cânones da teoria feminista - que vai de Beauvoir a Butler, ressaltando a importância de uma leitura autônoma e menos dicotômica dessas teóricas; e, finalmente, pelo esforço de dizer que a chave para o debate contemporâneo feminista deve partir da premissa de que "no hay igualdad sin diferencia, ni diferencia sin igualdad".

  • FEMENÍAS, María L. y Rossi, Paula S. "Poder y violência sobre el cuerpo de las mujeres". Sociologias, Porto Alegre, ano 11, n. 21, p. 42-65, jan./jun. 2009.
  • FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
  • ______. A microfísica do poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012.
  • RIAL, Carmen Silvia Morais; GROSSI, Miriam Pillar. "Nem Deus, nem amo, nem marido: uma trajetória do feminismo na Argentina - entrevista com María Luisa Femenías". Revista Estudos Feministas, v. 17, n. 3, Florianópolis, set./dez. 2009.
  • HEMMINGS, Clare. "Contando estórias feministas". Revista Estudos Feministas, v. 17. n. 1, p. 215-241, 2009.
  • 1
    Ver entrevista da filósofa realizada pela antropóloga Miriam Pilar Grossi e publicada na Revista Estudos Feministas, v. 17, n. 3, Florianópolis, set./dez. 2009.
  • 2
    A filósofa espanhola Celia Amoròs, foi uma das grandes interlocuções de María Luisa Femenías em sua inclinação para os estudos feministas e para as teorias de gênero. Com ela, desenvolveu doutorado na Espanha e travou intenso diálogo sobre uma abordagem feminista ao que denominou de "sistema aristotélico". Muito do caminho trilhado pela filósofa argentina, de estudiosa de filosofia clássica aos estudos de temáticas e de teorias feministas, possui influência dessa relação. É aportando-se a essa pensadora que Femenías desenvolve muitas das principais discussões propostas nesta obra.
  • 3
    Clare HEMMINGS, 2009.
  • 4
    Michel FOUCAULT, 1988 e 2012.
  • 5
    A "feminização da pobreza" e a violência são dois dos conceitos mais trabalhados nas obras de Femenías. Ver: FEMENÍAS, María L. y Rossi, Paula S. "Poder y violência sobre el cuerpo de las mujeres". Sociologias, Porto Alegre, ano 11, n. 21, p. 42-65, jan./jun. 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015
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