Resumo
Este estudo qualitativo objetivou caracterizar o contexto de vida e os significados atribuídos ao processo migratório de famílias haitianas. Participaram da pesquisa sete haitianas, mães, que tiveram filhos no Brasil. Na coleta dos dados, utilizou-se a combinação da entrevista em profundidade e Meca Genograma. A organização e a análise dos dados tiveram como base a Grounded Theory e o auxílio do software Atlas.ti 22.1.0, da qual emergiram cinco categorias de análise. Os resultados evidenciaram que a condição de vida no Haiti configurou-se como estressor do ciclo vital familiar e impulsionou o processo migratório. Identificou-se que a migração significou a possibilidade de vida com mais segurança, o acesso aos serviços de saúde, a educação de qualidade e as oportunidades de emprego. Observou-se que a ambivalência de sentimentos acompanhou todo o processo migratório, que somada à barreira linguística e aos lutos vivenciados, tensionaram a decisão de migrar e a chegada ao Brasil.
Palavras-chave
migração internacional; família imigrante; haitianos; contexto de vida
Abstract
This qualitative study aimed to characterize the life context and the meanings attributed to the migration process of Haitian families. Seven Haitian mothers who had children in Brazil participated in the research. In data collection, the combination of in-depth interview and Genogram Mecha were used. The organization and analysis of the data were based on the Grounded Theory and the help of the Atlas.ti 22.1.0 software, from which five categories of analysis emerged. The results showed that the living condition in Haiti was configured as a stressor in the family life cycle and drove the migratory process. It was identified that migration meant the possibility of a life with more security, access to health services, quality education, and job opportunities. It was observed that ambivalence of feelings accompanied the whole migratory process, which, added to the language barrier and the grief experienced, strained the decision to migrate and the arrival in Brazil.
Keywords
international migration; immigrant family; Haitians; life context
Introdução
Na contemporaneidade registram-se, no contexto mundial, 281 milhões de pessoas vivendo em um lugar diferente daquele em que nasceram, conforme dados do World Migration Report 2022, da International Organization for Migration - IOM (IOM, 2022IOM. World Migration Report, 2022. 2022. Disponível em: https://brazil.iom.int/sites/g/files/tmzbdl1496/files/WMR-2022-EN.pdf
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). A esse número, somam-se aqueles migrantes que não são considerados nas estatísticas oficiais, como os migrantes irregulares e aqueles que retornaram ao seu país de origem, depois de uma experiência de migração internacional. Trata-se de um contingente de pessoas que, por diferentes motivos, foram obrigadas ou escolheram mudar de um país para outro. Assim, a diversidade de razões que levam as pessoas a migrar, os distintos fluxos migratórios que se observam no cenário mundial e a singularidade da vida de cada migrante complexificam esse fenômeno, o qual é objeto de estudo de diferentes áreas do conhecimento.
No campo de estudos do Desenvolvimento Humano e da Família, observam-se perspectivas teóricas que se coadunam em contribuições significativas para o entendimento de como as migrações humanas implicam em transformações, não só para os indivíduos, mas, também, para as dinâmicas e histórias das famílias. Nesse sentido, as duas principais perspectivas teóricas utilizadas no presente artigo se ancoram na Teoria do Ciclo Vital (Carter, McGoldrick, 1995CARTER, Betty; McGOLDRICK, Monica. As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre, Brasil: Artmed, 1995.) e a Multidimensional Ecosystemic, Comparative Approach (MECA), traduzida como Abordagem Multidimensional, Ecossistêmica e Comparativa (Falicov, 2014FALICOV, Celia Jaes. Latino families in therapy. 2 ed. New York: The Guilford Press, 2014.).
A Teoria do Ciclo Vital Familiar reconhece a família dentro de um processo constante de transformação, em que cada etapa de transição implica em uma reorganização das relações familiares, suas dinâmicas, seus acordos, seus rituais, suas regras e seus significados. O ciclo vital familiar configura-se em torno de diferentes estágios e estressores, que podem ser verticais ou horizontais e que perpassam o desenvolvimento familiar e individual.
Nos estressores verticais, estão inclusos os padrões de relacionamento e funcionamento transmitidos de uma geração para outra e que integram a história familiar, tais como: crenças, padrões emocionais, valores, práticas religiosas, carga genética, segredos, dentre outros. Já nos estressores horizontais, encontram-se as mudanças e transições enfrentadas pela família ao longo de sua história e podem ser: 1) estresses desenvolvimentais, como nascimento de uma criança, morte de um familiar ou perda do emprego, 2) estresses imprevisíveis, como morte precoce, acidente, desastres naturais ou migração e 3) estresses relacionados a eventos históricos, políticos e econômicos, como uma guerra, crise econômica, clima político, desastre e migração (Carter, McGoldrick, 1995CARTER, Betty; McGOLDRICK, Monica. As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre, Brasil: Artmed, 1995.; McGoldrick, Shibusawa, 2016McGOLDRICK, Monica; SHIBUSAWA, Tery. O ciclo vital familiar. In: WALSH, Froma. Processos normativos: diversidade e complexidade. Porto Alegre: Artmed, 2016, p. 376-398.). No que se refere aos imigrantes e seus familiares, os estressores horizontais são, especialmente, os geradores das motivações ou da necessidade de migrar para outros países em busca de melhores condições de vida, segurança, trabalho e renda (Restrepo-Pineda et al., 2019RESTREPO, Jair Eduardo et al. Aproximación al proceso migratorio de las familias venezolanas al Área Metropolitana del Valle de Aburrá. Revista Latinoamericana de Estudios de Familia, v. 11, n. 2, p. 59-79. 2019. Disponível em: https://revistasojs.ucaldas.edu.co/index.php/revlatinofamilia/article/view/72
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).
Indo ao encontro da Teoria do Ciclo Vital, a Abordagem Multidimensional, Ecossistêmica e Comparativa, proposta por Falicov (2014FALICOV, Celia Jaes. Latino families in therapy. 2 ed. New York: The Guilford Press, 2014., 2016______. Processos normativos das famílias imigrantes: uma estrutura multidimensional. In: WALSH, Froma. Processos normativos da família: diversidade e complexidade. Trad. Sandra Maria Mallmann da Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2016.), amplia as possibilidades de compreensão da família imigrante, integrando quatro dimensões: 1) migração e aculturação, 2) contexto ecológico, 3) ciclo vital familiar e 4) organização familiar. Essas quatro dimensões possibilitam interseccionar e aprofundar tanto os aspectos relacionados à família (ciclo vital e organização familiar) quanto os aspectos contextuais, sociais e culturais (contexto ecológico, migração e aculturação) os quais perpassam a família imigrante.
Adota-se, para este estudo, a expressão processo migratório com o objetivo de reiterar seu caráter de movimento e multidimensionalidade. Nessa perspectiva, entende-se por processo migratório a soma da saída de um local com a chegada a outro, a reorganização e todos os momentos singulares que compõem esta transição, incluindo fatores socioculturais e psicológicos (Trad, 2003TRAD, Leny. Processo migratório e saúde mental: rupturas e continuidade na vida cotidiana. Physis, v. 13, n. 1, p. 139-156, 2003. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312003000100007
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), ou seja, esse conceito integra o fenômeno de saída, chegada e seus reflexos. Assim, considera-se que o processo migratório se inicia antes mesmo da tomada de decisão para a migração, ou seja, quando a pessoa ou família iniciam uma reflexão sobre a condição de vida em um determinado contexto e avaliam que ele não oferece condições mínimas de permanência. Em diálogo com Grandesso (2011GRANDESSO, Marilene. Sobre a Reconstrução do Significado. 3 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.), é preciso reconhecer que, a partir das interações socioculturais e das experiências próprias do processo migratório ou ocorridas no processo migratório, os imigrantes constroem seus significados sobre a migração internacional
As razões que motivam ou obrigam as pessoas a migrar são diversas, todavia, a busca por melhores condições de vida é unânime (Montaño, Orozco, 2009MONTAÑO, Luz María López; OROZCO, María Olga Loaiza. Padres o madres migrantes internacionales y su familia: Oportunidades y nuevos desafíos. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, v. 7, n. 2, p. 837-860, 2009.). No caso dos imigrantes haitianos, identifica-se a emigração massivamente de um país marcado por crises política, econômica e social, agravadas por uma sequência de eventos climáticos, geradores de um contexto de vulnerabilidades à vida da população haitiana. Essa emigração é histórica, sendo que até os anos de 1930, República Dominicana e Cuba eram os destinos principais dos haitianos. A partir de 1960, a principal rota migratória mudou para os Estados Unidos. Somente a partir de 2010 que o Brasil se apresenta como um destino, compondo-se como um fluxo e uma rede migratória inéditos (Costa, 2015COSTA, Gelmino. Haitianos no Brasil. In: CUTTI, Dirceu et al. (org.). Migração, trabalho e cidadania. São Paulo: Educ, 2015, p. 59-87.; Baeninger, Peres, 2017BAENINGER, Rosana; PERES, Roberta. Migração de crise: a migração haitiana para o Brasil. Revista Brasileira de Estudos de População, Rio de Janeiro, v. 34, n. 1, p. 119-143, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.20947/S0102-3098a0017.
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; Joseph, 2015JOSEPH, Handerson. Diaspora: Sentidos sociais e mobilidades haitianas. Horizontes Antropológicos , v. 21, n. 43, p. 51-78, 2015. DOI: doi.org/10.1590/S0104-71832015000100003.)
O Brasil surge como um novo país de destino a partir da soma dos seguintes fatores: a) do agravamento da crise econômica no Haiti, b) da restrição da entrada nos Estados Unidos e países da Europa, c) da maior visibilidade do Brasil no cenário internacional, d) do crescimento econômico brasileiro, e) da presença de instituições brasileiras no Haiti e f) da presença de militares Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti - MINUSTAH. Esse último, ainda que alvo de críticas, também contribuiu para a admiração dos haitianos pelo povo brasileiro e contribuiu na abertura dessa nova rota migratória (Baeninger, Peres, 2017BAENINGER, Rosana; PERES, Roberta. Migração de crise: a migração haitiana para o Brasil. Revista Brasileira de Estudos de População, Rio de Janeiro, v. 34, n. 1, p. 119-143, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.20947/S0102-3098a0017.
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; Joseph, 2015JOSEPH, Handerson. Diaspora: Sentidos sociais e mobilidades haitianas. Horizontes Antropológicos , v. 21, n. 43, p. 51-78, 2015. DOI: doi.org/10.1590/S0104-71832015000100003.).
Especificamente em relação às famílias haitianas, foco de estudo do presente artigo, cabe destacar que o estudo etnográfico de Cotinguiba (2019COTINGUIBA, Geraldo C. Aletranje - a pertinência da família na ampliação do espaço social transnacional haitiano: o Brasil como uma nova baz. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente, Universidade Federal de Rondônia. Porto Velho, 2019.) chama a atenção para a centralidade da família na tomada de decisão das pessoas para a mobilidade transnacional. Segundo o autor, é a família que cria ou possibilita as condições necessárias da saída do país e da manutenção em outro. Assim, migrar de um país para outro configura-se como um projeto coletivo, familiar e, não, unicamente movido por interesses individuais. Nessa direção, Silva (2017SILVA, Sidney Antônio. Imigração e redes de acolhimento: o caso dos haitianos no Brasil. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 34, n. 1, p. 99-117, 2017. DOI: https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0009
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) evidenciou que na rede de migração produzida pela família haitiana encontram-se compromissos morais de ajuda e melhoria da condição de vida de quem ficou no país e de quem partiu. Ao encontro desses estudos, Falicov (2014FALICOV, Celia Jaes. Latino families in therapy. 2 ed. New York: The Guilford Press, 2014., 2016______. Processos normativos das famílias imigrantes: uma estrutura multidimensional. In: WALSH, Froma. Processos normativos da família: diversidade e complexidade. Trad. Sandra Maria Mallmann da Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2016.) aprofunda as discussões sobre a dimensão familiar no projeto de migrar, bem como os efeitos da migração na dinâmica familiar, reconhecendo que o processo migratório repercute na família imigrante, desde o processo de tomada de decisão pela migração à sua reorganização no novo país.
No conjunto das considerações apresentadas, este artigo objetiva caracterizar o contexto de vida e os significados atribuídos ao processo migratório de famílias haitianas. No que se refere à relevância científica do presente estudo, busca-se oferecer subsídios às/ para as singularidades da imigração haitiana para o Brasil, principalmente ao visibilizar suas peculiaridades vinculadas aos atravessamentos culturais e linguísticos em relação a outros grupos imigratórios. Conjuntamente a isso, almeja-se que os resultados deste estudo contribuam na sustentação de um olhar ampliado e integrado dos profissionais em relação à história de vida individual e familiar dos imigrantes atendidos em seus campos de atuação, afastando-os de um olhar massificador.
O presente artigo está dividido em cinco partes. Na primeira delas, a introdução, apresentou-se a fundamentação teórica utilizada, bem como a conjuntura internacional e internacional das migrações humanas. No método, a segunda parte, são caracterizados os participantes, estratégias e organização dos dados e aspectos éticos. Na apresentação dos dados, a terceira parte, são descritas as categorias e subcategorias em que os dados desta pesquisa foram organizados. Na sequência, em discussão dos resultados, analisam-se os dados coletados à luz do referencial teórico adotado. Por fim, na quinta parte, nas considerações finais, retomam-se os resultados, reflete-se sobre a presença do Mediador Cultural e Linguístico em pesquisas científicas e práticas profissionais, limitações desta pesquisa e indicações de futuros estudos.
Método
Participantes
Esta pesquisa qualitativa integrou, como participantes, sete mulheres haitianas, que atendiam aos seguintes critérios de participação: 1) os genitores (adultos responsáveis) da família haitiana deveriam ter idade igual ou superior a 18 anos; 2) a família migrante haitiana deveria ter os genitores de nacionalidade haitiana; 3) a família deveria ter ao menos um(a) filho(a) nascido no Brasil; 4) residir, no mínimo, há um ano na cidade atual; e 5) ter entendimento do idioma português. Considerando a combinação dos instrumentos utilizados na coleta e a profundidade das entrevistas realizadas, cumpre destacar que o início da repetição dos dados deu-se a partir da quinta entrevista. Assim, a decisão final por sete participantes está alinhada ao estudo de Guest, Bunce e Johnson (2006GUEST, Greg; BUNCE, Arwen; JOHNSON, Laura. How many interviews are enough? An experiment with data saturation and variability. Field Methods, v. 18, p. 59-82, 2006. DOI: 10.1177/1525822X05279903.
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), que, depois de uma minuciosa análise de pesquisas qualitativas, identificaram que a saturação dos dados se inicia na sexta entrevista.
No que se refere à caracterização sociodemográfica das participantes (Tabela 1), merecem destaque: a) a idade varia entre 26 e 39 anos, sendo que seis participantes possuem idade faixa de 30 anos; b) a escolaridade informada pelas participantes é o equivalente ao ensino fundamental ou médio no Brasil; c) há prevalência da religião evangélica; d) as seis participantes que encontram-se desempregadas, ou seja, sem vínculos empregatícios formais, realizam trabalhos informais, como diarista em residências ou no setor de serviços gerais em restaurantes e hotéis; e, e) a chegada no Brasil foi contabilizada até novembro de 2021, data da realização da pesquisa, sendo que o menor tempo de residência no Brasil foi de dois anos e nove meses (Participante L) e o maior tempo era de sete anos (Participante H), sendo que a média de tempo residindo é de quatro anos e quatro meses.
Com o objetivo de preservar a identidade das participantes, elas serão identificadas da seguinte maneira: Participante Y, Participante V, Participante S, Participante M, Participante L, Participante H e Participante G.
Estratégias de coleta de dados
A coleta de dados foi realizada a partir da combinação dos seguintes instrumentos: questionário sociodemográfico, entrevista em profundidade e Meca Genograma. Compreende-se que a combinação desses instrumentos produziu condições para explorar a profundidade das experiências relacionadas ao processo migratório. O questionário sociodemográfico permitiu conhecer as características gerais de identificação, composição do grupo familiar, trabalho e renda das participantes. Já a entrevista em profundidade (Moré, 2015MORÉ, Carmen Leontina Ojeda Ocampo. A “entrevista em profundidade” ou “semiestruturada”, no contexto da saúde: dilemas epistemológicos e desafios de sua construção e aplicação. Atas CIAIQ2015, n. 3, p. 123-131, 2015.), também denominada como entrevista semiestruturada, permitiu conhecer as vivências das participantes com o processo de saída do Haiti e chegada ao Brasil. O roteiro de perguntas dessa entrevista foi organizado a partir das quatro dimensões da Abordagem Multidimensional, Ecossistêmica e Comparativa (MECA), que são: contexto ecológico, migração e aculturação, organização familiar e família e ciclo vital. Por fim, utilizou-se do Meca Genograma (Falicov, 2014FALICOV, Celia Jaes. Latino families in therapy. 2 ed. New York: The Guilford Press, 2014.), uma releitura do genograma familiar adaptado para o contexto das migrações, a fim de visualizar e aprofundar a compreensão dos laços afetivos da família migrante.
Inicialmente, planejou-se realizar a coleta dos dados em dois momentos presenciais, sendo um momento para aplicação do questionário sociodemográfico e entrevista em profundidade e outro momento para a elaboração do Meca Genograma. Essa organização somente foi possível com três das participantes (Participantes V, S e M), pois, no contato com a quarta participante (H), esta sinalizou que preferia realizar todo o processo em um único momento, pois havia começado a trabalhar em um emprego temporário. Esse pedido foi integrado à pesquisa e oportunizado para as demais participantes, que escolheram realizar a participação em um único momento.
Ao reconhecer a singularidade desta pesquisa, por integrar participantes de outras nacionalidades, foi contratado um Mediador Cultural e Linguístico, de nacionalidade haitiana, que esteve presente na finalização do roteiro de perguntas, nas visitas domiciliares e na realização das entrevistas.
Organização e análise de dados
Este estudo é resultado de uma tese de doutorado em que os dados coletados foram organizados e analisados com base na Grounded Theory, traduzida para a língua portuguesa como Teoria Fundamentada nos Dados - TFD, proposta por Strauss e Corbin (2008STRAUSS, Anselm; CORBIN, Juliet. Pesquisa qualitativa: Técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Porto Alegre: Artmed, 2008.), que permitiu sistematizar e categorizar os dados provenientes dos instrumentos de coleta utilizados. A organização e análise dos dados seguiu as três etapas de codificação proposta pelas autoras: aberta, axial e seletiva. Utilizou-se o software Atlas.ti, na versão 22.1.0, como recurso para auxiliar no processo de organização, sistematização e análise dos dados. Desses procedimentos, emergiram quatro dimensões, cada qual com suas categorias, suas subcategorias e seus elementos de análise, sendo que este artigo se dedicou à análise da seguinte dimensão: contexto de vida no Haiti e processo de decisão pela migração.
Aspectos éticos
Este estudo desenvolveu-se em consonância com as diretrizes e princípios éticos da Resolução no 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e da Resolução no 510, de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Após submissão e aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos - CEP, na Universidade Federal de Santa Catarina, este estudo possui o número CAAE 47698921.2.0000.0121 e Parecer 4.805.209.
Apresentação dos resultados
Como supracitado, as análises deste trabalho são dedicadas à dimensão da pesquisa denominada de “contexto de vida no Haiti e processo de decisão pela migração”, a qual integrou cinco categorias e suas respectivas subcategorias, conforme representado na Tabela 2. Na sequência da tabela, encontram-se os resultados da pesquisa, organizados em subtítulos, seguindo o nome das cinco categorias.
Condição de vida no Haiti
Eu tenho muita saudade do Haiti. Eu nunca sonho que eu estou no Brasil, sempre estou no Haiti. (Participante L)
Nesta categoria, reúnem-se elementos relacionados à condição de vida no Haiti, das participantes e suas famílias, e seus efeitos no processo de decisão pela migração. No que se refere às vivências relacionadas ao viver no Haiti, as participantes foram unânimes em responder o quanto a ‘vida era difícil’ em seu país, relatando problemas políticos, escassez de trabalho e falta de serviços de saúde e educação adequados. A falta de segurança e a violência urbana no país ganharam destaque entre as participantes, sendo relatadas por cinco participantes, como representado na seguinte fala: “Eu vi que estava deixando o meu país que eu gostava tanto. Mas, como eu vi muitas pessoas que perderam a vida na minha frente, eu não queria perder a minha vida e eu optei para vir aqui” (Participante L).
Ainda que todas as participantes tenham feito menção às dificuldades do país, também foram relatadas boas lembranças e conquistas do Haiti. Ou seja, notou-se que estava presente, concomitantemente, em suas falas: o pesar pela condição de vida precária no Haiti, a saudade e as boas lembranças das conquistas no país. Por exemplo, os bens materiais conquistados no país foram citados por duas participantes, representados na seguinte fala: “No Haiti, eu tinha casa própria. Mas, a gente não podia viver só com a casa. Precisava mais outras coisas pra viver" (Participante Y).
Ao explorar como era a vida no país, identificou-se que existia uma rede de ajuda da participante no Haiti. No que se refere às pessoas que faziam parte dessa rede, identificou-se que, majoritariamente, eram familiares. Entre essas pessoas, observaram-se diferentes tipos de ajuda, como: a financeira para pagar a escola (Participante L), nos cuidados das crianças da família (Participante L, H e G), nos cuidados de familiar acamado (Participante V), e financeiras diversas (Participante G, Y e V). Além disso, identificou-se que a própria participante da pesquisa era uma contribuinte da rede de apoio de outras pessoas, como representado na seguinte fala: "Eu tenho dois irmãos mais novos e primos. Eu trabalhava e eu ajudava pagar a escola deles" (Participante G).
No decorrer do relato das participantes, percebeu-se que as faltas e precaridades vividas produziram o que denominou-se de (im)possibilidade de um projeto de vida familiar e profissional no Haiti, sendo que a falta de oportunidades de trabalho no país ganhou destaque. Em relação ao tipo de trabalho desenvolvido no Haiti, as participantes responderam: comerciante (Participante V, G, Y), técnica aduaneira (Participante S), secretária (Participante M), combinação entre trabalho com limpeza e costureira (Participante L) e combinação entre manicure e comércio (Participante V). Segundo as participantes, a falta de trabalho no país faz com que exista a migração entre cidades dentro do território haitiano, conforme relatado por duas participantes: "Então, eu nasci numa outra cidade e eu fui morar na capital, que é Porto Príncipe. Tinha mais opções" (Participante G).
Estressores do ciclo vital familiar no Haiti
Essa categoria integra diferentes estressores, que compõem a história de vida pessoal e familiar das participantes da pesquisa, organizados entre estressores socioambientais e estressores do desenvolvimento familiar. Faz-se o registro de que no roteiro de entrevista, por orientação do Mediador Cultural, a palavra “estressor” foi substituída pela palavra “momento marcante”, com vistas a ampliar a compreensão das participantes.
Em relação aos estressores do desenvolvimento familiar, foram identificados os nascimentos de familiares, tais como nascimentos dos irmãos mais novos (Participante H) e nascimento de sobrinhos (Participante M e G). Notou-se que as participantes eram parte das responsáveis pelos cuidados dessas crianças, ou seja, integrantes da rede social significativa que, de alguma forma, foi afetada pela migração. O adoecimento de familiares também foi registrado como um momento marcante. Duas participantes relataram o adoecimento de pai e mãe. Ademais, as mortes e os enlutamentos enfrentados pela família também foram relatadas pelas participantes, como: morte do pai (Participante V, L, S e M) e morte da mãe (Participante H). Destaca-se, no relato da Participante H, não somente a morte de sua mãe, mas, também, as dificuldades subsequentes que ela e seus irmãos enfrentaram: “A minha mãe faleceu bem quando eu era nova. E quando ela faleceu, a gente passou a morar com outras pessoas, sofremos humilhação por morar na casa de uma pessoa”.
Somam-se aos estressores do desenvolvimento familiar, os estressores socioambientais enfrentados pelas participantes e suas famílias. Ainda que o terremoto de 2010 no Haiti tenha sido mundialmente conhecido, identificou-se que somente duas participantes estavam presentes na capital haitiana Porto Príncipe no momento em que o evento ocorreu. A Participante S narrou como foi sua experiência com o terremoto:
Na hora que passou esse terremoto, em 2010, o meu marido estava na Universidade. Eu não fui pra escola esse dia. Só ele foi. Ele não se sentiu bem na sala e ele pediu pro professor pra ir embora. O professor liberou ele e quando ele foi passar na minha casa pra me ver, na hora que ele vai sair, quando a gente fica na rua pra esperar o ônibus, começou o terremoto. Eu estava na rua, em casa, não sei aonde que eu podia fugir, porque todo mundo ficou na rua, machucado. Minha irmã ficou embaixo da escola. A escola caiu e ela ficou lá 3 dias. Mas, graças a Deus, a gente não perdeu ninguém. (Participante S)
Registra-se, ainda, que todas as participantes indicaram que o terremoto foi um marco de agravamento da situação econômica do país. Outro aspecto socioambiental apontado pelas participantes foi a crise econômica e política que historicamente o Haiti enfrenta, bem como, seus efeitos no país e nas famílias. Diretamente relacionado a isso, a violência urbana foi indicada por quatro participantes como razões que as fizeram migrar. A Participante G, ao falar sobre seus colegas de trabalho no comércio, relatou: "Eu digo graças a Deus que eu estou aqui, aqui eu estou viva, porque muitos de meus companheiros que faziam comércio comigo, alguns deles faleceram, alguns deles receberam um tiro”.
A migração como uma possibilidade de vida melhor e a tomada de decisão
De qualquer jeito, essa escolha [migrar] que eu fiz atá na morte eu ia fazer de novo, entendeu?" (Participante V)
Esta categoria integra aspectos relacionados a como a migração representa uma possibilidade de vida melhor para as participantes e seus familiares. No decorrer das entrevistas, notou-se que, anteriormente à migração das participantes, outras pessoas haviam tomado a decisão e migrado, compondo os caminhos da migração de amigos e familiares, com diferentes rotas percorridas. As sete participantes indicaram que possuem amigos e familiares que migraram para outros países antes delas, como para os Estados Unidos, França, República Dominicana e Brasil. Especificamente, em relação à República Dominicana, identificou-se que todas as participantes possuem familiares ou amigos que moram ou já moraram nesse país. Isso se deve, segundo elas, à proximidade geográfica entre República Dominicana e Haiti, que dividem o território e a mesma ilha, e às oportunidades de trabalho com o turismo. Já em relação à migração para o Brasil, todas as participantes relataram que vieram na sequência de um familiar ou amigo, como exemplificado na seguinte fala:
Na minha família, a minha irmã veio primeiro. O namorado dela estava aqui no Brasil desde 2011. Em 2012, ele entrou a minha irmã. Depois da minha irmã trabalhar, ela entrou aquela segunda irmã. Depois meu marido entrou. Ele trabalha e conseguiu me ajudar a entrar. Quando eu entrei, nós três irmãs juntamos dinheiro pra trazer o meu irmão. Depois do meu irmão, a gente trabalha de novo pra entrar a minha mãe. Agora, nós todos estamos aqui junto. Só está a minha irmã que está lá. (Participante S)
Observou-se que a tomada de decisão e planejamento para migrar referiu-se a um processo composto por motivações, tempos e processos diferentes. Acerca dos motivos que levaram à tomada de decisão pela migração, todas as participantes indicaram que a busca por uma vida melhor era o principal. Especificamente, referiram-se a busca por emprego (Participantes V, H), busca por segurança (Participante M, G, L) e reencontrar a família (Participantes S e Y). Identificou-se que o processo de tomada de decisão também conta com o dilema de ficar no Haiti ou partir. Por exemplo, as Participantes L e G tinham seus comércios e a decisão de partir implicava em fechá-los. Já, a Participante Y precisou tomar a decisão de deixar dois filhos sob cuidados de outros familiares para migrar. Nesse processo da tomada de decisão, a escolha das participantes pelo Brasil, como país de destino, deu-se pelo fato das pessoas que haviam migrado previamente. A exemplo disso, uma participante respondeu: “Antes eu não tinha interesse de vir ao Brasil. Se tivesse [interesse], eu poderia vim desde 2014. Mas, Brasil não fazia parte do meu plano” (Participante L). Nesse caso, ela disse que somente decidiu vir por incentivo de uma vizinha no Haiti, que havia migrado para o Brasil.
A rede de ajuda no trajeto percorrido até a chegada ao Brasil
Nesta categoria, foram congregadas duas subcategorias que descrevem a rede de ajuda recebida para a migração e as condições em que as participantes da pesquisa e suas famílias chegaram no Brasil. No que se refere às principais pessoas que fizeram parte da rede de ajuda para a migração, as participantes relataram: 1) esposos (Participantes V, Y, S, H e M), 2) irmãos e irmãs (Participante S) e 3) amigos (Participantes L e G). Identifica-se, portanto, que os familiares foram as pessoas mais citadas como aquelas que ajudaram as participantes na migração. Em relação ao tipo de ajuda recebida na migração, as participantes registraram: 1) informações sobre o trajeto (todas as participantes), 2) ajuda financeira para despesas com a viagem (todas as participantes) e 3) ajuda com hospedagem ao chegar ao Brasil (Participante L). Por outro lado, ainda que tenham indicado que receberam ajuda, duas participantes avaliaram que tiveram ausência de ajuda dos próprios imigrantes haitianos, como representado na seguinte fala: “Eu vejo que os brasileiros têm mais amor em ajudar os imigrantes do que os próprios imigrantes” (Participante G).
No que tange às condições vivenciadas pelas participantes no trajeto até a chegada ao Brasil, identificou-se que todas as participantes viajaram sozinhas, ou seja, sem a companhia de um familiar ou amigo. No momento da saída das participantes do Haiti, seus respectivos maridos ou namorados da época já residiam no Brasil, o que influenciou a escolha pela cidade de destino e, o reencontro, proporcionou a reunificação familiar. Sobre isso, registra-se a singularidade da viagem da Participante L, que fez o trajeto grávida de três meses e descreveu a viagem como “tranquila”.
Os relatos das participantes revelaram formas distintas de chegar ao Brasil, ainda que todas elas com diversas paradas. As Participantes S e V chegaram na cidade de destino final de avião. Já as outras cinco participantes chegaram de avião até algum país da América Latina, dirigiram-se até a fronteira terrestre brasileira de ônibus ou carro e, então, dirigiram-se até cidade brasileira de destino final. Além disso, acrescenta-se que uma das participantes relatou que seu esposo levou um mês para chegar nesse país: “Então ele fez uma viagem clandestino. Então, leva mais tempo no caminho pra chegar até o Brasil. Eu saí do Haiti em 31 de novembro. Daí, eu cheguei no Brasil 01 de dezembro” (Participante H). Acrescenta-se a esse trajeto, os riscos vividos quando a migração não era documentada. Como exemplo disso, registra-se o ocorrido com a Participante S, que relatou que perdeu dinheiro ao confiar em uma pessoa que supostamente a ajudaria com a migração: “Eu dei dinheiro pra uma pessoa e perdi tudo. Era U$ 3.000 dólares. Eu nunca vi essa pessoa”. Outra participante relatou a ajuda recebida de coiotes: "Eu saí do Porto Príncipe. Fui numa outra cidade do norte que se chama Oca, e, daí, de lá peguei ônibus e fui pra República Dominicana junto com uma pessoa que estava orientando, que é tipo coiote” (Participante G).
Chegada e primeiras inserções no Brasil
Esta categoria reúne elementos relacionados à chegada ao Brasil, especificamente, sobre os sentimentos e a barreira linguística, nos primeiros meses de adaptação nesse país. A partir do relato das participantes, observou-se uma ambivalência de sentimentos ao chegar na ‘terra nova’. De um lado, encontrava-se a sensação e o sentimento de bem-estar, junto ao fato de reencontrar familiares e amigos de confiança que já estavam no Brasil, como representado nesta fala: "Eu me sentia muito bem, muito a vontade e quando meu marido andava na rua comigo eu perguntava ‘será que eu vou conseguir fazer isso sozinha também?’e ele me respondeu: ‘Sim, você vai. Só precisa tempo e você se focar’." (Participante Y). Por outro lado, as participantes também relataram o sentimento de estranhamento e insegurança, como representado na seguinte fala: “Eu não sei como explicar. Eu cheguei numa terra nova, eu me senti tipo estranha, tipo perdida. Tudo tá novo. Você fica olhando tudo. Assim, era uma sensação estranha” (Participante V).
Ligada a esses sentimentos, observou-se que a barreira linguística foi um aspecto relevante para as participantes, nos primeiro momentos, no novo país. Elas foram unânimes em falar da dificuldade com o idioma português. Diante dessa dificuldade, as participantes disseram receber ajuda e que adotaram estratégias para aprender o novo idioma. Por exemplo, a Participante H disse que “quando eu cheguei aqui eu não tinha curso de português. Aí, eu comecei a aprender algumas palavras. Captei ouvindo, quando as pessoas falar. Mas, quando preciso comprar uma coisa, eu tive que usar aplicativo Google Tradutor”. Na direção dessa fala, as Participantes S, L e H também disseram que utilizaram o Google Tradutor para ajudá-las a aprender palavras e frases novas. As participantes S, Y e V falaram que seus esposos, que chegaram antes do Brasil, foram as pessoas que mais as ajudaram a aprender o português. Em relação ao curso de português, a participante G relatou que “Eu não fiz nada de curso. Eu tinha previsto de fazer um curso de português. Mas, depois, com a pandemia, tudo mudou”.
Discussão dos resultados
A partir dos resultados apresentados, verificou-se que a condição de vida no Haiti, das participantes e suas famílias, foi diretamente afetada pela crise econômica e política no país, que culminou na escassez de trabalho, falta de segurança, falta de serviços de saúde e educação de qualidade. Sobre esse contexto, cabe mencionar o antropólogo haitiano Joseph (2015JOSEPH, Handerson. Diaspora: Sentidos sociais e mobilidades haitianas. Horizontes Antropológicos , v. 21, n. 43, p. 51-78, 2015. DOI: doi.org/10.1590/S0104-71832015000100003.) que compreende que a atual conjuntura socioeconômica do Haiti é reflexo de uma sucessão de golpes, regimes militares, bloqueios econômicos, perda de soberania nacional e catástrofes ambientais. Por conta disso, o país é produtor de uma emigração histórica de seu povo, que buscam melhores condições de vida para quem sai, assim como para quem fica.
Esse contexto de vulnerabilidades no Haiti inviabilizou a realização de um projeto de vida pessoal e profissional das participantes e suas famílias, impulsionando para a emigração. Notou-se que essa necessidade gerou diferentes fluxos migratórios: migrações internas, entre cidades no Haiti; migrações para o país vizinho, a República Dominicana; e, a migração para outros países, na qual o Brasil se encontrava como uma opção. Percebeu-se que para essas famílias haitianas o projeto da migração internacional exigiu delas a separação de seus membros para conseguirem migrar, diante do alto custo da viagem e poucas garantias de conseguirem trabalho. A partir das narrativas das participantes, notou-se que a rota para o Brasil, enquanto possibilidade, surgiu a partir de 2012, integrando um fluxo migratório massivo que outras pesquisas já constataram (Baeninger, Peres, 2017BAENINGER, Rosana; PERES, Roberta. Migração de crise: a migração haitiana para o Brasil. Revista Brasileira de Estudos de População, Rio de Janeiro, v. 34, n. 1, p. 119-143, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.20947/S0102-3098a0017.
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; Restrepo-Pineda et al., 2019RESTREPO, Jair Eduardo et al. Aproximación al proceso migratorio de las familias venezolanas al Área Metropolitana del Valle de Aburrá. Revista Latinoamericana de Estudios de Familia, v. 11, n. 2, p. 59-79. 2019. Disponível em: https://revistasojs.ucaldas.edu.co/index.php/revlatinofamilia/article/view/72
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). A soma desses elementos possibilita afirmar que um dos significados atribuídos à migração, pelo povo haitiano, refere-se à chance de melhorar a condição de vida pessoal e familiar.
Ainda que tenha sido identificado um contexto de vulnerabilidades no Haiti, as participantes deste estudo também demarcaram os bons momentos, as conquistas e as memórias afetivas do país. Além disso, elas sinalizaram a rede de apoio que possuíam ou que eram as provedoras de algum tipo de ajuda. A partir desses dois aspectos antagônicos relacionados ao Haiti, reflete-se sobre o cuidado necessário para não generalizar ou massificar as histórias, as experiências e os significados da população haitiana sobre seu país e seu processo migratório.
Adicionalmente, notou-se que a rede de apoio da família haitiana se reconfigurou com a emigração de uma participante do Haiti, uma vez que ela tinha responsabilidades relacionadas aos cuidados de familiares e provia financeiramente despesas familiares. No que se refere a esse tipo de mudança, há pesquisas (Falicov, 2014FALICOV, Celia Jaes. Latino families in therapy. 2 ed. New York: The Guilford Press, 2014., 2016______. Processos normativos das famílias imigrantes: uma estrutura multidimensional. In: WALSH, Froma. Processos normativos da família: diversidade e complexidade. Trad. Sandra Maria Mallmann da Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2016.; Carter, McGoldrick, 1995CARTER, Betty; McGOLDRICK, Monica. As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre, Brasil: Artmed, 1995.; McGoldrick, Shibusawa, 2016McGOLDRICK, Monica; SHIBUSAWA, Tery. O ciclo vital familiar. In: WALSH, Froma. Processos normativos: diversidade e complexidade. Porto Alegre: Artmed, 2016, p. 376-398.) que indicam que a migração internacional impõe inevitáveis transformações para as dinâmicas familiares, vividas de maneira imediata ou subsequente a migração.
Nas narrativas das participantes da pesquisa estão presentes estressores do desenvolvimento familiar (mortes e lutos, nascimentos e adoecimentos). Todavia, compreende-se que foram os estressores socioambientais (terremoto de 2010, crise econômica e política e violência urbana) que se destacaram e intensificaram o processo de tomada de decisão para a emigração do país. Esses elementos evidenciam o quanto o contexto socioeconômico é produtor de estressores que, por sua vez, produzem um novo estressor: a migração. Esse resultado vai ao encontro da literatura sobre o assunto (Carter, McGoldrick, 1995CARTER, Betty; McGOLDRICK, Monica. As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre, Brasil: Artmed, 1995.), que reconhece o fenômeno da migração como um estressor vertical e horizontal do ciclo de vida familiar. Considera-se como horizontal por ser um estressor no desenvolvimento da família e vertical porque tais transformações reverberam de uma geração para outra.
No que tange à tomada de decisão da migração das participantes, evidenciou-se que não foi um processo isolado e individual. Mas, sim, o efeito de uma decisão coletiva, com uma rede de ajuda e alinhado a um projeto familiar, resultado que também identificou Cotinguiba (2019COTINGUIBA, Geraldo C. Aletranje - a pertinência da família na ampliação do espaço social transnacional haitiano: o Brasil como uma nova baz. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente, Universidade Federal de Rondônia. Porto Velho, 2019.) em seus estudos com famílias haitianas. Ainda que todas as participantes tenham migrado sozinhas, elas contaram com a ajuda, majoritariamente, da rede familiar, seguida da de rede de amizades.
No processo migratório das participantes, ou seja, da construção da tomada de decisão até a chegada e a inserção no novo país, observou-se que inúmeras pessoas estiveram presentes nas vivências das participantes da pesquisa, compondo o que se denominou de rede de ajuda na migração. Majoritariamente, as pessoas dessa rede eram familiares, seguido de amigos individuais ou da família. Dentre os tipos de ajuda oferecida por essas pessoas, destaca-se a prestação de informações e incentivos para realizar a mesma rota migratória, reforçando um mesmo fluxo migratório.
Ainda que essa rede de ajuda tenha existido para todas as participantes, duas delas relataram ter sofrido com “golpes de dinheiro” aplicados por pessoas denominadas por elas como coiotes. Conjuntamente a isso, a rota percorrida por cinco das participantes envolveu passar por diferentes países e cidades brasileiras, antes de chegar à cidade de destino, tornando o percurso ainda mais longo e demorado. Falicov (2016______. Processos normativos das famílias imigrantes: uma estrutura multidimensional. In: WALSH, Froma. Processos normativos da família: diversidade e complexidade. Trad. Sandra Maria Mallmann da Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2016.) compreende que o status da migração, ou seja, a condição em que se migra, cria contextos imensamente diferentes entre aqueles que migram com ou sem documentação. A falta de documentação adequada, especialmente o visto de permanência no país, expõe os migrantes a o que a autora denomina de perigos e riscos de “viver à sombra”.
Acredita-se que a migração significa, para as participantes e suas famílias, uma estratégia de enfrentamento individual e familiar frente a um contexto socioeconômico hostil no Haiti. Nessa direção, e alinhando-se à literatura sobre o assunto (Montaño, Orozco, 2009MONTAÑO, Luz María López; OROZCO, María Olga Loaiza. Padres o madres migrantes internacionales y su familia: Oportunidades y nuevos desafíos. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, v. 7, n. 2, p. 837-860, 2009.), reconhece-se que a migração é uma oportunidade de melhoria das condições para quem migra e, também, para quem fica no país de origem e recebe as remessas financeiras que suprem necessidades de subsistência, como alimentação, educação, moradia e saúde.
A chegada e as primeiras inserções no Brasil foi geradora de sentimentos ambivalentes para as participantes. Isso porque identificou-se simultaneamente a presença de sentimentos de alegria, bem-estar, esperança, estranhamento, medo e saudades. Essa ambivalência é entendida por Falicov (2014FALICOV, Celia Jaes. Latino families in therapy. 2 ed. New York: The Guilford Press, 2014.) como esperada, uma vez que a migração intersecciona dois elementos ambíguos: de perdas e ganhos ou positivos e negativos. Complementando, compreende-se que essa ambivalência também se refere ao fato de que, no Haiti, as experiências não foram exclusivamente ruins ou difíceis.
Além de precisarem lidar com a ambivalência de sentimentos, a chegada ao Brasil colocou as participantes diante das dificuldades com a barreira linguística. Para o enfrentamento dessa dificuldade, contaram a ajuda do parceiro e amigos que migraram antes delas. Compreende-se que essas pessoas foram decisivas para a superação das dificuldades e sentimentos de solidão ao chegarem no novo país. Somado a isso, avalia-se que a realização de cursos de língua portuguesa gratuitos e o uso de tecnologias para a tradução simultânea ou prática auxiliou-as na inserção e comunicação no Brasil. Nesse sentido, Falicov (2014FALICOV, Celia Jaes. Latino families in therapy. 2 ed. New York: The Guilford Press, 2014.) entente que o domínio ou algum conhecimento da língua do novo país é uma “proteção do contexto”, isso porque é a partir da mesma que os imigrantes estabelecem a comunicação. Junto disso, compreende-se que a barreira linguística é um atravessador na criação de significados, sustentando o medo e o estranhamento no novo contexto.
O conjunto de resultados apresentados permite considerar que a migração produz uma “transformação ambígua” nas famílias imigrantes. Isso, porque, ao mesmo tempo que a migração é uma chance para melhoria das condições socioeconômicas da família, observa-se que há mudança nas relações afetivas, nas redes de apoio, no convívio diário e no conjunto de crenças e práticas culturais. Por sua vez, entende-se que embora se reconheça que as haitianas deste estudo integrem o fenômeno da feminização da migração, ao vivenciarem as questões de vulnerabilidade socioeconômica no contexto brasileiro, observou-se a manutenção de uma hierarquia familiar em que a figura de provedor financeiro continua sendo o homem, sendo elas eminentemente cuidadoras da casa e dos filhos. Nessa direção, Falicov (2014FALICOV, Celia Jaes. Latino families in therapy. 2 ed. New York: The Guilford Press, 2014.) compreende que a família imigrante convive com o que denomina de “ambiguidade de perdas e ganhos”, ao enfatizar que, nos processos migratórios, coexistem aspectos negativos e positivos. Assim, alinhando-se a Grandesso (2011GRANDESSO, Marilene. Sobre a Reconstrução do Significado. 3 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.), quando aponta sobre a reconstrução e construção de significado na trama interacional, considera-se que o processo migratório das famílias imigrantes é produtor, tanto da reconstrução de experiências de vida, como de significados ambíguos sobre a decisão migrar.
Considerações finais
O presente estudo objetivou caracterizar o contexto de vida e os significados atribuídos ao processo migratório de famílias haitianas. Os resultados evidenciaram que a condição de vida das participantes no Haiti configurou-se como um estressor do ciclo vital familiar e impulsionaram o processo migratório. Na impossibilidade de um projeto de vida pessoal e familiar no Haiti, os membros das famílias haitianas migram, de maneira separada, em busca de novas oportunidades em diversos países, no qual o Brasil se encontra como uma das opções de destino nos últimos anos. Percebeu-se que, ainda que os membros da família haitiana migrem de maneira separada, devido aos altos custos econômicos envolvidos, existiu um “projeto familiar de migração”, em que o reencontro das participantes com seus familiares no Brasil se configurou como reunificação familiar.
Diante desses dados, identificou-se que a emigração do Haiti significa a possibilidade de vida com mais segurança, acesso aos serviços de saúde, à educação de qualidade e às oportunidades de emprego. Além disso, especificamente, em relação às participantes desta pesquisa e suas famílias, notaram-se singularidades, como: preocupações e incertezas relacionadas a migração dos familiares diferentes momentos; busca por um novo contexto de vida digno não só para os adultos, como também para os filhos; e, os familiares e amigos que já estavam no Brasil foram essenciais para as dificuldades relacionadas a língua e a chegada no novo país, fazendo parte das proteções do contexto.
Ademais, observou-se que todo o processo migratório, da tomada de decisão à chegada ao novo país, foi perpassado pela ambiguidade de sentimentos, que somada às dificuldades com a barreira linguística, tensionaram a decisão de migrar e a chegada ao Brasil. Acrescenta-se a isso que a presença de sentimentos e experiências ambíguos complexifica o processo migratório das famílias imigrantes. A rede de pessoas em torno das participantes, com destaque para familiares e amigos, foi decisiva para diluir, em parte, a ambiguidade de sentimentos com o processo migratório.
Ao reconhecer esses resultados, entende-se que esta pesquisa tem dados relevantes para contribuir no conjunto de estudos das áreas de Migrações humanas e Desenvolvimento Humano e da Família. Para o campo de atuação profissional, acredita-se que esta pesquisa amplia a compreensão dos profissionais acerca da história de vida e contexto sociocultural no país de origem, as razões que levaram os imigrantes e suas famílias a emigrarem e as dificuldades na chegada no país de destino. E, chama-se a atenção para que os profissionais estejam atentos aos vínculos e relações familiares dessas famílias, uma vez que se constatou que são pessoas decisivas no enfrentamento das dificuldades no novo país.
Destaca-se a importância da presença do Mediador Cultural e Linguístico tanto em equipes de pesquisa como de profissionais dos serviços que atendam populações imigrantes, sendo um protagonista decisivo na tradução linguística e na mediação cultural. Nesse sentido, sua presença possibilita uma compreensão mais fidedigna das narrativas trazidas pelos imigrantes.
Por fim, quanto às limitações deste estudo, embora tenha sido um critério de inclusão na pesquisa, aponta-se para o fato de que as narrativas foram exclusivas de mulheres haitianas, emergindo aspectos centrados em uma cultura e única nacionalidade. Indo ao encontro disso, compreende-se que novas pesquisas podem dedicar-se em aprofundar as experiências e significados do processo migratório em grupos de outras nacionalidades.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Dez 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
-
Recebido
14 Mar 2023 -
Aceito
15 Set 2023