A investigação levada a cabo por Márcio de Oliveira (2020) para produção de seu livro “Sociologia da imigração no Brasil, 1940-1970: A contribuição dos clássicos” teve origem em seu questionamento sobre a existência de uma referência sobre a história da sociologia da imigração no Brasil. Após uma intensa busca o autor não identificou um título que condensasse essas informações, encontrou alguns artigos e capítulos de livros pontuais sobre a contribuições de alguns autores. Movido pela curiosidade, Márcio de Oliveira deu início à sua pesquisa sobre a temática, e o que começou como um projeto pessoal, paralelo às suas atividades como professor na universidade, se transformou em objeto de algumas publicações.
Este livro reúne alguns desses artigos, uns já publicados e outros inéditos. Perpassa as obras de autores clássicos da sociologia brasileira como Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Ruth Cardoso, Hiroshi Saito e José de Souza Martins. O recorte temporal feito é de 1940 até 1970. Todos os ensaios contam com a mesma estrutura: uma introdução de contextualização sobre a vida, produção e obra do autor, a análise das obras que tocam na temática migratória e uma conclusão, com algumas palavras finais e provocações, colocando a produção analisada em debate. Além desses capítulos, o livro conta com prefácio escrito por Jacob Carlos Lima, introdução e considerações finais.
Para Calvino (1993)CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das letras, 1993, p. 9-16. um clássico possui várias características, entre elas, pode ser definido como “um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, e que a sua (re)leitura ainda “é uma leitura de descoberta como a primeira” (Calvino, 1993CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das letras, 1993, p. 9-16., p. 11). Revisitar os clássicos da sociologia através da leitura de Oliveira pode se definir como uma experiência de descoberta e que nos leva a refletir sobre as múltiplas possibilidades de leitura dos clássicos, ressaltando a importância dessas obras para a construção epistemológica da sociologia e dos estudos migratórios.
O argumento de Márcio de Oliveira é que, embora a imigração não tenha sido o principal foco da obra desses autores, seus escritos de alguma maneira tocaram no assunto. Principalmente por compartilharem de um mesmo referencial teórico para dar conta dos fenômenos e questões sociais da época. O tema da imigração no Brasil entre as décadas de 1940 e 1970, período delimitado pela análise do autor, foi pensado por antropólogos e sociólogos que buscavam compreender os grupos rurais e indígenas em relação aos processos de assimilação e incorporação na sociedade nacional. Em seguida, ocorreu o que autor denominou “virada epistemológica”, o surgimento da perspectiva classista (nacional-desenvolvimentista), em que questões raciais, desigualdades socioeconômicas e capitalistas tornaram-se os temas fundamentais da sociologia a partir de 1960.
O livro inicia com obra de Gilberto Freyre, um dos principais defensores das teorias assimilacionistas. A leitura de Márcio de Oliveira sobre o autor indica um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que Freyre analisou os processos de assimilação, miscigenação, contatos inter-raciais, civilizações transnacionais e ter tecido referências a imigração de maneira muito pontual, ele não produziu trabalho específico sobre imigração. Dessa forma, para Oliveira a temática da imigração tangencia a produção de Freyre, no sentido de que não é possível falar sobre as questões tratadas em sua obra, sem levar em consideração a questão migratória. E ainda ressalta que a contribuição original de Freyre com o campo está no potencial das práticas assimilacionistas lusas e luso-brasileiras.
A trajetória empírica e epistemológica da sociologia no Brasil é marcada pela passagem da temática assimilacionista e aculturalista para a o tema da integração na sociedade de classes. A obra de Florestan Fernandes acompanhou e consolidou essa passagem, como protagonista e produto, de acordo com a análise feita por Márcio de Oliveira. Florestan flertou de maneira muito intensa com os estudos sobre imigração e por muito tempo investiu esforços para realizar sua pesquisa de doutorado com os imigrantes sírios em São Paulo. Mas, foi desencorajado por seu orientador e acabou seguindo para etnologia indígena e depois tratou das temáticas de desigualdade, raça, classe, capitalismo, revolução burguesa, com poucas publicações sobre a imigração. Segundo Márcio de Oliveira, apesar de Florestan Fernandes ter abandonado a temática migratória, ele seguiu inspirado pela ideia de integração, vinda dos estudos sobre imigração, prova disso seriam as produções sobre a integração dos negros na sociedade de classe.
Embora a temática da imigração não fosse central na obra de Fernando Henrique Cardoso, ela perpassa algumas de suas produções. Inspirado por seu orientador, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, ainda aluno, produziu um trabalho de avaliação de disciplina sobre a imigração sírio-libanesa em São Paulo. Porém, o principal foco de seus estudos foi o desenvolvimento na América Latina, sempre no sentido de pensar a construção social do Brasil e a integração na sociedade de classes, inclusive afirmando que a imigração e a abolição eram fenômenos interligados, porque marcaram o fim do antigo regime no Brasil, onde a sociedade escravocrata e governada por uma monarquia seria substituída pelo trabalho livre e a república.
Entendemos a relevância dessas análises para o período destacado, ainda mais no sentido de se pensar a construção e consolidação de um pensamento social sobre o Brasil. Mas, a leitura dos ensaios de Márcio de Oliveira sobre esses clássicos nos instiga a refletir sobre o tipo de imigração considerada nessas análises: os imigrantes eram os brancos europeus e a maioria dos escritos são contrastando a integração dos migrantes e dos negros na sociedade capitalista e burguesa que estava se desenvolvendo no Brasil, reproduzindo ainda parte do pensamento assimilacionista de Freyre com o mito das três raças. A produção teórica desses autores colocava os imigrantes e os negros descendentes dos escravizados em um mesmo “lugar” nos estudos sobre classe, quando na verdade as diferenças e contradições entre essas populações são discrepantes.
A imigração europeia no Brasil se constituiu enquanto projeto político de branqueamento da população. Reflexo disso, foram os estudos produzidos pela sociologia clássica, considerados na análise de Oliveira, pois falava-se de uma imigração europeia vinculando uma ideia de certa forma homogênea sobre a população de imigrantes no Brasil. Este período, segundo a antropóloga Giralda Seyferth é marcado por uma “exacerbação nacionalista alimentada por um discurso assimilacionista radical” na formação do Estado-nação brasileiro (Seyferth, 2011SEYFERTH, Giralda. A dimensão cultural da imigração. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 26, n. 77, p. 47-62, 2011., p. 48). Nesse sentido, para os autores do período analisado, o processo de formação e consolidação da sociedade brasileira seria pautado na mistura de todos os imigrantes brancos com os nacionais, apagando o passado escravocrata do país.
Lobo e Furtado (2023)LOBO, Andrea; FURTADO, Cláudio. As pequenas ilhas e o país continental. Fluxos entre Cabo Verde e Brasil. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobildiade Humana, v. 31, n. 67, p. 55-76, 2023. publicaram um artigo sobre as relações entre Cabo Verde e Brasil e nele indicam que a chegada de caboverdianos na América do sul, Argentina, Brasil, Chile e Venezuela, data do início do século XX. Esse fato nos mostra que a imigração para Brasil pode não ter sido tão branca e europeia, diferente do que se foi construído na história da imigração no Brasil e já enunciado pela obra da antropóloga Giralda Seyferth. A leitura dos capítulos de Márcio de Oliveira nos provoca nesse sentido: onde estão as análises sobre a imigração de população de países africanos, por exemplo?
Octávio Ianni, autor analisado em sequência por Márcio de Oliveira, inicia uma reflexão a respeito das etnias entre os próprios imigrantes europeus. Em sua pesquisa, Ianni buscou compreender o impacto dos grupos imigrantes em Curitiba e Florianópolis tentando entender as relações entre os brancos e os negros. Seus achados revelaram que dentro desses grupos havia um preconceito e hostilidades com os poloneses e seus descendentes. Os dados demonstram, inclusive, uma associação entre os negros e os poloneses, como rejeição para um casamento. A chave analítica proposta por Ianni é de pensar essas relações como uma “discriminação múltipla e cruzada”, em que cada um sofre algum tipo de discriminação, individualmente ou coletivamente.
A descoberta de relações hierárquicas entre a própria branquitude demonstra que a categoria de imigrantes europeus não era tão homogênea quanto se pensava. Estudos atuais ressaltam a importância de se tratar a branquitude também enquanto raça. A construção do “branco” surgiu a partir do encontro com o “outro”, aqueles que foram os colonizados e explorados, os negros, os asiáticos, os indígenas. A branquitude é sempre o parâmetro comparativo, é a identidade racial de onde se parte a norma e o padrão. Em sua tese de doutorado Lia Schucman (2012)SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Tese de Doutorado em Psicologia Social. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. DOI:10.11606/T.47.2012.tde-21052012-154521.
https://doi.org/10.11606/T.47.2012.tde-2...
analisa como a branquitude é construída e afirma que “para se entender a branquitude é importante entender as formas de poder concretas em que as desigualdades raciais se ancoram” (Schucman, 2012SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Tese de Doutorado em Psicologia Social. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. DOI:10.11606/T.47.2012.tde-21052012-154521.
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, p. 23). No sentido colocado por Schucman, ser branco tem significados culturalmente diferentes que operam a depender as categorias de poder acionadas em cada contexto. Esta ideia pode ser refletida através dos achados da pesquisa feita por Ianni, descrita no parágrafo anterior, retratando preconceitos e hostilidades entre os próprios imigrantes “brancos”.
Ruth Cardoso é a única mulher presente na análise de Márcio de Oliveira. A maior parte de sua produção, assim como a dos outros, não teve a imigração como foco, mas a autora defendeu sua dissertação de mestrado e tese de doutorado sobre a imigração japonesa. Ruth Cardoso se interessou pelos processos de mudança social, deixando um pouco de lado as ideias de assimilação e aculturação presentes na época, estudando as associações de imigrantes, formas de mobilidade sociais e os arranjos familiares e geracionais. Segundo Márcio de Oliveira, a produção de Ruth enuncia parte das tendências a serem seguidas nos estudos sobre imigração. Ao afirmar que os descendentes japoneses estavam se integrando na sociedade, a autora demonstra que o referencial aculturativo-assimilativo estava dando lugar a análises que focavam na integração.
A obra de Hiroshi Saito, imigrante japonês, primeiro a fazer carreira na sociologia brasileira, possuiu uma atuação engajada em um projeto político de inserção social, assimilacionista e antirracista. As temáticas abordadas pelo autor tratavam da questão da assimilação e aculturação dos japoneses, instabilidade social e desequilíbrio mental, o suicídio, o conflito pós-guerra e a mobilidade social. Márcio de Oliveira, ao longo do artigo, buscou demonstrar a forma com que os acontecimentos relativos à imigração japonesa no Brasil impactaram e marcaram a obra de Saito. O exemplo disso, seria o desenvolvimento de um projeto político engajado em sua obra, que buscava proporcionar aos descendentes japoneses uma reeducação, um esclarecimento sobre a importância de sua integração na sociedade brasileira, inclusive com ações opostas aos nacionalismos e imperialismo japonês.
O último autor analisado por Márcio de Oliveira foi José de Souza Martins, aluno de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Ruth Cardos, entre outros professores que são referências no campo da sociologia no Brasil. Martins, assim como seus mestres, deu continuidade a passagem da perspectiva cultural-assimilacionista para a classista-integrativa. Este autor buscou compreender a migração não somente como processos de deslocamentos, mas entender o papel econômico que o migrante assumia na sociedade de acolhimento. No caso de seu foco de estudos, os imigrantes italianos, José de Souza Martins coloca a questão da imigração para o Brasil rural, no processo de expansão capitalista e na construção da força de trabalho migrante como mercadoria.
Não foi possível recuperar aqui todos os elementos da obra e da pesquisa empreendida por Márcio de Oliveira. O autor apresenta a transformação e a relação entre as teorias e conceitos que visavam explicar a construção da sociedade brasileira, e dentro dela o fenômeno migratório. Essas teorias formaram as bases para o desenvolvimento da sociologia da imigração do Brasil. A leitura dos clássicos da sociologia através da perspectiva de Oliveira demonstra novas possibilidades de análises e interpretações. Esse tipo de produção nos ajuda a ter noção da vida e obra de um autor, nos propicia compreender as escolhas e caminhos tomados e a entender a relação dos autores com os rumos tomados pela disciplina. Recomendamos esse livro aos estudiosos sobre migração e teoria sociológica.
Referencias bibliográficas
- CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das letras, 1993, p. 9-16.
- LOBO, Andrea; FURTADO, Cláudio. As pequenas ilhas e o país continental. Fluxos entre Cabo Verde e Brasil. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobildiade Humana, v. 31, n. 67, p. 55-76, 2023.
- SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Tese de Doutorado em Psicologia Social. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. DOI:10.11606/T.47.2012.tde-21052012-154521.
- SEYFERTH, Giralda. A dimensão cultural da imigração. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 26, n. 77, p. 47-62, 2011.
Editores de seção
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Dez 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
-
Recebido
10 Nov 2023 -
Aceito
24 Nov 2023