Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar as experiências de educadores(as) da rede municipal de ensino da cidade de Boa Vista (RR) relacionadas à presença da diversidade imigratória de crianças venezuelanas e às possibilidades de inclusão de práticas interculturais em espaços escolares. O marco teórico abarca os conceitos de fronteira, interculturalidade e imigração. A metodologia, de caráter qualitativo, abrangeu entrevistas e pesquisa exploratória, bibliográfica e documental. A análise empírica se desenvolve em torno de três dimensões das experiências de educadores(as) relacionadas à interculturalidade: a visão dos(as) educadores(as) sobre a relação com a fronteira, as escolas de Boa Vista como espaços de diversidade migratória e a ausência de políticas públicas voltadas à interculturalidade. Como resultados, observamos possibilidades e limites de desenvolvimento de práticas educativas interculturais no contexto da fronteira, a ausência de projetos e políticas interculturais nas escolas e o entendimento de que a presença de migrantes é provisória.
Palavras-chave:
imigração venezuelana; fronteira; escola; interculturalidade
Abstract
This article aims to analyze the experiences of educators from public schools of Boa Vista (RR), related to the presence of immigrant diversity of Venezuelan children, and the possibilities of including intercultural practices in school spaces. The theoretical framework covers the concepts of borders, interculturality and immigration. The methodology, of qualitative assumptions, included interviews, exploratory, bibliographical, and documental research. The empirical analysis is developed based on three dimensions of educators’ experiences related to interculturality: the educators’ perspective of the relation with the border, Boa Vista schools as spaces of migratory diversity and the absence of public policies aimed at interculturality. As results, we observed possibilities and limits for the development of intercultural educational practices in the border context, the absence of intercultural projects and policies in schools and an understanding of the temporary nature of the migratory presence.
Keywords:
Venezuelan immigration; border; school; interculturality
Introdução
No ano de 2019, aproximadamente 4 milhões de cidadãos venezuelanos, cerca de 12% da população total, já estavam registrados como refugiados, residentes estrangeiros ou solicitavam o reconhecimento da condição de refugiados no mundo, segundo dados do Comitê Nacional para Refugiados (Conare, 2019CONARE - Comitê Nacional para os Refugiados. Refúgio em Números - 4ª edição. Brasília, 2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3QeW0MY . Acesso em: 23.09.2022.
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). Três anos depois, a Plataforma de Coordenação Interagencial para Refugiados e Migrantes - R4V apontou que esse número havia crescido cerca de 70%. Em 2022, dos 6.805.209 venezuelanos refugiados e imigrantes no mundo, 84% permaneciam na América Latina e no Caribe (R4V, 2022R4V - Plataforma de Coordenação Interagencial para Refugiados e Migrantes da Venezuela. Refugiados y Migrantes de Venezuela. R4V, Cidade do Panamá, 5 ago. 2022. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3q4YIKa . Acesso em: 25.09.2022.
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), sendo 5% deles no Brasil, onde a busca por refúgio e residência se ampliou especialmente a partir de 2019. Naquele ano, o Conare (2019) CONARE - Comitê Nacional para os Refugiados. Refúgio em Números - 4ª edição. Brasília, 2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3QeW0MY . Acesso em: 23.09.2022.
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reconheceu a situação de grave e generalizada violação de direitos humanos na Venezuela, possibilitando a simplificação do processo de determinação da condição de refugiado para a população do país vizinho.
O deslocamento forçado de venezuelanos tem sido impulsionado pelo quadro de crise econômico-política enfrentado nas últimas décadas pela Venezuela, que desencadeou o crescimento da pobreza e a precarização do acesso a direitos como saúde e educação no país (Blouin, 2019BLOUIN, Cécile. Antes de la llegada: migración (forzada) de personas venezolanas. In: BLOUIN, Cécile (coord.). Después de la llegada: realidades de la migración venezolana. Lima: Editorial Jurídica THĒMIS, 2019, p. 13-22.; Oliveira, 2019OLIVEIRA, Antônio Tadeu Ribeiro de. Los impactos de la migración venezolana en Brasil: crisis humanitaria, desinformación y aspectos normativos. In: BLOUIN, Cécile (coord.). Después de la llegada: realidades de la migración venezolana. Lima: Editorial Jurídica Thēmis, 2019, p. 63-79.). A crise adquiriu novas configurações em decorrência da pandemia da Covid-19, que gerou um maior crescimento da inflação (Singer, 2020SINGER, Florantonia. Com um quilo de arroz por um salário mínimo, a hiperinflação dispara novamente na Venezuela. El País, Caracas, 30 dez. 2020. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/43FSkGZ . Acesso em: 20.04.2021.
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), agravamento da crise sanitária associado à infodemia e à desinformação (Colombo, 2021COLOMBO, Sylvia. Pouca vacina e gotas ‘milagrosas’ marcam pandemia na Venezuela. Folha de S. Paulo, Buenos Aires, 28 mar. 2021. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3DBh60c . Acesso em: 20.04.2021.
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; Reuters, 2021REUTERS. Facebook congela página de Maduro por promover remédio ineficaz anti-Covid.. Folha de S. Paulo, Caracas, 27 mar. 2021. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/44XuR5P . Acesso em: 20.04.2021.
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), o fechamento de fronteiras ( Delfim, 2020aDELFIM, Rodrigo Borges. Brasil mantém restrições sobre venezuelanos, mas libera entrada via aérea em todo o país. MigraMundo, 25 set. 2020a. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/43I5pzM . Acesso em: 20.04.2021.
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, 2020b______. Nova portaria do governo contraria Justiça e mantêm restrições sobre refúgio e venezuelanos. MigraMundo, 28 ago. 2020b. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/44Xv0Gp . Acesso em: 20.04.2021.
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; Veronezi, 2021VERONEZI, Rodrigo. Nova portaria sobre residência barra venezuelanos que chegaram no Brasil na pandemia. MigraMundo, 29 mar. 2021. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3rMyQTW . Acesso em: 20.04.2021.
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), além de ampliação da xenofobia contra a população venezuelana (Bello, 2021BELLO, Sabela. Venezuela mantém alerta por proximidade com o Brasil, epicentro da pandemia. UOL, 19 mar. 2021. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/453d6BC . Acesso em: 20.04.2021.
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; Reuters, 2020REUTERS. Para atacar rival, Maduro emula Trump e chama coronavírus de ‘vírus colombiano’. Folha de S. Paulo, Bogotá, 30 jun. 2020. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/44LrxdU . Acesso em: 20.04.2021.
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; Veronezi, 2021VERONEZI, Rodrigo. Nova portaria sobre residência barra venezuelanos que chegaram no Brasil na pandemia. MigraMundo, 29 mar. 2021. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3rMyQTW . Acesso em: 20.04.2021.
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).
Os impactos da pandemia no deslocamento e na inserção de venezuelanos no Brasil foram evidenciados também no campo educativo. O fechamento de escolas acentuou a exclusão de crianças imigrantes que não contavam com dispositivos e conectividade para acesso remoto às atividades escolares. Cabe destacar que, em 2021, cerca de 15% do total de matrículas na rede municipal de ensino de Boa Vista, capital do estado de Roraima, situado na fronteira Brasil-Venezuela, era de alunos imigrantes, majoritariamente venezuelanos (Observatório de Boa Vista, 2022OBSERVATÓRIO DE BOA VISTA. Distorção idade-série. Observatório de Boa Vista. Boa Vista: Prefeitura Municipal de Boa Vista, 10 fev. 2022. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3tHOS2u . Acesso em: 03.10.2022.
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O site foi tirado do ar em 2023. Registros capturados estão disponíveis na tese de doutorado também referenciada.
; Generali, 2023GENERALI, Sabrina. Consumo midiático, interculturalidade e cidadania: experiências de educadoras e educadores de escolas públicas no contexto da fronteira Brasil-Venezuela. 2023. 482 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Práticas de Consumo) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), São Paulo, 2023. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/tese-sabrina-generali . Acesso em: 26.07.2023.
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).
Para Manzi (2020MANZI, Laura. ¿Cómo ha afectado la pandemia a los niños y niñas migrantes? San Jose: OIM - Organização Internacional para as Migrações, 2020. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/43DTiUg . Acesso em: 05.01.2021.
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), o fechamento das escolas estabelece mais um processo de exclusão de jovens e crianças imigrantes, já que muitos podem não dispor de recursos eletrônicos para assistir às aulas. A autora destaca que essa falta de acesso à educação pode afetar “possibilidades futuras para sair da pobreza através de seu capital humano e capacidades, junto ao aumento do abandono escolar” (Manzi, 2020MANZI, Laura. ¿Cómo ha afectado la pandemia a los niños y niñas migrantes? San Jose: OIM - Organização Internacional para as Migrações, 2020. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/43DTiUg . Acesso em: 05.01.2021.
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, p. 1).
O relatório Niñez Venezolana - entre la espada y la pared (World Vision International, 2020WORLD VISION INTERNATIONAL. Report Niñez Venezolana - entre a espada y la Pared. World Vision International. Uxbridge: 2020. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3Y8sZEC . Acesso em: 17.07.2023.
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) revela que três em cada quatro crianças e jovens imigrantes venezuelanos que residem no Brasil vivem em um local de ocupação espontânea2
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Esses locais servem como alternativa de residência para os mais vulneráveis, que não possuem disponibilidade de hospedagem em casa de familiares ou amigos ou que não conseguem vaga nos abrigos da Operação Acolhida.
. Um terço dos menores imigrantes consultados na pesquisa indicou viver desacompanhado de um adulto responsável no país para onde migrou. Além disso, 77% das crianças e jovens consultados para o levantamento apontam não ter participado das atividades escolares durante a pandemia, seja em decorrência da mudança para um modelo de ensino remoto ou pelo fato de suas famílias não terem realizado sua matrícula. A pesquisa evidencia ainda que, em relação a outros cinco países da região - Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e Chile -, o Brasil é o país onde os imigrantes venezuelanos têm menos acesso a meios de comunicação.
Para além das condições e consequências impostas pela pandemia, entendemos que, no atual cenário educacional da cidade de Boa Vista, marcado pelo crescente número de matrículas de crianças venezuelanas, questões relacionadas à diversidade e à diferença se tornam centrais. Essas questões abrem possibilidades para o exercício e a implementação de práticas educativas orientadas à interculturalidade, capazes de questionar e até mesmo superar estereótipos e preconceitos legitimadores de relações de sujeição ou de exclusão, “na medida em que sujeitos diferentes se reconhecem a partir de seus contextos, de suas histórias e de suas opções” (Fleuri, 2003FLEURI, Reinaldo Matias (org.). Educação intercultural. Mediações necessárias. Rio de Janeiro: DP&A, 2003., p. 73).
Levando em consideração esse cenário, o presente artigo3 3 Este artigo é um recorte da tese de doutorado “Consumo midiático, interculturalidade e cidadania: experiências de educadoras e educadores de escolas públicas no contexto da fronteira Brasil-Venezuela”, de autoria de Sabrina Generali, sob a orientação da Profa. Dra. Denise Cogo. Disponível em: https://bit.ly/tese-sabrina-generali. tem como objetivo analisar as experiências de educadores(as) da rede municipal de ensino de Boa Vista relacionadas à presença da diversidade migratória de crianças venezuelanas e às possibilidades de inclusão de práticas interculturais em espaços escolares. A seguir, apresentamos um panorama sobre as noções de fronteiras, educação, interculturalidade e migrações que fundamentaram o marco teórico do estudo. Também detalhamos a metodologia, que se desenvolveu a partir de uma pesquisa de caráter qualitativo composta por 16 entrevistas semiestruturadas com educadores(as) da rede municipal, além de pesquisa exploratória, bibliográfica e documental. Por fim, apresentamos os resultados da análise, organizados em três eixos: A visão dos(as) educadores(as) sobre a relação com a fronteira; As escolas de Boa Vista como espaços de diversidade migratória; A ausência de políticas públicas educacionais voltadas à interculturalidade.
Educação, migração e interculturalidade: operando nas fraturas
Segundo Cogo (2017)______. Migrações transnacionais, narrativas midiáticas e o direito à mobilidade humana. In: ALENCAR, Claudiana Nogueira de; COSTA, Maria de Fátima Vasconcelos da; COSTA, Nelson Barros (orgs.). Discursos, fronteiras e hibridismo. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2017., ao longo dos anos, vem crescendo a complexidade e a multidimensionalidade dos movimentos migratórios. Além das frágeis condições de vida que impulsionam migrações forçadas em diferentes espaços globais, as restrições e os controles impostos na recepção dos sujeitos em deslocamento reforçam essa paisagem incerta das regiões fronteiriças. Martins (2019MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2019.) assinala que o conceito de fronteira aparece com frequência como “fronteira da humanidade”, ou seja, uma fronteira imposta desde o momento em que os sujeitos começam a sofrer com suas vulnerabilidades (sociais, econômicas, culturais, raciais etc.), até que são forçados a se deslocar em busca de melhores condições de vida.
Entendemos o conceito de fronteira como fronteira física e também como um marco simbólico, um espaço imaterial de tensão. As próprias fronteiras nacionais, segundo Albuquerque (2018)ALBUQUERQUE, José Lindomar. Identidades em territórios de fronteira - Os casos de Ceuta e Gibraltar na fronteira entre a África e a Europa. Civitas, v. 18, n. 2, p. 285-302, maio-ago. 2018. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/454gsUG . Acesso em: 26.06.2023.
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, têm sido pensadas menos como limites de soberanias territoriais firmados em tratados internacionais e mais como “zonas e regiões transfronteiriças concretas, heterogêneas, múltiplas, dinâmicas em suas configurações econômicas, sociais, culturais e políticas” (Albuquerque, 2018ALBUQUERQUE, José Lindomar. Identidades em territórios de fronteira - Os casos de Ceuta e Gibraltar na fronteira entre a África e a Europa. Civitas, v. 18, n. 2, p. 285-302, maio-ago. 2018. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/454gsUG . Acesso em: 26.06.2023.
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, p. 286). O autor lembra, ainda, da singularidade que define o território de fronteira como um lugar único, onde se compartilha uma cultura de contato entre duas ou mais nações e se observam mesclas culturais e linguísticas, permeadas por diferenças, desigualdades e hierarquias de poder.
É também a partir da tensão existente nesse espaço físico e imaterial que refletimos sobre os contextos de incerteza impostos pelo deslocamento através de fronteiras, quando um imigrante se percebe em um “espaço entre”5
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Tradução livre de “in between”.
seu lugar de saída e de chegada (Agier, 2015AGIER, Michel. Migrações, descentramento e cosmopolitismo: uma antropologia das fronteiras. São Paulo/Maceió: Ed. Unesp/Edufal, 2015.), temporário e ao mesmo tempo indeterminado. Esse “entrelugar”, também citado por Fleuri (2003)FLEURI, Reinaldo Matias (org.). Educação intercultural. Mediações necessárias. Rio de Janeiro: DP&A, 2003., se constitui por uma “paisagem fraturada”5
5
Tradução livre de “fractured landscape”.
(Lloyd, 2017LLOYD, Annemaree. Researching fractured (information) landscapes: implications for library and information science researchers undertaking research with refugees and forced migration studies. Journal of Documentation, v. 73, n. 1, p. 35-47, 2017. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3Y6r4jX . Acesso em: 21.12.2021.
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), o que reforça a percepção de um contexto de incerteza. “Trata-se de um lócus situado entre o mundo que se deixou e o outro onde se pretende chegar, um local de temporalidade suspensa, de sobrevivência e de empurrar o tempo” (Agier, 2015AGIER, Michel. Migrações, descentramento e cosmopolitismo: uma antropologia das fronteiras. São Paulo/Maceió: Ed. Unesp/Edufal, 2015., p. 73).
As fronteiras, portanto, se constituem como locais ao mesmo tempo indefinidos e incertos, assim como espaços de encontros e conexões culturais, tornando-as suscetíveis à intervenção e passíveis de transformação. O potencial não vem, porém, desacompanhado de desafios e conflitos. Entendemos que as escolas, que lidam com fronteiras imateriais a todo o momento - e, no caso das escolas de Boa Vista, também lidam com a fronteira como uma questão de migração transnacional -, têm, de forma latente e inerente ao seu trabalho, a possibilidade de:
rever posturas e experiências didático-pedagógicas, questionando a forma restrita, homogeneizante, binária, de se relacionar com a realidade e redescobrindo, numa perspectiva complexa, as possibilidades de aprendizagens para a convivência intercultural num mundo multicultural e multiétnico. (>Fleuri, 2003FLEURI, Reinaldo Matias (org.). Educação intercultural. Mediações necessárias. Rio de Janeiro: DP&A, 2003., p. 53)
A partir de autores como Cortina (2005______. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. São Paulo: Loyola, 2005.) e Touraine (1998)TOURAINE, Alain. Igualdade e diversidade: o sujeito democrático. Tradução: Modesto Florenzano. Pauru: EDUSC, 1998., refletimos que, em uma educação dedicada ao desenvolvimento da cidadania intercultural, a criança imigrante não deve apenas integrar normas pré-definidas da sociedade ou da escola onde acaba de chegar, mas também precisa ter a possibilidade de participar de sua permanente reconstrução, para que efetivamente se sinta pertencente a esses espaços. Cortina (2005) ______. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. São Paulo: Loyola, 2005.define a cidadania intercultural como aquela alicerçada em um projeto ético e político que leva em conta a não assimilação de culturas por uma única cultura dominante. Segundo a autora (ibidem______. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. São Paulo: Loyola, 2005., p. 189), uma sociedade intercultural demanda a convivência entre as culturas de maneira que se permita a expressão das diferenças, um “respeito ativo” pelas diversas identidades e origens e um “interesse positivo” em compreender e apoiar os projetos de seus diversos integrantes.
Na interface interculturalidade/migração, Bartolomé (2003) BARTOLOMÉ, Margarita. Educación intercultural y ciudadanía. Aula Intercultural. Barcelona, 15 dez. 2003. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/43DT8w8 . Acesso em: 22.12.2021.
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postula o desenvolvimento da cidadania intercultural a partir da articulação entre o status legal e a cidadania como um processo dinâmico, que se modifica ao longo do tempo por intermédio das relações estabelecidas pelos sujeitos imigrantes com a sociedade que os acolhe e com os sujeitos locais. Para Sarmento (2020)SARMENTO, Gilmara Gomes da Silva. Palestra proferida no webinar A educação em contexto de emergências e o apoio psicossocial (Roraima), set. 2020. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3pX7DNW . Acesso em: 02.12.2021.
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, a educação e o ambiente escolar podem ser favoráveis às experiências migrantes quando possibilitam aos sujeitos o acesso a direitos, inclusive o direito à própria mobilidade. A compreensão dos direitos dos imigrantes pelas populações que os recebem pode contribuir para evitar hostilidades decorrentes da elaboração de mecanismos de exclusão sutis, os quais acabam por levar à prática do bullying e da xenofobia.
O desenvolvimento de propostas de educação intercultural orientadas a contextos educativos com presença significativa de imigrantes tem abrangido aspectos como a necessidade de renovação de currículos monoculturais; a integração de distintos grupos culturais no espaço escolar; a superação de representações essencialistas das culturas; a reafirmação do enriquecimento que supõe a presença de bagagens culturais diferenciadas no terreno educativo; e a interação na escola como preparação para a interação social (Cogo, 2015COGO, Denise. Comunicação e diversidade: cenários e possibilidades da comunicação intercultural em contextos organizacionais. In: MOURA, Claudia Peixoto de; FERRARI, Maria Aparecida (org.). Comunicação, interculturalidade e organizações: faces e dimensões da contemporaneidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015, v. 1, p. 97-116.). O principal desafio consiste em identificar que as interações que constituem a interculturalidade não ocorrem, muitas vezes, em situações de igualdade, mas são atravessadas por dinâmicas de desigualdade, dominação e hierarquias que envolvem marcadores etnorraciais, de classe e de gênero (Malgesini, Giménez, 1997)MALGESINI, Graciela; GIMÉNEZ, Carlos. Guía de conceptos sobre migraciones, racismo e interculturalidad. La Cueva del Oso. Madri: Los libros de La Catarata, 1997..
Metodologia
Com o objetivo de acessarmos as experiências de educadores(as), optamos pela realização de entrevistas semiestruturadas com professores(as) e coordenadores(as) pedagógicos(as) de escolas urbanas da rede municipal de Boa Vista que atuassem com turmas dos anos iniciais do Ensino Fundamental6
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A rede oferta apenas Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental.
e que contassem com ao menos um terço de estudantes venezuelanos. Nas escolas urbanas se concentra a maior parte dos imigrantes, por estarem próximas de abrigos da Operação Acolhida e pela maior oferta de empregos na região. No Ensino Fundamental, encontramos alunos em uma fase de consolidação de relações sociais a partir do estabelecimento de laços de amizade e da demonstração de pertencimento, baseadas em interesses mútuos e na confiança (PBS, 2023PBS - Public Broadcast Service. Friendship: How to Help Your Seven-Year-Old Build Healthy Relationships. PBS, Boston, 2023. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/46ZYOCO . Acesso em: 23.10.2023.
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), o que acaba por se refletir diretamente no diálogo sobre o que vivenciam dentro e fora do espaço escolar. A opção por turmas com mais de um terço de venezuelanos está relacionada à intenção de evidenciarmos encontros, desencontros e disputas ocasionados pelas diferenças culturais em um contexto no qual pudéssemos encontrar uma maioria de venezuelanos. Dessa maneira, os(as) educadores(as) estariam inseridos(as) em uma conjuntura de diversidade onde sua própria cultura e língua não seriam preponderantes. A decisão de realizar a pesquisa em uma instituição pública se deu por sua representatividade no cenário nacional: a rede pública concentra 80,9% das 14,8 milhões de matrículas deste segmento (INEP, 2021INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Resultados Anuais do Censo Escolar. Resumo Técnico: Censo da Educação Básica 2020 [recurso eletrônico]. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2021. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3O9Bniy . Acesso em: 22.07.2023.
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).
Os(as) educadores(as) entrevistados(as) tiveram seus nomes substituídos por nomes fictícios. Os nomes das escolas também foram omitidos7 7 Todos os(as) educadores(as) assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa conta com a chancela do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Superior de Propaganda e Marketing (CEP – ESPM). .
Adotamos o padrão de entrevistas semiestruturadas, com perguntas norteadoras que abrangeram cinco grandes temas: história de vida do professor; interculturalidade; mídia; cruzamento entre interculturalidade e consumo de mídia; sobre a prática profissional relacionada à pandemia. Para a tese de doutorado, da qual resulta este artigo, identificamos, a partir da transcrição das entrevistas, seis grandes temáticas dominantes nos relatos dos(as) educadores(as): migração e acolhimento; escola como espaço de diversidade; a fragilidade e a elasticidade do entendimento sobre cidadania; xenofobia como bullying na escola; ensino remoto e o uso do celular; educadores e o consumo midiático. Os dois primeiros temas, em especial, contribuíram para a elaboração deste artigo.
As entrevistas foram realizadas entre janeiro e fevereiro de 2022, de forma presencial, nos espaços das escolas, com exceção de uma professora que, diagnosticada com Covid, concedeu a entrevista em formato online.
A metodologia abrangeu, ainda, pesquisa de campo exploratória através da observação em espaços digitais e físicos de Boa Vista; observação de atividades de formação de educadores e de atividades pedagógicas; pesquisa bibliográfica; e pesquisa documental, que contemplou principalmente materiais sobre legislação e materiais didáticos utilizados nas escolas.
Resultados
Os resultados desta pesquisa foram estruturados a partir de três eixos de análise, alicerçados principalmente no material empírico supracitado, conforme apresentamos a seguir.
A visão dos(as) educadores(as) sobre a relação com a fronteira
Os(as) educadores(as) entrevistados(as) reconhecem que Roraima é um estado originalmente indígena e que, com o passar dos anos, se tornou também um estado de migrantes, oriundos principalmente do nordeste do Brasil, que se mudaram para a região em busca de trabalho. Sete dos 16 entrevistados não são nascidos em Roraima, mas a maioria dos nascidos no estado resgataram em suas falas a histórica migração nordestina para Roraima (Vale, 2006VALE, Ana Lia Farias. Imigração de nordestinos para Roraima. Revista Estudos Avançados, v. 20, n. 57, ago. 2006. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3SbF9eH . Acesso em: 23.10.2023.
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). “Tem uma música: ‘Quem é filho de Roraima é neto do Nordeste’. [risos] Uma música de um compositor local daqui, que retrata muito isso, né? Fala da miscigenação que foi feita no estado de Roraima”, comentou Pedro. Mara mencionou: “Mamãe é do Piauí e o papai é do Ceará. Então, eu sou daqui, mas corre sangue nordestino aqui, tanto que as pessoas acham que eu não sou daqui”. Além disso, para um grupo de educadoras(es), a mudança para Roraima foi decorrente de questões profissionais. Adriana, por exemplo, relatou que: “Roraima surgiu numa visão de novidade para mim. Eu queria ganhar mais e ser reconhecida profissionalmente”. Já Caroline contou que a mudança para Roraima ocorreu devido a uma demanda profissional do ex-marido.
Kátia, professora nascida no Ceará, disse que migrou para Roraima na década de 1990. Apesar disso, em determinado momento da entrevista, ao propor uma diferenciação entre brasileiros e venezuelanos, recorreu à expressão “pra todos nós, roraimenses”. Sua fala reflete a visão de parte dos(as) educadores(as) entrevistados(as): o deslocamento de brasileiros de outros estados para Roraima é interpretado como um movimento de atração profissional - se aproximando de uma perspectiva econômica desenvolvimentista, que há décadas se apresenta como “estratégia de desenvolvimento econômico do governo federal” (Vale, 2006VALE, Ana Lia Farias. Imigração de nordestinos para Roraima. Revista Estudos Avançados, v. 20, n. 57, ago. 2006. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3SbF9eH . Acesso em: 23.10.2023.
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). Por outro lado, a imigração venezuelana é vista como deslocamento forçado de uma população pobre.
Observamos, ainda, que historicamente a imigração venezuelana assume particularidades em decorrência das dinâmicas da fronteira Brasil-Venezuela. Para além do estranhamento em relação ao uso da língua espanhola, a relação da população de Roraima com a Venezuela vem de um histórico ligado à fartura, às relações comerciais e ao turismo, que há anos já não prospera. Essa perspectiva também é expressa por educadores(as) entrevistados(as). A própria população da cidade de Pacaraima, hoje com diversos registros na mídia como um local militarizado e repleto de moradores de rua venezuelanos, vivenciou anteriormente relações fronteiriças com a Venezuela e os venezuelanos pautadas no comércio e no consumo. Contudo, essas relações não estiveram necessariamente fundamentadas na construção de conexões com aspectos culturais do país vizinho.
Aqui, durante muito tempo, a gente estabeleceu uma relação com a fronteira muito nessa questão de trocas, de compras, de você ir na Venezuela comprar ou ir para Isla Margarita, quem tinha condições, mesmo não muitas condições. [...] a Venezuela sempre teve o combustível muito mais em conta do que o brasileiro. […] Isso virou um negócio. (Joana)
Além disso, emergiram, em algumas entrevistas, percepções sobre a falta de cordialidade histórica na relação entre brasileiros e venezuelanos, relacionada a disputas por status socioeconômico. Muitas vezes, isso é usado como justificativa para a falta de receptividade dos brasileiros em relação aos imigrantes.
Nós íamos para lá para comprar, para turismo paraíso, [...] e muitas vezes a gente acabava consumindo muita coisa que era sonho de consumo deles também. Então tinha uma certa resistência, um certo preconceito com o brasileiro. (Paulo)
Durante o trabalho de campo realizado em Roraima, foi possível observar que o território venezuelano passou a ter sua imagem associada à pobreza, à degradação e ao conflito, reforçada pela mídia e por políticos de direita e extrema direita, principalmente em campanhas eleitorais. Essa percepção sobre o território também acaba sendo associada à sua população imigrante, que passa a ser vista como problema. Um claro exemplo dessa abordagem se deu na campanha eleitoral de 2020 para a prefeitura municipal de Boa Vista, quando os candidatos Deputado Nicoletti (PSL) e Gerlane (PP) adotaram uma retórica anti-imigração, mais especificamente voltada ao fluxo de venezuelanos para a região (Figuras 1, 2 e 3).
No contexto dessas dinâmicas migratórias, educadores(as) entrevistados(as) revelaram em suas falas uma mistura de sentimentos dicotômicos em relação à população venezuelana imigrante, que aparenta se alicerçar na oposição superioridade/inferioridade, reforçando preconceitos estruturantes na sociedade, como a “aporofobia” (Cortina, 2020CORTINA, Adela. Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020. E-book.), que emerge das desigualdades econômicas, ou mesmo a xenofobia e o racismo, que derivam de um histórico colonialista. Segundo Cortina:
é certo que as portas se fecham ante os refugiados políticos, ante os imigrantes pobres que não têm a perder mais do que seus grilhões [...]. As portas da consciência se fecham ante os mendigos sem casa, condenados mundialmente à invisibilidade. O problema não é, então, a raça, a etnia e nem mesmo o estrangeiro. O problema é a pobreza. O mais impressionante nesse caso é que há muitos racistas e xenófobos, mas quase todos são aporófobos. É o pobre, o áporos que incomoda [...]. É a fobia do pobre o que leva à rejeição às pessoas, raças e etnias que habitualmente não têm recursos e, portanto, não podem oferecer nada ou parecem não poder fazê-lo. (Cortina, 2020CORTINA, Adela. Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020. E-book., posições 344-352)
Na pesquisa aqui relatada, torna-se relevante pensar como a xenofobia e a aporofobia operam de modo articulado no contexto fronteiriço.
As escolas de Boa Vista como espaços de diversidade migratória
Em decorrência da legislação que determina a matrícula de imigrantes na rede pública, as escolas de Boa Vista passaram a ser um espaço onde a diversidade e a diferença estão constantemente presentes nas vivências educativas por meio da relação entre brasileiros, venezuelanos, haitianos, guianenses e indígenas de várias etnias. Estabeleceu-se um espaço onde as trocas culturais são possíveis, ainda que precisem ser oportunizadas e estimuladas8 8 Consideramos que essas oportunidades precisam ser estruturadas desde o espaço físico da instituição, passando pelo projeto político-pedagógico, pelo currículo e pela formação de educadores(as), até chegar na sala de aula, por meio das práticas, atividades, diálogos e projetos estabelecidos com os estudantes. , assim como os conflitos interculturais precisam ser evidenciados e enfrentados.
Nas escolas onde realizamos a pesquisa, professores(as) apontam que, quando ocorre, a discriminação contra venezuelanos costuma se dar na forma discursiva de bullying. Em diversos casos, entrevistados(as) apontaram que as falas dos estudantes costumam ser reflexo do que escutam e vivem fora da escola, com destaque para o que ouvem no âmbito familiar.
Na [escola], nossa, eu já separei várias brigas entre brasileiro e venezuelano em sala de aula. Era muito tenso, assim, sabe? Bullying, essas coisas... Então, assim, eu fiz projetos de bullying para trabalhar com eles. [...] eu fazia atividades, contava histórias, tentava trabalhar essa questão, porque logo no início, quando eles vieram, tinha esse conflito. (Caroline)
Em relação ao posicionamento dos(as) educadores(as) entrevistados, verificamos que quanto mais criticavam a imigração venezuelana, menos reconheciam a xenofobia na escola ou afirmavam que esse tipo de violência é comum tanto entre brasileiros como venezuelanos. Uma gestora chegou a comentar que “se fecha”, no sentido de se opor ao diálogo, quando não compreende o que venezuelanos estão falando em espanhol. Por outro lado, uma das professoras entrevistadas relatou ter estabelecido uma relação bastante próxima à família de um aluno venezuelano. Em geral, há percepções muito diversas sobre a imigração venezuelana para Boa Vista. Mas quase sempre ela é vista como um problema a ser resolvido.
Na perspectiva da interculturalidade, alguns(mas) educadores(as) reconhecem que os espaços das escolas acabam sendo regidos por uma perspectiva assimilacionista, que impõe às crianças venezuelanas uma adaptação aos costumes de escolas brasileiras, sem que, no entanto, seja exigido dos brasileiros uma abertura e negociações com a cultura do país vizinho.
Eles acabam se adaptando à realidade do Brasil [...]. Eu não sei se eu posso, se é correto eu falar isso, mas eles acabam absorvendo essa cultura, acabam se adaptando. [...] Então, eles não trazem algo que vai ser agregado aqui ao brasileiro. A gente não acaba absorvendo, porque a gente já tem uma cultura definida. (Pedro)
Há, contudo, principalmente entre gestores, a percepção sobre a possibilidade de momentos de interação e de aprendizagem significativa entre estudantes e professores brasileiros a partir da implementação de iniciativas pedagógicas envolvendo a arte e a cultura venezuelanas, que passariam a integrar os currículos. Entretanto, sinalizaram que, em decorrência da pandemia, projetos dessa natureza não estavam sendo executados e nem mesmo formulados. A gestora Adriana foi a entrevistada que mais revelou uma postura crítica sobre a necessidade de uma proposta intercultural para as escolas de Boa Vista. Ela considera que, por ser professora de Geografia, sua experiência nessa disciplina colabora para tal percepção.
Além disso, a falta de acesso à educação decorrente da pandemia precarizou ainda mais a condição de vida das crianças de baixa renda, tanto venezuelanas como brasileiras, gerando um contexto propício para a aporofobia se somar à xenofobia contra imigrantes.
A ausência de políticas públicas educacionais voltadas à interculturalidade
A Agenda 20309
9
Compromisso assinado pelos países membros da ONU, que envolve ações de governos, empresas, organizações não governamentais e sociedade civil para o enfrentamento de grandes desafios da contemporaneidade.
para o Desenvolvimento Sustentável postula que a educação é fundamental para contribuir com soluções de longo prazo para os refugiados, assim como garantir que gerações deslocadas sejam capacitadas para reconstruir suas vidas e suas comunidades - seja no país de destino ou no contexto de uma migração de retorno aos países de origem. “Portanto, assegurar o direito à educação para os refugiados em uma perspectiva sustentável significa fornecer-lhes as ferramentas necessárias para reconstruir suas vidas, exercer outros direitos humanos e fomentar sua liberdade e seu empoderamento individuais” (UNESCO, 2019UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Investir na diversidade cultural e no diálogo intercultural: relatório mundial da UNESCO. 2009. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3rNi9rx . Acesso em: 05.01.2021.
https://bit.ly/3rNi9rx...
, p. 16).
O objetivo nº 4 da Agenda 2030 propõe que os países signatários do compromisso trabalhem para “assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos” (ONU, 2022ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil/Educação de qualidade. Brasília: Organização das Nações Unidas, 2022. Disponível em: Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/4 . Acesso em: 23.10.2022.
https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/4...
). Uma das metas da Agenda, voltada ao estado de Roraima, tem como foco o processo de acolhimento de crianças venezuelanas, o que envolve o acesso à educação, para que “crianças em deslocamento sejam apoiadas a acessar oportunidades de educação, ao mesmo tempo em que se aumente a capacidade das escolas na comunidade de acolhimento” (UNESCO, 2019UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Investir na diversidade cultural e no diálogo intercultural: relatório mundial da UNESCO. 2009. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3rNi9rx . Acesso em: 05.01.2021.
https://bit.ly/3rNi9rx...
, p. 16).
Nessa perspectiva, os(as) 16 educadores(as) entrevistados(as) na pesquisa concordam que é um direito das crianças imigrantes que tenham acesso a serviços e benefícios sociais, assim como os brasileiros. Todos compartilham o entendimento de que as escolas devem matricular estudantes venezuelanos que tenham imigrado para o Brasil, uma vez que se apresenta como obrigação do Estado garantir esse acesso, assim como é um dever da gestão escolar efetivar a matrícula e conter a evasão escolar. No entanto, não emergiram nas entrevistas outras estratégias de acolhimento promovidas pelas escolas para além do cumprimento dos direitos básicos, mesmo diante da percepção sobre as demandas diferenciadas trazidas pelo público imigrante.
Há indicativos, nas entrevistas, de que tanto professores(as) como equipes de gestão e do setor administrativo das escolas municipais pesquisadas sentem falta de formação para atuar no contexto migratório ou, pelo menos, de aulas de língua espanhola para melhor atenderem as crianças venezuelanas e suas famílias. A heterogeneidade que a imigração venezuelana recente trouxe às escolas é vista como um desafio imposto aos(às) educadores(as). Observamos, entretanto, que a falta de mudanças no currículo do município e de formação de professores(as) dedicada ao tema não colaboram para uma transformação desse cenário.
Não é um momento de um grande desafio, eu digo que é todo momento. [...] porque eles não entendem a nossa língua, e nem... Eu não entendo a língua deles, tem algumas palavras que eu sei, mas não totalmente, e eles falam muito rápido... E os pais se chateiam... É bem complicado. Já tive três irmãos venezuelanos numa mesma sala [...] eram de idades diferentes. Por isso que eu tô falando, eles vêm e são matriculados numa sala só de primeiro ano. (Lara)
A vinda deles é de uma forma muito brusca. Muitos vêm a pé. Muitos vêm da Venezuela numa condição, assim, muito precária. Eles têm um choque emocional muito grande e eles chegam aqui na escola com toda essa falta de estrutura. A falta de estrutura familiar de lá, de relação afetiva, emocional, né. [...] Então, tudo isso ele traz para a sala de aula, e aí, além disso, uma língua diferente. (Paulo)
Também questionamos os(as) educadores(as) sobre como costumam lidar com os episódios de xenofobia na sala de aula e na escola. Na maioria das vezes, além de uma conversa aberta com a turma, os(as) professores(as) afirmaram que recorrem ao trabalho com o Programa Compasso, dedicado à aprendizagem socioemocional. Em vídeo institucional10 10 Disponível em: https://youtu.be/kpwnoUnyvzs. Acesso em: 01.02.2023. , a ex-prefeita de Boa Vista, Teresa Surita, afirma que a implementação do programa tem uma proposta de trabalho de longo prazo. Embora focado na infância, os resultados do programa poderiam reverberar na população ao longo dos anos, para promover, por exemplo, um tratamento mais empático com relação aos imigrantes. No vídeo, uma professora relata ter lançado mão do programa para reduzir a agressividade de um de seus estudantes que havia acabado de chegar da Venezuela e promover a conscientização da turma. Entre os(as) entrevistados(as) da pesquisa, Joana foi a única professora que se opôs ao programa, pois o entende como inflexível, voltado mais ao cumprimento de uma agenda do que para o trabalho com a diversidade e com a proposta de uma aprendizagem significativa a partir da realidade vivida na cidade de Boa Vista.
Apesar de a quantidade de pessoas venezuelanas deslocadas para o Brasil ter aumentado desde 2015, os relatos dos(a) educadores(as) sugerem que ainda não é possível observar mudanças efetivas na prática pedagógica para prover acolhimento às crianças imigrantes. É interessante destacar, ainda, nossa percepção de haver um entendimento entre os(as) educadores(as) entrevistados(as) de que a imigração venezuelana para Roraima seria uma condição transitória, que se reverteria a partir das melhorias das condições econômicas do país vizinho. Podemos resgatar o pensamento de Sayad (1998) SAYAD, Abdelmalek. A imigração. São Paulo: Edusp, 1998.quanto à “provisoriedade da migração”, um sentimento de que a imigração venezuelana para o Brasil não seria duradoura.
Esse entendimento acaba não contribuindo para a formulação e adoção de ações e políticas públicas de longo prazo para imigração, inclusive no contexto escolar. Ainda assim, as instituições de ensino se mostram como um ponto de apoio importante para as famílias imigrantes, seja por possibilitar o acesso a benefícios sociais, seja pelo ensino da língua portuguesa às crianças, que passam a apoiar as famílias como tradutoras. Ao longo do trabalho de campo, foi possível observar que a ausência de políticas públicas específicas orientadas à interculturalidade tem repercussões negativas para a acolhida e inserção de imigrantes no contexto escolar, refletindo-se no campo de atuação dos(as) educadores(as).
Considerações finais
A escuta dos(as) educadores(as) das escolas municipais de Boa Vista, articulada a outros procedimentos metodológicos que orientaram a pesquisa, permitiu refletir sobre as possibilidades e limites de desenvolvimento de práticas educativas interculturais no contexto da fronteira Brasil-Venezuela. Os resultados evidenciaram a percepção dos(as) educadores(as) acerca da provisoriedade da presença migratória no contexto local da cidade de Boa Vista, o que repercute nos espaços escolares e reforça uma perspectiva assimilacionista com relação aos imigrantes. Além disso, torna-se um obstáculo ao desenvolvimento de políticas educativas interculturais, as quais mostraram-se ausentes. Em contrapartida, educadores(as) relataram diferentes esforços individuais que fazem para contornar os conflitos interculturais que vivenciam nas escolas de Boa Vista.
A presença e a ação do estado e do município no fortalecimento de projetos e políticas públicas orientadas a uma educação intercultural poderia contribuir para a redução das fraturas na paisagem migratória na região da fronteira Brasil-Venezuela, assim como propiciar espaços favoráveis à produção de novas sínteses culturais. Além disso, essas políticas precisariam assumir uma perspectiva mais ampla, que permitisse a promoção da cidadania intercultural junto à sociedade boa-vistense, o que contribuiria também para o enfrentamento de conflitos e discriminações observadas nas escolas, que contam com a presença significativa de estudantes venezuelanos e de outras nacionalidades - além daqueles de origem indígena. Um primeiro passo seria pensar as migrações enquanto uma política de Estado, já que os movimentos migratórios estão cada vez mais evidentes e recorrentes, seja pela globalização, que facilitou o trânsito das pessoas pelo mundo, seja pela precarização da vida e pelo empobrecimento das populações como consequência do capitalismo neoliberal. Dessa maneira, a interculturalidade não ficaria reduzida a iniciativas individualizadas e de baixo impacto, como algumas que ouvimos nas entrevistas com educadores(as), ou a propostas oriundas de agências e ONGs que atuam em caráter provisório na região da fronteira Brasil-Venezuela.
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» https://bit.ly/3Y8sZEC
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1
O site foi tirado do ar em 2023. Registros capturados estão disponíveis na tese de doutorado também referenciada.
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Esses locais servem como alternativa de residência para os mais vulneráveis, que não possuem disponibilidade de hospedagem em casa de familiares ou amigos ou que não conseguem vaga nos abrigos da Operação Acolhida.
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3
Este artigo é um recorte da tese de doutorado “Consumo midiático, interculturalidade e cidadania: experiências de educadoras e educadores de escolas públicas no contexto da fronteira Brasil-Venezuela”, de autoria de Sabrina Generali, sob a orientação da Profa. Dra. Denise Cogo. Disponível em: https://bit.ly/tese-sabrina-generali.
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Tradução livre de “in between”.
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5
Tradução livre de “fractured landscape”.
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A rede oferta apenas Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental.
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7
Todos os(as) educadores(as) assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa conta com a chancela do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Superior de Propaganda e Marketing (CEP – ESPM).
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Consideramos que essas oportunidades precisam ser estruturadas desde o espaço físico da instituição, passando pelo projeto político-pedagógico, pelo currículo e pela formação de educadores(as), até chegar na sala de aula, por meio das práticas, atividades, diálogos e projetos estabelecidos com os estudantes.
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9
Compromisso assinado pelos países membros da ONU, que envolve ações de governos, empresas, organizações não governamentais e sociedade civil para o enfrentamento de grandes desafios da contemporaneidade.
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Disponível em: https://youtu.be/kpwnoUnyvzs. Acesso em: 01.02.2023.
Editores da seção
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Dez 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
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Recebido
28 Jul 2023 -
Aceito
10 Out 2023