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Valor e moeda em Marx: crítica da crítica

Value and currency in Marx: critique of critique

RESUMO

Este artigo analisa as afirmações críticas de autores franceses como Carlo Benetti e Jean Cartelier sobre a teoria marxista do valor e do dinheiro. Consiste em uma pesquisa crítica dos pontos de vista apresentados para negar o caráter de mercadoria da força de trabalho e da moeda, bem como a proposta positiva apresentada por eles.

PALAVRAS-CHAVE:
Teoria do valor; moeda; marxismo

ABSTRACT

This article analyzes the critical statements of French authors like Carlo Benetti and Jean Cartelier on Marxist theory of value and money. It consists of a critical research of the standpoints presented to deny the commodity character of the labor force and of the money, as well as the positive proposal presented by them.

KEYWORDS:
Value theory; money; Marxism

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho se insere num esforço teórico mais amplo que visa recuperar o pensamento monetário ele Marx, bem como ressaltar, nas análises monetárias em geral, os aspectos qualitativos em vez dos quantitativos. Seu objetivo específico é avançar na compreensão e na discussão de alguns trabalhos que vêm sendo desenvolvidos na França, na área de economia política, no que diz respeito à concepção de moeda.

Referimo-nos mais particularmente às discussões monetárias levadas adiante por alguns autores de formação marxista, como Carlo Benetti e Jean Cartelier, que assumiram, entre os anos 70 e 80, uma postura crítica ao marxismo. Esta orientação é, em parte, resultado das discussões que se seguiram à publicação do trabalho de Sraffa, Produção de Mercadorias por meio de Mercadorias. Partindo da crítica ao trabalho de Sraffa1 1 V. Benetti, Brunhoff e Cartelier, “Eléments pour uma critique marxiste de P. Sraffa”, Cahiers d’Econo­mie Politique, n. 3. e ao conteúdo ricardiano de algumas interpretações da obra de Marx, esses autores centram sua atenção em algumas falhas de Ricardo já apontadas por Marx em sua época, entre as quais se destacam a ausência de análise monetária e o privilégio dado à economia real.

Esse tipo de crítica conduziu os mencionados autores a uma leitura particular de Marx e, finalmente, à rejeição da teoria do valor, por razões inteiramente distintas das apresentadas pelos neo-ricardianos. Mais que isso, propõem uma trajetória analítica diferente, e mesmo oposta, à seguida por Marx quando analisa a moeda. Em vez de seguir a ordem mercadoria - valor - moeda, Benetti e Cartelier propõem começar com a moeda e, a partir dela, derivar a noção de produção mercantil, sem passar pelo valor mas, ao contrário, rejeitando a teoria do valor.

A proposta de mudança de trajetória foi precedida, é claro, de críticas sérias e engenhosas aos argumentos usados por Marx ao longo da exposição da teoria do valor-trabalho. É aí que se situam, por exemplo, a ideia de incorreção da gênese da moeda na obra de Marx e a visão de que o tratamento da força de trabalho, da moeda e do capital, como mercadorias, é inadequado. São críticas como estas que conduzem os mencionados autores a falar de incompatibilidade entre as teorias da mais-valia e da mercadoria, ou de inadequação do ciclo completo de reprodução do capital para, como queria Marx, compatibilizar a troca de equivalentes e o aparecimento da mais-valia.

Entender os motivos que levaram a tal tipo de crítica e aprofundar a compreensão dos argumentos utilizados é fundamental, em primeiro lugar, no sentido de permitir uma melhor apreensão da obra do próprio Marx, em particular de sua concepção monetária, seja aceitando a crítica de Benetti e Cartelier, seja negando-a, para o que será necessária uma contestação cuidadosa dos argumentos que utilizam.

Mas o esforço de avaliação dos trabalhos de Benetti e Cartelier tem ainda outro objetivo. Esses autores dão destaque e priorizam a análise monetária e procuram fugir do marco teórico marxista, sem, contudo, aceitar integralmente os demais marcos teóricos existentes. Trata-se, pois, de um esforço analítico que pretende inovar em matéria de teoria monetária. Nesse sentido a discussão dos assuntos e problemas levantados por Benetti e Cartelier tende a ser excelente fio condutor para uma análise da moeda que privilegia seus aspectos qualitativos.

Dividiremos o trabalho em três partes dedicadas ao exame das mercadorias chamadas por Marx de especiais: a força de trabalho, a moeda e o capital-mercadoria.

Ao longo de cada uma das partes teremos duas ordens de preocupações: aquelas relacionadas com a análise crítica feita por Benetti e Cartelier da obra de Marx e aquelas que têm a ver com a proposta positiva desses autores. Assim, levantaremos os pontos de divergência entre Benetti e Cartelier, de um lado, e Marx, do outro, com vistas a destacar nossos acordos e desacordos. Em seguida, comentaremos as propostas de mudanças teóricas de Benetti e Cartelier.

A escolha desses dois autores não implica exclusão dos demais estudiosos franceses que têm em comum a formação marxista, a postura atual crítica ao marxismo e ainda a preocupação com o estudo da moeda, como é o caso, por exemplo, de Michel Aglietta, André Orlean e Michel De Vroey. Ao contrário, estes serão também discutidos. Entretanto, observa-se no momento uma grande heterogeneidade entre os pensamentos desses autores, embora algumas discussões entre eles e alguns pontos em comum tenham permeado o início de seus trabalhos. Assim, preferimos nos deter na apreensão dos trabalhos de Benetti e Cartelier como fio condutor da análise, para poder explorar melhor suas especificidades, embora usando, sempre que se fizerem necessárias, as contribuições dos demais autores.

2. A FORÇA DE TRABALHO

No que se refere à força de trabalho, a crítica formulada por Benetti é a de que “las condiciones que hacen de la fuerza de trabajo una mercancía (principalmente la privación de medios de producción) excluyen, si ellas se cumplen a los trabajadores de la división del trabajo que engendra las relaciones mercantiles”.2 2 Benetti & Cartelier. “El capital como extensión de la mcrcancía: una contradición de la economia política”. Economia, Teoria y Prática, México: UAM, 1986, n.7, p. 33.

Isso ocorre, segundo o autor, porque as relações mercantis têm a ver com trabalhos privados realizados independentemente uns dos outros, implicando um processo de trabalho particular, que compreende a força de trabalho e os meios de produção. Como a produção da força de trabalho não implica esse tipo de processo, é necessário negar que possa ser concebida como mercadoria.

Essa razão para a negação da força de trabalho como mercadoria pode ter seus argumentos mais detalhados. Como afirma Cartelier, “labour processes have to be private and independently expended in order to be considered part of the commodity division of labour ... To assume that some people are deprived of any means of production amounts to saying they are excluded from commodity production. Labour performed by waged workers is neither private nor independent. The choice of commodities produced and the way of producing them are determined by capitalists”.3 3 Cartelier, J. “Marx’s Value, Exchange and Surplus Value Theory: a Suggested Interpretation”, mimeo, Université de Picardie.

Além disso, a presença de itens produzidos domesticamente no custo de reprodução da força de trabalho é outro argumento utilizado para diferenciar o processo de trabalho usado para produzir a força de trabalho daquele empregado na produção das mercadorias em geral e negar, assim, a pertinência da concepção de força de trabalho como mercadoria.

Finalmente, segundo De Vroey e Aglietta, “a força de trabalho se inscreve ... em polaridade com relação às outras mercadorias, porque sua vencia não realiza nenhuma validação4 4 De Yroey, M. “La théorie marxiste de la valeur, version travail abstrait- Un bilan critique”, In Dostaler, G. e M. Laqueux, orgs. Un Echiquier Centenaire: Théorie de la Valeur et Formation des Prix - La Découverte et Presses Universitaires de Quebec: 1985, p. 47. , já que o contrato salarial não faz parte ela realização do valor pela circulação geral de mercadorias. Ao contrário, “só as despesas do assalariado fazem parte desta circulação”.5 5 Aglietta, M Régulation et Crises du Capitalisme: l’ Expérience des Élats-Unis. Calmann-Lévy, Pooccs, 1976, p. 37.

Estes argumentos, ao conduzir à negação ela força de trabalho como mercadoria, tornam impossível a compatibilização entre os caracteres mercantil e capitalista propriamente ditos presentes na economia capitalista, conforme a concepção ele Marx, porque se torna impossível compatibilizar a mais-valia, ou o aparecimento do excedente capitalista, com a troca de valores equivalentes, característica de toda economia mercantil.

Isso ocorre porque, como sabemos, Marx compatibiliza as noções de equivalência e exploração no interior do ciclo completo de reprodução do capital

D - M F T M P . . . . . . . P . . . . . M ' - D '

onde o primeiro ato é uma compra de mercadorias M contra dinheiro D, que no processo produtivo permite o aparecimento de um excedente D’ > D. O que permite o aparecimento de tal excedente é a atividade da força de trabalho (FT) operando os meios de produção (MP) no processo produtivo (P). Mas o que permite a própria definição do excedente é o fato de a força de trabalho ser uma mercadoria. É por ser mercadoria que tem um valor de troca (tempo de trabalho socialmente necessário à reprodução da força de trabalho) diferente do valor de troca que pode criar no processo produtivo (tempo de trabalho socialmente necessário à produção das mercadorias produzidas).

É, portanto, a existência da força de trabalho como mercadoria (que só é possível quando os meios de produção são de propriedade privada) que permite compatibilizar a troca de equivalentes contida em D-Me em M’ -D’, respeitando assim os requisitos de uma economia mercantil e, ao mesmo tempo, contemplar o aparecimento da mais-valia contida em D’ -D.

A negação da força de trabalho como mercadoria, nos trabalhos de Benetti e Cartelier, os conduz a conceber uma circulação geral de mercadorias diferente da circulação específica entre trabalho e capital. Na primeira, os indivíduos são privados e independentes e “têm habilidade, de acordo com as regras do sistema monetário e creditício, para se comportar de forma autônoma e assumir as consequências de suas ações (o que pode ir até às falências)”.6 6 Cartelier, J. Op. cit., p. 17. Na segunda circulação, os indivíduos são “passivos e dependentes”, não podendo agir por conta própria. Nesse caso, as pessoas “não tomam dinheiro dos bancos, mas de indivíduos privados e independentes; eles não podem experimentar falências, mas sua existência se encontra amarrada à vontade destes últimos de lhes dar dinheiro; uma vez que estejam na posse do seu dinheiro eles se comportam livremente no mercado”.

Tais resultados nos conduzirão a vários comentários críticos. Antes, porém, comentaremos os argumentos apresentados por Benetti e Cartelier para a negação da força de trabalho como mercadoria.

No que se refere ao primeiro argumento, qual seja o da independência dos produtores mercantis vis à vis a dependência dos assalariados, é necessário observar que tanto os vendedores das mercadorias em geral quanto os vendedores da mercadoria força de trabalho são coagidos a agir como vendedores pela lógica de funcionamento das sociedades mercantis, onde todo mundo é comprador e, para tanto, é preciso ser vendedor. Assim, a independência e a autonomia dos comerciantes alegada por Benetti e Cartelier para as mercadorias em geral são mais limitadas do que eles pensam. Além disso, são por vezes mais limitadas para alguns comerciantes que para outros. Não é possível, por exemplo, escolher sempre o que produzir e quanto produzir, sem restrições. Há uma série de restrições e limites financeiros e de outras ordens que se impõem aos vendedores das mercadorias em geral. Assim, o fato de o trabalhador ser obrigado a vender sua força de trabalho e de esta ser a única mercadoria que pode produzir não nega à força de trabalho o caráter de mercadoria, embora, como já dizia Marx, possa torná-la especial.

Quanto à crítica da força de trabalho como mercadoria baseada no fato de o custo de reprodução da força de trabalho conter itens não mercantis, produzidos domesticamente, ela também pode ser discutida à luz da própria lógica mercantil.

Como sabemos, essa lógica não só é inerente à sociedade mercantil, mas se desenvolve com ela. Quanto mais desenvolvida a sociedade, maior é a fração das atividades e do que é consumido, que é absorvido pela lógica mercantil. É o que se percebe, por exemplo, ao observar a evolução da produção de mercadorias em geral. O pagamento de despesas como água, por exemplo, não existia no início da produção mercantil e passou a existir ao longo do desenvolvimento desta. Nos países hoje menos desenvolvidos, por sua vez, não se paga para desviar água de um rio através de irrigação, enquanto isso ocorre nos mais desenvolvidos. Assim também acontece com o peso dos itens produzidos domesticamente no custo de reprodução da força de trabalho. Estes tendem a cair com o desenvolvimento da produção mercantil, sendo cada vez mais substituídos por outras mercadorias. Longe de negar o caráter de mercadoria da força de trabalho, o argumento, a nosso ver, só o reforça.

Finalmente, quanto ao argumento de que a força de trabalho não é uma mercadoria porque sua venda não realiza nenhuma validação social7 7 Nos termos da versão trabalho abstrato da teoria do valor, toda venda realiza a validação social do trabalho privado contido nas mercadorias. , só as despesas dos trabalhadores o fazendo, temos dois tipos de crítica. Antes, porém, é preciso observar que, para entender a lógica mercantil, como fez Marx8 8 Marx, K. O Capital, livro I, capítulos I a III. , é necessário contemplar a contradição privado-social que a caracteriza, a qual se refere ao trabalho, realizado de forma privada e aparentemente independente nessas economias, apesar de aí reinar a divisão social do trabalho. A solução dessa contradição, que permite conceber uma sociedade, em vez do caos, implica a socialização dos trabalhos privados.9 9 Para um tratamento mais detalhado sobre este assunto, v. Mollo, M. L. Rollemberg, ·’A relação entre moeda e valor em Marx”. In: Anais do XVII Encontro Nacional de Economia ANPEC- Fortaleza, 1989, e Revista de Economia Política, vol. 1 1, n2 2( 42), março-junho, 1991. Portanto esse processo de socialização dos trabalhos privados, ou a necessidade de validação social dos trabalhos privados, não apenas é inerente à lógica da economia mercantil, mas tem poder de determinação sobre essa lógica.

Dadas as considerações acima, a primeira crítica que fazemos ao argumento de que a força de trabalho não valida socialmente nada é o de que ela valida justamente a posição do trabalhador assalariado numa sociedade mercantil, ou a posição de sua força de trabalho como mercadoria. De fato, o que confere à força de trabalho seu caráter de mercadoria é o caráter mercantil da economia, que impõe sua venda pelos seus proprietários, os trabalhadores, para que possam comprar, já que nestas sociedades é preciso comprar, e para isso é necessário vender alguma coisa. É esse requisito mercantil, ao lado da impossibilidade de vender outra coisa que não a força de trabalho, dada a despossessão dos meios de produção (requisito capitalista), que não apenas faz da força de trabalho uma mercadoria nas economias capitalistas, mas também permite a inserção do trabalhador na lógica mercantil, assim validando socialmente sua força de trabalho e permitindo que o trabalhador, enquanto indivíduo, esteja ligado à divisão social do trabalho que caracteriza as sociedades mercantis.

Em segundo lugar, não é verdade que somente as compras realizadas pelo trabalhador realizem validações sociais, conforme diz Aglietta. Os salários pagam a força de trabalho, realizando-a como mercadoria e, já nas mãos dos trabalhadores, validam socialmente os trabalhos privados contidos nas mercadorias compradas por eles. Isso ocorre ao longo do tempo da mesma forma que a compra de algumas mercadorias por qualquer produtor privado não assalariado não apenas valida socialmente o trabalho privado nelas contido, mas é feita a partir de renda obtida com a venda de suas próprias mercadorias num período anterior.

Assim, o dinheiro obtido na venda de algumas mercadorias é o mesmo que permite, num outro momento do tempo, validar outras, refletindo a circulação desse dinheiro o processo de socialização dos trabalhos privados. Não há sentido, portanto, na afirmação de De Vroey segundo a qual o trabalho privado “implicado na produção de mercadorias servindo à reprodução da força de trabalho ... é validado no momento em que as mercadorias são compradas. A venda da força de trabalho não pode operar sua validação, porque senão o mesmo trabalho seria validado duas vezes, uma vez quando da compra da mercadoria e outra quando da compra da força de trabalho ... “.10 10 De Vroey, M. “Marchandisce, société marchande et société capitaliste”. Cahiers d’Economie Politique, nº 9, p. 121. Trata-se aqui de uma confusão entre força de trabalho e trabalho, só passível de existir quando se nega a força de trabalho como mercadoria; mas é justamente isso que fica por demonstrar.

Finalmente, o que resta a observar se refere, ainda e sobretudo, à lógica de financiamento das economias mercantis. É essa lógica não arbitrária que nos leva a criticar fortemente a solução proposta por Benetti e Cartelier de separar as circulações mercantil e capitalista e de negar ao capitalismo um caráter mercantil.

Aparentemente sem importância, tal tentativa de formulação de um novo marco teórico é absolutamente inconsistente com qualquer possibilidade de visualizar a sociedade mercantil como sociedade, em lugar do caos. Isso porque, como sabemos, a sociedade mercantil é caracterizada como aquela onde operam produtores privados independentes, embora reine a divisão social do trabalho. O caráter privado do trabalho está ligado à propriedade privada que impera nestas economias. A negação do esquema marxista de compatibilização entre a exploração e a equivalência, e o consequente abandono da articulação entre estas noções, recupera e/ou reassume a ideia de roubo para explicar o pagamento dos salários, o que é incompatível com uma sociedade onde reina a propriedade privada.

Dito de outra maneira, o que permitia a Marx falar de exploração sem que isso se confundisse com fraude ou roubo, era o fato de o salário, apesar de não pagar todo o trabalho, pagar a força de trabalho como mercadoria, respeitando assim a equivalência, princípio inerente à lógica de funcionamento da economia mercantil. Negar, portanto, o caráter de mercadoria à força de trabalho implica também assumir a ideia de pagamento não equivalente ao trabalhador. Ora, não há como explicar que qualquer sociedade possa se manter enquanto sociedade, e até se desenvolver, quando há uma incoerência tão absoluta em sua própria lógica interna de funcionamento. Como então explicar uma circulação específica de moeda, correspondente à relação capital-trabalho, que seja não equivalente, no interior de uma produção eminentemente mercantil?

Assim, a menos que se negue toda a caracterização da economia mercantil, coisa que os autores não fazem, a negação da ideia de força de trabalho como mercadoria é teoricamente impossível, já que reedita como norma geral a ideia de roubo implícito no contrato salarial, no seio de uma sociedade que também tem como norma geral - e por isso protege - a propriedade privada.

3. A MOEDA

A negação por Benetti e Cartelier da moeda como mercadoria baseia-se em dois argumentos. O primeiro tem a ver com a inadequação, para esses autores, do processo realizado por Marx de gênese da moeda a partir da mercadoria. O segundo se refere à ausência de socialização ou validação social da moeda, tal como ocorre com as demais mercadorias.

3.1 A gênese da moeda

Quanto à crítica relativa à gênese da moeda na obra de Marx, é tratada a partir da análise das formas do valor. Como sabemos, Marx analisa, no capítulo I do Livro 1 do Capital, a transição das formas do valor até chegar à forma geral do valor e o dinheiro. Ele começa com a forma simples do valor (F1), passa pela forma total ou expandida (F) e chega à forma geral do valor (F3), que define o equivalente geral.11 11 Forma Simples do Valor (F 1 ) x de mercadoria A = y da mercadoria B Forma Total do Valor (F 2 ) x de mercadoria A - y da mercadoria B x de mercadoria A - z da mercadoria C x de mercadoria A - w da mercadoria D Forma Geral do Valor (F 3 ) y da mercadoria B = x da mercadoria A z da mercadoria C = x da mercadoria A w da mercadoria D - x da mercadoria A

Nesse processo, segundo Benetti e Cartelier, Marx afirma que o surgimento de F3 decorre da inversão de F2. Como a inversão é impossível e analiticamente incorreta e como, segundo esses autores, Marx apoia a gênese da moeda nessa inversão, fica comprometida a gênese da moeda através da mercadoria e, consequentemente, o caráter de mercadoria que a moeda poderia adquirir por essa via. Vejamos o fundamento da crítica de Benetti e Cartelier mais devagar.

Para Benetti, o erro de Marx é anterior à própria inversão de F2 para chegar a F3 Ele começa desde o tratamento dado por Marx a F1, a forma simples, que se torna ambígua “quando Marx lhe atribui a propriedade de simetria: uma ou outra mercadoria podem cumprir, alternativamente, o papel de equivalente geral”.12 12 Benetti, C. “Économie monétaire et économie du troc”. In Economie Appliquée, tomo XXXVIII, 1985, n. 1.

A nosso ver, tal afirmação sobre Marx é inteiramente infundada, já que o próprio Marx insistia no caráter mutuamente exclusivo das formas relativa e equivalente. Dizia, por exemplo, a esse respeito: “ ... a mercadoria que figura como equivalente não pode se achar ao mesmo tempo sob a forma relativa. Ela não exprime seu valor, mas apenas fornece a matéria para expressão do valor da primeira mercadoria”.13 13 Marx, K. Le Capital. Paris: Ed. Sociales, Paris, 1979, p. 64.

Marx estava efetivamente convencido, como o próprio Cartelier reconheceu14 14 V. Cartelier, J. “Marx ‘s Value, Exchange and Surplus Value Theory-a Suggested Interpretation”, mimeo, p. 5. , da assimetria contida na forma simples. É o que verificamos quando ele diz: “Todo possuidor de mercadoria considera cada mercadoria alheia equivalente particular da sua, e sua mercadoria, portanto, equivalente geral de todas as outras mercadorias. Mas todos os possuidores raciocinam do mesmo modo. Assim, não há equivalente geral e o valor relativo das mercadorias não possui forma geral em que se equiparem como valores e se comparem como magnitudes de valor.”15 15 Marx, K. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987, p. 96.

Michel Aglietta também reconhece a percepção de Marx de assimetria envolvida na relação mercadoria-moeda contida desde a forma simples do valor, razão pela qual qualifica de “preciosidade do espírito humano” a teoria das formas do valor de Marx.16 16 Aglietta, M. & Orlean -A Violência da Moeda. São Paulo: Brasiliense, p. 54 e 60. Segundo Aglietta,” ... a relação qualitativa quantidade ade mercadoria A= quantidade b de mercadoria B é, do ponto de vista de A, uma relação antissimétrica que se pode denominar relação de valor. ... Marx afirma expressamente ... que um único valor se exprime numa relação polarizada, na qual A é a forma relativa e B, a forma equivalente, sendo este último o receptáculo passivo da representação do valor”.

Assim, não concordamos em absoluto com a afirmação de Benetti, segundo a qual “F1 (a forma simples) não é uma forma do valor, a não ser suprimindo a simetria que, para Marx, é uma das características essenciais desta forma”.17 17 Benetti, op. cit., p. 98.

Resta, entretanto, outra crítica de Benetti, esta compartilhada também por Cartelier, segundo a qual Marx comete o erro de pensar que a mera inversão de F2 (a forma total) conduz a F3 (a forma geral), o que, dada a irreversibilidade entre essas formas, é incorreto.

Conforme Cartelier observa, a nosso ver com razão, o sinal de igualdade usado por Marx para representar as formas do valor é inadequado, porque esconde a irreversibilidade entre as formas relativa e equivalente do valor. Assim, se, como sugerido por Cartelier, o sinal de = for substituído por →, fica claro o equívoco cometido por Marx ao afirmar que, “se invertermos, ... , a série, 20 metros de linho = 1 casaco, ou = 10 quilos de chá, ou = etc., isto é, se exprimirmos a forma recíproca já implicitamente contida na série, temos: Forma Geral do Valor. .. “.18 18 Marx, O Capital, op. cit., p. 73.

Isso porque, como afirma Cartelier, “The reversal of the expanded form does not generate anything but the expanded form itself”.19 19 Cartelier, op. cit., p. 5.

De fato, se tomarmos o esquema representativo da forma total e alterarmos o sinal = pelo sinal →, teremos:

  • x da mercadoria A → y da mercadoria B

  • x da mercadoria A → z da mercadoria C

  • x da mercadoria A → w da mercadoria D

  • Em seguida, se invertermos, o que temos é:

  • y da mercadoria B → x da mercadoria A

  • y da mercadoria B → z da mercadoria C

  • y da mercadoria B → w da mercadoria D

  • z da mercadoria C → y da mercadoria B

  • z da mercadoria C → x da mercadoria A

  • z da mercadoria C → w da mercadoria D

  • w da mercadoria D → z da mercadoria C

  • w da mercadoria D → y da mercadoria B

  • w da mercadoria D → x da mercadoria A,

Ou seja, ainda temos a forma total ou extensiva do valor.

A crítica feita aqui por Benetti e Cartelier é, a nosso ver, pertinente, e a afirmação de Marx segundo a qual F3 é obtida pela mera inversão de F2 está errada. Entretanto não concordamos em absoluto com Benetti quando afirma que a inversão de F2, proposta por Marx, é “o laço fundamental, o único, pelo menos, que Marx estabelece, advindo daí a importância da passagem de F2 para F3” 20 20 Benetti, op. cit., p. 96, sublinhado por nós.

Muito pelo contrário, a análise da transição das formas do valor até chegar ao dinheiro, feita por Marx, está cheia de observações sobre os processos sociais envolvidos na passagem de F2 para F3, não fundando de forma alguma essa transição no processo lógico-formal de inversão, a que se referem Benetti e Cartelier.

Assim é que Marx afirma a esse respeito: “ ( ... ) uma mercadoria só adquire sua expressão de valor geral porque, ao mesmo tempo, todas as outras mercadorias expressam seus valores no mesmo equivalente, e cada espécie de mercadoria que se apresente deve fazer o mesmo. Além disso, torna-se evidente que as mercadorias, que são coisas puramente sociais do ponto de vista do valor, não podem também exprimir esta existência social, a não ser por uma série abrangendo todas as suas relações recíprocas; sua forma deve, consequentemente, ser uma forma socialmente válida”.21 21 Marx, Le Capital, op. cit., p. 79. Para Marx, o equivalente geral “só pode ser o resultado de uma ação social. Uma mercadoria especial é então separada, por um ato comum das outras mercadorias e serve para expressar seus valores recíprocos. A forma natural desta mercadoria torna-se assim a forma equivalente socialmente válida. O papel de equivalente geral passa a ser então função específica da mercadoria excluída, e ela se torna dinheiro”.22 22 Idem, p. 97. Grifos nossos.

As expressões sublinhadas, ao reforçar o caráter de processo social envolvido na gênese da moeda, são suficientes, a nosso ver, para negar que Marx apoie a gênese da moeda a partir da mercadoria e do valor meramente na inversão de F2 para F3.

Mas os autores vão ainda mais fundo, ao dizer que a ação social de que fala Marx não pode ocorrer enquanto não estiver disponível o equivalente geral que deve por isso ser pressuposto.23 23 Os autores se apoiam para isso em textos do próprio Marx, como por exemplo: “Assim, não há equivalente geral e o valor relativo das mercadorias não possui forma geral em que se equiparem como valores e se comparem. como magnitudes de valor. Não se estabelecem relações entre elas, como mercadorias, confrontando-se apenas como valores de uso” (Op.cit., p. 96, grifo nosso).

Cartelier observa que essa ação social “does not take place on the market. It is, on fact, an essential condition for markets being brought into existence. Far from being a consequence of the generalization of market relationship, as Marx seems to believe, the universal equivalent is a prerequisite for such relations to exist, The procedure by which a universal equivalent is instituted ( ... ) has then to be part of the basic assumptions on the same footing as the commodity division of labour”.24 24 Cartclier, op. cit., p. 6.

Trata-se, pois, de uma proposta de pressuposição do dinheiro que decorre da conclusão da impossibilidade de sua gênese nos termos de Marx, dada, por um lado, a incorreção da inversão de F2 para F3 e, por outro, a ideia de que o que dá caráter social à produção é o mercado, ou a circulação de mercadorias. Uma vez que esta só é possível com o dinheiro, ele não pode ser gerado por um processo social, mas, ao contrário, é condição de qualquer processo social em economias mercantis. Nesse caso, a ideia de ação social para explicar a gênese da moeda, tal como analisamos acima, ficaria também excluída como possibilidade analítica, segundo Benetti e Cartelier.

A nosso ver, a crítica que precisa ser feita, nesse caso, é sobre a definição correta do caráter social da produção de mercadorias ou da divisão social do trabalho em economias mercantis. Isso porque a análise do mercado, ou da circulação, como o lugar da socialização dos indivíduos, na obra de Benetti e Cartelier, parece reduzir as relações sociais àquelas que estão contidas no processo de troca, ou pelo menos como as únicas relações sociais que são consideradas econômicas.

É o que podemos perceber quando os autores dizem: “Como podemos conceber que as coisas enquanto tais sejam socialmente úteis e, portanto, já sociais, antes que tenham sua forma social? Entretanto, é isto que seria necessário admitir para conceber o processo de exclusão: uma mercadoria entre outras pode ser excluída pela ação social porque os valores de uso são já socialmente definidos antes da troca”25 25 Benetti, C. e J. Cartelier, Marchands Salarial et Capitalistes. Paris: F. Maspero. 1980, p. 149, grifos nossos. Cartelicr vai ainda mais longe, parecendo conceber as relações econômicas como restritas às monetárias. É o que se observa quando ele diz que o sucesso eventual de qualquer tentativa de construir a gênese analítica da moeda “significaria muito claramente o desaparecimento da economia política: a moeda.forma específica das relações humanas qualificadas de econômicas, sendo então pensável como resultado de outras relações sociais, o que conduziria a economia política a se dissolver no sistema de conccitualização deste outro conjunto de relações, sendo englobada pores te outro saber”. “Théorie de la valeur ou hetérodoxie monétaire: les termes d’un choix”. Economie Appliquée, tomo XXXVIII - n. 1 - 1985, p. 75-76, grifos nossos.

O que os autores não percebem é que nem as relações sociais estão apenas no processo de circulação de mercadorias nem a moeda, enquanto relação social, é a única relação econômica. A circulação de mercadorias finaliza ou completa o processo de socialização dos trabalhos privados contidos nas mercadorias, mas o próprio aparecimento das mercadorias, enquanto produtos que visam a venda, já implica um caráter social potencial no momento da produção. Assim, o caráter social das relações não se restringe à circulação ou à troca, mas se observa na produção também.

É nesse sentido, justamente, que interpretamos a observação de Marx segundo a qual “1º. - Não há troca sem divisão do trabalho. 2º. - A troca privada implica uma produção privada. 3º. - A intensidade da troca, assim como sua extensão e estrutura, são determinadas pelo desenvolvimento e organização da produção. Assim, a produção engloba e determina diretamente a troca sob todas as suas formas”. Ainda segundo Marx,”isto não quer dizer, contudo, que a produção e a distribuição, a troca e o consumo sejam idênticos, mas que cada qual é um elemento de um todo e representa a diversidade na unidade”.26 26 Marx, K. Fondements de la Critique de /’ Économie Politique. Paris: Anthropos, 1968, p. 29.

Trata-se, pois, de uma produção de mercadorias que surge e se desenvolve e, ao fazê-lo, altera as condições da troca ou da circulação das mercadorias. A forma de articulação produção-circulação também tem a ver com a lógica de funcionamento da sociedade.

A necessidade de socialização dos trabalhos privados, como já mencionamos, é inerente a qualquer economia mercantil, porque decorre da necessidade de solução da contradição entre o caráter privado dos processos de trabalho e o caráter social dado pela divisão social deste quando os produtos são destinados à venda. Já aí temos um caráter social latente. Essa contradição impõe o valore a moeda como relações sociais específicas da sociedade mercantil, como forma própria de completar a socialização dos indivíduos cuja necessidade é imposta pelas características da mercadoria.

Esse processo de aparecimento da mercadoria e da produção mercantil se desenvolve e se generaliza historicamente aos poucos, por contaminação, tornando cada vez mais geral a produção com objetivo de venda. Da mesma forma o surgimento do dinheiro se dá com o surgimento da mercadoria, e seus desenvolvimentos também são paralelos.

Assim, o problema da precedência analítica do dinheiro ou da ação social não se coloca, porque o aparecimento e desenvolvimento histórico da mercadoria, enquanto produto gerado com o objetivo de venda (e, portanto, precisando de articulação social), se dá paralelamente ao aparecimento e desenvolvimento do valor e do dinheiro (para atender à necessidade de articulação social mencionada). Quando a produção de mercadorias e o uso da moeda se generalizam a ponto de determinar a lógica de organização dos indivíduos, é possível falar em sociedade mercantil.27 27 É bom lembrar que o próprio Marx chamava atenção para a existência, em todas as sociedades, de traços característicos de outras formas de organização social e para a impossibilidade de organizações sociais puras, ou seja, sem traços de formações sociais diferentes.

É essa ideia de constituição e generalização mercantil por uma espécie de contaminação que se percebe nas seguintes citações de Marx: “a repetição constante da troca torna-a um processo regular. Por isso, com o tempo, passa-se a fazer, para a troca, intencionalmente, pelo menos uma parte dos produtos do trabalho. A partir desse momento, consolida-se a dissociação entre a utilidade das coisas destinadas à satisfação direta e a das coisas destinadas à troca. Seu valor de uso dissocia-se de seu valor de troca ... O costume imprime-lhes o caráter de magnitude de valor”.28 28 Marx, O Capital, op. cit., p. 98. E mais: “Na troca direta de produtos, cada mercadoria é para seu possuidor meio de troca, para seu não-possuidor, equivalente, mas só enquanto for, para ele, valor de uso ... não adquire ainda nenhuma forma de valor desligada independente de seu próprio valor de uso ou da necessidade individual do permutante. A necessidade dessa forma desenvolve-se com o número e a variedade crescente das mercadorias que entram no processo de troca. O problema surge simultaneamente com os meios de sua solução29 29 Idem, p. 98. A solução é o equivalente geral, que aparece como forma universal do valor, desligado das demais mercadorias.

Essas questões são pouco percebidas por Benetti e Cartelier, porque valorizam mais o aspecto lógico que a análise histórica. É o que se percebe, por exemplo, quando esses autores negam a importância analítica da acumulação primitiva para explicar a origem do dinheiro nas mãos dos primeiros capitalistas, afirmando que a acumulação primitiva é um “suposto gratuito”30 30 Benetti e Cartelier, “El capital como extensión ... “, op. cit., p. 35. de Marx, que não contribui para explicar o caráter monetário da relação entre capitalistas e trabalhadores, nem a acumulação dos meios de produção nas mãos de um só polo da sociedade.

Finalmente, uma última crítica à crítica da gênese da moeda em Marx. O fato de pressupor a moeda, como fazem Benetti e Cartelier, não é desprovido de consequências teóricas. Ao contrário, a pressuposição impede que se investigue bem a lógica de funcionamento da dinâmica monetária, torna impossível entender os fundamentos dos sistemas monetários e, consequentemente, o que está por trás do aparecimento de uma nova moeda e de sua deterioração. A crítica feita aqui é a mesma que Aglietta e Orlean fazem ao estruturalismo, que, segundo ele, “mostrou seus limites fechando-se a toda concepção genética”.31 31 Aglietta e Orlean, op. cit., p. 43.

O problema é que, não existindo a gênese, já que a moeda é pressuposta, não existe tampouco a esperança de analisar as transformações históricas dos sistemas monetários32 32 Idem, p. 32. , “porque não [se] define a relação social elementar de maneira que essa relação contenha sua própria lei de evolução”.33 33 Idem, p. 43. São ainda Aglietta e Orlean que dizem que a moeda na concepção de Benetti e Cartelier “é uma moeda inerte e sempre unificada’34 34 Idem, p.75. , uma vez que é pressuposta como unidade de conta.

3.2 A socialização da moeda

O segundo problema colocado pelos chamados “críticos do marxismo” no que se refere à noção de moeda-mercadoria tem a ver, como mencionamos, com o fato de a moeda ser considerada imediatamente social, ao contrário das mercadorias em geral, que precisam passar por processo de socialização dos trabalhos privados nelas contidos.

Segundo Benetti e Cartelier, “a operação pela qual a moeda é introduzida não pode, sem contradizer a própria hipótese de sociedade mercantil, ter o caráter de troca [“échange”], e então ser uma operação em termos de valor”.35 35 Benetti e Carteiier, Marchands ... , op. cit., p. 158.

Deleplace, por sua vez, acha que Marx comete um erro ao dizer que a moeda entra em circulação por um ato de troca privada, “na sua fonte de produção, onde o ouro, como produto imediato do trabalho, se troca por outro produto do trabalho de mesmo valor”.36 36 Marx, O Capital, op. cit., p. 122. Nesse caso, segundo Deleplace, “das duas, uma: ou o trabalho que produz o ouro é imediatamente social, no próprio momento em que ele é despendido, e então o ouro não é uma mercadoria, porque seu trabalho não é nunca privado; ou o ouro é de fato o produto de um trabalho privado e não é mercadoria, porque este trabalho é somente medido numa unidade particular, numa quantidade de x, que não é comum a todas as mercadorias (dito de outra forma, x seria a moeda). Além disso, não é uma mercadoria porque é trocada contra ouro, e não contra a moeda”.37 37 Deleplace, G. “Difficultés de la théorie de la monnaie - marchandise”. Economie Appliquée, tomo XXXVIII, 1985, n2 1, p. 126.

Temos ainda a crítica de De Vroey, no mesmo sentido. Segundo ele “a moeda ... não pode ser considerada uma mercadoria no sentido estrito do termo, porque ela não é objeto de uma operação de validação, ao contrário das outras mercadorias ... A moeda é instituída pela autoridade política”.38 38 De Vroey, “La théorie ... , op, cit., p. 45-46.

Todas essas críticas têm a ver com o processo de validação social ou de socialização da moeda, que se insere num contexto maior do processo de socialização em economias mercantis. Como já vimos, o processo de socialização dos trabalhos privados contidos nas mercadorias é feito através da moeda, concluindo-se com a venda das mercadorias. Esse processo é interpretado na versão trabalho abstrato da teoria do valor de Marx como aquele que permite chamar de sociedade às organizações mercantis e faz da moeda validadora social dos trabalhos privados. Duas questões colocam-se aqui. A primeira é se a própria moeda passa por um processo de validação social ou de socialização. A segunda é se este é igual ao que ocorre com as demais mercadorias e, em caso contrário, se isso é suficiente para abandonar a noção marxista de moeda-mercadoria.

Quanto à primeira questão, cumpre observar que a moeda, apesar de validadora social dos trabalhos privados, passa, ela própria, por um processo de reconhecimento social como equivalente geral, que é sempre necessário e jamais obtido de uma vez por todas. Este nada mais é que o processo permanente de socialização ou de reconhecimento social da moeda, o qual a torna apta, enquanto equivalente geral, a funcionar como validadora social dos trabalhos privados.39 39 Para maiores detalhes sobre o assunto, v. Mollo, M. L. Rollemberg. “A relação entre moeda valor em Marx”. In Anais do XVII Encontro Nacional de Economia. Fortaleza: ANPEC, 1989, e REP, vol. 11, n.2 ( 42), abr.-jun., 1991. Esse processo explica por que as dinâmicas monetárias nascem, mas não são eternas.

Quanto à questão da especificidade do processo de socialização da moeda, ela decorre do fato de que essa socialização não ocorre por meio de uma troca contra a moeda (que seria um non sense), mas, da mesma forma que na gênese da moeda, é fruto de uma ação social permanente que mantém a moeda como algo diferente das mercadorias em geral, mas nascida delas e da lógica mercantil.

Assim, a troca direta nas minas, de que fala Marx, é o ponto de entrada do ouro em circulação, mas não o ato que define a sociabilidade da moeda, nem que permite que ela seja imediatamente social para estar apta a funcionar como validadora social dos trabalhos privados. Muito pelo contrário, quando o ouro entra na circulação por esse processo já é moeda, e o trabalho privado do produtor de ouro já é reconhecido socialmente como social, como espelho legítimo do valor das mercadorias em geral.

Assim, quando Benetti e Cartelier na citação acima negam o caráter mercantil da sociedade, porque a operação através da qual a moeda é introduzida não é uma operação de troca (échange) e não pode ser uma operação em termos de valor, é preciso tecer dois comentários. Primeiro, o valor, assim como o caráter social analisado anteriormente, não é definido apenas na circulação, mas na produção, na circulação e na articulação entre elas. O valor se realiza de forma final ou definitiva na circulação, mas se impõe, como forma social de organização, desde que a produção de mercadorias se estabelece como dominante.

Segundo, o fato de a moeda não ser introduzida na circulação via operação de troca contra moeda (por definição impossível) não tem por que negar o caráter mercantil da sociedade, porque este não se define apenas na troca das mercadorias por moeda, mas no aparecimento da própria moeda a partir da mercadoria, analisada na seção anterior. O surgimento da moeda e de sua função de validadora social dos trabalhos privados não nega seu caráter mercantil, embora faça dela o que Marx chamou de mercadoria especial.

Quanto à afirmação de Deleplace, temos a dizer, por um lado, que o trabalho do produtor do ouro é privado enquanto o ouro não se torna moeda e, depois, que perde essa qualidade. O tornar-se moeda, entretanto, é justamente a transformação do trabalho privado do produtor do ouro em trabalho reconhecido como social, dado o reconhecimento social do ouro como mercadoria destinada a cumprir o papel de equivalente geral. Assim, por um lado, não é verdade, como pensa De Vroey, que a moeda não está sujeita a validação social. Por outro, o ouro, enquanto moeda, é mercadoria especial, cujo valor de uso se torna aquele de representar o valor de troca.

Quanto à impossibilidade de mensuração do trabalho privado, uma vez que não poderia ser medido numa unidade particular, x, que não é comum a todas as mercadorias, a questão é a mesma daquela que tem a ver com a moeda ter ou não preço. De fato, segundo Deleplace, a ação social através da qual uma mercadoria é excluída e se transforma em moeda “intervém efetivamente cada vez que uma unidade de moeda é criada, e ela só pode ser compreendida através de uma teoria de determinação do seu preço”. Para Deleplace a questão importante a responder é: “a determinação do preço de moeda é coerente com a afirmação do seu caráter mercantil?”40 40 Deleplace, op. cit., p. 125.

Sobre esses assuntos é preciso dizer, em primeiro lugar, que concordamos com a ideia de que a ação social de exclusão ocorre a cada vez que uma unidade monetária é criada. A isso chamamos de necessidade permanente de reconhecimento e afirmação sociais da moeda como equivalente geral. Mas não quer dizer que essa ação social seja privativa do momento de entrada em circulação da moeda. Antes disso, ela já é reconhecida socialmente como tal. Além disso, esta ação social é de criação da moeda, mas também de seu reconhecimento social como equivalente geral, o que torna tanto sua criação quanto a aceitação social importantes na compreensão das dinâmicas monetárias.

Em segundo lugar, é preciso destacar que Deleplace, ao abordar questões relativas ao preço da moeda, incorre em um problema sério de interpretação analítica. Como o próprio Marx já enfatizava, a moeda não tem preço enquanto forma monetária do valor, embora tenha valor. O valor da moeda em unidades monetárias é, de fato, desprovido de sentido.

Em terceiro lugar, o caráter mercantil da moeda não é perdido com sua impossibilidade de ter preço. Isso tem a ver com sua especialidade como mercadoria. Mercadoria, porque é oposição entre valor de uso e valor de troca. Especial, porque seu valor de uso se relaciona com seu valor de troca, já que o valor de uso da moeda consiste em representar universalmente o valor de troca. Representando o valor de troca das mercadorias, a moeda constitui o preço delas, não podendo por isso ter preço, ou representar a si mesma.

Para concluir esta seção, é preciso dizer que o caráter mercantil da moeda não é perdido quando deixa de ser uma verdadeira mercadoria, já que quando uma mercadoria se torna moeda, ou o processo de exclusão, tem a ver com a necessidade que as sociedades produtoras de mercadorias têm de resolver (nos termos de Marx) a contradição privado-social que as define. Assim, a moeda nada mais é que uma relação social que não precisa ter forma corpórea nem materialidade para cumprir seu papel mercantil de validadora dos trabalhos privados.41 41 Quanto ao papel do trabalho incorporado para expressar convenientemente o valor das mercadorias, v.: S. de Brunhoff. La Politique Monétaire: un essai d’ interprétation marxiste”, com Paul Bruini, PUF, 1974, cap. 2; e Mollo, M.L. R. Monnaie, Valeur et Capital Fictif, tese de doutorado, Paris: X, 1989.

Quanto à afirmação de De Vroey, de que a moeda é substituída pela instituição política, é preciso observar que, se a pressuposição da moeda tratada anteriormente acarreta a impossibilidade analítica de tratar as transformações das dinâmicas monetárias, a mera afirmação do papel monetário do Estado, sem análise da gênese da moeda, torna precário o próprio entendimento do que é o Estado. Com isso, fica difícil apreender as condições de seu aparecimento e, consequentemente, as formas e limites de seu poder de atuação, tanto em geral quanto no que tange aos fenômenos monetários.42 42 Para uma interpretação do papel do Estado que articula seu papel com a ideia de moeda como relação social, v. Mollo, M.L.R. “Estado e Economia: o papel monetário do Estado”. Estudos Econômicos; jan/abr., 1990.

  • 1
    V. Benetti, Brunhoff e Cartelier, “Eléments pour uma critique marxiste de P. Sraffa”, Cahiers d’Econo­mie Politique, n. 3.
  • 2
    Benetti & Cartelier. “El capital como extensión de la mcrcancía: una contradición de la economia política”. Economia, Teoria y Prática, México: UAM, 1986, n.7, p. 33.
  • 3
    Cartelier, J. “Marx’s Value, Exchange and Surplus Value Theory: a Suggested Interpretation”, mimeo, Université de Picardie.
  • 4
    De Yroey, M. “La théorie marxiste de la valeur, version travail abstrait- Un bilan critique”, In Dostaler, G. e M. Laqueux, orgs. Un Echiquier Centenaire: Théorie de la Valeur et Formation des Prix - La Découverte et Presses Universitaires de Quebec: 1985, p. 47.
  • 5
    Aglietta, M Régulation et Crises du Capitalisme: l’ Expérience des Élats-Unis. Calmann-Lévy, Pooccs, 1976, p. 37.
  • 6
    Cartelier, J. Op. cit., p. 17.
  • 7
    Nos termos da versão trabalho abstrato da teoria do valor, toda venda realiza a validação social do trabalho privado contido nas mercadorias.
  • 8
    Marx, K. O Capital, livro I, capítulos I a III.
  • 9
    Para um tratamento mais detalhado sobre este assunto, v. Mollo, M. L. Rollemberg, ·’A relação entre moeda e valor em Marx”. In: Anais do XVII Encontro Nacional de Economia ANPEC- Fortaleza, 1989, e Revista de Economia Política, vol. 1 1, n2 2( 42), março-junho, 1991.
  • 10
    De Vroey, M. “Marchandisce, société marchande et société capitaliste”. Cahiers d’Economie Politique, nº 9, p. 121.
  • 11
    Forma Simples do Valor (F 1 )
    x de mercadoria A = y da mercadoria B
    Forma Total do Valor (F 2 )
    x de mercadoria A - y da mercadoria B
    x de mercadoria A - z da mercadoria C
    x de mercadoria A - w da mercadoria D
    Forma Geral do Valor (F 3 )
    y da mercadoria B = x da mercadoria A
    z da mercadoria C = x da mercadoria A
    w da mercadoria D - x da mercadoria A
  • 12
    Benetti, C. “Économie monétaire et économie du troc”. In Economie Appliquée, tomo XXXVIII, 1985, n. 1.
  • 13
    Marx, K. Le Capital. Paris: Ed. Sociales, Paris, 1979, p. 64.
  • 14
    V. Cartelier, J. “Marx ‘s Value, Exchange and Surplus Value Theory-a Suggested Interpretation”, mimeo, p. 5.
  • 15
    Marx, K. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987, p. 96.
  • 16
    Aglietta, M. & Orlean -A Violência da Moeda. São Paulo: Brasiliense, p. 54 e 60.
  • 17
    Benetti, op. cit., p. 98.
  • 18
    Marx, O Capital, op. cit., p. 73.
  • 19
    Cartelier, op. cit., p. 5.
  • 20
    Benetti, op. cit., p. 96, sublinhado por nós.
  • 21
    Marx, Le Capital, op. cit., p. 79.
  • 22
    Idem, p. 97. Grifos nossos.
  • 23
    Os autores se apoiam para isso em textos do próprio Marx, como por exemplo: “Assim, não há equivalente geral e o valor relativo das mercadorias não possui forma geral em que se equiparem como valores e se comparem. como magnitudes de valor. Não se estabelecem relações entre elas, como mercadorias, confrontando-se apenas como valores de uso” (Op.cit., p. 96, grifo nosso).
  • 24
    Cartclier, op. cit., p. 6.
  • 25
    Benetti, C. e J. Cartelier, Marchands Salarial et Capitalistes. Paris: F. Maspero. 1980, p. 149, grifos nossos. Cartelicr vai ainda mais longe, parecendo conceber as relações econômicas como restritas às monetárias. É o que se observa quando ele diz que o sucesso eventual de qualquer tentativa de construir a gênese analítica da moeda “significaria muito claramente o desaparecimento da economia política: a moeda.forma específica das relações humanas qualificadas de econômicas, sendo então pensável como resultado de outras relações sociais, o que conduziria a economia política a se dissolver no sistema de conccitualização deste outro conjunto de relações, sendo englobada pores te outro saber”. “Théorie de la valeur ou hetérodoxie monétaire: les termes d’un choix”. Economie Appliquée, tomo XXXVIII - n. 1 - 1985, p. 75-76, grifos nossos.
  • 26
    Marx, K. Fondements de la Critique de /’ Économie Politique. Paris: Anthropos, 1968, p. 29.
  • 27
    É bom lembrar que o próprio Marx chamava atenção para a existência, em todas as sociedades, de traços característicos de outras formas de organização social e para a impossibilidade de organizações sociais puras, ou seja, sem traços de formações sociais diferentes.
  • 28
    Marx, O Capital, op. cit., p. 98.
  • 29
    Idem, p. 98.
  • 30
    Benetti e Cartelier, “El capital como extensión ... “, op. cit., p. 35.
  • 31
    Aglietta e Orlean, op. cit., p. 43.
  • 32
    Idem, p. 32.
  • 33
    Idem, p. 43.
  • 34
    Idem, p.75.
  • 35
    Benetti e Carteiier, Marchands ... , op. cit., p. 158.
  • 36
    Marx, O Capital, op. cit., p. 122.
  • 37
    Deleplace, G. “Difficultés de la théorie de la monnaie - marchandise”. Economie Appliquée, tomo XXXVIII, 1985, n2 1, p. 126.
  • 38
    De Vroey, “La théorie ... , op, cit., p. 45-46.
  • 39
    Para maiores detalhes sobre o assunto, v. Mollo, M. L. Rollemberg. “A relação entre moeda valor em Marx”. In Anais do XVII Encontro Nacional de Economia. Fortaleza: ANPEC, 1989, e REP, vol. 11, n.2 ( 42), abr.-jun., 1991.
  • 40
    Deleplace, op. cit., p. 125.
  • 41
    Quanto ao papel do trabalho incorporado para expressar convenientemente o valor das mercadorias, v.: S. de Brunhoff. La Politique Monétaire: un essai d’ interprétation marxiste”, com Paul Bruini, PUF, 1974, cap. 2; e Mollo, M.L. R. Monnaie, Valeur et Capital Fictif, tese de doutorado, Paris: X, 1989.
  • 42
    Para uma interpretação do papel do Estado que articula seu papel com a ideia de moeda como relação social, v. Mollo, M.L.R. “Estado e Economia: o papel monetário do Estado”. Estudos Econômicos; jan/abr., 1990.
  • *
    Este trabalho recebeu financiamento do CNPq, a quem aproveito nesta nota para agradecer.
  • 44
    JEL Classification: B51; D46.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1993
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