Acessibilidade / Reportar erro

A crise fiscal e as diretrizes orçamentárias

The fiscal crisis and budget guidelines

RESUMO

Isso é parte do relatório de Serra como patrocinador do projeto de lei orçamentária de 1990. Trata-se de peça relevante tendo em vista que foi discutida logo após a aprovação de uma nova constituição no Brasil, com novas disposições legais e gastos obrigatórios. Professor Titular de Economia da Fundação Getúlio Vargas e editor desta Revista, fez a seguinte exposição perante a reunião conjunta da Comissão de Finanças e da Comissão de Economia da Câmara dos Deputados.

PALAVRAS-CHAVE:
Política fiscal; orçamento público

ABSTRACT

This is part of the report of Serra as the sponsor of the 1990 budget bill. This was a relevant piece considering it was discussed just after the approval of a new constitution in Brazil, with new legal dispositions and mandatory spending.

KEYWORDS:
Fiscal policy; budget

O deputado José Serra, Relator da Comissão Mista de Orçamento sobre o Projeto de Lei no. 2. de 1989 (CN), que “dispõe sobre as Diretrizes Orçamentárias para o ano de 1990 e dá outras providências”, apresentou à Câmara dos Deputados parecer, do qual publicamos a Primeira Parte. O relator contou com a colaboração de José Roberto Affonso.

O relatório consta de três partes. Na primeira, são esboçadas as principais inovações da nova Constituição sobre a organização do gasto público, indicando-se as principais características da Lei de Diretrizes Orçamentãrias. Mostra-se em que condições as novas regras orçamentárias fazem sua estréia, como se chegou à presente crise fiscal, quais são as principais tendências quantitativas (e declinantes) do investimento público e o “estado de situação” das vinculações e dos incentivos tributários. Por último, é apresentado o cenário correspondente para 1989 e a previsão para 1990, com base em dados preliminares cuja elaboração custou grande esforço e exigiu complexas suposições.

Na Segunda Parte são esboçados os principais aspectos do substitutivo, cujo texto integra a Terceira Parte deste relatório.

PRIMEIRA PARTE

A NOVA CONSTITUIÇÃO E O GASTO PÚBLICO

“( ... ) a passarem os orçamentos ( ... ) como têm passado nesta casa, discutidos perante quatro ou cinco pessoas em hora adiantada da sessão, pode-se dizer, sem que vá nisso ofensa, que nós representamos uma comédia parlamentar que nem ao menos tem a vantagem dos dramas japoneses de durarem oito dias.”

Joaquim Nabuco

As análises a respeito das consequências da Constituição de 1988 sobre as finanças públicas têm, em geral, enfatizado a prodigalidade fiscal e a ampliação da rigidez para reformar o setor público, implícitas no novo texto, bem como as características, méritos e limitações das mudanças no sistema tributário. Curiosamente, até agora, foram ignorados os dispositivos referentes à organização do gasto público, precisamente os mais positivos para os que se preocupam com as regras adequadas, tanto para o equilíbrio fiscal como para o controle, a transparência e o planejamento das decisões governamentais sobre alocação de recursos.

Abrangência

Uma das inovações fundamentais da Constituição refere-se à abrangência dos orçamentos que deverão ser encaminhados pelo Executivo ao Legislativo. Além do orçamento fiscal, o Congresso deverá apreciar os orçamentos da Seguridade Social (que inclui previdência, saúde e assistência social) e de Investimentos das Empresas Estatais (firmas nas quais a União detém a maioria do capital social com direito a voto). As Constituições anteriores não previam a inclusão no orçamento das despesas e receitas da Previdência - nos últimos anos, isto passou a ser feito de forma global e apenas a título de informação (anexos de entidades e fundos); bem como não submetiam ao exame do Legislativo os investimentos das estatais cujos recursos não proviessem de dotações do orçamento fiscal.

A importância da inovação citada ressalta com a lembrança de que em 1988 as receitas próprias da Previdência Social igualaram a receita tributária do Tesouro, excluídas as transferências constitucionais intergovernamentais. Nesse mesmo ano, os investimentos das estatais federais corresponderam a três vezes os investimentos do Tesouro e suas autarquias, além de representarem um instrumento decisivo da definição dos rumos do desenvolvimento do País.

Assim, o Legislativo deverá apreciar o mérito e as condições de financiamento de todos os gastos públicos, excetuando-se, como é obviamente apropriado, as despesas de custeio das empresas estatais. Porém, o novo texto constitucional veda que durante a execução orçamentária seja feita destinação adicional de recursos para empresas públicas sem prévia e específica autorização legislativa.

Paralelamente, a Constituição obriga a que o orçamento fiscal seja acompanhado de um demonstrativo dos efeitos sobre as receitas e as despesas das isenções, anistias, subsídios e benefícios tributários e creditícios. São itens que representam “gastos” cujo conhecimento, hoje, só é menos obscuro do que a forma como são decididos. Sua reiterada explicitação representará um largo passo no sentido de uma avaliação qualitativa e quantitativa mais adequada da alocação dos recursos públicos.

Plano e diretrizes

Com vistas ao planejamento dos investimentos públicos que, pela sua dimensão, no mais das vezes ultrapassam folgadamente um exercício orçamentário, o texto constitucional prevê a existência de um Plano Plurianual, contendo diretrizes e metas de despesas de capital. A duração desse plano corresponde ao período de mandato de governo, tendo vigência do segundo ano da administração que o elabora até o final do primeiro ano do governo subsequente, podendo ser retificado por lei, em pontos específicos, durante a referida vigência.

O Plano Plurianual da nova Constituição será superior ao Orçamento Plurianual de Investimentos, previsto na Constituição anterior e regulamentado pela Lei 4.320/64. Este último estabelecia apenas dotações financeiras (excluindo a definição de metas físicas), que se desatualizavam em razão do processo inflacionário, inviabilizando a compatibilização do orçamento anual com o plurianual.

Além disso, o Plano Plurianual conterá não apenas os investimentos, mas também as despesas de custeio deles decorrentes. Como se sabe, a não-consideração desses efeitos constitui um poderoso fator de desequilíbrio orçamentário e estreitamento do raio de manobra da gestão fiscal.

O Orçamento Plurianual da Constituição anterior durava três anos, mas era reelaborado anualmente. Desse modo, pouca ou nenhuma atenção era dada no final do seu período de vigência, pois, nessa fase, o Orçamento Plurianual era reformulado duas vezes, com a elaboração do plurianual do ano seguinte. Por isso tudo, na prática, o antigo Orçamento Plurianual cumpria um papel rigorosamente ornamental.

Outra inovação relevante refere-se à previsão da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), cujo projeto deve ser encaminhado pelo Executivo ao Legislativo quatro meses e meio antes do envio do projeto de orçamento. Tal lei: a - definirá as metas e prioridades do Plano Plurianual para o exercício subsequente; b - orientará a elaboração orçamentária, fixando seus principais parâmetros; c - disporá sobre alterações da legislação tributária; d - estabelecerá a política de aplicação das agências oficiais de fomento (por exemplo, BNDES e Caixa Econômica); e - autorizará a criação de cargos e carreiras, concessão de vantagens ao funcionalismo e contratação de pessoal, sendo que nenhuma alteração poderá ser feita sem que a LDO o estabeleça.

Assim, a LDO permitirá, durante um prazo adequado, debate mais detido sobre as prioridades orçamentárias e os financiamentos concedidos por agências públicas, cujo papel é estratégico para o desenvolvimento brasileiro. Aliás, prazos adequados para analisar o orçamento não constituem um problema novo, como sugerem as palavras de Joaquim Nabuco, pronunciadas há cento e vinte anos, citadas na epígrafe.

Por último, além de ensejar o debate antecipado, a LDO deverá forçar maior conexão (tão ignorada ou por vezes repelida no âmbito parlamentar) entre despesas e receitas, ao dispor sobre alterações na legislação tributária simultaneamente à fixação de parâmetros e prioridades do gasto público do ano subsequente. Note-se que toda variação de despesas com pessoal somente será possível se decidida no âmbito da LDO, circunstância que melhorará as condições para que a política de pessoal seja mais racional, menos desgastante e dispendiosa de tempo para o Parlamento e para as autoridades econômicas e administrativas.

Executivo e Legislativo

A LDO poderá representar o principal instrumento de integração entre os Poderes Executivo e Legislativo em matéria de política fiscal, abrindo uma alternativa ao autoritarismo da Constituição de 1967 e à anarquia permitida, nessa área, pela Constituição de 1946. Na prática, certos dispositivos do texto de 1967, mantidos na Constituição de 1969, limitavam o Poder Legislativo à tarefa de simplesmente autenticar o projeto de lei orçamentária. Por exemplo, estabelecia-se que:

Não é objeto de deliberação a emenda de que. decorra aumento de despesa global ou de cada órgão, fundo, projeto ou programa, ou que vise modificar-lhe o montante, natureza ou objetivo (art. 65, § 1.º).

Já a Constituição de 1946 abria de tal maneira a possibilidade de emendas que transformava o orçamento em instrumento de nenhuma política coerente, pulverizando-o em função de pequenos objetivos corporativistas ou clientelísticos. Isto, paradoxalmente, enfraquecia o Legislativo pois, a fim de restabelecer alguma coerência e enquadrar as despesas dentro do limite do possível (o montante aprovado era sempre muito maior), o Executivo utilizava a poderosa arma da não-liberação de verbas, ampliando assim suas possibilidades de manipulação sobre os parlamentares. A propósito, cabe lembrar o tipo de resposta que o ministro da Fazenda Santiago Dantas, em 1963, costumava dar aos deputados que o procuravam para pedir a liberação de uma determinada verba contida no orçamento: “Existe a verba senhor deputado, mas não há dinheiro”.

Fugindo de ambos os extremos, o novo texto proíbe emendas sobre gastos nas áreas de pessoal e encargos, serviços da dívida e transferências constitucionais, mas permite emendas, dentre outras despesas, sobre os investimentos (e despesas deles decorrentes), desde que sejam acompanhadas da indicação dos recursos necessários (anulação de despesas) e sejam compatíveis com o plano plurianual e as diretrizes orçamentárias, ambos também aprovados pelo Congresso. Neste sentido, as emendas apresentadas têm que se ajustar a prioridades que o próprio Legislativo terá contribuído para estabelecer.

Abriu-se, portanto, o caminho para uma participação responsável dos parlamentares no processo orçamentário. Ao mesmo tempo procurou-se fortalecer e ampliar a capacidade do Congresso de desempenhar suas novas tarefas. mediante a instituição de uma Comissão Mista Permanente (Câmara-Senado). que deverá equipar-se para apreciar a LDO, analisar e preparar os pareceres sobre os projetos de lei orçamentária e as emendas apresentadas, bem como acompanhar a execução orçamentária acumulando know-how e memória sobre o assunto.

Vale a pena ainda sublinhar a inclusão de um dispositivo que obriga à coincidência da posse do presidente da República, dos governadores e dos prefeitos, com início do exercício orçamentário. As vantagens de eliminar os dois meses e meio em que o chefe do Executivo em fim de mandato “invade” o primeiro ano de execução orçamentária do seu sucessor não carecem de maior demonstração.

A ESTRÉIA DAS NOVAS REGRAS

Convém sublinhar os fatores que condicionam e limitam o alcance da primeira LDO e que devem ser levados em conta pelos parlamentares que aprovarão o substitutivo ao projeto do Executivo.

Ressalte-se, inicialmente, duas ausências muito sentidas:

  1. A lei complementar que estabelecerá a estrutura e a organização da LDO. A lei vigente (n. 4.320/64) é evidentemente omissa nesse aspecto, porquanto nunca existiu nada semelhante à LDO até a Constituição de 1988. Esta ausência dificulta um melhor enquadramento das emendas. Por exemplo, algumas emendas procuraram introduzir no substitutivo normas de execução financeira do setor público, as quais, por relevantes que sejam, de modo algum cabem na LDO, que cuida da peça orçamentária. Situação semelhante era a da criação de fundos que, além do mais, fere dispositivo constitucional que prevê sua prévia instituição. Ou, ainda, muitos procuraram fixar critérios orçamentários plurianuais, quando a LDO se refere exclusivamente a um determinado ano, ou seja, 1990. O próprio projeto do Executivo, feito com seriedade e empenho, não esteve isento dessa falha.

  2. O Plano Plurianual, que define prioridades, metas e fixa rumos de médio prazo para o setor público brasileiro. Tal plano deve delimitar e informar a elaboração da LDO em aspectos críticos, como, por exemplo, os investimentos prioritários, a estratégia regional, as ênfases setoriais. Portanto, sua inexistência, nesta fase, constrange o alcance da LDO. O que é prioritário, o que não é? Como estão ou devem enlaçar-se os grandes investimentos? Qual a distribuição - necessariamente descontínua - desses projetos ao longo do tempo? Quais seus efeitos de encadeamento “para trás” e “para diante”, do ponto de vista espacial, setorial e do meio ambiente?

Um segundo fator relevante que cerca a primeira LDO é a falta de tradição para sua elaboração. Isto tem uma implicação prática: as informações quantitativas e qualitativas disponíveis são precaríssimas, num país cujo processo orçamentário sempre foi extremamente opaco e cujas decisões de gasto (público) sempre sofreram de uma taxa de anarquia acima da média de países como, por exemplo, França ou Inglaterra, ou mesmo na América Latina, Chile, Colômbia ou Uruguai. Apenas para exemplificar: não são conhecidos com razoável aproximação ex-ante os investimentos das empresas do setor público nem a magnitude e distribuição espacial das chamadas renúncias fiscais (“gastos tributários”) e creditícias (subsídios). Há enormes dificuldades para a identificação de certas despesas, por exemplo, subvenções à previdência privada, e inexistem aproximações confiáveis e menos desatualizadas sobre a distribuição espacial e os efeitos dos gastos governamentais (administração direta e autarquias).

Evidentemente, carências como as apontadas não serão eliminadas subitamente e apenas mediante boa vontade de técnicos do Executivo. E preciso acumular dados e know-how ao longo tempo, afora, evidentemente, um grande esforço no ponto de partida, até mesmo para planejar adequadamente a construção das evidências numéricas e referentes às políticas de gastos e financiamentos, cujo conhecimento seja necessário.

Por fim, cabe chamar a atenção para a conjuntura peculiar que envolve a elaboração da primeira LDO.

Para começar, a Constituição de 1988 impõe a necessidade de um amplo ajuste e rearranjo fiscal, em face dos aumentos de transferências federais a Estados e Municípios e ao sensível acréscimo de despesas e vinculações a que obriga. A acomodação a esse novo esquema fatalmente envolve perturbações e conflitos, até que a nova estrutura tome forma e se consolide.

Além disso, o projeto está sendo enviado por um governo em fim de mandato, para definir os parâmetros de gasto público de outro governo, o que, evidentemente, diminui o charme da estreia da nova sistemática orçamentária. Isto para não mencionar o próprio enfraquecimento da sustentação parlamentar da administração vincenda e a inevitável tendência à prodigalidade fiscal que envolve o comportamento das diferentes forças políticas num ano eleitoral. Este comportamento - normal nos países democráticos mais civilizados - é especialmente intenso num país como o nosso, em face de condicionamentos culturais, carências sociais gritantes, corporativismo selvagem e florescente e às quase três décadas sem eleições presidenciais.

Paralelamente, a conjuntura econômica e fiscal é cruelmente adversa. O vem-e-vai da espiral inflacionária exacerbada (que ameaça “ir” sem “vir”, a exemplo do que acontece na Argentina) corrói a receita tributária real e estropia qualquer elaboração e execução orçamentária. O que dizer, então, do controle dessa execução?

Em face de perdas de receita real decorrentes da inflação e de outras circunstâncias (adiante mencionadas), conjugadas aos acréscimos de despesas em alguns itens (juros, transferências constitucionais, pessoal e, logo mais, gastos previdenciários) e às vinculações entre receitas e despesas, a crise fiscal que o Brasil vive é a mais aguda de nossa história recente, e, sem dúvida, o grande (e estreito) gargalo que inviabiliza a retomada do crescimento da economia, dos salários reais e a melhora dos serviços públicos fundamentais.

A CRISE FISCAL

Os números demonstrativos dessa crise são eloquentes. Comecemos pelas receitas.

Em 1970, a arrecadação do governo federal equivalia a 14,5 por cento do PIB (incluindo tributos, contribuições previdenciárias, contribuições econômicas etc.; excluindo o PIS-PASEP e o FGTS). Em 1980, a proporção era semelhante; cinco anos depois havia caído a 12 por cento. Em 1988, 10,7 por cento. Para 1989, estima-se 10,3 por cento, mesmo levando em conta possíveis aumentos de alíquotas de tributos ou contribuições, estas aprovadas em meados do ano. Entre 1970-1988, a arrecadação real não chegou a dobrar enquanto o PIB cresceu 2,7 vezes (ver tabela 1).

A fase crítica dessa deterioração observou-se na presente década, tendo conspirado para provocá-la dois fatores principais:

  1. A aceleração inflacionária, que corrói a arrecadação real de tributos e contribuições, em face da defasagem entre o fato gerador e a entrada dos recursos na caixa do governo. Tal corrosão não pôde ser contrabalançada pelas reiteradas iniciativas, ao longo da década, no sentido de elevar alíquota, cortar incentivos e até criar novos tributos (Finsocial), nem pela indexação parcial de tributos ou antecipações de prazos de recolhimento. Se, por hipótese, a inflação fosse constante e baixa, a carga tributária poderia ser algo em torno de 3 por cento do PIB mais alta (às alíquotas vigentes).

  2. A forte elevação do superávit comercial, associada às exportações de produtos industrializados, imunes a impostos indiretos e cuja produção não gera imposto de renda. Se as importações fossem maiores, esse problema seria atenuado. Note-se que os impostos cobrados sobre o pagamento de juros ao exterior (contrapartida do superávit) podem onerar predominantemente o setor público, que realiza mais de 80 por cento dos serviços da dívida externa.

Do lado das despesas, vale a pena sublinhar que as transferências do governo federal a Estados e Municípios saltaram de 1,5 por cento do PIB em 1970 para 2,3 por cento em 1988, aumentando mais de quatro vezes em valores reais. Em 1989, os serviços projetados da dívida externa e interna atingem 6,5 por cento do PIB (no caso da dívida mobiliária, incluídos apenas os encargos; no caso da dívida externa, os encargos mais refinanciamento das empresas federais, dos Estados e dos Municípios).

Tabela 1
Arrecadação Tributária da União - 1970/90

Quanto aos juros, a causa do aumento das despesas correspondentes é bem conhecida e teve seu ponto de partida na súbita e forte elevação das taxas internacionais entre o final da década passada e 1984, paralelamente à acentuada degradação das relações de troca com o Exterior, aproximadamente no mesmo período. A dívida externa do Brasil, em face dessas circunstâncias, quase duplicou entre 1978 e 1983, criando uma significativa distância entre seus encargos e a rentabilidade dos investimentos financiados por empréstimos do Exterior.

A fim de avaliar mais adequadamente as implicações fiscais dessa evolução do quadro externo deve-se notar que, ao longo dos anos setenta, e mais rapidamente na presente década, a dívida com o Exterior foi sendo estatizada: a participação do setor público nesse endividamento elevou-se de 50 a mais de 80 por cento entre 1973 e 1985.

Pior ainda, a rápida elevação do endividamento público externo foi acompanhada por uma forte deterioração dos preços e tarifas públicas, em razão de políticas anti-inflacionárias “oportunistas”, com repercussões, embora indiretas, altamente negativas, sobre as contas fiscais: entre 1975-1985, o preço médio do aço declinou 40 por cento; no caso da eletricidade a tarifa média caiu 33 por cento; e no caso dos telefones e dos correios, 53 e 47 por cento, respectivamente (tabela 2).

Paralelamente, grande parte dos investimentos financiados por empréstimos externos foi sendo desacelerada, postergando o retorno, mas não os juros devidos e ascendentes. Para culminar as adversidades, duas maxidesvalorizações cambiais - em fins de 1979 e começo de 1983 - elevaram fortemente, em moeda nacional, o montante dos serviços da dívida externa.

Nesse sádico contexto, a dívida externa gerou problemas fiscais e, em face do comportamento medíocre da receita tributária, induziu à elevação da dívida mobiliária interna, cujos encargos subiram 15 vezes em termos reais entre 1970 e 1988. A inflação alta trouxe dificuldades para a expansão e a rolagem desta dívida, forçando o encurtamento de seus prazos e a elevação de seus custos.

O aumento das transferências intergovernamentais, bastante significativo ao longo da década, teve sua origem em três fatores: a) o afrouxamento do regime autoritário já na segunda metade dos anos setenta e acentuado no quinquênio seguinte; b) as tentativas de facilitar as condições eleitorais das forças então situacionistas, localizadas predominantemente nos municípios menores e nas regiões menos desenvolvidas; e c) as fortíssimas pressões das esferas de governo mais interessadas na redistribuição do bolo tributário. É importante reiterar que, desde 1970 e até 1988, antes portanto da nova Constituição, essas transferências já haviam crescido a um ritmo duas vezes superior ao da arrecadação federal.

Tabela 2
Evolução de preços e tarifas das empresas estatais federais

TENDÊNCIAS E CIRCUNSTÂNCIAS

Como antecedente para a análise da gestão do gasto público no Brasil e, evidentemente, da atual LDO, convém sublinhar duas tendências e duas circunstâncias, tão relevantes como, infelizmente, de efeitos negativos para o desenvolvimento e/ou para a situação fiscal do País.

Investimentos públicos

A primeira tendência refere-se à contração do investimento público, em razão dos sucessivos apertos fiscais e creditícios, bem como do fato de que tais despesas, em geral, formam a linha de menor resistência ao arrocho.

A referida contração tem consequências diretas na deterioração do que a CEPAL chama de capital social básico, na degradação dos serviços públicos essenciais e na formação de estrangulamentos à marcha do processo produtivo.

Basta mencionar, a respeito, que o investimento da administração direta mais autarquias aumentou tão-somente 60 por cento entre 1970-1988, enquanto o PIB aumentou 170 por cento. O investimento projetado para 1989 mal alcança 2 por cento do PIB ou menos de 8 por cento da despesa total. Neste ano, em relação a 1988, as estimativas da lei orçamentária exibem um declínio do investimento superior a 30 por cento, enquanto a folha de salários cresce 13 por cento reais.

Com relação ao setor empresarial do governo federal, é eloquente confrontar, no tocante ao exercício de 1989, os investimentos originalmente propostos pelas empresas - da ordem de 4,4 por cento do PIB - com o orçamento respectivo aprovado pela SEST - 3,4 por cento do PIB - e os investimentos que provavelmente serão efetivados - 2,8 por cento do PIB (tabela 3). Ou, ainda, observar a evolução desse indicador ao longo da década: 4,8 por cento em 1980, 3 por cento em 1985 e 2,8 por cento em 1988 (tabela 4). Além dos efeitos citados há um outro, financeiro, relacionado com o esticamento dos cronogramas de obras: são postergados os retornos, enquanto, como já dissemos, os dispêndios com serviços da dívida se mantêm.

Pessoal e receita

Outra tendência relevante diz respeito aos gastos com pessoal e inativos da União, cuja evolução, de certo modo, constitui a contrapartida do desempenho dos investimentos. O peso desses gastos no PIB tende, nos anos mais recentes, a reconstituir a proporção média do início da década de setenta.

Tabela 3
Orçamento consolidado de Investimento das empresas estatais federais em 1989, em % do PIB
Tabela 4
Investimentos e déficlts das empresas estatais federais - 1980/89 em % do PIB

O indicador mais significativo, porém, refere-se à participação de tais despesas na receita tributária disponível, ou seja, a que exclui as transferências constitucionais aos Estados e aos Municípios. O resultado não deixa de ser espantoso, em face da queda da arrecadação como proporção do PIB e ao aumento das referidas transferências: na média do período 1970/75, o gasto com pessoal e inativos não chegou a 40 por cento; em 1985, chegou perto de 42 por cento; em 1987/88, ultrapassou 60 por cento (tabela 5).

Em 1989, as estimativas apontam para uma relação de gastos com pessoal e inativos sobre a receita tributária disponível vizinha aos 90 por cento. Mesmo que a tendência do segundo semestre/1989 desminta a do primeiro semestre, em face da maior compressão salarial, o referido percentual ainda se manterá em nível absurdamente elevado, podendo, mesmo, conduzir a uma superação do limite constitucional.

Outra forma de ilustrar a perversa tendência esboçada enfatiza as variações de montantes: entre 1970 e 1978 os gastos com pessoal e inativos da União subiram mais de 2,2 vezes. Até 1989, mais de 2,7 vezes (projetados). O PIB saltou 2,7 vezes, enquanto a arrecadação tributária disponível cresceu 75 por cento até 1988. Em 1989, a tendência é de forte queda (menos 22 por cento), em face do aumento das transferências a Estados e Municípios e ao mau desempenho da receita de tributos e contribuições.

Tabela 5
Evolução e peso das despesas com pessoal e benefícios previdenciários - 1970/90

Vinculações

A circunstância acima referida expressa o peso desproporcional das vinculações entre receitas e certas despesas, que subtraem graus de liberdade e estreitam duramente o raio da manobra da política fiscal nesta conjuntura de crise, agravando-a. A meta da vinculação sempre embevece cada setor da área pública. Quem não a deseja para sua área, com a ilusão de resguardá-la do temporal da crise, não enfrentar as incômodas incertezas do jogo democrático? A prescrição “ame a incerteza e seja um democrata”, no Brasil da Nova República, assolada pelo corporativismo selvagem, foi reescrita: “ame a incerteza dos outros e seja um democrata”.

O quadro projetado das vinculações na lei orçamentária de 1989 é contundente: mais de 48 por cento das despesas orçamentárias são vinculadas a receitas. Acrescentando despesas que constitucionalmente não são passíveis de emendas de parlamentares e que são de difícil compressão (no caso das transferências intergovernamentais, o correto seria dizer impossível), chegamos a 94,4 por cento das despesas orçamentárias. Ou seja, as despesas não condicionadas equivalem a tão-somente 5,7 por cento do orçamento, equivalendo a 1,5 por cento do PIB (tabela 6).

Os graus de liberdade para emendas, porém, não atingem sequer essa reduzida proporção. Mais da metade corresponde a gastos correntes (exclusive salários) de difícil redução ou realocação; o restante, a investimentos que incluem recuperação, conservação e continuidade de obras já iniciadas. Ou então a gastos “descentralizáveis” que o Congresso não permite repassar a Estados e Municípios.

Incentivos

Finalmente, convém lembrar que, em 1989, projeta-se um montante de “gasto tributário” (renúncias de impostos) superior a 5 bilhões de dólares, correspondendo a 1,5 por cento do PIB, dos quais mais da metade corresponde a incentivos setoriais, perto de um terço a incentivos regionais e o restante a incentivos “sociais”, como os vales-refeição e transporte, isenção do IR à caderneta de poupança e “Lei Sarney”. Para 1990, haveria que contabilizar, ainda, renúncias como as que corresponderão às ZPE’S e ao esporte amador (tabela 7).

O CENÁRIO FISCAL DE 1989

Em 1989, diversas circunstâncias pressionam a já deteriorada situação fiscal pelo lado da receita, em virtude da:

  • A - Frustração da receita da contribuição social sobre os lucros, instituída no final de 1988 e questionada na Justiça;

Tabela 6
Distribuição percentual das despesas orçadas para 1989, segundo natureza e condições para aplicação (Lei 7.742, de 20.3.89)
  • B - Diminuição das alíquotas do lRPJ (35 a 30 por cento), do FINSOCIAL, do PIS/P ASEP e do IRPF, além das dificuldades para obter a arrecadação esperada com outras alterações do IRPF (ganhos de capital);

  • C - Devolução da parte do IRPJ arrecadado em 1987, devido a decisões da Justiça. No final de 1986 o Ministério da Fazenda esqueceu ou não quis reinstituir a correção monetária desse imposto, que havia sido eliminada durante o “Plano Cruzado”. Acabou tomando essa providência tardiamente, no começo de 1987, perdendo posteriormente na Justiça, em face das alegações de inconstitucionalidade;

Tabela 7
Estimativas preliminares da renúncia das receitas de impostos da União vigentes USS mil
  • D - Desindexação tributária do Plano Verão, que provocou perdas de receita e a posterior tentativa de volta retroativa da indexação, que, no caso do IRPJ, poderá ser afetada por decisões judiciais.

Cabe lembrar, ainda, do lado das empresas estatais, a drástica queda real dos preços públicos, com implicações altamente negativas para as contas governamentais. E, quanto aos gastos do Tesouro, os novos encargos decorrentes da Constituição de 1988, sendo mais importante os gastos previdenciários e as transferências intergovernamentais.

Tabela 8
Projeções preliminares das receitas e despesas orçamentárias da União - 1988/90: em percentagem do PIB
  1. As receitas governamentais estimadas, excluídas as operações de crédito, equivalem a 19,4 por cento do PIB. Tais receitas abrangem tributos, inclusive contribuições sociais (à Previdência, Finsocial etc.), outras receitas correntes do Tesouro, resultado operacional do Bacen, retorno das operações oficiais de crédito, receita própria de entidade e fundos e receitas esperadas decorrentes de aumentos nas contribuições sociais (estimando-se que, no último trimestre de 1989, gerem recursos da ordem de 0,8 por cento do PIB);

  2. A despesa total projetada equivale a 27,8 por cento do PIB. Tais despesas incluem: a) despesas “não emendáveis” pelo Legislativo: salários e encargos sociais, transferências constitucionais a Estados e Municípios a serviço da dívida (esta última é projetada em 6,4 por cento do PIB); b) todas as outras despesas correntes e de capital, vinculadas ou não: Para efeito do cálculo do novo montante de benefícios previdenciários, já foi considerada a vinculação ao salário mínimo e a fixação deste em NCZ$ 120,00 em junho, com reajustes mensais segundo o IPC e aumentos reais mensais de 3 por cento.

Chega-se, assim, a projetar o desequilíbrio orçamentário primário da União em 8,5 por cento do PIB (17,4 menos 25,9 por cento). Como o governo criou uma regra legal no âmbito do Plano Verão que lhe permite colocar títulos da dívida pública num montante de até 2,9 por cento do PIB (ou seja, até a rolagem prevista dos respectivos títulos) e estima-se que 0,6 por cento seriam cobertos com outras operações de crédito, chega-se assim a uma situação inviável: uma fatia do conjunto dos orçamentos fiscal e da seguridade social, equivalente a 5 por cento do PIB, ficaria sem financiamento. É evidente que a regra do Plano Verão terá que ser revogada.

Formalmente, as soluções possíveis envolveram: corte de gastos, aumento de tributos ou contribuições, maior emissão de títulos, venda de patrimônio público.

O primeiro caminho, se exclusivo e em princípio, não daria grandes resultados, embora o maior esforço devesse ser feito nesse sentido. Cabe considerar que:

  1. já transcorreu metade do ano;

  2. as despesas com recursos vinculados a receitas não podem ser reduzidas, ou, se o forem, não “liberam” os recursos para outras despesas: equivalem, na lei orçamentária, a 7,8 por cento do PIB e a 27 por cento das despesas totais;

  3. os serviços da dívida e as transferências constitucionais a Estados e Municípios não podem ser cortadas e equivalem a 8,6 por cento do PIB e 32 por cento das despesas totais;

  4. os cortes possíveis nos gastos com pessoal e encargos sociais são limitados, pois os proventos de inativos e pensionistas não podem ser suspensos e grande parte dos assalariados do governo é estável. Mesmo que fossem reduzidos substancialmente, por exemplo em 20 por cento (o que seria inexequível, embora desejável), o resultado, em face da dificuldade para obtê-lo, seria modesto (não chegando a 1 por cento do PIB);

  5. a descentralização de encargos a Estados e Municípios já não é possível em 1989 e mesmo em 1990 encontrará sua principal e óbvia barreira tanto nos governadores e prefeitos como no próprio Congresso, especialmente suscetível às demandas locais e estaduais. Outro fator que a dificulta é a estagnação ou queda, no que vai do ano, das transferências do FPE e do FPM em virtude da redução de arrecadação do IR e do IPI e apesar dos aumentos significativos de alíquotas determinados pela nova constituição;

  6. a contração das renúncias ou incentivos fiscais (os “gastos tributários”) também encontrará resistências, embora possa contribuir para aliviar o quadro fiscal.

Restariam as sempre candidatas ao sacrifício dos cortes: as “outras” despesas correntes e de capital não custeadas por recursos carimbados. Dentre estas, destacam-se investimentos críticos destinados à preservação do capital social básico. Mas todas as outras despesas, no orçamento inicial, equivalem a apenas 1,5 por cento do PIB e mesmo que, por absurdo, fossem diminuídas à metade, o constrangimento orçamentário permaneceria.

O caminho do aumento de tributos e contribuições é penoso, pois: a) o Legislativo tende a resistir à sua aprovação; b) conflita com a maior estabilidade dos preços; c) pode ser corroído, no seu efeito real, pela aceleração da inflação e pelo aumento da sonegação; d) uma parte do aumento da receita que proporciona não fica disponível para financiar o déficit, pois é transferido a Estado e Municípios ou é vinculado. Assim, por exemplo, se aumentar a receita do IPI em 100 cruzados, 49 irão para Estados e Municípios e 9 cruzados irão obrigatoriamente para o Ensino.

Em tese, o caminho da colocação de títulos seria o mais fácil. Cabe, porém, indagar, e deixando de lado o aumento das despesas com juros a curtíssimo prazo, até que ponto o mercado estará disposto a absorver o equivalente a vários pontos percentuais do PIB em títulos públicos? Se não estiver, surgirá então outro caminho que ninguém quer e que - parafraseando Antonio Machado - acabará fazendo-se ao andar: a monetização do déficit, ou seja, o descontrole inflacionário.

Por último, no tocante à venda de patrimônio público - ou “privatização” - é necessário ter presente que: a) do mesmo modo que em relação aos cortes de gastos e aumentos de tributos, a atitude do Congresso é de resistência; b) os resultados financeiros possíveis, quando confrontados com a magnitude dos desequilíbrios a curto prazo, são moderados. Estas não são razões, evidentemente, para postergar o processo de privatização de algumas áreas do setor empresarial do Estado, nem para inibir tentativas de captação de financiamento privado para tal setor, na linha, por exemplo, do que é sugerido no Substitutivo apresentado.

PROJEÇÃO FISCAL PARA 1990

Admitindo que o país consiga fazer a travessia da crise fiscal neste ano - hipótese otimista - como estaremos em 1990?

Sob suposições semelhantes às de 1989 e, obviamente em caráter precário e preliminar, estima-se que o desequilíbrio primário do orçamento global (inclusive entidades e fundos) atingirá cerca de 11 por cento do PIB, contra 8,5 por cento em 1989. Por quê? Porque a projeção da receita líquida saltaria da casa de 19 para 21 por cento do PIB, mas a despesa total (inclusive serviço da dívida) pularia de algo em torno de 28 para 32 por cento do PIB, em face da projeção dos benefícios previdenciários, estimada em 7 por cento do PIB (percentual que, espera-se, esteja superestimado).

O balanço sobre as alternativas para frear a deterioração fiscal, feito na seção anterior, evidencia com clareza os estreitos limites do possível, não só em 1989 como também em 1990. E preciso obter avanços simultâneos nas quatro frentes citadas: aumento de arrecadação, cortes de gastos, colocação de títulos e privatização acompanhada de captação de recursos privados para o setor empresarial do Estado.

E preciso deixar claro, porém, que tais medidas se destinam muito mais a impedir que a situação fiscal escape de qualquer controle do que a reequilibrar as contas governamentais. Esse reequilíbrio depende, antes de tudo, de um declínio substancial da inflação, fator poderoso para elevar a receita tributária real e normalizar a colocação e o giro da dívida pública.

Para que esse declínio aconteça, a austeridade fiscal, implícita na ofensiva nas quatro frentes, é tão-somente um dos ingredientes necessários. Os outros estão situados em esferas diferentes da economia, bem como na política e no comportamento social. Se todos esses ingredientes não forem urgentemente mobilizados, a quebra da inflação poderá ocorrer mediante a perversa autofagia da hiperinflação que extermina a espiral inflacionária num esquema semelhante ao da autodestruição de uma célula pelas suas próprias enzimas hidrolizantes. Isto, com um elevadíssimo custo em termos de queda de produção dos salários e do emprego, dilacerando o tecido social e produzindo consequências políticas certamente adversas para a democracia.

  • 1
    JEL Classification: H61; E62.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1989
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br