Acessibilidade / Reportar erro

Plano Collor* * Gazeta Mercantil.

RESUMO

No dia 16 de março de 1990, um dia após sua posse, o Presidente da República, Fernando Collor de Mello, secundado pela Ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, e o Presidente do Banco Central, lbrahim Éris, apresentou ao país um novo plano de estabilização, que vem sendo chamado de Plano Collor. O Plano é constituído de um grande número de medidas provisórias e outros documentos legais. Publicamos neste Documento o resumo do Plano a partir da matéria publicada na Gazeta Mercantil, a Medida Provisória n. 168, principal instrumento do Plano, e os principais artigos publicados na imprensa brasileira nas três semanas seguintes à sua implementação.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; estabilização

ABSTRACT

On March 16, 1990, the day after his inauguration, the President of the Republic, Fernando Collor de Mello, supported by the Minister of Economy, Zélia Cardoso de Mello, and the President of the Central Bank, Ibrahim Éris, presented the country with a new stabilization plan, which has been called the Collor Plan. The Plan consists of a large number of provisional measures and other legal documents. We publish in this Document the summary of the Plan based on the article published in Gazeta Mercantil, Provisional Measure n. 168, the Plan’s main instrument, and the main articles published in the Brazilian press in the three weeks following its implementation.

KEYWORDS:
Inflation; stabilization

RESUMO DO PLANO

Os três “pontos fundamentais” do programa, segundo a ministra, são o ajuste fiscal para obter um superávit operacional de 2% do PIB, a reforma monetária para o Estado recuperar o controle da moeda e a política de rendas, com a prefixação e desindexação da economia. Juntamente com o plano de estabilização, adotou-se um conjunto de medidas para a liberalização do comércio exterior e. abertura à competição internacional da indústria brasileira.

O ajuste fiscal compõe-se de medidas tributárias, da reforma patrimonial (com a venda de ativos da União e programa de privatização) e da reforma administrativa, com reorganização do Estado e cortes de gastos da máquina governamental, resultando no conjunto no esforço orçamentário equivalente a cerca de 10% do PIB.

  • As MEDIDAS TRIBUTÁRIAS incluem a redução dos prazos de recolhimento e indexação de tributos, ampliação da tributação ou aumento de alíquotas (como no caso da renda agrícola e taxação de exportações) e suspensão de todos os incentivos, incluindo os do Norte e Nordeste, com exceção daqueles que a Constituição garante para a Zona Franca de Manaus.

“Todo o ajuste está sendo feito dentro da Constituição, sem alteração do princípio da anualidade fiscal”, segundo a ministra, informando que somente essas medidas resultarão num ganho orçamentário correspondente a 3% do PIB.

Além disso haverá uma “grande tributação sobre as operações financeiras”, com a aplicação das alíquotas do IOF sobre operações em bolsa, compra e venda de ações, ouro e títulos em geral, além da própria caderneta de poupança, resultando em outros 3% do PIB.

  • A REFORMA PATRIMONIAL, incluindo o produto das vendas de empresas ou pulverização de ações, deverá resultar em mais 2% do PIB, exceto a parcela que o governo pretende obter com a colocação compulsória de Certificados de Privatização (CP) junto a instituições financeiras em geral, que renderá algo equivalente a 1,5% do PIB.

Os bancos, corretoras, distribuidoras, fundos de pensão e as próprias holdings das instituições financeiras serão obrigadas a comprar estes CP. “Esta fórmula destina-se a obrigar principalmente os bancos a comprar estatais privatizáveis, dentro de regras que serão estabelecidas por um conselho.”

O certificado será um papel inegociável, que renderá em princípio correção monetária plena mais juros de 6% ao ano. No primeiro leilão de estatais a ser promovido pelo BNDES a correção monetária do título será integral, devendo a partir de então cair um ponto percentual por mês de forma que dentro de 40 meses terão apenas 60% da correção.

“A moeda para a privatização será este CP, mas não apenas ele, já que estabeleceremos regras específicas, com faixas da operação que poderão ser pagas com esta ou aquela moeda” - explicou a ministra, anunciando que as regras impedirão que um banco compre toda uma estatal sozinho.

Como se espera uma grande procura pelas ações destas empresas privatizáveis, a serem trocadas pelos CP, os ativos das estatais serão valorizados, devolvendo ao patrimônio da União o valor atualmente bastante deprimido.

  • A REFORMA ADMINISTRATIVA, incluindo toda a reestrutura do Estado com cortes de despesas, deverá resultar numa economia da ordem de 0,5% do PIB.

“Mas de que valeria todo este ajuste fiscal se fôssemos continuar com as atuais características da moeda?” - raciocinou a ministra, durante o encontro mantido com editores dos meios de comunicação, no Palácio do Planalto, antes da entrevista coletiva que concederia no Ministério da Economia na parte da tarde.

“A existência de moeda e títulos na economia brasileira, estes últimos com característica de quase moeda, acaba impedindo a execução de uma política monetária eficaz, como mostraram os planos de estabilização mais recentes.”

  • A REFORMA MONETARIA idealizada pela equipe econômica destina-se exatamente a contornar essa dificuldade, substituindo o cruzado por uma nova moeda - o cruzeiro - com validade desde ontem e regras específicas de conversão que amarram, assim, a política de controle rigoroso da liquidez na economia.

PREÇOS E SALÁRIOS passam a ser convertidos ao par, na base de um cruzado novo por um cruzeiro. A moeda depositada nos bancos sob diversas formas de aplicação (ou seja, títulos) terá regras diferenciadas.

Os DEPÓSITOS DE POUPANÇA existentes até o fechamento das agências, desde a última quarta-feira, tanto de pessoas físicas quanto de empresas, poderão ser sacados uma única vez até o limite de Cz$ 50 mil, convertidos de cruzados novos ao par.

A mesma regra vale para os depósitos a vista (contas-correntes), que também estarão sujeitos a esse valor máximo e único. O restante dos depósitos de poupança e depósitos a vista ficarão em cruzados novos, bloqueados em conta que será aberta pela instituição junto ao Banco Central, rendendo correção monetária correspondente à inflação plena mais juros de 6% ao ano, durante 18 meses.

Ao final desse período, serão convertidos ao par para cruzeiros, podendo ser movimentados livremente.

Para os depósitos em contas remuneradas, fundos de curto prazo, aplicações no overnight e demais operações compromissadas, a nova legislação enviada ao Congresso, sob a forma de medidas provisórias que já estão em vigor, permite o saque único de Cr$ 25 mil ou 20% do total, valendo o maior valor, também convertidos ao par.

“Durante os dezoito meses em que essa massa de dinheiro estará depositada no Banco Central, sem qualquer confisco ou calote, o Estado recuperará seu poder sobre a moeda” - prevê a ministra, explicando que ao longo desse período o BC fará “leilões de remonetização “ para quem precisar de mais cruzeiros.

A lógica por trás dessa medida, em sua opinião, é que a parcela dessa massa de recursos que realmente for “poupança” no sentido amplo continuará no Banco Central, “já que o plano vai dar certo”.

A parcela destes recursos que corresponde a comprometimentos do dia a dia das empresas será retirada sob a forma dos 20%. tendo como pressuposto a ideia de que as aplicações apresentam volume correspondente ao porte dos agentes econômicos.

Nos leilões de cruzeiros, para que o mercado estabeleça a cotação a ser utilizada na conversão de cruzados novos para cruzeiros, o nível do deságio será tanto menor quanto mais os agentes econômicos apostarem no sucesso do plano de estabilização, com a queda da inflação e a volta do crescimento econômico. “Se não acreditarem no plano e quiserem livrar-se da moeda velha depositada no BC, haverá maior procura por cruzeiros e portanto maior nível de deságio” - diz a ministra.

No caso de dívidas e contratos, o BC vai transferir diretamente a titularidade das contas em cruzados novos, do devedor para o credor - como é o caso, por exemplo, das prestações da casa própria através da Caixa Econômica Federal.

Os pagamentos de dívidas contratadas até o último dia 15 serão debitados das contas dos devedores e creditados em cruzados novos na outra conta, cujo novo saldo será também objeto das mesmas regras de saque para depósitos a vista, segundo o economista Eduardo Teixeira, secretário executivo do Ministério da Economia. Não haverá nenhuma tabela de conversão e a transferência de titularidade dependerá de comprovação e da natureza da dívida.

“O ajuste de 10% do PIB é profundo e inédito, a política monetária tem características bastante duras e a alternativa para esse programa de estabilização seria a hiperinflação com todas as suas consequências sociais altamente negativas” - disse Zélia Cardoso de Mello, reconhecendo que qualquer programa teria de ter esse tipo de âncora fiscal e monetária muito forte, que sozinha resultaria em recessão.

  • A política de rendas baseada na prefixação e desindexação da economia “destina-se a evitar que isso ocorra”, informou a ministra, confirmando que estava promovendo também o realinhamento de preços públicos e administrados, bem como de tarifas.

“Haverá uma trégua para realinhamento dos preços relativos, entre o último dia 15 e a mesma data do próximo mês, com um controle de preços bastante estreito que não é congelamento, já que haverá reajustes”, explicou, acrescentando que “a proposta inteira é para eliminar a necessidade de vetor”.

Até 1.º de abril mantém-se a política salarial em vigor, com os salários referentes ao mês de março incorporando integralmente a inflação de fevereiro. A partir daí trabalha-se com a prefixação da inflação, com um piso para salários e um teto para reajuste de preços, a ser anunciado pela primeira vez no próximo dia 15, mas valendo para o período de 1º. a 30 de abril.

O esquema todo estará baseado num “orçamento de inflação” que será feito pelo Ministério da Economia, a partir do qual serão fixados os pisos salariais e tetos de preços que poderão variar automaticamente ao longo do mês, uma única vez.

O piso salarial será sempre maior do que a meta de inflação a ser anunciada também no dia 15 de cada mês, segundo Eduardo Modiano. O teto para aumento automático máximo de preços, a ser anunciado a cada dia 1.º a partir de maio, refletirá a média das variações de ponta a ponta, ocorrida no período (e não mais comparada com o mês anterior).

“Isso permitirá que os salários continuem correndo sempre um pouco acima da inflação”, disse o novo presidente do BNDES, que participou da formulação de toda a política de rendas, para a desindexação gradual da economia.

Os aumentos de salários acima do piso serão permitidos desde que livremente negociados e não poderão ser repassados aos preços. Serão mantidos o índice de Preços ao Consumidor (IPC) e o índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC).

Mas o IBGE será chamado a produzir um índice de orientação que não será o novo deflator oficial, medindo as variações de preços de ponta a ponta, e não mais média comparada com média anterior, ao longo do período compreendido entre os dias 1.º e 30 (ou 31) de cada mês.

No caso do salário-mínimo, ao final de cada trimestre - contado a partir deste próximo dia l.º -, será dado um reajuste automático para compensar a eventual diferença entre os pisos mensais anteriores e a variação dos preços de uma cesta de produtos básicos, acrescido de 5% a título de aumento real.

Todos os demais contratos firmados a partir do último dia 15 levarão em consideração a prefixação da inflação esperada no futuro e não mais os índices da inflação passada. A própria correção monetária expressa pela variação do Bônus do Tesouro Nacional (BTN) fiscal passa a correr de acordo com a inflação prefixada. Entre o último dia 15 e o próximo dia 1.º, o BTNf também correrá pela previsão de inflação, de acordo com sinalização a ser dada pelo BC na reabertura do mercado financeiro.

Como parte da reforma fiscal, o governo Collor acabou com os títulos ao portador, deixando uma porta de entrada para que seus titulares expliquem a origem do dinheiro ao transformá-los em títulos nominativos, quando for o caso.

Isso valerá para todos os títulos e ações, bem como para os cheques com valores acima do equivalente a 100 BTNs. Os cheques emitidos antes do dia 15 serão depositados normalmente, entrando como cruzados novos nas contas sujeitas às regras de saque e conversão. Desde ontem só serão válidos os cheques expressos em cruzeiros, devendo naturalmente ter o fundo correspondente na nova moeda.

  • A política cambial se mantém praticamente a mesma, segundo o presidente do Banco Central, Ibrahim Eris, apenas com a diferença de que a taxa oficial não será fixada arbitrariamente, mas sim determinada pelo mercado formado por agentes já autorizados a operar com moeda estrangeira. “O BC fará um ‘go around’ diário de câmbio, determinando o preço das divisas pela oferta e demanda do mercado, dada a política de reservas cambiais.” Mantém-se o dólar-turismo inalterado, sendo que uma eventual uniformização das duas taxas será corroborada pela autoridade monetária.

“Não há perspectiva de explosão de taxa. pois o BC será atuante também no mercado de câmbio, como faz com o ouro. para manter o nível de reservas e evitar surtos de altos e baixos”, disse Eris.

  • A política industrial e de comércio exterior, segundo a ministra da Economia, corresponde ao conjunto de medidas dando o perfil da economia brasileira pretendida pelo governo Collor de Mello.

“São medidas na linha do programa de liberalização do comércio exterior e maior abertura da indústria brasileira à competição internacional” - disse, anunciando a eliminação de todas as isenções, o fim do sistema de anuência prévia para importações. a extinção do chamado Anexo C da Cacex e da exigência de programação anual para importações, além do fim das Zonas de Processamento de Exportação (ZPE).

Para compensar a meta de médio prazo de acabar com todas as barreiras não-tarifárias no comércio exterior, provavelmente a curto prazo será preciso promover o aumento de várias tarifas de importação. Como tem garantia constitucional por 25 anos, não haverá mudança nas regras da Zona Franca de Manaus.

MEDIDA PROVISÓRIA N. 168

Esta é a íntegra da medida provisória no. 168, de 15 de março de 1990, que institui o cruzeiro, dispõe sobre a liquidez dos ativos financeiros e dá outras providências:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, ao uso da atribuição que lhe confere o artigo 62 da Constituição, adota a seguinte Medida Provisória, com força de lei:

Art. 1.°. Passa a denominar-se cruzeiro a moeda nacional, configurando a unidade do sistema monetário brasileiro.

  • § 1.°. fica mantido o centavo para designar a centésima parte da nova moeda.

  • § 2.°. o cruzeiro corresponde a um cruzado novo.

  • § 3.º. as quantias em dinheiro serão escritas precedidas do símbolo Cr$.

Art. 2.°. O Banco Central do Brasil providenciará a aquisição de cédulas e moedas em cruzados novos, bem como fará imprimir as novas cédulas em cruzeiros, na quantidade indispensável à substituição do meio circulante.

  • § 1.º. as cédulas e moedas em cruzados novos circularão simultaneamente ao cruzeiro, de acordo com a paridade estabelecida no parágrafo segundo do artigo primeiro.

  • § 2.º. as cédulas e moedas em cruzados novos perderão poder liberatório e não mais terão curso legal nos prazos estabelecidos pelo Banco Central do Brasil.

  • § 3.º. As cédulas e moedas em cruzeiro emitidas anteriormente à vigência desta Medida Provisória perdem, nesta data, o valor liberatório e não mais terão curso legal.

Art. 3.º. Serão impressos em cruzeiros, doravante, todos os valores constantes de demonstrações contábeis e financeiras, balanços, cheques, títulos, preços, precatórios, contratos e todas as expressões pecuniárias que se possam traduzir em moeda nacional.

Art. 4.º. Os cheques emitidos em cruzados novos e ainda não depositados junto ao sistema bancário serão aceitos somente para efeito de compensação e crédito a favor da conta do detentor do cheque, em cruzados novos, até a data a ser fixada pelo Banco Central do Brasil.

Parágrafo único. Nos casos em que o detentor do cheque não for titular de conta bancária, o Banco Central estabelecerá limite em cruzados novos, que poderá ser sacado imediatamente em cruzeiros.

Art. 5.º. Os saldos dos depósitos a vista serão convertidos em cruzeiros, segundo a paridade estabelecida no parágrafo 2.° do artigo 1.°, obedecido o limite de NCz$ 50.000,00.

  • § 1.°. As quantias que excederem o limite fixado ao caput deste artigo serão convertidas, a partir de 16 de setembro de 1991, em doze parcelas mensais iguais e sucessivas.

  • § 2.°. As quantias mencionadas ao parágrafo anterior serão atualizadas monetariamente pela variação do BTN Fiscal. Verificada entre o dia 19 de março de 1990 e a data da conversão, acrescida de juros equivalentes a 6% (seis por cento) ao ano ou fração “pro rata”.

  • § 3.°. As reservas compulsórias em espécie sobre depósitos a vista, mantidas pelo sistema bancário junto ao Banco Central do Brasil serão convertidas e ajustadas conforme regulamentação a ser baixada pelo Banco Central do Brasil.

Art. 6.°. Os saldos das cadernetas de poupança serão convertidos em cruzeiros na data do próximo crédito de rendimento. Segundo a paridade estabelecida no parágrafo 2.° do artigo l.º, observado o limite de NCz$ 50.000,00 (cinquenta mil cruzados novos).

  • § 1.°. As quantias que excederem o limite fixado no caput deste artigo serão convertidas a partir de 16 de setembro de 1991 em doze parcelas mensais iguais e sucessivas.

  • § 2.°. As quantias mencionadas no parágrafo anterior serão atualizadas monetariamente pela variação do BTN Fiscal, verificado entre a data do próximo crédito de rendimento e a data de conversão, acrescidas de juros equivalente a 6% (seis por cento) ao ano ou fração “pro rata”.

  • § 3.°. Os depósitos compulsórios e voluntários mantidos junto ao Banco Central do Brasil, com recursos originários da captação de cadernetas de poupança, serão convertidos e ajustados conforme regulamentação a ser baixada pelo Banco Central do Brasil.

Art. 7.°. Os depósitos a prazo fixo, com ou sem emissão de certificado, as letras de câmbio, os depósitos interfinanceiros, as debêntures e os demais ativos financeiros bem como os recursos captados pelas instituições financeiras por meio de operações compromissadas serão convertidos em cruzeiros, segundo a paridade estabelecida no parágrafo 2.° do artigo 1.º, observado a seguinte:

I. para as operações compromissadas, na data de vencimento do prazo original da aplicação, serão convertidos NCz$ 25.000,00 (vinte e cinco mil cruzados novos) ou 20% (vinte por cento) do valor de resgate da operação, prevalecendo o que for maior;

II. para os demais ativos e aplicações, excluídos os depósitos interfinanceiros, serão convertidos, na data de vencimento do prazo original dos títulos, 20% (vinte por cento) do valor de resgate.

  • § 1.°. As quantias que excederem os limites fixados nos itens I e II deste artigo serão convertidas, a partir de 16 de setembro de 1991, em doze parcelas mensais iguais e sucessivas.

  • § 2.°. As quantias mencionadas no parágrafo anterior serão atualizadas monetariamente pela variação do BTN Fiscal, verificada entre a data de vencimento do prazo original do título e a data da conversão, acrescida de juros equivalentes a 6% (seis por cento) ao ano ou fração “pro rata”.

  • § 3.°. Os títulos mencionados no caput deste artigo cujas datas de vencimento sejam posteriores ao dia 16 de setembro de 1991 serão convertidos em cruzeiros, integralmente na data de seus vencimentos.

Art. 8º. Para efeito do cálculo dos limites de conversão estabelecidos nos artigos 5.º, 6.º e 7.º, considerar-se-á o total das conversões efetuadas em nome de um único titular em uma mesma instituição financeira.

Art. 9.º. Serão transferidos ao Banco Central do Brasil os saldos em cruzados novos não convertidos na forma dos artigos 5.º, 6.º e 7.º, que serão mantidos em contas individualizadas em nome da instituição financeira depositante.

  • § 1.º. As instituições financeiras deverão manter cadastro dos ativos financeiros denominados em cruzados novos, individualizados em nome do titular de cada operação, o qual deverá ser exibido à fiscalização do Banco Central do Brasil, sempre que exigido.

  • § 2.º. Quando a transferência de que trata o artigo imediatamente anterior ocorrer em títulos públicos, providenciará o Banco Central do Brasil a sua respectiva troca por novas obrigações emitidas pelo Tesouro Nacional ou pelos Estados e Municípios, se aplicável. Com prazo e rendimento iguais aos da conta criada pelo Banco Central do Brasil.

  • § 3.º. No caso de operações compromissadas com títulos públicos, estes serão transferidos ao Banco Central do Brasil, devendo seus emissores providenciar sua substituição por novo título em cruzados novos com valor, prazo e rendimentos idênticos aos dos depósitos originários de operações compromissadas.

Art. 10. As quotas dos fundos de renda fixa e dos fundos de curto prazo serão convertidas em cruzeiro na forma do art. 7.º, observado que o percentual de conversão poderá ser inferior ao estabelecido no art. 7.º se o fundo não dispuser de liquidez suficiente em cruzados novos.

Art. 11. Os recursos, em cruzados novos dos Tesouros Federal, estaduais e Municipais, bem como os da Previdência Social, serão convertidos, integralmente, no vencimento das aplicações, não se lhes aplicando o disposto nos artigos 5.º, 6.º e 7.º desta Medida Provisória.

Art. 12. Pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, a contar da publicação desta Medida Provisória, as contas e depósitos denominados em cruzados novos são passíveis de transferência de titularidade, observadas as condições especificadas nos artigos 5.º, 6.º e 7.º, para fins de liquidação de dívidas e operações financeiras comprovadamente contratadas antes de 15 de março de 1990.

Parágrafo único. O Banco Central do Brasil estipulará a documentação necessária para reconhecimento da obrigação, definindo os instrumentos e mecanismos de transferência da titularidade dos depósitos.

Art. 13. O pagamento de taxas, impostos, contribuições e obrigações previdenciárias resulta na autorização imediata e automática para se promover a conversão de cruzados novos em cruzeiros de valor equivalente ao crédito do ente governamental. na respectiva data de vencimento da obrigação, nos próximos 60 dias.

Art. 14. Os prazos mencionados nos artigos 12 e 13 poderão ser aumentados pelo Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento em função de necessidades das políticas monetária e fiscal.

Art. 15. O Banco Central do Brasil definirá normas para o fechamento do balanço patrimonial das instituições financeiras denominado em cruzados novos, em 15 de março de 1990, bem como para a abertura de novos balanços patrimoniais, denominados em cruzeiros, a partir desta data.

Art. 16. O Banco Central do Brasil poderá autorizar a realização de depósitos interfinanceiros, em cruzado novo, nas condições que estabelecer.

Art. 17. O Banco Central do Brasil utilizará os recursos em cruzados novos nele depositados para fornecer empréstimos para financiamento das operações ativas das instituições financeiras contratadas em cruzados novos, registradas no balanço patrimonial referido no artigo anterior.

Parágrafo único. As taxas de juros e os prazos dos empréstimos por parte do Banco Central do Brasil serão compatíveis com aqueles constantes das operações ativas mencionadas neste artigo.

Art. 18. O ministro da Economia, Fazenda e Planejamento poderá alterar os prazos e limites estabelecidos nos artigos 5.º, 6.º e 7 .º ou autorizar leilões de conversão antecipada de direitos e cruzados novos detidos por parte do público, em função dos objetivos da política monetária e da necessidade de liquidez da economia.

Art. 19. O Banco Central do Brasil submeterá à aprovação do ministro da Economia, Fazenda e Planejamento, no prazo de trinta dias a contar da publicação desta medida, metas trimestrais de expansão monetária em cruzeiros, para os próximos doze meses, explicitando meios de instrumentos de viabilização destas metas, inclusive através de leilões de conversão antecipada de cruzados novos em cruzeiros.

Art. 20. O Banco Central do Brasil, no uso das atribuições estabelecidas pela Lei n. 4.595 e legislação complementar, expedirá regras destinadas a adaptar as normas disciplinadoras do mercado financeiro de capitais, bem como do Sistema Financeiro da Habitação, se disposto nesta Medida Provisória.

Art. 21. Na forma de regulamentação a ser baixada pelo ministro da Economia, Fazenda e Planejamento poderão ser admitidas conversões em cruzeiros de recursos em cruzados novos em montantes e percentuais distintos aos estabelecidos nesta Medida Provisória, dado que o beneficiário seja pessoa física que perceba exclusivamente rendimentos provenientes de pensões e aposentadorias.

Parágrafo único. O ministro da Economia, Fazenda e Planejamento fixará limite, para cada beneficiário, das conversões estudadas de acordo com o disposto neste artigo.

Art. 22. O valor nominal do Bônus do Tesouro Nacional - BTN será atualizado cada mês por índice calculado com a mesma metodologia utilizada para o índice referido ao artigo 2.º, parágrafo 5.º, da Medida Provisória n. 154, nesta data, refletindo a variação de preço entre o dia 15 daquele mês e o dia 15 do mês anterior.

Parágrafo único. Excepcionalmente, o valor nominal do BTN no mês de abril de 1990 será igual ao valor do BTN fiscal no dia 1.º de abril de 1990.

Art. 23. O valor diário do BTN fiscal será divulgado pela Secretaria da Receita Federal, projetando a evolução mensal da taxa de inflação.

Art. 24. Esta medida entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 25. Revogam-se as disposições em contrário.

O ORTODOXO E O HETERODOXO NO PLANO COLLOR1 1 Folha de S. Paulo, 18.3.90. 120

MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE

O Plano Collor ataca de frente o problema inflacionário. Não havia alternativa. O Brasil fora lançado na hiperinflação entre os dias 12 e 13 de março, quando se iniciou a corrida bancária. A economia estava totalmente tomada pela doença inflacionária. Não havia mais como evitar formas sistêmicas de tratamento, as únicas capazes de atacar todas as células doentes do organismo econômico. Amputações, sedativos, anti-inflamatórios e outras formas de terapia heterodoxa têm efetividade apenas como coadjuvantes. A cura virá apenas no momento em que os remédios sejam injetados na corrente sanguínea da economia. Somente um tratamento convencional é capaz de fazer isso com efetividade. Um forte aperto fiscal e monetário, seguido de amplas e profundas reformas estruturais no país.

O Plano Collor tem o mérito de admitir esta verdade elementar. Desmistifica as falsas promessas dos planos heterodoxos, que juram realizar o controle inflacionário sem custos, sem recessão e sem perda de emprego e de renda.

Porém, o Plano Collor adota duas medidas excepcionais. Impõe severas restrições à movimentação de recursos financeiros e adota um congelamento de preços, seguido de prefixação. Por que foram adotadas? Não bastaria uma terapia ortodoxa fortemente recessiva?

A resposta, ao mesmo tempo, é sim e não. Os dois instrumentos clássicos de estabilização seriam capazes de reverter a inflação em economias com características tradicionais. No Brasil, a dificuldade se encontra na identidade entre moeda e títulos públicos. Os economistas sabem como conter a oferta de moeda convencional. Elevam-se os juros, aumentam-se os depósitos compulsórios das instituições financeiras, corta-se o crédito. Aqui, contudo, estas medidas apenas tocariam em uma parcela muito pequena dos ativos monetários, pois não afetariam a moeda indexada. Além disso, como o governo é o maior devedor líquido da economia, a elevação dos juros inviabilizaria o ajuste fiscal, como ficou patentemente demonstrado no ano passado. Fica explicada, portanto, a necessidade das restrições impostas à conversão do cruzado para o cruzeiro, como forma de reduzir a liquidez e permitir o equilíbrio fiscal.

Mas há uma outra explicação, ainda mais importante. Trata-se da determinação explicitada várias vezes pelo presidente Collor de que os custos do plano recairiam sobre as camadas de renda mais elevada. De fato, isto foi feito com maestria. Nota-se, portanto, que há razões para o empréstimo compulsório: a primeira de ordem técnica e a segunda de ordem política.

Urge afirmar, contudo, que do ponto de vista conjuntural, os custos da estabilização também serão cobrados dos trabalhadores. Haverá recessão e perda de emprego. Apenas em um primeiro momento a promessa de concentrar os custos da estabilização nos ricos será cumprida. Além disso, o empréstimo compulsório terá um alto custo para toda a sociedade, pois abala a credibilidade das instituições, exacerba o intervencionismo, contraria a ordem jurídica e poderá destruir o mercado de títulos públicos, um importante instrumento de financiamento do Estado. Os mesmos resultados, sem estes inconvenientes, poderiam ter sido obtidos mediante o uso de instrumentos tributários.

A explicação para o congelamento inicial de preços também está ligada à promessa do presidente de não prejudicar o assalariado. A manutenção da política salarial no mês de março - diga-se que qualquer alteração seria recebida com enorme desconfiança pelas lideranças trabalhistas - apenas poderá recuperar o poder aquisitivo do assalariado se houver um congelamento de preços. Os salários terão ganhos nas próximas semanas, embora a massa salarial deva cair logo em seguida. Isto implica dizer que o assalariado capaz de manter seu emprego terá ganhos, enquanto aquele que for demitido sofrerá a mais absoluta perda - a de seu emprego. Neste último caso, resta verificar como o governo pretende assistir a esta parcela da população.

A prefixação é imposta como uma forma de limitar os ganhos salariais e também como forma de acomodar os reajustes nos preços públicos. A regra de livre negociação para repor as diferenças entre a inflação prevista e a realizada não favorecerá o trabalhador, pois a economia estará imersa em forte desaquecimento.

Em conclusão, o plano é clássico em sua essência. As medidas mais heterodoxas são fundamentalmente maneiras engenhosas de distribuir perdas de acordo com as promessas políticas do presidente.

O PLANO É MELHOR, O GOVERNO TALVEZ2 2 Folha de S.Paulo, 18/3/1990.

ROBERTO MACEDO3 3 Roberto Macedo, economista, diretor da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP, presidente da Ordem dos Economistas de São Paulo e membro do Conselho Editorial da Folha.

Pelo seu alcance, profundidade e coerência interna, o plano de estabilização anunciado na sexta-feira é o melhor que já vi formulado no Brasil. Não fica na simples anestesia do congelamento: desce à cirurgia do ajuste fiscal e do aperto da liquidez. De passagem, alivia o problema da dívida interna. Não faz demagogia com os salários, que também pagam a conta. São muito poucos os que desta vez ficaram de fora do acerto, como é o caso das mordomias do Legislativo. Seria provocação demais se Collor sugerisse alguma coisa nessa área, mas, além de analisar o pacote, o Congresso bem faria se, entre outras medidas, descarrilhasse velhos “trens da alegria” e liquidasse a acintosa “previdência parlamentar”.

Para o meu gosto, o plano ainda está desequilibrado, ao exigir mais da sociedade do que do governo, já que os cortes que saíram nele mesmo ainda são miudezas que precisam ser ampliadas. Faltou também o lado social, o que não escaparia a um programa que muitos estão afirmando ser também do PSDB. Se vier a recessão e o desemprego, como fica a coisa?

O plano é muito melhor, mas isso está longe de assegurar o seu sucesso. Será preciso que melhore também o governo, nos seus três níveis: Executivo, Legislativo e Judiciário. O Executivo é novo, mas precisa provar que é bom. O presidente pode ser bom de palanque e de declato, tem um bom visual (exceto o prendedor de gravata), mas gerir o governo é outra coisa. Seu ministério tem craques, mas alguns estão na posição errada. Outros parecem aqueles jogadores locais, às vezes indicados pelo prefeito, que completam os reservas de uma seleção de 18 jogadores quando esta se refugia numa estância hidromineral para treinar.

Logo que ganhou a eleição, perdeu tempo com a viagem-turismo, seguida da viagem-show. Esta ainda teve alguma utilidade, mas se voltar de novo seu tratamento vai depender do serviço que mostrar daqui para a frente, aqui dentro. Qualquer gerente de banco recebe bem o diretor de uma empresa concordatária sob nova direção, na esperança de que o visitante vá colocar a casa em ordem. Na segunda visita, será preciso levar algo concreto. Por isso mesmo, deveria ter deixado a Zélia aqui, com sua situação já definida, para cuidar do plano e de sua equipe. Na véspera da posse, ainda encontrei economistas angustiados com convites de última hora para posições importantes e para tocar um plano que não conhecem, além de indecisos na troca de beijinhos com a ministra.

O plano é bom, mas já enfrenta problemas de marketing e de implementação. O enxugamento de liquidez é exagerado, peca por não ter regras claras e por deixar todo mundo em pânico. Há dinheiro no over, na poupança e outros ativos que é simplesmente capital de giro. Pessoas, empresas e instituições de todo o tipo têm ali o dinheiro de folhas de pagamento e para aquisição de insumos produtivos. Ficar com 20% ou 50 “paus” (quando o mil vira “pau”, é hora de reforma monetária), deixa todo o mundo pendurado na brocha. O leilão de cruzados pode ser bonito como tese na USP, mas, até que se defina o primeiro deles, todos estão achando que só podem contar com o dinheiro liberado na segunda-feira, e daí vem o pânico que pode levar até aos saques do que sobrou.

É claro que o governo não precisa usar a expressão “calote”, embora nem o José Eduardo, do Bamerindus, com quem divido esta página, se incomode muito com a coisa. Mas essa do leilão já passa das preliminares. Ou se faz logo um leilão fajuto na segunda-feira, como exceção de um feriado bancário que ainda não vejo como interromper, ou o governo diz logo quanto precisa de QRNs (Quotas de Reconstrução Nacional, um bom nome para a coisa) e define rapidamente o parâmetro fundamental sem o qual a economia não vai funcionar - a taxa de conversão de cruzados novos em cruzeiros - e com o qual pode quebrar, se passar do razoável. Insistir que não se vai tomar nada e que quem quiser pode deixar o dinheiro com juros e correção monetária por 18 meses, não dá para engolir para quem vê a coisa do lado de cá e tem compromissos a pagar. A coisa tem a voluntariedade de um boi que vai para o matadouro. Seria melhor responder assim: “Você chama de calote, eu chamo de QRN, o valor é tanto e estamos conversados”.

O mesmo vale para os salários. Espero que não recomece aquela arenga das perdas, com “grafiquinhos” e tudo o mais. Qualquer perda é também hipotética, pois deveria ser comparada com as perdas muito maiores que viriam da hiperinflação e, ainda, com os ganhos que poderão vir da estabilização. Se fosse possível medi-las, também deveriam ser convertidas em QRNs. Foi pura demagogia de palanque a promessa de preservar os salários no programa de estabilização. Se o leitor está perdido no cálculo das perdas, sugiro a seguinte saída: de onde você acha que vão sair 30 bilhões de dólares para transformar o déficit público em superávit, via impostos, “tarifaços” e outros quetais? Só das “elites”? Se eu não me engano, elite é também o nome de uma gafieira em Belo Horizonte. Em qualquer caso, tente também calcular os ganhos da estabilização e o que aconteceria na hiperinflação.

Vai ser mesmo uma pena se essa brilhante contribuição de acadêmicos se perder em academíces. Fora da universidade. suas ideias viraram um pacote de política econômica que é um purgante financeiro e que precisa ser vendido com a promessa de eficácia e bem-estar, já que o gosto e os efeitos são desagradáveis. Mas é purgante mesmo e não adianta dizer que é um refrigerante chique.

Para salvar a coisa, que se defina imediatamente o quanto de QRNs o governo precisa, sem o que tudo vai “mellar” junto à opinião pública e o Congresso vai picotar o pacote. Em qualquer caso, vai haver uma batalha ali dentro e outra na área do Judiciário, já que economista no governo acaba gerando muitos empregos para advogados.

Num sistema democrático, esses dois poderes também são relevantes dentro daquilo a que usualmente nos referimos como governo, mas que no Brasil, depois de tanto autoritarismo, usualmente é sinônimo de Executivo. Se o Congresso e o Judiciário não se compenetrarem de que o caminho da estabilização também passa por eles, o tal tiro não vai atingir o alvo. Coisas que o pacote tem de revolucionário, como a eliminação dos títulos ao portador e a tributação das rendas dos empresários agrícolas (estes não aguentarão, contudo, iniciar a comercialização da safra numa brutal crise de liquidez) e o ajuste das perdas salariais por livre negociação poderão sucumbir diante de interesses representados no Congresso ou das decisões da Justiça Trabalhista que abortam o processo de negociação.

É por tudo isso que vimos afirmando que, conquanto o pacote seja melhor que os anteriores, seu sucesso depende de uma substancial melhoria do governo, ou seja. daqueles que vão executá-lo, legislá-lo e garantir sua aplicação como instrumento jurídico.

AS ELITES PAGAM A CONTA4 4 Folha de S. Paulo, 19.3.90.

CARLOS EDUARDO DE FREITAS5 5 Carlos Eduardo de Freitas, economista, é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB) e foi diretor da área externa do Banco Central (1985-88).

Um só tiro e a inflação está morta. Morte instantânea, causada por asfixia, decorrente da absoluta falta de liquidez. Tinham razão as classes médias em recusar seu voto ao sr. Collor de Mello - ele era realmente o candidato dos pobres.

O conflito patrimonial em que se debatia a sociedade foi resolvido contra os credores do Estado, leia-se, os mais ricos. Se o governo mantiver uma estrita rigidez em torno dos princípios da reforma monetária, dos quais não pode se afastar um milímetro sequer, doa a quem doer, as chances são muito grandes de que, já no início de 91, a economia esteja crescendo a uma taxa anualizada de 5% a 7%, com estabilidade monetária. A confiança no futuro recuperada e o Brasil voltando a ser o grande polo de atração de investimentos privados.

Milagre? Não. Apenas um diagnóstico correto e a coragem para atacar o problema de frente. O país vinha sofrendo de uma doença cuja identificação e estudo datam de pelo menos quatro séculos no contexto disciplinar da economia política, qual seja: o excesso de moeda em circulação.

Paradoxalmente, contudo, nossos economistas da vertente chamada “monetarista” vinham se recusando a reconhecer o problema. Ou melhor. até o reconheciam de forma velada, mas evitavam sua explicitação, que conduziria, quase forçosamente, a uma solução antagônica aos interesses dos rentistas do Estado (aplicadores do over, depositantes de cadernetas de poupança etc.).

Segundo Alberto Alessina, há três maneiras de resolver problemas de grandes dívidas públicas: a hiperinflação, a recessão profunda via ajuste fiscal clássico e a renegociação (naturalmente não voluntária) dos termos da própria dívida.

Na primeira e na segunda soluções, a questão é resolvida contra os assalariados e os mais pobres. que pagam a conta à custa dos seus empregos e dos seus rendimentos. Na terceira, pagam-na os credores do Estado, as elites. Não há razão alguma para imaginar-se que a reforma monetária seja recessiva. Pelo contrário, ela é justamente a menos recessiva das três soluções possíveis. Ela não afeta os fluxos de renda dos agentes econômicos, mas sim seus patrimônios. É claro que há um efeito imediato de ajuste de despesas, em função da perda patrimonial. Os credores do Estado terão que se desfazer dos seus dólares, ações, terrenos na praia, trocar seus automóveis luxuosos por outros mais simples, liquidar estoques de mercadorias etc.

A consequência de curto prazo deverá ser uma queda dramática dos preços desses ativos e interrupções instantâneas da inflação. Possivelmente teremos até uma deflação. O controle de preços é quase redundante.

Porém. os fluxos de renda estão intactos - note-se que as medidas fiscais clássicas são muito mais de reordenamento e moralização que propriamente de aumento do ônus tributário sobre a sociedade. A propalada redução de dez pontos percentuais do PIB do déficit operacional é, na verdade, auxiliada em grande medida pela simples reformatação da dívida interna, a que se seguirá, evidentemente, a reestruturação efetiva da dívida externa.

Quais são os problemas a administrar? Em primeiro lugar, será fundamental não abrir exceção alguma nos princípios da reforma monetária, mesmo que alguns influentes empresários nacionais tenham que ir à falência.

Em segundo, manter a mais absoluta disciplina fiscal, porque não haverá como financiar quaisquer déficits governamentais. pelo menos num primeiro momento.

Em terceiro, gerenciar com habilidade e perícia a remonetização da economia. Se muito rápida, pode ressuscitar a inflação. Se muito vagarosa, pode, aí sim. mergulhar a economia em recessão.

Em quarto, como lembra o prof. Alvaro Zini, da USP, criar um novo título da dívida pública, com lastro em moedas fortes e, portanto, credibilidade. Aliás. a credibilidade do programa como um todo depende agora apenas de sua administração - o golpe inicial tem potência suficiente para convencer a sociedade de que foi definitivo. Logo, basta a sustentação do equilíbrio dos fluxos fiscais, o que não é muito difícil nas finanças públicas brasileiras, uma vez extirpado o tumor das dívidas. Aquele novo título acolheria as poupanças que se iriam constituindo ao longo dos próximos meses, porém. desta vez. poupanças genuínas.

Em quinto, alongar o perfil de pagamento após o congelamento de 18 meses - prazo muito curto, estabelecido talvez de forma algo apressada.

Finalmente, seria necessário atenção com a política salarial. A primeira impressão, paradoxal, é de que a nova regra pode forçar aumentos de salários reais imediatamente. o que é incompatível com a estabilidade monetária ao pós-operatório.

Em resumo, foi eliminada a riqueza financeira espúria, que não tinha condições de se materializar em bens e serviços reais e, portanto, pressionava os preços. Trata-se. na verdade, de começar tudo de novo, do princípio. Agora, contudo, com responsabilidade e austeridade na administração da moeda e do crédito público.

O ESTRANGULAMENTO DA LIQUIDEZ COMO EFEITO DO PLANO COLLOR6 6 Gazeta Mercantil, 27.3.90.

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA7 7 Ex-ministro da Fazenda.

O êxito do Plano Collor depende, a curto prazo, da correta administração da quantidade de moeda e dos salários; a médio prazo, do equilíbrio dos preços relativos e, no prazo máximo de um ano, da realização de um superávit fiscal. Ora, embora venha afirmando que este plano é economicamente coerente, estou convencido que o extraordinário aperto de liquidez a que ele levou a economia decorre de um erro conceitual no qual eu também incidi na minha primeira avaliação do plano. Este erro poderá levar a uma recessão muito maior do que a desejada por seus formuladores e, em decorrência, ao próprio fracasso do plano, na medida em que provoque a desconfiança generalizada dos agentes econômicos no governo e no sistema financeiro e afinal produza uma desorganização da economia ainda mais profunda do que aquela derivada das altíssimas taxas de inflação em que vivíamos.

O Plano Collor congelou cerca de 80 por cento dos ativos financeiros na forma de novos cruzados e deixou intocados entre 35 e 40 bilhões de cruzeiros, que correspondem a cerca de 9 por cento do PIB. Dado que em meados de 1986, depois de vários meses de estabilidade de preços, a remonetização da economia havia levado a quantidade de moeda (medida pelo somatório de dinheiro em poder do público e depósitos a vista - M1 na linguagem econômica) a aumentar para 8 por cento do PIB e, no final, a 10, os 9 por cento do Plano Collor seriam em volume de cruzeiros basicamente suficientes para garantir uma liquidez deliberadamente apertada da economia. Haveria inicialmente uma redução da velocidade da moeda. na medida em que os agentes econômicos tenderão a entesourar cruzeiros e porque os bancos terão uma certa dificuldade de reciclar os cruzeiros que sobrariam em alguns setores e faltariam em outros, mas logo a economia atingiria um equilíbrio moderadamente recessivo, conforme desejado.

A liquidez da economia é dada pela clássica equação de trocas, que afirma que a quantidade de moeda, M (ou. mais precisamente, M1), multiplicada pela sua velocidade-renda de circulação, V, é igual à renda real. Y. multiplicada pelo índice de. preços, p.

M V = Y p

Nesta equação M corresponde à oferta de moeda e Yp/V, à demanda de moeda ou à renda nominal. A liquidez será “folgada” ou “apertada” conforme, respectivamente, M tenda a ser maior do que Yp/V ou o inverso esteja ocorrendo em função da oferta e da procura dos agentes econômicos (no final, contabilmente, um termo da equação de trocas não pode ser maior ou menor do que o outro porque esta equação é uma identidade que parte da definição de V=Yp/M).

A hipótese subjacente ao Plano Collor é que os 35 bilhões de cruzeiros deixados em cruzeiros correspondem ao M1. Se no Plano Cruzado, no segundo semestre de 1986, um M1, ou seja, uma quantidade de moeda, de 8 a 10 por cento do PIB. proporcionou um nível folgado de liquidez, agora 9 por cento do PlB em cruzeiros seria uma quantidade de dinheiro que permitiria à economia funcionar com um certo aperto de liquidez, dada a redução prevista na velocidade de circulação da moeda.

Este raciocínio parece lógico, mas na verdade está profundamente equivocado. O aperto de liquidez atual não é moderado, mas enorme. muito maior do que o planejado, por duas razões. Em primeiro lugar, porque a comparação com o cruzado não é correta. Naquela época a economia funcionou com folga de liquidez com uma quantidade de moeda de 8 a 10 por cento do PIB, mas é preciso lembrar que nem todo o “overnight” foi monetizado. Este continuava a existir e a ser um ativo totalmente líquido à disposição dos agentes econômicos. Uma quantidade de moeda adequada, se os demais ativos financeiros estivessem aplicados principalmente em ativos de médio e longo prazos, como acontece nos países centrais, seria de cerca de 14 por cento do PIB e não 9. Estes 14 por cento são o que temos em média de M1 nos países capitalistas com moeda estável.

Em segundo lugar, não é verdade que o Plano Collor deixou uma quantidade de moeda, M1, de 9 por cento do PIB. Deixou cruzeiros neste valor. Mas uma parte desses cruzeiros será aplicada novamente no “overnight “ e em cadernetas de poupança e assim esterilizada (o mesmo ocorrerá com o entesouramento sob os colchões, mas este só poderá ser medido através da redução da velocidade da moeda). Quanto poderá ser o valor dessa esterilização? É difícil prever, mas suponhamos que se limite a 2 por cento do PIB, reduzindo a quantidade de moeda em cruzeiros para 7 por cento do PIB.

Fica, assim, claro o enorme aperto de liquidez que está sendo imposto à economia. A quantidade de moeda “normal” deveria ser algo próximo a 14 por cento do PIB e temos apenas 7 por cento.

Se esta análise é correta, parece urgente que haja uma forte injeção de cruzeiros na economia. Alguma coisa poderá vir das emendas que estão sendo discutidas no Congresso, mas o que o governo deveria decidir imediatamente, independentemente de qualquer emenda, é autorizar a transformação em cruzeiros das folhas de pagamento de março. Teme-se que o pagamento dos salários de março aumente excessivamente a liquidez. Este temor, entretanto, é infundado dada a falta objetiva de moeda existente na economia. Muitas empresas ficarão sem poder pagar os salários de março, se nada for feito além de limitados acenos com financiamentos.

Certamente há outras formas de aumentar a quantidade de moeda, mas esta parece ser a mais adequada porque atende a uma necessidade urgente, porque é administrativamente de fácil execução e porque corrigiria um pouco o excessivo aperto sobre as empresas de serviço, cujas contas a pagar liquidáveis em cruzados são geralmente pequenas e cujas folhas de pagamento são grandes em relação a seu capital e a sua receita. Com a liberação de cruzeiros para as folhas teríamos um aumento imediato de cruzeiros de no máximo 2,5 por cento do PIB, que daria à economia um fôlego para funcionar.

A liquidez continuaria apertada, como é desejável, mas não seria estrangulada, como acontece no momento.

A GRANDE DEPRESSÃO8 8 Folha de S. Paulo, 28.3.90.

ELIANA CARDOSO9 9 Eliana A. Cardoso, economista, é doutora pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts ("MIT") e professora da Universidade de Tufts, nos EUA.

A inflação acabou. Agora a depressão e autoritarismo econômico nos ameaçam. Medidas provisórias não criam emprego. Agora, só um aumento da liquidez pode evitar a depressão.

O coro dos economistas confirma que o novo Plano Collor é coerente, bem concebido e corajoso. O processo de consolidação e alongamento da dívida concebido pelo BC interrompeu a hiperinflação. O plano contém outros avanços importantes: estabelece que todos devem pagar impostos e que o controle da inflação só é possível com a conquista do controle monetário pelo BC; proíbe mordomias, desmobiliza o patrimônio público não-produtivo e privatiza tanto empresas estatais quanto privadas ao interromper subsídios e privilégios de diferentes setores.

Pena que a forma de implantação escolhida pelo presidente tenha sido o mecanismo de chantagem política em cima do Congresso Nacional, com o apoio opressor da televisão. A política da terra arrasada é uma velha estratégia militar. Dinamita-se a ponte, destroem-se as plantações, queimam-se os navios. Impedidos de desertar, os soldados se tornam reféns nas mãos de um Napoleão ou de um Cortez de ambição sem limites: é morrer ou morrer. Embora o combate à hiperinflação requeira medidas econômicas extremas, isto não significa que elas devam ser acompanhadas de agressões policiais, arbitrariedades, violências e terrorismo econômico, substituindo o caos da hiperinflação pela tirania do Estado Novo. Esperamos que instrumentos de indução e adesão via mercados venha a substituir o desvario inicial dos atuais mecanismos de coerção e intimidação.

O plano também pode - e deve - sofrer alterações. O aplauso à competência técnica da reforma monetária não deve esconder as graves ameaças recessivas de um arrocho de liquidez exacerbado. O nível de atividade na economia deve cair em 20% neste trimestre, colocando em ação uma espiral deflacionária quase impossível de interromper.

Nos últimos 20 anos, com o processo inflacionário, a economia se desmonetizou. A relação entre os meios de pagamento e o produto nacional caiu de 16% em 1970 para 2,5% em 1989. Na verdade, os demais agregados financeiros, como títulos federais e depósitos de poupança atingiram um nível de liquidez quase igual ao dos meios de pagamentos e a participação de todos os ativos financeiros no produto nacional se manteve aproximadamente em torno de 25%. O Banco Central calcula que a liquidez da economia com o plano Collor foi reduzida para 10% do PIB, isto é, menos da metade do que era anteriormente.

O primeiro cálculo que vem à cabeça das pessoas, e que o presidente explicou numa de suas entrevistas na televisão, é que um determinado montante de meios de pagamentos compra uma determinada quantidade de bens a um determinado preço.

Dividam-se esses meios de pagamento por dois. Se os preços não caem, a quantidade de produtos fica dividida por dois. É verdade que a velocidade de circulação da moeda também pode mudar. Quando a inflação aumenta, a velocidade cresce. Por exemplo, no Brasil, entre 1970 e 1989 a velocidade de circulação aumentou sete vezes. Quando a inflação desaparece, a velocidade de circulação da moeda diminui, ampliando os efeitos da redução do estoque de moeda. Na ausência de uma queda instantânea dos preços, a quantidade de produtos deve forçosamente diminuir. Quando existe inércia salarial, os preços tendem a cair lentamente, fazendo com que a economia entre numa espiral deflacionária onde a recessão inicial agrava-se cada vez mais.

Para se ter uma ideia do que representa a redução da liquidez na economia brasileira basta lembrar que, nos EUA, durante a grande depressão dos anos 30, a quantidade de moeda foi reduzida em aproximadamente 30%. A diferença é que no Brasil a redução foi maior e a grande depressão está sendo imposta por uma medida provisória.

Não existe ameaça presidencial que possa multiplicar meios de pagamentos minguados. Só a operação normal dos bancos pode, através de empréstimos, multiplicar a base monetária. Mas se o banco central restringe a liquidez elevando as taxas de juros, as operações bancárias se reduzem. A resposta lenta do BC pode representar a iliquidez, a quebra e o desemprego.

Para calcular o impacto recessivo do plano é preciso manter a cabeça fria e não confundir pagamentos de salários com estoque de moeda em circulação e não identificar salários com consumo. No curto prazo, a produção de bens é determinada pelo dispêndio que compreende tanto os gastos de consumo como os gastos para formação de capital. Grande parte do consumo é feito pela “elite”. Esta sofreu inegavelmente uma redução de sua riqueza e deverá tentar recompô-la, gastando menos e poupando mais, seja em dólares seja em outros ativos cuja confiança· o governo consiga manter. Isto significa que os gastos de consumo devem cair, mesmo depois que os bancos voltem a funcionar normalmente. Por outro lado, os deságios de 50% na compra de cruzados indexados para restituição em um ano e meio indicam que a taxa de juros real se situa acima de 60% ao ano. Poucas empresas têm taxas reais de lucro tão elevadas. Muitas irão à bancarrota, outras já interromperam qualquer forma de investimento em capital fixo. A redução nos gastos de consumo e em investimento terá que ser compensada por um aumento das exportações. para se evitar uma queda catastrófica do nível de produção.

Salários só podem ser pagos se o nível de produção se mantém. Se este se contrai, a folha de salários diminui, o consumo volta a se reduzir e a economia mergulha na depressão. Sem lucros e sem banqueiros, a economia para. Quando rico come mal, pobre morre de fome. A recessão coloca o peso dos ajustamentos nas camadas mais pobres, desfazendo a redistribuição inicial do Plano Collor.

É verdade que o confisco era inevitável. Se não viesse por decreto viria de forma mais dramática com a hiperinflação. O programa dá tempo para que a reforma fiscal, seu mais importante componente, se complete. A rejeição pura e simples do Plano Collor seria desastrosa. Isso não significa que qualquer correção de rumo seja maléfica. Pelo contrário, pelo menos uma correção é da maior urgência: o aumento de liquidez. É preciso evitar também que a taxa de câmbio se aprecie. A parte mais importante do programa é a reforma fiscal e deve ser mantida. Câmbio realista, austeridade fiscal e política monetária folgada são a chave do desenvolvimento.

A NOVA DÍVIDA “EXTERNA” DO PLANO COLLOR10 10 Folha de S.Paulo, 30/3/1990.

PAULO RABELLO DE CASTRO11 11 Paulo Rabello de Castro, economista, é redator-chefe da revista "Conjuntura Econômica", sócio-diretor da "RC Consultores" e professor da Fundação Getúlio Vargas (RJ).

Quem diria! Depois de quase uma década de entreveros a respeito da dívida externa brasileira, num jogo de paga-não-paga em que o nosso país, até agora, só levou a pior (pagando mais do que precisaria), quando tudo parecia clarear no horizonte, eis que nossos bravos governantes acabam de nos arrumar uma outra dívida, tão grande quanto a anterior ... Como? Foi, precisamente, o que aconteceu no dia 16 de março, com o bloqueio das contas correntes, cadernetas de poupança, contas remuneradas e CDB’s, contas de empresas junto ao Banco Central e, não menos importante, o overnight (cujo lastro estava nos títulos públicos chamados LFT’s).

Veja bem como foi montada a “matemática” do Plano. O governo ficou com os ativos financeiros do público, bloqueados por dezoito meses, para resgate em duodécimos a partir do décimo nono mês. Tratar-se-ia, à primeira vista, de uma moratória: o devedor, não desejando resgatar suas LFTs nos respectivos prazos, alterou-os para daqui a dezoito meses. Mas não. É muito mais do que isso. O governo ficou também com ativos que não lhe tinham sido emprestados originalmente, ou seja, tomou da praça todos os empréstimos em curso, combinados entre particulares. Por exemplo: se João emprestara a José cem mil cruzados novos para ressarcimento da quantia em 10 de abril, quando José realizar o depósito na conta de João, naquela data, a conta ficará bloqueada em mãos do governo, que se colocou na posição de novo mutuário de João. Ora, a soma total desses empréstimos forçados ao governo constitui uma nova dívida pública, calculada no equivalente a cem bilhões de dólares, que o governo jura resgatar em 30 meses (18 de carência, mais 12 de pagamento).

Mas o que é isso? Se a dívida externa brasileira de 99 bilhões de dólares, que também é devida, em grande parte, pelo governo e suas empresas, e cujos prazos de ressarcimento são muito mais dilatados, não tem condições de ser servida nos termos atuais, como pode o mesmo governo fazer uma outra dívida, num único dia e numa única penada, do tamanho da anterior? Como pagará esta nova dívida se é ele quem afirma não poder sacrificar o crescimento do Brasil em função da outra dívida já contraída no exterior?

O distinto público deve ter percebido que, em última análise, está havendo aí um grosso equívoco de gerência financeira no setor público. O governo não dispõe de recursos próprios. Os compromissos financeiros que arruma são saldados com dinheiro que sai do bolso dos contribuintes, ricos, pobres e classe média. A dívida externa já se constituía num problema suficiente para esse governo resolver - embora fosse até administrável - desde que as futuras negociações estabelecessem uma linha divisória entre os setores público e privado, permitindo a este último tomar novos empréstimos (sem aval oficial) garantindo assim, num mercado de câmbio livre, o fluxo de dólares para o serviço da dívida já feita pelo governo. Assim, a dívida externa não teria que ser paga, mas apenas “rolada”, ou seja, pagos os juros de cerca de seis a oito bilhões de dólares anuais, depois de uma negociação bem-feita.

Agora, ficamos a pé. Não só ficou mais difícil a renegociação externa - pois o governo se meteu numa cama de sete varas financeira - como, pior ainda, o governo terá que desembolsar, supostamente, algo como nove bilhões de dólares mensais, em moeda nacional, como ressarcimento da nova dívida que ele arrumou. Está mais do que clara a impossibilidade de arcar com tal compromisso pois, quem não vinha conseguindo pagar nem nove bilhões de dólares por ano, como irá pagar nove bilhões por mês?

Trata-se de uma grande enrascada financeira, aparentemente sem volta, que foi sem dúvida engendrada a partir de entendimento totalmente equivocado de teoria monetária pelos elaboradores do plano. Ao invés de articularem um plano que controlasse as futuras emissões de moeda, pois são esses fluxos - que, como um rio de moeda - criam a inflação de preços, os novos “monetaristas” resolveram controlar o estoque da moeda já emitida, ou seja, a quantidade de moeda e de outros ativos que já circulavam antes do sistema. Com isso, obterão um choque antitérmico muito forte na inflação, como quem toma um remédio poderoso contra a febre, porém de efeito apenas passageiro. Não está nada garantida, portanto, a cura da doença inflacionária, ou seja, a causa da febre ainda persiste. Porém, o poderoso antitérmico pode já ter causado efeitos colaterais gravíssimos, pela baixa imunológica no corpo econômico.

A economia norte-americana, entre 1929 e 1933, tomou esse tipo de remédio, causando a Grande Depressão, que se espalhou pelo· resto do mundo. Com uma diferença: como conta o professor Milton Friedman, da Universidade de Chicago, papa em assuntos monetários, em seu livro A monetary history of the United States (cap. 7, “A Grande Contração”), esse fenômeno brutal ocorreu durante um período de cerca de 36 meses. Aqui, tudo se passou num único dia! Friedman, professor de professores brasileiros, sempre procurou mostrar o erro cometido na Grande Contração ressaltando que são os fluxos (!), e não os estoques monetários, que devem ser controlados no combate à inflação. Dada a importância desse conceito, Friedman nunca permitiu que qualquer aluno dele recebesse o título de mestre· ou doutor em Economia, cometendo tal impropriedade teórica.

E matéria para uma séria reflexão do Congresso Nacional - decidir em que medida endossará ou não o superendividamento do setor público em mais cem bilhões de dólares, justamente agora que o público está com sua confiança abalada nos instrumentos financeiros internos e que, portanto, o governo poderá administrar uma dívida extra através de mecanismos de procrastinação de pagamento ou, pura e simplesmente, de repúdio. Não se trata, portanto, apenas de discutir limites de saques dos valores retidos. Não. O que está em discussão é a adequação ou não da teoria anti-inflacionária aplicada aqui. O mínimo que se poderia fazer, já que o plano é “monetarista”, seria chamar alguns professores do exterior, cujas contas não tenham sido bloqueadas (para manter a presunção de isenção) e consultá-los sobre os desdobramentos do remédio aqui usado.

Ainda há tempo de reformular o atual descaminho. Parcialmente, liberando para o público sua liquidez bloqueada, para diminuir o compromisso financeiro futuro do governo, e parcialmente, negociando com os detentores de grandes contas (bancos e empresas de grande porte) um perfil de repagamento de seus haveres, de modo a que o Banco Central possa, daqui para frente, voltar a ter espaço para praticar uma política monetária digna desse nome.

A ARMADILHA DA LIQUIDEZ QUE EXISTE NO PLANO COLLOR12 12 Gazeta Mercantil, 30.3.90

ALOISIO MERCADANTE OLIVA13 13 Professor da Unicamp e assessor do PT.

GUIDO MANTEGA14 14 Professor da FGV-SP e assessor do PT.

O governo Collor armou uma armadilha para si e para toda a economia brasileira. Concebeu um choque monetário para deter a inflação por meio do aprisionamento de boa parte dos ativos monetários. Em contrapartida, destruiu o sistema de crédito, abalou a confiança no governo enquanto guardião da poupança privada e comprometeu os títulos públicos enquanto mecanismos de regulamentação dos meios de pagamento. Hoje o governo possui instrumentos para injetar ativos monetários na economia, mas perdeu os meios de captação, necessários para retirar os excessos de moeda. Daí a necessidade de manter um aperto permanente de meios de pagamento e atuar com altas taxas de juro, únicos meios que restaram para combater a inflação. Dessa maneira, uma recessão, que deve ter sido concebida como temporária, em vista das eleições do segundo semestre, pode tornar-se crônica, enquanto derradeiro instrumento para controle dos preços.

Nesse cenário são grandes os riscos de depressão da economia brasileira. Com medo de novo confisco, os agentes econômicos tendem a consumir todo seu excedente ou a escapar para ativos especulativos fora do alcance do governo, como o dólar. Ao “punir” aqueles que haviam renunciado ao consumo, muitas vezes com depósitos na poupança acumulados ao longo de anos, o governo produziu uma propensão ao consumo, reforçada pela expectativa de que após o congelamento possa haver nova escalada de preços. Por outro lado, o clima de incerteza e a forte expectativa de recessão tendem a conduzir os empresários a uma posição de cautela, que Keynes chamaria de preferência pela liquidez, só que liquidez de ativos especulativos, especialmente o dólar, cuja cotação no mercado paralelo já se está encaminhando para os patamares anteriores ao choque. Num primeiro momento, os empresários que estiverem com deficiência de cruzeiros deverão liberar estoques, com preços bastante favoráveis, dando a impressão de que a inflação está em baixa. Entretanto a crise de liquidez, a repactuação de contratos, as incertezas e a desconfiança no sucesso do choque podem conduzir à não reposição de estoques e crise de abastecimento, que provocará nova escalada de preços. E o governo não terá outra alternativa senão dar novo aperto de liquidez, procurando estrangular a demanda, reforçando o surto recessivo. É o já conhecido círculo vicioso da estagflação.

Ainda é prematuro formular um diagnóstico conclusivo, mas já se pode notar que o aperto de liquidez atingiu de forma desigual os vários segmentos do parque produtivo. De um lado estão as empresas de bens de consumo não duráveis, beneficiadas, momentaneamente, pela manutenção de parte do consumo de bens salários e, do outro lado, os setores de bens de capital, da construção civil. indústrias automobilística, de informática, têxtil e alguns ramos da alimentícia, que ficaram sem recursos para o pagamento de fornecedores e estão cancelando investimentos e novas encomendas. Outro setor bastante afetado é o de serviços, além da chamada economia informal, responsável por grande contingente de mão-de-obra.

Na hipótese do governo, os gastos de consumo deveriam estar-se irradiando por toda a cadeia produtiva, impedindo uma queda maior das atividades e evitando a recessão. Na prática isso não está ocorrendo, porque os próprios empresários do setor de bens de consumo não duráveis estarão reduzindo suas encomendas e limitando os pagamentos ao restante da cadeia produtiva. O montante de ativos financeiros que equivale à massa salarial é capaz de realizar, quando muito, cerca de 30% do conjunto da demanda agregada, levando-se em conta que nem mesmo as folhas de pagamento estão garantidas. Faltam, portanto, 70% da demanda agregada, constituída de matérias-primas, máquinas e equipamentos, bens de consumo duráveis, exercida pelas empresas entre si, que sofre uma quebra acentuada.

A falta de ativos monetários para capital de giro está conduzindo à semiparalisia setores com grande efeito multiplicador na economia, como a construção civil, que emprega aproximadamente 12 milhões de trabalhadores, as indústrias automobilística, metalúrgica, siderúrgica e de autopeças, e a indústria de bens de capital corno um todo. Para escapar da armadilha da iliquidez e evitar uma recessão profunda é preciso fazer modificações no Plano Collor que revertam as expectativas recessivas e recoloquem as condições que apontem para a retomada do desenvolvimento, tudo isso sem comprometer o combate à inflação nem permitir que a situação escape ao controle. Cabe· ao Congresso fazer as correções de rota, reformulando as premissas furiosamente ortodoxas e conservadoras, reinjetando imediata e seletivamente liquidez para salários e capital de giro, de modo a evitar a paralisia do sistema produtivo. Além disso, é preciso uma reforma financeira de emergência, reconstituindo o sistema de crédito, com garantias constitucionais de não intervenção arbitrária em certos ativos monetários. Duas linhas de captação responderiam a essa necessidade. Uma poderia ser a própria caderneta de poupança, voltada para os pequenos aplicadores. com garantia do Congresso. Outra linha de captação seria constituída por um novo título governamental para aplicações de longo prazo, voltada para os grandes aplicadores e direcionada para capital de giro em programa de industrialização, também com garantia constitucional. Finalmente seria necessário constituir fundo de desenvolvimento, amparado por diretrizes de política industrial, para alavancar o investimento público e privado. A outra armadilha contida neste pacote, a ser desativada pelo Congresso Nacional, é a concepção não liberal de ajuste estrutural da economia brasileira: privatização indiscriminada e internacionalização, num con­texto de fragilidade financeira da economia. O governo Collor jogou fora, logo no início de seu mandato. um trunfo importante, que é o crédito de confiança atribuído a todo novo governo. Nesse contexto, cabe ao Congresso, como espaço público de negociação, assumir suas responsabilidades de governo definidas pela nova Constituição.

A REFORMA MONETÁRIA15 15 Folha de S. Paulo, 1.4.90.

ANTONIO CARLOS LEMGRUBER16 16 Antonio Carlos Lemgruber, economista, é vice-presidente executivo do Banco Boavista e foi presidente do Banco Central.

Para se fazer uma análise técnica da Reforma Monetária (medida 168), vamos começar supondo que o conceito de moeda relevante - no sentido de influenciar a evolução do PIB - é de fato o agregado que foi “imobilizado” pelo governo. Vamos chamá-lo de M4, correspondente a papel-moeda, mais depósitos a vista, mais depósitos de poupança, mais CDBs, mais LFTs com carta de recompra.

O que foi feito pode ser caracterizado com precisão como um “choque monetário não-antecipado”, por sinal um tema que vem ocupando bastante a atenção dos monetaristas modernos, que se preocupam com entender a divisão dos· efeitos da moeda sobre preços e sobre o produto real. Uma característica do choque brasileiro é que houve uma redução “não-antecipada” de cerca de 3/4 no estoque de moeda na economia (algo como de cem para 25), um impacto de uma única vez que não deve ser confundido com a evolução da taxa de crescimento monetário. Outra forma para entender essa diferença é lembrar que um estoque baixo de moeda não é o mesmo que uma taxa baixa ou decrescente de expansão monetária.

O que vai acontecer com a economia em consequência deste choque? Há, pelo menos, quatro variáveis macro que merecem ser destacadas: a taxa de inflação, o nível geral de preços, a taxa de crescimento do PlB e o nível do produto real. Note-se que uma taxa baixa (ou decrescente) de inflação é compatível com preços baixos ou com preços altos e a mesma diferenciação é importante para o produto: uma coisa é produção alta (baixa); outra coisa é produção crescente (decrescente).

Como se pode depreender pela leitura dos jornais e pelas entrevistas de economistas, parece que todos somos monetaristas atualmente no Brasil. Nesse caso, é muito importante registrar aqui os resultados recentes obtidos em pesquisas teóricas e empíricas de economistas monetaristas como Barro, Lucas, McCalum, Sargent e outros, os quais têm implicações diretas sobre os efeitos macroeconômicos do choque.

Uma redução forte e não-antecipada no estoque de moeda irá afetar o nível de preços (para baixo) e o nível de produto real (para baixo), sendo que a distribuição desse impacto é duvidosa, mas provavelmente recairá muito mais sobre o produto do que sobre os preços. Até os monetaristas reconhecem uma rigidez nos preços na direção descendente, o que por sinal é bem diferente de reconhecer uma rigidez inercial na taxa de inflação. Cabe lembrar que, no Brasil, salários nominais não podem ser reduzidos, sem falar na rigidez de vários preços públicos. A surpresa da contração monetária acaba atuando sobre as quantidades vendidas. O choque monetário se transforma num choque real pela contenção imprevista da demanda agregada.

Já uma expansão antecipada e anunciada da liquidez na economia - por exemplo, um crescimento mensal de x% a partir daquele estoque baixo inicial - poderá não exercer nenhum efeito sobre a taxa de crescimento do PIB real e transbordar inteiramente sobre a taxa de inflação. Mais precisamente, qualquer crescimento monetário acima de 0,5% ao mês (que seria a taxa histórica do PIB real) poderá resultar em fortes pressões inflacionárias.

Além disso, a inflação é influenciada não só pela expansão monetária anunciada e efetivamente verificada, como também pelas expectativas de crescimento futuro da moeda. Nesse contexto, convém lembrar que esse é o principal canal (expectativas) pelo qual o déficit público afeta a inflação. Ao contrário do que dizia David Ricardo. a dívida pública não costuma equivaler no Brasil a impostos futuros, mas sim à expansão monetária futura. A Reforma Monetária - juntamente com o restante do plano - praticamente não reduziu a dívida pública, apenas promoveu o seu alongamento, podendo alimentar a inflação por esse canal de expectativas indefinidas com relação à política fiscal, particularmente o lado das despesas governamentais.

Se esses movimentos macroeconômicos fazem sentido, temos um novo tipo de “armadilha de liquidez” a ser enfrentado pelas autoridades monetárias. O choque monetário inicial não-antecipado poderá provocar lima hiper recessão. Já as torneiras a serem abertas a seguir - juntamente com a pressão salarial de março - poderão resultar em aumentos de preços e de filas, até mesmo hiperinflação e desabastecimento, praticamente sem nenhum impacto sobre a atividade econômica real. A chamada “oferta agregada” - o lado da produção - estará deprimida e será inelástica em relação aos novos estímulos (antecipados) monetários.

Isso é o que diz a teoria monetária moderna. Este choque pode não exercer nenhum efeito sobre a taxa de inflação, apenas sobre o nível do produto (e, em menor escala, o nível dos preços). O segundo estágio do choque será mais ou menos inflacionário, dependendo das taxas anunciadas e praticadas de crescimento da moeda e das expectativas sobre a sua expansão no futuro (que estão relacionadas à dívida pública e seu serviço). Mas. infelizmente, esse segundo estágio poderá ser incapaz de tirar com rapidez o país da recessão provocada pelo choque inicial.

Para finalizar, resta comentar a hipótese de que M4 não seja o conceito relevante - mas antes M1 ou a base monetária. Nesse caso, diminui o risco de termos uma hiper recessão, mas em compensação podemos estar mais próximos da hiperinflação. Afinal, o estoque e a taxa de crescimento da base monetária serão ambos muito altos nestes meses de março e abril.

O CÂMBIO FLUTUANTE17 17 O Estado de S.Paulo, 3.4.90

FERNÃO BRACHER18 18 Fernão Bracher foi presidente do Banco Central e é presidente do banco BBA-Creditanstalt S/A.

A taxa de câmbio flutuante foi, durante muito tempo, o reclamo dos exportadores. Era necessário deixá-la flutuar a fim de que o câmbio achasse seu “justo valor”. O governo, nas medidas que tomou, anunciou que, de então em diante, o câmbio flutuaria. E o que aconteceu? O cruzeiro valorizou-se. De NCz$ 42 por dólar, cotação do dia 19 de março, valorizou-se para Cr$ 37 por dólar, dia 23. E teria se valorizado mais ainda não fosse o Banco Central ter comprado os dólares que se ofereciam no mercado a esta taxa.

Como se explica o fato de o cruzeiro se valorizar, quando não há intervenção do Banco Central? Devemos ou não desejar o cruzeiro flutuante? Trataremos deste assunto em três itens: a) a taxa flutuante e a conversibilidade da moeda; b) a taxa flutuante nos países desenvolvidos e c) a taxa flutuante no Brasil.

A taxa flutuante e a conversibilidade da moeda:

Hoje, nos países desenvolvidos, a moeda é plenamente conversível. Isso quer dizer que a única contrapartida para a troca de moeda é o fornecimento da moeda local. Assim é que um cidadão na Suíça, na Alemanha ou nos Estados Unidos pode ir a qualquer banco e, entregando moeda local no guichê, pedir que lhe troquem essa moeda por outra: marcos, florins, libras ou a que seja.

Já no Brasil a coisa é diferente. A nossa moeda é inconversível. Na realidade, isso significa que ela só é conversível mediante certas condições: o cidadão que vai ao banco com dinheiro mais passaporte e passagem pode converter até quatro mil dólares; outro que vá com dinheiro mais uma guia de importação pode converter o montante da guia para o fim precípuo de pagar ao exportador estrangeiro; um terceiro, com dinheiro mais o certificado de registro de capital estrangeiro, pode, demonstrando ter lucro, remeter dividendos especificamente para o investidor estrangeiro. Assim, a procura da moeda estrangeira no Brasil está toda ela condicionada, restrita ao cumprimento de certos requisitos. Com a oferta de moeda estrangeira ocorre exatamente o oposto. Ela é estimulada, porque é proibido ao exportador brasileiro conservar o produto da sua exportação. Ele é obrigado a vender os dólares que recebeu da sua exportação, no máximo 20 dias após o embarque da mercadoria.

Portanto, os regulamentos cambiais brasileiros tiram a flexibilidade da oferta e procura, estimulando a oferta e restringindo a procura.

Com toda essa restrição, praticamente desde o fim da guerra tivemos saldos negativos em conta-corrente. Não foi senão após o início desta década que se demonstrou um forte e sustentado superávit comercial. Esse superávit comercial acarreta um superávit no balanço de pagamentos, uma vez que estamos pagando juros externos em virtude de moratória.

Assim, na situação atual da moratória, temos uma oferta maior de dólares do que procura, o que traz uma valorização da nossa moeda, se esta flutuar livremente. A situação se agrava na atual conjuntura do Plano Brasil Novo, em que a pequena demanda interna pela recessão, a existência de estoques como defesa do patrimônio na situação inflacionária passada e a escassez de cruzeiros restringem ainda mais a procura da moeda estrangeira.

A taxa flutuante nos países desenvolvidos:

Para que um país desenvolvido tenha a taxa flutuante e moeda com plena conversibilidade são necessários quatro requisitos mínimos:

  1. que sua população acredite na própria moeda;

  2. que sua taxa de inflação esteja mais ou menos em compasso com a de seus principais parceiros comerciais;

  3. que o Banco Central disponha de: a) liberdade para seguir uma política monetária ativa pela taxa de juros e b) de reservas internacionais para defender a sua moeda de movimentos conjunturais de curta duração.

Tivemos, logo no início do governo socialista francês, com Mitterrand, uma forte crise de confiança no franco francês. Imediatamente, a França limitou a conversibilidade plena. Foi por pouco tempo. Restabeleceram-se as condições básicas e confiança e o franco francês voltou à conversibilidade normal. E a razão é clara: os movimentos de pânico com fundo político-social não podem ser contidos com os instrumentos clássicos de taxa de juros e queima de reserva. Logo, a primeira condição para a flutuação e livre conversibilidade da moeda é que o público nela confie. A partir dessa fase, e havendo relativa igualdade de condições de taxas de inflação com os principais parceiros comerciais, é possível às autoridades, usando de boa técnica, proceder sintonia fina através da taxa de juros e utilização de reservas e, com isso, deixarem o câmbio “achar” o seu preço correto nos mercados · internacionais.

A taxa flutuante no Brasil:

Como vimos, a taxa flutuante só existe plenamente se houver livre conversibilidade e essa só deve ocorrer se existirem certos requisitos, entre eles, o básico, a confiança na moeda nacional. Antes disso, com uma moeda doente ou com uma confiança não totalmente consolidada durante um longo período de estabilidade, é totalmente desaconselhável a sua flutuação/livre conversibilidade. Fazer isso significaria, certamente, trazer ao Brasil a dolarização que ocorreu na Argentina.

O dólar livremente flutuante e conversível seria o grande referencial da economia. A moeda nacional desapareceria e o dólar seria o instrumento de poupança. A hiperinflação teria chegado.

Ora, acredito que nossas autoridades saibam disso. Fica, então, a questão: o que quiseram elas dizer quando declararam que o cruzeiro iria flutuar? Sabem elas que, de um lado, não podem dar livre conversibilidade à moeda e, de outro, que o Banco Central tem de ser o comprador de última instância, sem o que haverá uma valorização indesejável da moeda. Portanto, a “flutuação” nada os ajudará para “acharem” a correta cotação do cruzeiro. Por que, então, anunciaram a flutuação do cruzeiro?

A mensagem que desejaram transmitir parece ser a seguinte: doravante, a autoridade não tem mais o compromisso de fixar a taxa de câmbio apenas de acordo com a inflação, mas irá fixá-la também de acordo com outras prioridades de sua livre escolha. A expansão monetária, por exemplo. Com isso o preço relativo das divisas fica muito mais flexível do que no sistema anterior, mas também muito mais incerto, porque deixará de ter um referencial objetivo externo ao governo. É, certamente, um caminho difícil e que complica sobremaneira a vida do exportador e do importador e seus cálculos para investimentos no Brasil. Por ora, só nos resta desejar que tenham sorte no caminho escolhido.

QUEM PERDE COM O PLANO COLLOR19 19 Folha de S.Paulo, 23.3.90.

CESAR MAIA20 20 César Maia, economista, é deputado federal (PDT-RJ) e foi secretário da Fazenda do Estado do Rio de Janeiro (governo Leonel Brizola).

Para os que acompanham os paralelismos entre a Argentina e o Brasil aí está mais um: Menem e Collor abriram seus governos fazendo exatamente o contrário do que prometeram em campanha. Pelo menos o malogro inicial de Menem serviu para que os erros de diluição e graduação do plano argentino não fossem repetidos aqui.

No conjunto, o programa de estabilização de Collor enfrentou as quatro políticas básicas: a fiscal, a monetária, a de rendas e a externa, e introduziu uma proposta de privatização.

A política fiscal incorporou um conjunto de propostas apresentadas ao Congresso pelos chamados setores progressistas, a partir de Bresser em dezembro de 87, passando pela Constituinte e até por medidas de Sarney. Todas a seu tempo rejeitadas pela direita. Entre elas o imposto sobre grandes fortunas, o imposto sobre altas rendas agrícolas, o imposto aos ganhos de capital nas Bolsas de Valores, o término do anonimato nas aplicações financeiras e a eliminação de diversos incentivos e subsídios de Imposto de Renda, de imposto de importação, de IPI.

Ainda dentro das medidas tributárias, o governo taxou com o IOF todas as grandes aplicações, da Bolsa ao overnight, da poupança aos fundos, taxação essa que incide sobre o saldo das aplicações e sobre a sua movimentação.

Finalmente introduziu o que chamou com exagero de reforma administrativa. Exagero porque na verdade foi um programa de simplificação com a redução · de alguns órgãos e empresas. Para chamar-se de reforma administrativa deveria ter como base a profissionalização da administração pública. Aqueles demitidos ou colocados em disponibilidade deveriam ter ·o direito, no caso de abertura de vagas no setor público, de concorrer a elas via seleção e reciclagem.

A expectativa do governo de conseguir ainda em 90 um ganho com essas medidas em torno de 10% do PIB nos parece engordada. A realidade deverá estar mais próxima da metade, o que não impedirá o governo de cumprir a sua promessa de zerar o déficit público operacional.

A política monetária, chamada pelo governo de reforma monetária, tem como base um extraordinário enxugamento de liquidez, atingindo todos os ativos financeiros, dos depósitos a vista ao overnight. Se há alguma dúvida acerca da necessidade de tal medida, ela se circunscreve à altura da guilhotina, que de tão baixa atingiu a cabeça de pequenos poupadores, que foram classificados como especuladores com o equivalente a 600 dólares. Afinal, todos os candidatos progressistas falavam nas eleições de 89 em um alongamento da dívida interna, que foi realizado de forma drástica e necessária. A troca do cruzado novo pelo cruzeiro tem uma função didática, ao separar o dinheiro livre do quase dinheiro bloqueado. E psicológica, com fins de reverter expectativas quanto à inflação futura.

A política de rendas, a curto prazo, é positiva. Tanto o câmbio quanto os preços públicos precisavam de reajuste, já que estavam subsidiando principalmente os importadores, as empresas e os grupos de alta renda. Quanto aos salários, a curto prazo o congelamento e a prefixação dos preços darão um certo alívio aos trabalhadores em comparação com os primeiros meses de 1990. Porém as perdas ocorridas em 1989 estarão incorporadas. A nova política salarial passa a ser arbitrada pelo governo que a prefixará. Este é um erro. Erro político, já que o governo estará permanentemente sob pressão. Erro econômico, já que a política salarial do programa de estabilização deveria durar apenas alguns meses, devolvendo-a depois à normalidade. O salário-mínimo teve um tratamento diferenciado, garantindo-se a ele a recuperação da inflação e um ganho de 5%, trimestral. Outro erro. A lei em vigor deveria ter sido mantida, mesmo que a diferença relativa à inflação de março fosse paga parcelada e corrigidamente.

A política externa tem o objetivo de flexibilizar gradualmente o comércio exterior. Como princípio todos estão de acordo. Afinal é bom que os cartéis, cartórios, oligopólios e monopólios sejam submetidos à concorrência. Porém as preocupações vêm do fato que todas as medidas relativas a esta flexibilização virão por via administrativa e não por lei, inibindo a discussão e a possibilidade · de aperfeiçoamento por parte do Poder Legislativo, num clima de ampla discussão. Com isto as dúvidas e desconfianças estarão ampliadas.

Ao lado das medidas propriamente anti-inflacionárias, o governo apresentou ao Congresso uma medida provisória com um programa de privatização. O grave desta medida está logo em seu artigo 2.º, inciso I e parágrafo 2.º. Este dispositivo funciona como uma espécie de lei delegada, onde se autorizam todas as privatizações com exceção das proibidas pela Constituição, ou seja, energia, telecomunicações, correios, transportes ... Assim ficam igualadas as privatizações de empresas adjetivas, estatizadas para socializar o prejuízo de empresários ineficientes, com as de empresas estratégicas como· a Vale do Rio Doce, o Banco do Brasil etc. Das duas uma: ou o governo deveria ampliar a lista inicial das não privatizáveis, incluindo empresas estratégicas em torno das quais o confronto será inevitável, ou as empresas criadas por lei deveriam ser privatizadas caso a caso, por lei específica.

Fica claro que, além das correções citadas, faltou um peixe grande nesta rede: os credores privados da dívida externa. O governo tinha a obrigação de submeter ao Congresso certas restrições que teria que observar na negociação da dívida externa, como teto para servi-la e tipo de juros. Isto o fortaleceria na negociação, sinalizaria para os credores que eles não podem tudo e penalizaria também a eles com o programa. O ajuste interno não pode ser visto apenas como um pré-requisito para renegociar a dívida externa. O ajuste deveria ser interno e externo, e a responsabilidade compartilhada.

Mas tudo é ainda mais complexo. Medidas de política econômica estabelecem regras dentro das quais operará o governo. No entanto, não garantem eficácia e eficiência na gestão. É como um automóvel: suas adequadas· condições não garantem a habilidade do motorista.

As duas primeiras semanas do programa serão fundamentais, porque definirão as resistências e as reações da sociedade, tanto dos assalariados quanto dos empresários. Aliás, principalmente destes, na medida que poderão, por açodamento e especulação, agravar demasiadamente a conjuntura, seja pressionando os preços, criando um ambiente de nova especulação financeira, assim como provocando um grave nível de desemprego por prevenção. Após o plano, a economia ficou com a mesma liquidez que antes, ou seja, a mesma quantidade de dinheiro usada para as transações. Porém, como o ambiente é outro, as decisões iniciais podem afetar este equilíbrio e assim pressionar o nível das atividades. O governo não pode se irritar, nem se açodar. Tem que realizar os ajustamentos pontuais, de forma a ajudar a renormalização da conjuntura. O açodamento trará a inflação; a irritação trará a depressão.

A quantidade de dinheiro disponível após O plano é a mesma de antes. O problema é que as incertezas e a perplexidade trazidas pelas medidas podem alterar a velocidade de circulação da moeda, ou seja a decisão das pessoas entre gastar e entesourar. Isto fará variar a liquidez efetiva e exigirá do governo maestria neste ajuste, diferenciando movimentos permanentes de circunstanciais. O baixo teto estabelecido pelo governo para a disponibilidade das aplicações, se ele tiver habilidade política, deverá ser elevado acompanhando o processo de monetização. Isto será no início mais justo que fazer os leilões.

Ao Congresso cabe a difícil tarefa de votar O pacote. Difícil porque a simples rejeição nos projetaria em direção ao vácuo. As próprias emendas deverão passar por um processo de negociação para que sejam absorvidas como melhorias. Se for cristalizada uma oposição nitidamente minoritária, sua tarefa estará facilitada, já que poderá marcar sua posição sem os riscos do “seja o que Deus quiser”. A oposição poderia concentrar suas baterias na medida que trata da privatização, devido a delegação arbitrária que impõe. E até porque aí existe uma questão estratégica. Afinal de contas, o que separa liberais, conservadores, socialistas e comunistas não é a inflação. E possivelmente nem as suas causas entre 5% e 80% ao· mês. Esta pode ser uma armadilha perigosa: jogar tudo ou nada num programa anti-inflacionário. O próprio programa sinaliza um jogo de vida ou morte. Se depois de 18 meses a inflação ainda estiver alta, teremos a maior destruição de patrimônio jamais vista: a devolução dos hoje 100 bilhões de dólares em 12 vezes sem correção monetária ou juros. Este será, o preço do insucesso.

Senhoras e senhores: façam o jogo.

FERNANDO OTTO VON COLLOR BISMARCK21 21 Folha de S.Paulo, 26.3.90

FRANCISCO DE OLIVEIRA22 22 Francisco de Oliveira, economista, é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise c Planejamento (Cebrap) e professor do Departamento de Sociologia da USP.

O turbilhão em meio ao qual toma posse o novo presidente tem sido dito uma crise do Estado. Sisudos empresários, graúdos ex-ministros que acionaram ao máximo os ventos turbilhonantes, competentes economistas, toda a imprensa (e seus jornalistas) vêm aprontando análises “brilhantes”, que coincidem: o excesso de intervenção estatal, a ineficiência das empresas estatais, a dívida pública e o déficit fiscal são fulcros e as causas da desorganização da economia, da “década perdida”, da altíssima inflação. O novo presidente deu ao diagnóstico um símbolo-síntese: os marajás. Fresco de recentes viagens ao Velho Mundo, maravilhou-se com a prosperidade, a eficiência, a flexibilidade econômica, atributos do liberalismo econômico. Igual impressão ocorreria a um marciano, pois reflete a ignorância dos complicados processos históricos que deram à Europa o perfil que hoje apresenta.

De fato, trata-se de uma crise da burguesia, por excelência, e, portanto, atinge e compreende o Estado. Porque a imbricação do público e do privado, em todos os mecanismos da acumulação de capital, se representa nos instrumentos e variáveis que são exclusivos do Estado: moeda, controle do crédito, dívida pública, câmbio, orçamento. Não há, aqui, qualquer redução do Estado à burguesia nem vice-versa; mas o amálgama já referido entre o público e o privado transporta uma crise de grandes proporções ao âmbito mais global das relações Estado e economia privada.

A acumulação de capital, sobretudo na vigência do Estado autoritário, fundou-se nesse amálgama. Mais recentemente, quando o fluxo de capitais externos cessou, abrindo o passo à crise de acumulação do setor privado, utilizou-se a credibilidade das estatais para tomar empréstimos externos e por essa via estatizou-se a dívida externa. Na progressão crítica, a expansão da dívida interna pública tentou pagar o rombo da estatização da dívida externa e segurar a lucratividade do setor privado; não apenas as estatais não existem no vazio, senão que compram e vendem do e ao setor privado, como também funcionam como repassadores de capital para a acumulação do setor privado, sem riscos para este último. Por esse caminho, a expansão da dívida pública interna serviu para sustentar o valor das operações privadas, do lucro numa palavra, e a enorme liquidez privada aparece como a outra face da iliquidez pública. Contabilmente, o Estado aparece como devedor na operação, mas realmente ele é o credor: ele empresta ao setor privado seus títulos para garantir-lhes rentabilidade e lucratividade. Como esse empréstimo se dá pela via - que é única no capitalismo - dos instrumentos que são monopólio do Estado, a posição se inverte; devedores passam a credores e vice-versa. Esta é a história de como as burguesias, na crise de acumulação, terminaram dilapidando o poder regulatório dos instrumentos públicos, trombando entre si e finalmente com o próprio Estado que lhes deu sustentação.

Entretanto, o que tem sido chamado de especulação e “ciranda financeira” tem, nas condições concretas do amálgama monetário-financeiro-fiscal do capitalismo contemporâneo, uma função que escapa às percepções teórico-empíricas banais: ela é uma defesa contra movimentos recessivos profundos, impedindo, pela manutenção dos valores simbólicos, a destruição dos capitais reais. Por isso, os títulos públicos sustentam valor dos patrimônios privados.

O Plano Collor apanha todos os clichês da discussão e da teoria banal e tenta passá-los à prática, como purgante. Mas não sem consequências importantes. A primeira, que se esconde sob a aparência da paulada nos especuladores, é que a aparência de uma dívida do Estado para com os portadores de títulos públicos se transforma em dívida real: pois o congelamento é apenas o momento que antecede a devolução dos recursos ao setor privado. E o fará em valores estáveis, isto é, em cruzeiros valorizados, dando aos “especuladores” uma moeda que não tinham; na progressão, tratando capital especulativo como real, o governo não terá outra saída senão ver-se às voltas, de novo, · com o crescimento da dívida interna, ou, no pior dos casos, com uma monetização irrefreável, que levará a vaca da inflação para o brejo, isto é, para a hiperinflação. É no que dá confundir capital especulativo com real.

Quem arbitrará os valores da devolução? Os leilões, cujos agentes principais serão os mesmos “especuladores”; eles estabelecerão os deságios e seus níveis, e aí não dá para ser ingênuo, mesmo sendo tecnocrata. Tal como se passou nos leilões de conversão da dívida externa em capital de investimento: pensava-se que a desvalorização da dívida externa brasileira daria lugar a fortes deságios nos leilões, e na prática não se viu nada disso; os deságios nunca chegaram perto do valor de mercado da dívida externa brasileira, pois quem os manejava e estabelecia era uma competição entre bancos credores do Brasil. A parte monetário-financeira do Plano Collor é, portanto, sob as aparências da “paulada”, liberalóide, fortemente concentracionista, privatista até a medula. Representa uma socialização das perdas, às expensas de poupadores e assalariados, em favor do grande capital.

Além disso, o governo enfiou goela abaixo dos bancos os certificados de privatização, compulsoriamente. Macho, dirão. De fato, o que fez foi entregar aos bancos o controle do processo de privatização de empresas estatais. Surrupiou ao restante da sociedade um importantíssimo acervo público, pelo qual ela pagou caro ao longo dos últimos 50 anos de história brasileira. Dentro da lógica de parecer durão, para gáudio das massas, mas numa perspectiva liberal, sem controle público.

Mais que uma discussão técnica do Plano Collor, que se reitera num debate débil e estéril que vai apenas do louvor à correção de “pequenas falhas”, é preciso começar a discutir suas características políticas. De fato, a esse respeito, ele é uma ·completa messas da campanha, descumpridas na pré-afirmação da campanha - não das promessas da campanha, descumpridas na primeira hora - do presidente. Atropelando todas as instituições da vida política e civil, passando por cima de todas as representações e mediações da sociedade, ele é, antes de tudo, totalitário. Mais que autoritário. Cesarista, desfaz o longo caminho percorrido pela sociedade em todos esses anos, deseduca, atropela a democracia. Sufoca. É como se Collor e seus tecnocratas buscassem tapar todos os poros por onde respira - luta - a sociedade. Remilitariza o país numa escala impensável até alguns dias atrás: basta ver Brasília toda militarizada. Impede o Judiciário de apreciar as demandas de direito. Na aparência da “paulada” sobre a burguesia financeira, esconde-se seu caráter mais perverso: de fato, ela retira a burguesia da luta política com e no conjunto da sociedade, onde ela teria que negociar, ceder, também impor, mas recortar, enfim, suas posições vis-à-vis às outras classes e grupos sociais, para torná-la o único-interlocutor político do governo. Nessa “queda de braço” entre burgueses autoritários e um iluminado totalitário, todas as outras classes e grupos sociais são os perdedores.

O plano está no Congresso, agora, sob a forma das medidas provisórias. Por aí, dirão, escoima-se-lhe o caráter de imposição. Descontando o sufoco e o uso da massa popular sobre o Congresso, que o presidente não hesitará em lançar mão, o simples fato de submeter as medidas ao Congresso não torna o plano democrático; a norma democrática não é uma simples lei, por maior que esta seja; a norma democrática não se esgota numa letra escrita, para sempre. Os juízes sabem que ela retira sua legitimidade é do “espírito” da lei, isto é, da interpretação recorrente, pela qual os sujeitos da vida política se recortam num movimento incessante. E este movimento supõe que todos os sujeitos da política mantenham suas capacidades, sem o que não se obtém uma norma que, não sendo uma lei de equivalência nem de reciprocidade, surge como movimento-reflexivo das próprias vontades que pactuam. Ora, o plano pretende, exatamente, desconhecer esse movimento e a reprodução das capacidades que ele engendra, do que decorre que o resultado não será uma norma, mas uma imposição, neste caso totalitária. Como ensinou Hannah Arendt, o totalitarismo se define precisamente como uma forma de organização do poder no “centro do qual se localizaria um espaço vazio, ocupado pelo líder” (Hannah Arendt, “O Sistema Totalitário”, apud Emir Sader).

Em todos os momentos de grande crise burguesa, personagens como Collor têm a sua vez. Bonaparte ou o Lorde Protetor entrando a cavalo no parlamento inglês, ou Bismarck, num registro mais favorável. Nessas crises, o Estado sofre um movimento espasmódico de altíssima intensidade, infarto do miocárdio. Ele concentra-se e parece resumir-se ao seu mandatário, um vero “buraco negro”. Este assume, como o presidente Collor, “todas as responsabilidades”. O que parece, para os Alexandres Garcias da tela, coragem, é apenas um elementar retrocesso: revela que a possibilidade da norma se desfaz e, neste caso. o retrocesso é a mortal competição interburguesa e sua·imbricação com o Estado. A operação política é de alto risco e a crise política ganha em radicalidade; não se trata mais do fato de que a simples candidatura de Collor revelava uma incapacidade da burguesia recortar-se entre as outras classes e grupos sociais para construir a norma. Resumindo no mandatário todas as potestades, a crise política sobe de patamar e caminha no sentido de uma suspensão, temporária por certo, de todas as outras referências. O mandatário convoca todos os “descamisados” para lutar contra o dragão, joga os “descamisados” para assustar a burguesia. e obter dela o assentimento à imposição. Mas não joga os “descamisados” contra a burguesia, pois disso não se trata; pois nem é o caso de um movimento revolucionário, nem sequer do populismo mais exacerbado. Não negocia, o plano é inegociável; não contempla alternativas: “vencer ou vencer”. O caminho está aberto para o fascismo. Não se faz nenhuma previsão de que se chegará lá. Pelo contrário, a posição deste artigo é a de que é preciso barrar esse caminho. Mas as condições especiais da crise burguesa, sua radicalização num mandatário cujos lances políticos têm um forte apelo totalitário, obrigam a examinar essa possibilidade.

UMA CRÍTICA TÉCNICA DO PLANO COLLOR23 23 Folha de S. Paulo, 3.4.90.

PAUL SINGER24 24 Paul Singer, economista, é secretário de Planejamento do município de São Paulo (gestão Luiza Erundina), professor titular da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

No debate do Plano Collor, uma linha muito comum de argumentação tem sido a seguinte: de fato muitas das medidas adotadas ferem direitos assegurados em lei pela Constituição, mas “tecnicamente” o plano é muito bom, sendo o único modo de conjurar o perigo da hiperinflação; logo, apesar de sua inconstitucionalidade, todas as medidas devem ser aprovadas pelo Congresso. Mas, a bondade técnica do plano está longe de ser indiscutível. Tentaremos demonstrar isso neste artigo.

No dia de sua posse o novo governo federal baixou nada menos que 21 medidas provisórias, além de vários decretos. Mas, a essência do que se poderia chamar de “Plano de Estabilização” está contida nas medidas fiscais (corte de gastos e aumento de impostos), na medida provisória 154, que estabelece regras para a fixação de preços e salários, e sobretudo na medida provisória 168, que muda o padrão monetário e congela a maior parte das reservas líquidas de empresas e indivíduos.

A inflação estava no patamar dos 80% na véspera do pacote. A partir da vigência do mesmo, é provável que ela tenha despencado a quase zero. A que se deve esse resultado espetacular? Certamente não ao dispositivo da medida 154, que veda qualquer ajuste de preços sem prévia autorização governamental. Considerando que são centenas de milhares de preços sendo praticados diariamente em incontáveis transações por todo o território nacional, este dispositivo é um manifesto absurdo, que, no entanto, passou despercebido pelos analistas que consideram o plano tecnicamente excelente. Na realidade, a queda da inflação só pode ser atribuída ao enorme aperto de liquidez, que paralisou as transações no Brasil inteiro por mais de uma semana.

Convém analisar mais detidamente esse “êxito” do plano. Quando se deseja uma diminuição da demanda, o caminho mais usual é o corte do crédito e a redução dos salários reais. O Plano Collor aparentemente inova: em lugar dessas medidas, ele sequestra a liquidez de todas as reservas, acima de limites bem baixos. Deste modo, ele atinge proporcionalmente mais os que possuíam maior valor aplicado. Esse sequestro de liquidez tem efeitos diferentes sobre indivíduos e empresas. Para os indivíduos, a indisponibilidade de reservas obriga a postergação de compras não-rotineiras, de grande valor unitário, o que acarreta a paralisação dos mercados de bens duráveis de consumo. Mas a aquisição de mercadorias de uso corrente em princípio não é afetada - o que significa que a maior parte da demanda final de consumo não foi cortada pela assim chamada “reforma monetária”. Já para as empresas, a expropriação da maior parte da liquidez de suas reservas representou a perda de seu capital de giro. Se essa perda fosse total, as atividades econômicas teriam que parar inteiramente. Para evitar isso, o governo permitiu - apenas para pagar salários - a conversão em cruzeiros de valores até meio milhão e abriu uma linha de crédito com juros limitados até 15 milhões. Acima deste limite, as empresas tiveram de recorrer a um crédito bancário que tem se mostrado escasso e caro.

Os bancos reabriram em 19 de março, mas demoraram vários dias até começar a conceder· liquidez a depositantes e mutuários. Na prática, o feriado bancário de 14 a 16 prosseguiu, o que impediu a maioria das empresas de pagar seus empregados. Milhões de assalariados deixaram de ser pagos. Esta foi a principal razão, além dos efeitos psicológicos da perda generalizada de poder aquisitivo, para a enorme queda do consumo durante uma semana, aproximadamente. Quando os salários começaram a ser pagos, os mercados de bens e serviços de consumo corrente imediatamente se recuperaram.

Está ficando claro que o bloqueio das poupanças individuais afeta apenas determinados mercados - como o de automóveis, moradias, móveis etc. - onde a falta de demanda impõe forte baixa de preços. Mas isso é muito pouco para conter a avalanche inflacionária. A faceta decisiva do sequestro da liquidez é a que atinge as empresas, obrigadas a tomar empréstimos bancários para prosseguir em atividade. A política de crédito do Banco Central terá que ser bastante recessiva, porque esta acaba sendo o único instrumento de todo plano a ter efetividade para cortar a demanda e deste modo conter a inflação. Em outras palavras, o Banco Central tratará de eliminar o montante de crédito a ser concedido a empresas, o que manterá a taxa de juros em nível elevado. Consequentemente, muitas empresas vão quebrar, enquanto as restantes reduzirão o nível de atividade. O aumento resultante do desemprego será o fator decisivo para a redução da demanda final por bens de consumo corrente.

Nessas condições, a pretensão do governo de que somente os 10% mais ricos terão perdas mostra toda a sua vacuidade. O Plano Collor, em essência, não difere da receita monetarista de estabilização: para impedir a alta dos preços induz uma crise de superprodução; por falta de recursos, a inversão será paralisada, amputando a demanda por bens de produção do mesmo modo que o aumento do desemprego comprime a demanda de consumo. Desta maneira, o comércio será obrigado a liquidar estoques a preços abaixo dos custos, repassando os efeitos da superprodução aos setores produtivos. Quem vai pagar o custo social da estabilização vai ser toda a sociedade, inclusive os 90% mais pobres. Estes serão punidos pelo desemprego e pela baixa do salário real, que o excesso de oferta no mercado de trabalho inevitavelmente acarreta.

O Plano Collor esconde seu caráter recessivo atrás da promessa de restauração da liquidez mediante leilões de cruzeiros e mais genericamente através da “sintonia fina· do crédito. Só que essa sintonia jamais poderia ser fina quando se trata de conter uma pressão inflacionária que atingiu 80% ao mês. A “memória” desta inflação está presente no desalinhamento dos preços relativos, no aumento de tarifas e preços públicos decretado junto com o plano e no próximo reajuste de 72,78% de salários. A recessão terá que ser tão grande que impeça que o desalinhamento dos preços relativos se traduza em nova vaga de aumento; em seu lugar ela terá que impor uma vaga de perdas infligidas a empresas em bancarrota e a trabalhadores despedidos. O repasse até há pouco usual de aumentos de custos a preços terá que ser transformado num repasse de perdas ao longo de cada cadeia produtiva, do varejista ao atacadista, deste ao industrial etc., etc.

É provável que, em algum momento (talvez fixado em função do calendário eleitoral), o governo tente moderar a queda do nível de atividade mediante ampliação do crédito e leilões de conversão de cruzados em cruzeiros. Será possível verificar, então, que as pressões inflacionárias continuam vivas e que sua supressão continuada exige o prosseguimento da recessão. O Plano Collor não escapa do dilema: ou recessão profunda ou inflação galopante. Ora, este dilema não era nem é fatal. A inflação pode ser enfrentada através do realinhamento negociado de preços relativos, desde que haja disposição para enfrentar politicamente os conflitos distributivos que causam a inflação.

O Plano Collor só é bom “tecnicamente” para os que estão convictos que fora do monetarismo não há salvação. Mas, ele é arcaico e desnecessariamente brutal para os que acreditam que é preciso experimentar formas mais sofisticadas de regulação da economia de mercado, que contam com a participação dos setores organizados na condução da política econômica.

UM ERRO DE BASE NO PLANO COLLOR25 25 Folha de S.Paulo, 4.4.90.

SYLVIO BRESSER PEREIRA26 26 Sylvio Bresser Pereira, administrador de empresas. é diretor geral do Grupo Pão de Açúcar.

As críticas que têm sido feitas ao plano econômico do governo concentram-se no nível de aperto de liquidez imposto à sociedade. Se esta análise fosse correta, o êxito do plano estaria assegurado na medida em que o governo abrisse mais (ou menos) as torneiras da liquidez. A hipótese que estamos levantando é que não se trata de um plano muito bem concebido e necessitando apenas de uma boa administração, mas sim que o plano contém uma incoerência fundamental que o levará ao fracasso, caso não haja uma forte mudança de orientação do mesmo.

A análise que se segue aborda apenas um aspecto do plano, mas um aspecto fundamental, não invalidando todo um conjunto de medidas fiscais, monetárias e moralizadoras, a maioria delas de méritos indiscutíveis.

O combate saudável à inflação, ou seja, a diminuição da inflação com a menor queda possível no nível da produção, deveria ser feito através de uma diminuição de demanda “na ponta” de consumo, ao mesmo tempo em que se tenta estimular (ou não desestimular) a produção de modo a criar um excedente que iniba o aumento de preços ou se destine à exportação. Ao mesmo tempo, deveria tentar a todo custo preservar o investimento. No entanto, as medidas adotadas nos levam de imediato a exatamente o contrário, ou seja, ao aumento no consumo “na ponta” e a uma desorganização na produção por falta de capital de giro e a diminuição drástica dos investimentos privados.

Este conjunto nos levaria, a curto prazo, a pressões inflacionárias muito maiores do que já tínhamos. A médio prazo, quando a queda dos investimentos e da produção provocar uma diminuição no emprego e no consumo, estaríamos em plena estagflação. Esta situação decorre de alguns erros fundamentais:

- O congelamento de preços no dia 15 deve reduzir a inflação do mês de março para apenas 40% enquanto os salários crescem 72%. A variação de preços ponto a ponto, medida entre os dias l.º e 30 de março, na alimentação, higiene e limpeza, foi de 33,8%; artigos de residência e artigos pessoais, abaixo deste índice. A variação de 72% nos salários é válida para quem não teve dissídio; estas categorias tiveram ganhos ou recomposições com índices que variam entre 10% e 30%. Não houve coragem de tentar manter o poder aquisitivo dos salários e provocou-se com isso um dos maiores aumentos de renda imediata para os assalariados de que se tem notícia. Este aumento de disponibilidade tende a transformar-se em consumo (como nos outros congelamentos) em proporções muito altas, devido à baixa credibilidade dos sistemas de poupança após a retenção ocorrida.

  • - O corte na liquidez das empresas foi indiscriminado e exagerado, inviabilizando a curto prazo a produção corrente e o investimento.

  • - A liberalização do câmbio nestas circunstâncias leva a uma taxa que inviabiliza a exportação de manufaturados, fechando desta forma a saída para a produção que já ocorreu no passado.

Não querendo alongar a análise, resta registrar que as discussões ora em andamento no Congresso indicam que as· emendas ao plano irão agravar e não corrigir os erros do mesmo.

Partindo de análises equivocadas e fascinados pela popularidade do plano, os congressistas terão tendência a introduzir modificações de impacto popular, como o aumento de limite de saque das cadernetas, garantia de emprego ou manutenção do nível de remuneração real de março, o que irá agravar ainda mais o desequilíbrio entre oferta e demanda, com a consequente pressão inflacionária.

A necessária diminuição da demanda na ponta apresenta três alternativas:

  • - aumento da propensão a poupar, o que parece inviável no momento, inclusive pela baixa confiabilidade no sistema financeiro;

  • - diminuição do salário real, o que só será viável se tivermos uma inflação não repassada aos salários;

  • - diminuição de massa salarial por desemprego, o que virá a ocorrer se orientações fundamentais do plano não acontecerem de imediato.

Esta terceira alternativa é sem dúvida a mais cruel para os trabalhadores.

Finalmente, algumas considerações sobre investimento:

  • - A substituição do investimento privado por investimento público demanda um tempo que não evitará a crise imediata.

  • - A reativação dos investimentos privados via BNDES (por exemplo) não atingirá rapidamente a imensa maioria das pequenas e médias empresas.

  • - Os cortes nos gastos públicos a fim de evitar um déficit público em cruzeiros só terão efeito a médio prazo, não diminuindo pressões inflacionárias imediatas.

É provável que este grave desequilíbrio entre oferta e demanda estivesse entre as preocupações centrais dos autores e controladores do Plano. Talvez os efeitos perversos que apontamos tenham sido consequência de medidas introduzidas ou omitidas na arquitetura original, como o congelamento no dia 15 ou o reajuste de salários de março de acordo com a inflação de fevereiro.

Só esperamos que haja coragem e espírito público para tomar as medidas necessárias, por mais impopulares que sejam a curto prazo.

Na inviabilidade política de conter a demanda via restrição salarial, é necessário não expandi-la ainda mais por liberações indiscriminadas na poupança; exceção poderia ser feita para a liberação parcial dos juros reais, o que provavelmente teria o efeito de reduzir a demanda por provocar uma volta da confiança nas cadernetas.

Na área da produção, a liberação parcial de folhas de pagamento poderia trazer algum alívio.

O ajuste do câmbio para níveis que deem competitividade externa aos nossos manufaturados é urgente. Na área de investimentos, haverá necessidade de usar de imediato instituições· do tipo Banco do Brasil. pois apenas o BNDES não atingiria a grande maioria das médias e pequenas empresas.

A CONTRADIÇÃO DO PLANO27 27 Folha de S. Paulo, 5.4.90.

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA28 28 Luiz Carlos Bresser-Pereira, empresário, é professor titular de economia na Fundação Getúlio Vargas (SP) e foi ministro da Fazenda (governo Sarney).

Durante a terceira semana de execução do Plano Collor, é possível fazer uma avaliação mais precisa do plano. E é preciso admitir que essa avaliação não é tranquilizadora. Evidencia-se, agora, uma contradição básica no plano, que, dependendo de sua profundidade, poderá lhe ser fatal.

O plano continua a ser coerente e corajoso. Sua lógica - a lógica que tornou inevitável a retenção dos ativos financeiros no Banco Central - está ainda baseada no fato de que o ajuste fiscal, que poderia ter evitado essa retenção, possuía uma dimensão e tinha que ser feito com uma rapidez incompatíveis com as limitações políticas e constitucionais. Seus defeitos ou problemas básicos continuam os mesmos: 1) a taxa de câmbio flutuante não garantiu a desvalorização necessária da moeda nacional e agora não serve de âncora para a estabilização; 2) o ajuste fiscal de fluxo (excluídas, portanto, as medidas que dão uma economia fiscal uma única vez) é provavelmente insuficiente e terá que ser aprofundado; 3) ao contrário do que aconteceu na reforma monetária alemã de 1947, não houve uma simples troca da velha moeda pela nova com um enorme deságio, mas o estabelecimento da convivência de duas moedas, com a retenção no Banco Central para posterior devolução de cerca de 75% da velha moeda; 4) dessa forma, embora esse ajuste patrimonial tenha atingido profundamente toda a sociedade em termos imediatos, representa uma efetiva redução da dívida pública de apenas 20% (a suspensão da correção durante o feriado bancário e o IOF), mantendo o Estado profundamente endividado internamente; 5) a retenção para as empresas foi feita de forma indiscriminada. não se levando em conta - ao contrário do que aconteceu na Alemanha - o número de empregados que cada empresa possuía; 6) essa retenção, que foi pequena do ponto de vista de redução da dívida pública, foi grande demais do ponto de vista da liquidez (a quantidade de moeda, que deveria ser cerca de 14% do PIB, foi reduzida para cerca de 7%), reduzindo dramaticamente o capital de giro das empresas e inviabilizando o pagamento dos salários e as compras de matérias-primas e produtos acabados; 7) a liquidez foi atingida também pelo fato de que os mecanismos de circulação do dinheiro, particularmente o sistema bancário, não estão ainda funcionando a contento; 8) os bancos, que foram profundamente atingidos ao perder o lucro inflacionário e ao perder (juntamente com o Estado) a confiança do público, ainda não receberam o apoio muito forte do Banco Central - da mesma forma que aconteceu na Alemanha - para poderem realizar seu papel fundamental de fazer circular as poupanças ou os cruzeiros a uma taxa de juros baixa, mas claramente positiva: 9) a redução da dívida externa de forma compatível com o ajuste patrimonial externo e com a necessidade de ajuste fiscal, embora seja parte essencial do plano, ainda não foi decidida.

A esses problemas, entretanto, soma-se um novo fator da maior gravidade: o aumento de salário real embutido no plano foi muito maior que o esperado. Dessa forma, conforme observou muito bem Sylvio Bresser Pereira (Folha, t,4.90), definiu-se uma contradição básica para o plano: enquanto a oferta foi comprimida através de um estrangulamento da liquidez, a demanda foi aquecida devido ao aumento do poder aquisitivo dos assalariados (e também à desconfiança na poupança e ao restabelecimento de mecanismos de financiamento ao consumidor), como é possível ver pelo grande aumento da compra de bens de consumo.

O aumento de salário real ocorreu porque em março os salários foram aumentados em 73% enquanto os preços aumentaram, do dia 10 ao dia 31, cerca de 40%. Em consequência, tivemos um aumento de salário real, entre 28 de fevereiro e 31 de março, de 23% (1,73/1,40=23%). Os salários que os trabalhadores receberam em torno de 31 de março têm um poder aquisitivo 23% maior do que os salários recebidos um mês antes.

A inflação de março pouco tem a ver com os 84% medidos pelo IPC de março. Esses 84% referem-se aproximadamente à inflação de fevereiro, já que, de acordo com a metodologia utilizada pelo IBGE, comparou-se a média dos preços apurados entre 16 de fevereiro e 15 de março com a média dos preços entre 16 de janeiro e 15 de fevereiro. A estimativa de 40% para a inflação de março de ponta a ponta, além de basear-se em levantamentos objetivos e corresponder às declarações do secretário do Planejamento do Ministério da Economia, coincide com os 41% de correção do BTN em março.

Como se considerou mais prudente politicamente usar os 73% para corrigir os salários de março, nos termos da antiga lei salarial, esse enorme aumento de salário real só poderia ter sido evitado se o congelamento houvesse ocorrido no final do mês, de forma a permitir que a inflação fosse muito maior do que 40%. Como isso não foi feito, temos agora uma situação paradoxal e perigosa de excesso de demanda de consumo, de um lado, e de restrição na oferta devido ao violento aperto de liquidez a que foram submetidas as empresas, de outro.

Esse desequilíbrio pode ter duas dimensões. Pode ser apenas um desequilíbrio entre oferta e procura agregados ou pode sinalizar uma situação de incompatibilidade distributiva muito mais grave. Estaremos no primeiro caso se o aumento de 23% em março for apenas uma reposição das perdas salariais ocorridas através da aceleração da inflação no último ano, quando a lei salarial indexava os salários de acordo com a inflação do mês anterior. Nesse caso as empresas teriam aumentado suas margens de lucro correspondentemente à queda dos salários nesse período. Com o Plano Collor teríamos uma reposição das perdas que seria perfeitamente absorvível pelas empresas. O ajuste da economia ainda teria que se fazer via recessão, via desemprego e redução por essa via da demanda agregada, mas a recessão não precisará se transformar em depressão.

É difícil, entretanto, medir essa perda porque a maioria dos assalariados recebeu, através de acordos coletivos os mais diversos, reajustes compensatórios dessa perda. Caso esses reajustes e abonos adicionais tenham, na média, compensado as perdas, não haverá nada para descontar do aumento de 23% ocorrido em março. E nesse caso teremos um grave problema de incompatibilidade distributiva. Imaginada uma economia em que a renda se divide apenas entre salários e lucros, o nível de salários será incompatível com a taxa de lucros média requerida pelas empresas. Essa incompatibilidade distributiva ou se resolverá por uma depressão econômica, que acabará por reduzir os salários, ou pelo afrouxamento dos congelamentos e o retorno da inflação, que também reduzirá o salário médio real.

De qualquer forma, fica claro que a explosão de consumo que está ocorrendo não é uma simples “bolha”. Está baseada no aumento dos salários reais, no reaparecimento do crédito ao consumidor e na desconfiança na poupança. É nesse quadro que o Congresso está prestes a votar a medida 168 e, ao que tudo indica, reduzir a retenção nas cadernetas de poupança. O argumento é que dessa forma se devolveria a confiança aos depósitos na poupança. É possível, mas parece pouco provável. O erro de cortar demais nesse setor já foi cometido. A perda de confiança já ocorreu. Qualquer liberação de cruzados presos na poupança agora deverá dirigir-se principalmente para o consumo.

Em síntese, o Plano Collor está enfrentando a sua primeira crise. A crise do controle da demanda agregada. O ideal seria uma recessão moderada, através de uma pequena redução dos salários e da liquidez. Não foi isso o que ocorreu. Teremos, portanto, dias turbulentos pela frente. Mas o barco. tem ainda plenas condições de chegar a bom porto, desde que os problemas sejam diagnosticados e enfrentados.

A OUSADIA E SEUS PROBLEMAS29 29 Jornal do Brasil, 5.4.90.

ANTÔNIO BARROS DE CASTRO30 30 Economista da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil.

CAIO CÉZAR DA SILVEIRA31 31 Economista da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil.

FRANCISCO EDUARDO PIRES32 32 Economista da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil.

Costuma-se dizer que o plano Collor, ao destruir a credibilidade das instituições que, em alguma medida, protegiam a sociedade brasileira da inflação, impôs um novo quadro que, desejável ou não, é irreversível. Trata-se de uma enganosa meia verdade. Isto porque, por ocasião da decretação do novo programa, aquelas instituições já se encontravam em franco processo de destruição. Tomemos o caso da caderneta de poupança. Um indivíduo que fizesse um depósito de NCz$ 100,00, a fins de abril de 1989, teria este montante reduzido, em 28 de fevereiro, e em termos reais, para NCz$ 39,00. Nada menos do que 61% de sua poupança teria sido, portanto, confiscado pela sucessão de diferenças entre a inflação oficial (1 PC) e a inflação efetiva (ponta a ponta) a cada mês! Vejamos agora o salário-mínimo. A lei votada pelo Congresso lhe assegurava, de julho em diante, uma elevação de 3% ao mês acima da inflação. Não obstante o cumprimento da lei, este aumento “real” não impediu, na prática, a ocorrência de sucessivas perdas salariais. Adequadamente medido, o valor real do salário-mínimo de julho de 1989 a fevereiro de 1990 sofreu uma brutal queda de 34%. O mesmo poderia ser dito em relação aos trabalhadores que não tivessem conquistado reajustes salariais além do previsto pela legislação vigente. Em suma, caderneta de poupança, salário-mínimo sobre-indexado, legislação salarial e outros abrigos contra a inflação vinham sendo destruídos. Ou seja, as caravelas com que havíamos navegado no mar turbulento da inflação já estavam ardendo há algum tempo.

Admitido o anterior, resta saber se a ruptura promovida pelo programa se deu na direção certa, ou se foram cometidos equívocos fundamentais.

Até muito recentemente, as críticas à concepção econômica do plano concentravam-se na questão da dosagem. Nos últimos dias, porém ganhou corpo um tipo de crítica que pretende atingir os seus fundamentos. Os autores do plano, numa palavra, teriam confundido estoque de moeda com variação no estoque de moeda. O primeiro determinaria o nível de preços e o segundo a variação do nível de preços, vale dizer, a inflação. Ao atingir brutalmente o estoque de moeda, o plano estaria impondo à economia uma forte redução de demanda, e neste primeiro estágio a inflação de fato desapareceria. A ele se seguiria, porém, uma segunda e desastrosa etapa, na qual, frente a uma oferta bastante contraída, a reinjeção de liquidez deflagraria uma alta de preços que, por diferentes razões, prevaleceria sobre a expansão da produção. Estaria, pois, de volta a inflação em meio a um quadro de profunda recessão. O plano, por conseguinte, nos conduziria a um impasse - que nada tem a ver com os problemas de dosagem usualmente a ele atribuídos.

No nosso entender, se por efeito do drástico corte inicial de liquidez a economia for levada a uma retração acentuada das atividades, a crítica que acabamos de sumariar é procedente. Mais precisamente, se, verificada a retração, a oferta adquirir a rigidez (de curto prazo) própria a uma nova situação de equilíbrio, estará criado o impasse anteriormente referido. Há, no entanto, razões para se pensar que este processo não será levado à sua conclusão. Por outro lado, a drástica redução do estoque de liquidez tem também implicações altamente positivas. Vejamos por quê.

A paralisia inicial não é propriamente um fenômeno econômico. As transações são meramente suspensas, com o que a liquidez existente na economia permanece obviamente subutilizada. Segue-se o retorno às práticas usuais, adaptadas agora às novas normas. A liquidez passa então a elevar-se por várias razões: a moeda disponível sai do “colchão” e volta a circular; as empresas e famílias sacam as parcelas não bloqueadas de suas aplicações; os empréstimos do sistema bancário às empresas são reativados; a política monetária retorna à cena, viabilizando a expansão da moeda e do crédito. Evidentemente, o. aumento da liquidez em meio a esta anômala situação não será percebido como algo capaz de reacender a inflação. Por outro lado, as empresas ainda estarão assimilando as novas regras do jogo, e, diante da óbvia incapacidade de prever o quadro que têm pela frente, não estarão propensas a tomar decisões que comprometam uma ulterior retomada da produção.

Indubitavelmente, alguns segmentos da economia foram duramente atingidos pelo programa. Fixar a atenção nestas zonas criticamente atingidas, e no colapso inicial das transações, leva, contudo, a concluir, apressadamente, que a economia caminha a passos largos para a depressão. Omite-se desta maneira não apenas o que se passa no resto da economia, como a capacidade de resposta da política econômica, e por fim, mas de grande importância, os efeitos positivos derivados da própria queda de preços. Com respeito a este último· ponto, convém sublinhar que a rigidez de salários nominais, frente a preços em declínio, tende a provocar um aumento do consumo dos trabalhadores. Reside aqui um mecanismo implícito de proteção do nível de atividades e dos próprios preços.

Tudo o que precede parece sugerir que existem resistências a um mergulho depressivo, embutidas no novo quadro econômico. É natural suspeitar, no entanto, que estas resistências, por si sós, não seriam capazes de contrabalançar os impulsos depressivos provenientes das crises localizadas em setores, tais como construção civil e bens de capital. Além disto há que ter em conta uma assimetria que marca o programa. As famílias sofreram um bloqueio de seu patrimônio e não de seus saldos transacionais, os quais tendem, em regra, a ser reconstituídos ao recebimento do primeiro salário. Numerosas empresas, por contraste, tiveram uma parte maior ou menor de seu capital de giro bloqueada, e não necessariamente teriam hoje acesso ao crédito bancário em condições financeiramente suportáveis. Consequência disto, observa-se uma forte discrepância entre a reação das famílias, que vigorosamente retornam ao consumo, e a das empresas, que em inúmeros casos permanecem semiparalisadas. Obviamente, este descompasso contém em si a perigosa possibilidade de uma crise de desabastecimento. Abre-se aqui um espaço a ser explorado pela política monetária e creditícia para, usando mais arte e instinto do que ciência, suprir a economia com a liquidez necessária ao seu funcionamento, via linhas setoriais e outras formas específicas de flexibilização do crédito.

Em suma, este é um programa que parte de um corte de liquidez capaz de provocar instantaneamente um desequilíbrio entre a demanda nominal e a oferta aos preços imediatamente anteriores. Esta situação tem a inestimável vantagem de impedir, por absoluta falta de oxigênio, o prosseguimento da alta de preços. O imediato apaziguamento das expectativas daí resultante significa, insistimos, que a problemática existente até o dia 15 desaparece. Um programa de outro tipo não teria certamente este fulminante impacto. A alternativa fundada num drástico corte fiscal, combinado com a efetiva independização do Banco Central, por exemplo, teria sua eficácia - no que toca à reversão das expectativas - dependente da confiança na efetivação dos cortes propostos. Durante todo o período em que a aprovação e a própria implementação do novo programa fossem passíveis de dúvidas, a desconfiança dos detentores da riqueza financeira líquida inviabilizaria o alongamento voluntário dos ativos. Vale dizer, no clima de sobre-excitação em que nos encontrávamos, esperar que o público - que continuaria tendo sob seu comando uma gigantesca massa de ativos líquidos - viesse a abrir mão da liquidez (com rentabilidade), por uma combinação de estímulos econômicos e confiança no governo, é uma hipótese de um otimismo onírico.

O que precede não implica negar uma grande dificuldade na consolidação da vitória conquistada no primeiro instante. A gerência da liquidez passa a ser o nervo da política econômica. Lamentavelmente a forma mais fácil e sedutora de promover a expansão da liquidez na economia - a elevação do teto de saque das cadernetas de poupança - pode revelar-se desastrosa. Isto porque, ao recolocar poder de compra em suspenso nas mãos das famílias, restabelece (ainda que parcialmente) a volatilidade da economia. Recorde-se a propósito que, em tentativas anteriores de estabilização, sem que a credibilidade da poupança tivesse sido previamente arranhada, dela partiram ondas de consumo (e podem agora partir corridas para o dólar) que contribuíram para a retomada inflacionária.

MAIS IMPORTANTE QUE O PLANO É SUA EXECUÇÃO33 33 Folha de S. Paulo, 15.4.90.

MARIO HENRIQUE SIMONSEN34 34 Mario Henrique Simonsen, é economista, professor da FGV-Rio e foi ministro da Fazenda e do Planejamento.

Um plano econômico não pode ser julgado um mês após o seu lançamento, a menos que seja evidente fracasso, o que não é o caso do Plano Collor. O plano é macroeconomicamente consistente no que tange ao combate à inflação nos próximos 18 meses, mas o que importa não é o plano, mas a sua execução. Quanto ao futuro, há problemas sérios e que têm que ser equacionados nesses 18 meses de transição.

A peça central do plano é a medida provisória 168, que sequestrou 80% dos ativos financeiros líquidos em poder do setor privado. O brutal arrocho de liquidez provocou o que seria de se esperar: a parálise da inflação por asfixia, apesar dos aumentos salariais de março; e o início de uma recessão, pela falta generalizada de dinheiro para ir às compras. O que o governo não soube explicar foi a lógica da recessão e do sequestro de liquidez: a recessão é o custo para se acabar com as expectativas inflacionárias, isto é, com o hábito de remarcar preços e reivindicar aumentos de salários que são repassados aos preços. Na medida em que se reduzam as expectativas inflacionárias, a liquidez sequestrada pode ser devolvida reativando a produção sem provocar aumento de preços. Se o governo conseguisse transmitir essa mensagem à população, a recessão seria mais branda e a liquidez sequestrada poderia ser devolvida por antecipação, eliminando as suspeitas de que ela seja mero prelúdio a um futuro confisco.

A curto prazo, o desafio aos administradores do Plano Collor é regular a injeção de cruzeiros de modo a evitar tanto a reescalada da inflação quando a transformação da recessão em depressão. A regulagem da torneira é menos simples do que parece ser à primeira vista, pois ela depende de uma variável fora do controle do governo: as expectativas inflacionárias do setor privado. Esse é um jogo onde a vitória de ambas as partes depende de uma postura do governo mostrar-se disposto a combater a inflação custe o que custar. Pois só diante dessa disposição as expectativas inflacionárias do setor privado se abaterão permitindo aí que o Banco Central abra mais generosamente as torneiras dos cruzados para alimentar a produção. Tudo isso tem que ser administrado com muita cautela e por aproximações sucessivas, já que ninguém conhece as equações de comportamento dos agentes econômicos. Mas o Banco Central deve manter-se atento a um princípio: injeção de cruzeiros, só em troca de queda das expectativas inflacionárias.

Ainda no curto prazo, os administradores do Plano Collor devem conscientizar-se de uma limitação prática. O Banco Central pode administrar umas poucas torneiras, como a do redesconto, a dos leilões de cruzeiros, a do resgate antecipado de cruzados ou a da taxa de câmbio. Para que essas torneiras irriguem todo o sistema, é preciso que a economia funcione como um sistema de vasos comunicantes. Para isso, é preciso que o mercado de capitais e o sistema financeiro voltem a funcionar normalmente, o que exige o rápido acerto do sistema Selic-Cetip, mais um reconhecimento do Banco Central: os bancos comerciais que ficaram ilíquidos em cruzeiros com a medida provisória 168 fazem jus a linhas de redesconto em cruzeiros à taxa do cruzado, ou seja, BTN mais 6% ao ano. A iliquidez não foi fruto de gestão temerária, mas de uma mudança das regras do jogo promovida pelo Plano Collor. Da mesma maneira é preciso permitir que, quem tem excesso de cruzeiros possa supri-los a quem tem excesso de cruzados, através de um mercado secundário. Esse mercado pode ser restrito, para não dar excessiva liquidez aos cruzados sequestrados. Quem comprar cruzados ficará identificado no Banco Central, não podendo revender cruzados por seis meses. De qualquer forma, essa liquidez restrita eliminaria parte do entupimento dos vasos comunicantes da economia. Com vasos entupidos, o Banco Central não regulará nem a inflação nem o nível de atividade econômica manejando a meia dúzia de torneiras que seu corpo de diretores e funcionários pode manejar: precisará administrar milhares de torneiras, uma para cada caso específico, receita certa para o fracasso.

Vencidos os obstáculos de curto prazo, que são os mais simples, o Plano Collor terá que enfrentar os de longo prazo, quando os objetivos são a retomada do crescimento sem inflação, a eliminação da ineficiência e do capitalismo cartorial, e a integração do Brasil no Primeiro Mundo. Nessa etapa, os obstáculos são bem mais complexos.

O primeiro problema é saber se o governo terá realmente eliminado seu déficit público ou não. Nesse sentido, a postura nacional e internacional é uma só: esperar para ver. Pois essa é a promessa sempre repetida, e até agora nunca cumprida, e que não depende exclusivamente da vontade do presidente. Se se cumprir a promessa, tudo bem. Se não, tudo mal, até porque o sequestro de liquidez decretado pela medida provisória 168 dificultará o financiamento do governo por outros caminhos que não a emissão de moeda.

O segundo problema é saber como recuperar a confiança na poupança interna, após a medida provisória 168. Isso não apenas afeta a poupança, mas também o investimento nacional e estrangeiro no país. Nesse sentido, as preocupações de certos grupos quanto à desnacionalização da economia brasileira mostram como eles estão no mundo da lua. Pois ninguém gosta de investir num país onde o presidente da República pode, da noite para o dia, sequestrar 80% dos ativos financeiros dos indivíduos e empresas, como fez o Plano Collor, imobilizando o Congresso e talvez até o Supremo Tribunal Federal, pois a revogação da medida provisória 168 lançaria o país num caos hiperinflacionário muito pior do que o final do governo Sarney.

Esse, de fato, é o nó do Plano Collor. O seu sucesso depende de que todos se convençam de que o plano foi uma descontinuidade histórica, e ele que nunca mais haverá um segundo plano semelhante. Mais ainda, de que a liquidez dos ativos financeiros foi sequestrada, mas não confiscada. Ou seja, que os cruzados bloqueados serão devolvidos com correção monetária mais 6% ao ano de juros, entre setembro de 1991 e agosto de 1992, como afirma a medida provisória 168. Uma solução seria uma emenda constitucional que proibisse qualquer reforma monetária sem lei complementar. De fato, reforma monetária é o artifício que os economistas descobriram desde o Plano Cruzado, para driblar os juristas e a Constituição. É hora de os juristas se defenderem. Em essência, a medida provisória 168 equivale a um empréstimo compulsório para a absorção temporária de poder aquisitivo, o que era permitido pela Constituição de 1967 e foi vedado pela Constituição de 1988. É hora de os juristas darem um puxão de orelha nos economistas, que desde 1986 têm-se mostrado muito mais autoritários do que qualquer presidente militar.

De resto, é importante observar a renegociação da dívida externa. Aparentemente o governo Collor dispõe-se a pagar metade do que os bancos pretendem receber, ou seja, substituir o calote total do governo Sarney por meio calote. O grande argumento é que os bancos estrangeiros devem aceitar a redução da dívida externa, como contrapartida à da dívida interna. Como os bancos comerciais não têm como executar um país soberano, é possível que se chegue a um acordo, dependendo da boa vontade dos governos da OECD, e particularmente dos Estados Unidos. Afinal, os bancos já estão protegidos por reservas contra devedores duvidosos, e para eles é melhor receber metade do que lhes é devido do que não receber nada.

Com sua ousadia, o Plano Collor nos poderá levar a três caminhos: a) o crescimento sustentado com estabilidade de preços; b) a estabilidade relativa de preços com a estagnação, à moda boliviana; c) ao caos argentino. Todos devemos colaborar para que o resultado seja o primeiro caminho.

  • *
    Gazeta Mercantil.
  • 1
    Folha de S. Paulo, 18.3.90. 120
  • 2
    Folha de S.Paulo, 18/3/1990.
  • 3
    Roberto Macedo, economista, diretor da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP, presidente da Ordem dos Economistas de São Paulo e membro do Conselho Editorial da Folha.
  • 4
    Folha de S. Paulo, 19.3.90.
  • 5
    Carlos Eduardo de Freitas, economista, é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB) e foi diretor da área externa do Banco Central (1985-88).
  • 6
    Gazeta Mercantil, 27.3.90.
  • 7
    Ex-ministro da Fazenda.
  • 8
    Folha de S. Paulo, 28.3.90.
  • 9
    Eliana A. Cardoso, economista, é doutora pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts ("MIT") e professora da Universidade de Tufts, nos EUA.
  • 10
    Folha de S.Paulo, 30/3/1990.
  • 11
    Paulo Rabello de Castro, economista, é redator-chefe da revista "Conjuntura Econômica", sócio-diretor da "RC Consultores" e professor da Fundação Getúlio Vargas (RJ).
  • 12
    Gazeta Mercantil, 30.3.90
  • 13
    Professor da Unicamp e assessor do PT.
  • 14
    Professor da FGV-SP e assessor do PT.
  • 15
    Folha de S. Paulo, 1.4.90.
  • 16
    Antonio Carlos Lemgruber, economista, é vice-presidente executivo do Banco Boavista e foi presidente do Banco Central.
  • 17
    O Estado de S.Paulo, 3.4.90
  • 18
    Fernão Bracher foi presidente do Banco Central e é presidente do banco BBA-Creditanstalt S/A.
  • 19
    Folha de S.Paulo, 23.3.90.
  • 20
    César Maia, economista, é deputado federal (PDT-RJ) e foi secretário da Fazenda do Estado do Rio de Janeiro (governo Leonel Brizola).
  • 21
    Folha de S.Paulo, 26.3.90
  • 22
    Francisco de Oliveira, economista, é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise c Planejamento (Cebrap) e professor do Departamento de Sociologia da USP.
  • 23
    Folha de S. Paulo, 3.4.90.
  • 24
    Paul Singer, economista, é secretário de Planejamento do município de São Paulo (gestão Luiza Erundina), professor titular da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
  • 25
    Folha de S.Paulo, 4.4.90.
  • 26
    Sylvio Bresser Pereira, administrador de empresas. é diretor geral do Grupo Pão de Açúcar.
  • 27
    Folha de S. Paulo, 5.4.90.
  • 28
    Luiz Carlos Bresser-Pereira, empresário, é professor titular de economia na Fundação Getúlio Vargas (SP) e foi ministro da Fazenda (governo Sarney).
  • 29
    Jornal do Brasil, 5.4.90.
  • 30
    Economista da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil.
  • 31
    Economista da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil.
  • 32
    Economista da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil.
  • 33
    Folha de S. Paulo, 15.4.90.
  • 34
    Mario Henrique Simonsen, é economista, professor da FGV-Rio e foi ministro da Fazenda e do Planejamento.
  • 36
    JEL Classification: E31; E52

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1990
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br