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Caio Prado Jr.

Caio Prado Jr.

RESUMO

Obituário de Caio Prado Jr.

PALAVRAS-CHAVE:
Obituário; história do pensamento econômico

ABSTRACT

Obituary of Caio Prado Jr.

KEYWORDS:
Obituary; history of economic thought

O recente falecimento de Caio Prado Jr. comoveu e entristeceu mais um pouco a nação brasileira. Relativamente afastado, nos últimos anos, da participação ativa que marcou sua presença nos grandes acontecimentos da história brasileira deste século e nos mais profícuos e empolgantes debates de nossa intelectualidade, sua ausência vem recebendo manifestações e homenagens póstumas dos mais diversos segmentos da sociedade brasileira.

Não poderíamos nós, centros associados à ANPEC, deixar esta noite de lembrar seu nome, nesta sessão solene de abertura de nosso 18° encontro nacional, na presença da comunidade acadêmica da área de Economia e de nossos alunos de pós-graduação.

Caio Prado Jr., entretanto, não era economista. Pertenceu a uma geração que deu nomes notáveis à nossa profissão, ainda emergente, mas sem cursos formais na área de Economia, a maior parte deles com origem nas faculdades de Direito. A despeito disso, consolidou vasta obra com quatorze livros, muitos dos quais influenciaram decisivamente toda uma geração de economistas, e principalmente os que hoje trabalham na assim denominada área de História Econômica.

Descendente de tradicional família paulista, a vida de Caio Prado Jr. poderia ter sido outra - mais calma, próxima ao poder e voltada à multiplicação de sua riqueza pessoal - não fosse a firmeza na defesa de suas ideias. Optou por uma participação política ativa, na confiança de quem é agente da história. Desde cedo manifestou sua rebeldia: quando do lançamento da chapa Júlio Prestes, em 1929, que iria concorrer com a Aliança Liberal, Caio Prado Jr. bradou vivas a Getúlio Vargas em plena convenção do Partido Republicano paulista, cuja consequência imediata foi sua prisão - a primeira delas.

Mas não demorou muito para decepcionar-se com o novo governo. Vivia-se a década de 30, da qual Keynes afirmou que, por sua turbulência, exigia “uma nova ideologia para uma nova época”. Dividida a sociedade brasileira entre socialismo e integralismo, Caio Prado não hesitou em optar pelo primeiro.

É impossível entender o significado e a importância da obra de Caio Prado J r. sem ter presente o momento em que foi elaborada e o contexto da qual é fruto e em que pretendeu atuar. Pertenceu em sua juventude à geração dos anos 20 e 30, que ficou registrada na história corno a “geração da Redescoberta do Brasil”. A Semana de Arte Moderna marcara nas artes o anticonvencionalismo das formas, a liberdade de pesquisa estética e a busca de padrões com vínculos mais estreitos à expressão nacional e popular. O movimento tenentista, por seu turno, desdenhava do liberalismo bacharelesco, que denominava “oligárquico”, e, a despeito da fluidez ideológica, firmara opção por uma república mais centralizada, o que implicava a consolidação econômica e política do Estado Nacional.

Ingressamos nos anos 30 com os mais diferentes movimentos empolgando a intelectualidade jovem - o “pau-brasil”, “o verde-amarelismo’’, a antropofagia -, marcando o espírito de uma época de profunda crise do liberalismo, onde os mais diferentes matizes de nacionalismo e intervencionismo dominavam os cenários nacional e internacional.

Sua primeira obra - Evolução Política do Brasil - foi publicada em 193:3, quando possuía apenas 26 anos. É contemporâneo de outras duas obras de “redescoberta”: a de Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil, e a de Gilberto Freire. Cada uma delas possui seu próprio significado e cabe-me ressair, neste instante, a de Caio Prado Jr. Com diferença marcante das outras duas, pretendia ser um ensaio de interpretação histórica. Na contracapa do livro, alertava-se o leitor que tal interpretação se baseava num método relativamente novo - o materialismo histórico - pela primeira vez empregado no estudo da formação social brasileira.

Com isso, dava uma guinada radical nos estudos históricos existentes até então, mesmo os de boa qualidade. Para Caio, estes destacavam fatos e acontecimentos parciais e de curto alcance-· guerras e conquistas, invasões e heróis, substituições de governos e de diplomatas, entradas e bandeiras - e justamente coube a ele retomar o espírito desbravador bandeirante invertendo totalmente seu sentido e significado. Ia ao encontro da tradição hegeliana, que enfatiza a necessidade, na ciência, de distinguir-se o essencial do acidental. “Um mero relato de fatos acidentais, sem o necessário encadeamento entre si, seria uma crônica, nunca uma história.” Esta é entendida como processo, portador, portanto, de um sentido e é sobre este sentido, à primeira vista oculto e indecifrável, não imediato, mas mediato, que Caio Prado Jr. se debruçou para o encontrar na história brasileira.

Uma das consequências mais nítidas dessa abordagem foi trazer à lume os excluídos, até então ausentes na historiografia oficial, e que ora se tornavam objeto de estudo reconhecido no seio da intelectualidade brasileira. Ao contrário de seus contemporâneos, que advogavam as teses do “brasileiro cordial” e da passividade e conformismo como impregnados na alma do povo, Caio Prado Jr. ressaía não só as rebeliões dirigidas pelas elites - Emboabas, Mascates, Guerra dos Farrapos - mas os levantes de forte presença popular, como as revoltas dos Cabanos e dos Alfaiates, a Balaiada e a Praieira.

Sua Formação do Brasil Contemporâneo data de 1942 - auge do Estado Novo - mas a maturidade viria com a História Económica do Brasil, que se tornou bibliografia básica para estudantes e profissionais da área de Economia. Nela ensaia nova periodização para a economia brasileira, numa análise cujo vigor rivaliza com a de outro seu coevo, intelectual de peso, Roberto Simonsen. Caio Prado Jr., assim, muito antes de outros autores que ficaram famosos por suas obras sobre formação econômica do Brasil, recorrera a farto material empírico para demonstrar o caráter cíclico e dependente da agro exportação brasileira, dominante em nossos quatro primeiros séculos. Lançando mão de abordagem que hoje é retomada na área de história econômica, entendeu que o Brasil, até o limiar da república, não poderia ser entendido como unidade analítica, e dedicou capítulos específicos a cada formação regional.

História Econômica do Brasil revolucionou o ensino da economia e da história brasileiras. Contrariando as teses tradicionais e mesmo de outros autores marxistas, os quais associavam o subdesenvolvimento ao passado feudal do país, Caio Prado J r. entendia a crise do trabalho escravo como sincrônica à emergência da ordem capitalista. Num arroubo militante, denominou a “República Velha” de “República Burguesa”, frisando o primado das relações capitalistas, numa periodização cujos fundamentos seriam reafirmados muito mais tarde por economistas e historiadores, com o auxílio de novos materiais empíricos.

Não se poderia esta noite esquecer, entretanto, que a obra de Caio Prado J r. extravasa a Economia e, pelo menos em outra área, é de grande relevância: a Filosofia. Nesta, destacam-se a Dialética do Conhecimento, em dois volumes, de 1952, e a Introdução à Lógica Dialética, de 1959. Ao lado delas, vários artigos, como naqueles onde se dedica à filosofia da Matemática e ao testar o alcance da lógica dialética para explicar os modernos desenvolvimentos da álgebra e do cálculo, inclusive a teoria dos conjuntos, em diálogo com a psicologia de Piaget.

Seu aprofundamento filosófico foi fundamental ao inspirar sua obra de economia. Rejeitou muito cedo as teses marxistas que, mecanicamente, transpunham etapas da história europeia ao Brasil e foi precursor da Teoria da Dependência ao afirmar que são os processos sociais internos os responsáveis pela dinâmica histórica, e que, primordialmente, configuram seu sentido.

Caio Prado Jr. viveu intensamente sua época, adiantou-se inúmeras vezes à média do debate intelectual, pesquisou independentemente, mesmo sendo partidário. Nestes tempos em que nós, da comunidade acadêmica, tantos percalços e indefinições assinalamos no ensino e na pesquisa no país, é um alento reler sua obra - é certo, elaborada em outra época - mas tendo para si fechadas as portas do oficialismo e·”contra a corrente”, para usar a expressão de Myrdal, do poder estabelecido. Mas também contra a maré dos modismos, como os ensaios, escritos no final dos anos 60, contendo críticas ao estruturalismo de Levy-Strauss, e do assim chamado “marxismo” de Louis Althusser.

Houve quem dissesse que sua obra não galgou reconhecimento internacional à altura por ser escrita basicamente em português, já que ensaiara críticas à ortodoxia muito antes - ou, pelo menos, ao mesmo tempo - que isso ocorresse no Primeiro Mundo, por autores sobejamente citados na Academia. Isto talvez seja em parte verdadeiro para sua obra filosófica, mas não para a de história econômica, já que é possivelmente o autor nacional da área mais traduzido para outros idiomas: inglês, espanhol, russo e japonês.

Reconhecemos hoje, diante da comunidade acadêmica dos economistas, o trabalho de Caio Prado Jr. Ele que também foi empresário e, ao dedicar-se à iniciativa privada, fundou uma editora, até hoje bem-sucedida, voltada a divulgar o pensamento crítico nacional.

Não precisamos concordar estritamente nem com suas ideias nem com suas teses teóricas para ressair sua figura de intelectual. Poderíamos dizer, usando uma expressão gasta, que seu falecimento deixou um vazio na intelectualidade brasileira. Entretanto, a vida de Caio não foi de vazios, mas de abrir espaços, desde logo ocupados por todos nós, economistas, sociólogos, geógrafos e cientistas políticos.

Dante Alighieri, em sua Divina Comédia, observou: “Os lugares mais quentes do inferno são reservados àqueles que, em épocas de crise moral, mantêm-se na neutralidade”. Em nossa época de crise também moral, mas econômica e social, o humor fino e universal do espírito renascentista de Dante pode ser lembrado ao falarmos de Caio Prado Jr., que nunca, por índole, manteve-se neutro.

Possuía ele o ardor dos idealistas, aliado à certeza dos convictos. Foi inovador e um dos próceres da produção intelectual brasileira moderna, quando modernidade não se restringia a um discurso, mas associava-se a transformações efetivas e de vulto na economia e na cultura brasileiras. Debruçava-se na história não para entender o passado, mas com olhos voltados ao presente e com o pensamento no futuro.

Intransigente na defesa de seus pontos de vista, nunca foi sectário; defendeu ardorosamente suas ideias, sem ignorar que a dívida é necessariamente integrante da produção científica. Foi convicto e apaixonado, sem ser dogmático.

E é por isso que; a cada momento, renova-se sua atualidade.

  • 1
    JEL Classification: B31; B25; B32.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1991
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