Acessibilidade / Reportar erro

As Crises Gerais

The general crises

RESUMO

É útil relembrar as crises em que o planeta passa atualmente, com sua economia e estrutura social afetadas, não é a primeira desse tipo. Sua superação certamente exigirá ações diferentes daquelas desenvolvidas logo após a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, embora não seja inconveniente procurar analogias entre “aquela” crise global e “esta”.

PALAVRAS-CHAVE:
História econômica; ciclos de Kondratiev

ABSTRACT

It is helpful to recall the crises our planet presently undergoes, with its affecting economy and social structure, is not the first of its kind. Its overcoming shall surely request different actions of those developed right after World War I and Russian Revolution, although one would not be inexpedient to search analogies between “that” Global Crises and “this” one.

KEYWORDS:
Economic history; Kondratiev waves

Os anos 20 deste século abriram-se com uma prolongada recessão - a qual, a certa altura, assumiria a forma de Depressão Mundial, que ocuparia o quinquênio 1929-34. Essa recessão, na esteira da I Grande Guerra, trouxe consigo um fenômeno que passaria à história com o nome de Crise Geral do Capitalismo.

Não era difícil interpretar essa Crise Geral como um movimento sem retorno, preparatório da transição do capitalismo para o socialismo, posto este último na ordem do dia pela Grande Revolução Russa, a qual, precisamente nas condições da Grande Depressão Mundial, lançaria vitoriosamente o I Plano Quinquenal. Somente muito mais tarde veríamos que os quinquênios soviéticos não foram a única retomada vitoriosa, nos quadros da recessão mundial, a qual se prolongaria até os últimos clarões da II Guerra Mundial, isto é, por todo um quartel de século - aproximadamente 1921-47.

O gênio de Nicolau Kondratiev - escolhido por Lenin para presidir a reestruturação da economia soviética - nas condições da Grande Depressão Mundial, sem negar à recessão o caráter de crise geral do capitalismo, marcava para esta um prazo que se cumpriria muito fielmente: o mesmo da fase “b” do Ciclo Longo - o qual passaria à história com o nome de Ciclo de Kondratiev - aberto nos anos finais do Século XIX, e que deveria durar aproximadamente meio século, como seus antecessores.

Noutros termos, concluída essa fase “b”, a economia mundial tanto por sua componente capitalista “de mercado”, como pela novel economia socialista ou “planificada”, a recessão cederia o passo a uma sustentada “retomada”. Estava implícito que esta, passado outro quartel de século, abriria nova fase “b”, isto é, nova recessão mundial de outros cinco lustros, a saber: de 1973 a 1998.

Ora, a União Soviética e os países socialistas que vieram depois não foram os únicos a fugir ao império da recessão correspondente à fase “b” do 3º. Kondratiev. Com alguns anos de atraso, pelo menos outro grande país - que nada tinha de socialista - escaparia ao guante da crise. Refiro-me ao Brasil, o qual, com um planejamento incipiente, embora, ingressaria no que, depois, apelidaríamos de “industrialização substitutiva de importações”.

Ora, o que havia de comum entre esses dois países não era o seu “regime”, mas o fato de que, cada qual ao seu modo e em medida diferente, encontrara maneiras de fugir, pelo planejamento econômico, a certa medida de “anarquia da produção”. Nunca cometemos aqui, é certo, o equívoco dos proto-planejadores soviéticos, de se suporem livres dessa anarquia, em geral - isto é, do que hoje estudamos como ciclos “longos” e “breves”. Paradoxalmente, nossos mestres, com Raul Prebish e o nosso Celso Furtado à frente, marcavam para o planejamento brasileiro a meta bem mais modesta de internalização do ciclo: do ciclo breve apenas, naturalmente. Quanto ao ciclo longo, poderíamos dizer, nas palavras de Camões, referindo-se a Deus: que “a tanto o engenho humano não se estende’’.

Os ciclos breves - também apelidados de Juglar-Marx ou, na classificação de J. Schumpeter, de ciclos médios - têm uma duração variável, aceita como de 7 a 11 anos. Mas é de notar que nossos ciclos breves, companheiros de nossa industrialização substitutiva de importações, cobrem lapsos muito regulares, de dez anos: entre os anos finais de cada decênio, e do subsequentes.

O conteúdo de cada um desses ciclos tem sido a implantação de sucessivos grupos de atividades, isto é, dos setores em que é possível dividir o sistema econômico brasileiro: começando pelo Setor II e abordando, escalonadamente o Setor I, vale dizer, começando pela indústria leve e empreendendo, depois, a indústria pesada e os serviços de infraestrutura. Em resumo, ao concluir-se a fase “a” de cada um dos nossos ciclos endógenos, somos confrontados com dois “setores”: um, dotado de excesso de capacidade produtiva, e outro, retardatário, em relação ao sistema como um todo. O primeiro, em condições de suprir poupança, a qual deverá tomar a forma de investimento, no outro, tão cedo procedamos às inovações institucionais necessárias.

Plausivelmente, a experiência brasileira deve estar sendo aproveitada por outros países subdesenvolvidos em seus próprios planejamentos, a começar pela Índia e pela China. Mas não foi o caso soviético, cujos planejadores, havendo efetivamente dominado as flutuações juglerianas, imaginaram que também haviam dominado os ciclos longos ou de Kondratiev.

Talvez não tivessem cometido esse equívoco, se, em vez de enviarem Nicolau Kondratiev para a Sibéria, em 1930 - e, provavelmente, para a morte - tivessem procurado tirar, mais cuidadosamente, os corolários dos seus geniais teoremas.

À primeira vista, os ciclos - e não apenas os ciclos breves - haviam ficado para trás, junto com o próprio capitalismo. Noutros termos, o planejador soviético encheu-se de vaidade, e passou a nutrir a ilusão: 1) de que a economia socialista estava a salvo dos ciclos, inclusive do longo e, 2) que a crise geral em que havia mergulhado a economia capitalista era um movimento sem retorno.

Sabemos hoje que as coisas não se passaram assim, posto que, concluída a fase “b” do 3º. Kondratiev (1947, aproximadamente), a economia capitalista retomou vigorosamente o seu crescimento, e que, concluída a fase “a”, do subsequente Kondratiev (1947-73), a economia socialista acompanharia a economia capitalista na fase “b” aberta em 1973, muito pontualmente.

Com efeito, de um e outro lados da “cortina de ferro”, os três lustros finais da fase “a” do 4º. Kondratiev foram satisfatoriamente prósperos, com a diferença de que as economias capitalistas não escaparam a flutuações de prazo breve, ao passo que as economias socialistas, em geral, mantiveram um crescimento sustentado; entretanto as coisas mudaram de feição, de um e outro lados. Segundo as estatísticas da ONU, nos três lustros iniciais da fase “b” (1973-88), poucos países mantiveram um desempenho satisfatório.

Nos três lustros finais da fase “a”, as chamadas “economias de mercado” expandiram sua produção industrial à taxa anual média de 6,3 por cento; passando a crescer ao ritmo de 2,1 por cento, nos três lustros iniciais da fase “b” do mesmo 4º. Kondratiev. Quanto à URSS, nos mesmos períodos, respectivamente, expandiu sua indústria, aos ritmos de 8,6 e 4,5 ao passo que os ritmos brasileiros passaram de 8,9 a 3,0 por cento ao ano.

Causaria espécie se não houvéssemos aprendido isso na anterior “Crise Geral”, nos quadros da fase “b” do 3º. Kondratiev, quando os dois países - Brasil e URSS - escaparam à recessão geral. Agora, são grandes países asiáticos - Índia e China - que repetem, nas condições da fase “b” do 4º. Ciclo Longo, o nosso desempenho na “Crise Geral” anterior. Essas coisas não acontecem por acaso, deve ser óbvio.

O fato de haverem a URSS e os países da Europa Oriental ingressado agora em recessão - como qualquer país capitalista - foi interpretado por Gorbatchov, Ieltsin e outros apóstatas do socialismo, como manifestação de uma estagnação, resultante de “erros” de L. Breznev e outros.

Ora, se erro houve, ele deve ser buscado no equívoco indicado sobre a natureza das crises gerais - a anterior, ligada ao 3º. Kondratiev, e a presente, ligada ao 4º. - fato que esses senhores não viram, nem de passagem. Na verdade, foi tão errôneo interpretar a fase “b” do 3º. Kondratiev como uma “Crise Geral do Capitalismo”, como seria errôneo interpretar a fase “b” do 4º. Ciclo Longo como sinal de uma “‘Crise Geral do Socialismo” - isto é, num e noutro casos, como movimentos sem retorno. Mas foi mister, do lado de cá da “cortina de ferro” um gênio singular, como J. Schumpeter, para perceber o caráter transitório da “outra” Crise Geral. Um novo Schumpeter está fazendo falta ao mundo atual.

Uma “perestróica” está, por certo, na ordem do dia, mas esta, devida a Gorbatchov, resolve tão mal o problema pendente, como o resolveu a outra “perestróica”, ligada ao nome de Stalin. O planejamento soviético, tal como nos chegou, provavelmente suprimiu o Ciclo Breve, mas não o Longo. Este é o problema que Gorbatchov não viu.

O planejamento brasileiro - ordenado, não em torno da socialização dos meios de produção - cometeu também um grave erro. Refiro-me ao fato de que nós, os revolucionários dos anos 30, postulávamos a necessidade incontornável da Reforma Agrária. Noutros termos, reclamávamos a supressão do latifúndio feudal, como condição para a industrialização. Ora, somente agora, nas condições criadas pelo advento do 4º. Kondratiev, esse problema começa a ser formulado - e, como ensinou Marx, a história não resolve problemas não formulados. Nas condições da 3ª. Dualidade, as massas populares desceram às ruas para clamar: “queremos Getúlio”, o que implicava em reivindicar para o nosso latifúndio feudal precisamente a posição de força hegemônica de nossa industrialização. Quem duvidaria hoje que a Getúlio caberia a posição de patrono de nossa industrialização?

E, juntamente com Getúlio, tivemos toda uma plêiade de inovadores de extração feudal, a começar pelos líderes gaúchos, como Osvaldo Aranha e Lindolfo Collor - mas incluindo também os mineiros e os nordestinos. Acaso teria sido possível a industrialização sem a legislação trabalhista, ligada ao nome de Lindolfo Collor, ou sem o Programa de Metas, de Juscelino Kubitschek? Todos inovadores de extração feudal?

A evolução da economia e da sociedade brasileiras tem seguido uma linha impecável, que procurei definir em meus trabalhos sobre “Dualidade Básica da Economia Brasileira” - especialmente no livro com esse título, escrito aí por 1953, não, por certo, sem a colaboração de outros próceres do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), notadamente nosso saudoso Alberto Guerreiro Ramos. Tratava-se da tese com a qual canhestramente me candidatava ao provisionamento como economista, a qual somente seria aceita e publicada cinco anos depois.

A “Dualidade”, sem negar o papel da luta de classes em nossa sociedade, confere a essa luta um desdobramento diferente do que poderemos encontrar no Materialismo Histórico clássico, ligado aos nomes de Marx e Engels. Com efeito, em cada uma das etapas do desenvolvimento de nossa sociedade, esta é dirigida por uma coalizão, que associa em firme pacto de poder, duas classes: uma em posição hegemônica, e outra em posição subalterna.

Ora, na transição de uma “Dualidade” para outra, a classe governante subalterna, na anterior “Dualidade”, emerge como força hegemônica, enquanto a posição subalterna passa a ser ocupada por uma dissidência progressista da classe hegemônica do anterior pacto de poder.

Assim, ao se tornar o Brasil independente, a classe dos senhores de escravos - que fora a classe dirigente subalterna, sob a hegemonia do capital mercantil português - emergiria como a classe hegemônica nos quadros da “1ª. Dualidade”, assumindo posição subalterna o nascente capital mercantil brasileiro, uma dissidência progressista do velho capital mercantil português.

Com a Abolição-República, emergiria como classe hegemônica, a única possível da “2ª. Dualidade”, o capital mercantil brasileiro, já amadurecido para isso, ao passo que o lugar antes ocupado pelos senhores de escravos passaria a ser ocupado pelo latifúndio feudal, não mais como força hegemônica, mas como sócio menor do novo pacto de poder.

Com a Revolução de 30-37 - e consequente formação da “3ª. Dualidade”, a posição hegemônica passaria ao latifúndio feudal - enquanto o nascente capitalismo industrial (uma dissidência progressista do velho capitalismo mercantil) emergiria como sócio menor do novo pacto de poder.

Com o advento do 4º. Kondratiev, prepara-se, também, a implantação da “4ª. Dualidade”. Mais uma vez devemos esperar mudanças no pacto fundamental de poder, mas isso não quer dizer que a reforma agrária, tal como a entendíamos nós, os revolucionários de 1935, nos quadros da anterior “Dualidade”, seja iminente, agora.

No comando do novo pacto de poder deverá surgir o sócio menor do pacto anterior, vale dizer, o capitalismo industrial, deslocando da hegemonia o latifúndio feudal. Entrementes, o novo sócio menor deverá, mais uma vez, ser uma dissidência do latifúndio feudal, isto é, o anterior sócio hegemônico, mas, com toda probabilidade - e a julgar pelos fatos já constatados - à frente dessa dissidência não deve aparecer a propriedade rural familiar, mas um latifúndio capitalista, do mesmo modo como o latifúndio escravista foi, com a Abolição-República, substituído pelo latifúndio feudal.

Devemos estar lembrados de que as forças mais conservadoras da sociedade - com a Igreja católica à frente - no processo revolucionário dos anos 30, tomaram posição contra a reforma agrária, tal como a entendíamos nós, os revolucionários da época. Que estivéssemos equivocados - do mesmo modo como o estavam os revolucionários soviéticos contemporâneos, quando entendiam a fase “b” do 3º. Kondratiev, como sinônimo de uma crise geral do capitalismo, sem retorno possível - não deve haver dúvida. Mas isso não quer dizer que a reforma agrária iminente seja identificável com a que não pudemos fazer com a ANL, nos anos 30. Uma reforma agrária está, por certo, em pauta, ou em marcha, mas, nem será como a que não pudemos fazer em 30, nem como a que nos propõem agora os bispos - inclusive o papa.

Um capitalismo agrícola - em substituição ao latifúndio feudal - será uma mudança profundamente revolucionária, fazendo-se sob a hegemonia do capitalismo industrial, já agora plenamente amadurecido.

Por outro lado, no Brasil, como na URSS e em quase todo o mundo, a superação da presente “crise geral” - a tomar forma nos anos finais do decênio e do século - deverá fazer-se sob a forma de novas variantes de planejamento. A nossa variante brasileira deverá fazer-se sob novas formas de reserva de mercado. Nada mais esdrúxulo do que recorrer a formas novas de “dumping” do mercado nacional, como, sob o enfeite de “liberalismo” ou de “modernização”, vem sendo proposto.

Como já ficou dito, a reserva de mercado - que serviu antes para “fechar” nossa economia, pode e deve servir, agora, para “abri-la” planificadamente. E que um pretenso assalto aos nossos monopólios e oligopólios não sirva de pretexto para o ‘’dumping” e para o desmantelamento do nosso incipiente planejamento.

  • JEL Classification: N10; P51.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1992
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br