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Os limites da política econômica* * Aula Magna na Faculdade de economia e Administração da Universidade de São Paulo, 4 de março de 1988.

The limits of economic policy

RESUMO

Desde a Segunda Guerra Mundial, a importância da política econômica não parou de aumentar. Mesmo os economistas conservadores não negam sua relevância. Mas seus limites econômicos e políticos são muito claros, a começar por um limite básico: o princípio da racionalidade. O autor discute esses limites a partir de sua experiência pessoal.

PALAVRAS-CHAVE:
Política econômica; papel do governo

ABSTRACT

Since World War II the importance of economic policy did not stop increasing. Even conservative economists do not deny its relevance. But its economic and political limits are very clear, beginning with a basic limit: the principle of rationality. The author discusses these limits using his personal experience.

KEYWORDS:
Economic policy; role of government

A importância da política econômica é crescente e relativamente recente. Foi só após a Segunda Guerra Mundial que a política econômica ganhou suficiente operacionalidade para se tornar um fator significativo a influenciar o desempenho de cada economia nacional. A partir de então as decisões de cada governo sobre a economia do país e, no caso das grandes potências econômicas, sobre a economia mundial, passaram a receber uma atenção cada vez maior. Hoje é frequente a atribuição de uma importância exagerada à política econômica, medindo-se o fracasso ou o sucesso de um governo pelos resultados que obteve na área econômica.

São conhecidos os fatores que permitiram essa maior operacionalidade da política econômica: 1) a revolução macroeconômica keynesiana; 2) o desenvolvimento dos sistemas de contas nacionais; 3) o fortalecimento da capacidade de intervenção do Estado na economia, principalmente através da criação dos bancos centrais. Esses três fatos novos ocorreram basicamente durante os anos trinta, e permitiram que no após-guerra as decisões no plano econômico ganhassem uma efetividade que antes não existia. Não importa discutir aqui o maior ou menor acerto da teoria macroeconômica keynesiana quando comparada com a teoria macroeconômica monetarista e das expectativas racionais. O importante neste momento é assinalar que foi Keynes quem inaugurou a perspectiva macroeconômica, quem passou a analisar a economia a partir de agregados de regulação econômica. O desenvolvimento do sistema de contas nacionais, por sua vez, teve como base teórica a macroeconomia keynesiana, e permitiu uma mensuração mais precisa dos resultados da política econômica. Finalmente, a criação dos bancos centrais possibilitou um controle muito melhor da política monetária, que, em qualquer hipótese, é a principal forma através da qual se expressa a política econômica.

Desde então a importância da política econômica não parou de crescer. Seus limites ou suas limitações, entretanto, continuam a ser muito grandes. Há limites econômicos e limites políticos. Os dirigentes econômicos, os responsáveis pela formulação e implementação das decisões econômicas em cada governo, estão longe de conseguir alcançar seus objetivos através dessas decisões. Nesta aula inaugural, depois de fazermos uma breve revisão dos objetivos da política econômica, analisaremos seus limites econômicos e políticos, e terminaremos discutindo suas relações com a democracia, já que não basta que a política econômica seja eficiente; é fundamental que ela seja também democrática.

1.

Os objetivos da política econômica tendem hoje a confundir-se com os próprios objetivos da sociedade na medida em que os resultados de caráter econômico se tornaram o critério básico do êxito ou do fracasso de qualquer governo. Objetivos sociais fundamentais, como a liberdade política, a paz e· a justiça, são esquecidos ou relegados a segundo plano. A percepção por parte da sociedade de que seus objetivos econômicos fundamentais - o desenvolvimento (ou o pleno emprego), a distribuição da renda (ou o bem-estar social), e a estabilidade de preços - podem ser alcançados com maior ou menor eficiência, dependendo da política econômica adotada, levou a essa superestimação dos objetivos econômicos. Colocada, entretanto, a questão nos seus devidos termos, são exatamente aqueles três pontos que resumem os objetivos da política econômica.

O desenvolvimento econômico - a maximização da produção de bens e serviços por trabalhador, o pleno e o mais eficiente emprego desses trabalhadores através da acumulação de capital e da incorporação de progresso técnico - é o primeiro desses objetivos. Certos economistas poderão argumentar que o objetivo de uma distribuição mais igual da renda não é apenas econômico, mas essa é uma visão muito estreita do campo específico da economia. Já Ricardo considerava a produção e a distribuição os dois objetos fundamentais da Economia Política, e não hesitava em privilegiar o segundo. Finalmente a estabilidade de preços deve ser incluída entre os três objetivos últimos da política econômica porque está associada a uma das necessidades básicas da humanidade: a segurança. Se entendêssemos a inflação apenas como uma ameaça à alocação ótima dos fatores de produção - e portanto como um obstáculo ao desenvolvimento - ou como uma causa de concentração de renda, não faria sentido destacá-la como um dos objetivos básicos da política econômica. Seria apenas um objetivo intermediário, embora importante. A estabilidade de preços, entretanto, é um fator de insegurança de tal ordem que justifica colocar o combate à inflação entre as metas econômicas últimas ou finais de qualquer governo.

Durante o curto período em que ocupei o Ministério da Fazenda, entre abril e dezembro de 1987, estabeleci como objetivos básicos de minha política econômica precisamente o desenvolvimento econômico, a distribuição de renda e o controle da inflação. E, dado o diagnóstico de que os dois problemas econômicos estruturais da economia brasileira eram o desequilíbrio financeiro do setor público e a dívida externa, estabeleci como estratégia ou objetivos intermediários: a redução do déficit público e a combinação do aumento da capacidade de o Brasil pagar sua dívida externa através do aumento das exportações com a obtenção de sua redução via aproveitamento do desconto existente no mercado financeiro internacional. Defini ainda como estratégias complementares a modernização industrial através da redução dos entraves burocráticos às importações, e a reforma tributária que tanto permitiria reduzir o déficit público como distribuir melhor a renda.

2.

Para alcançar esses objetivos a política econômica deverá se pautar por um princípio básico: o princípio da racionalidade. Em termos muito gerais o princípio da racionalidade se define pela escolha dos meios mais adequados para se alcançar os fins visados. Quando, porém, nos referimos à Economia - ou mais corretamente à Economia Política, para usarmos a denominação original que foi-lhe dada pelos economistas clássicos -, devemos ser mais específicos. Os sistemas econômicos funcionam ou devem funcionar segundo o princípio da racionalidade, da eficiência ou da economia - todos termos sinônimos neste contexto. Em cada ação, em cada atividade econômica existe, por definição, uma permanente busca da eficiência, ou seja, a busca da maximização dos resultados alcançados dado um determinado esforço realizado, ou, o que vem a dar no mesmo, da minimização dos esforços necessários para alcançar uma determinada produção. Qualquer resultado, qualquer vantagem econômica alcançada tem um custo, implica a utilização de fatores escassos - trabalho e capital (este também trabalho já acumulado) - para produzir bens e serviços também escassos. Racionalidade em economia significa minimizar esses custos, significa empregar da forma mais eficiente possível os fatores de produção disponíveis. Significa também não esquecer que cada vez que alguém recebe um benefício econômico, outros pagaram por ele. Que cada vez que o governo concede um subsídio, ou mesmo realiza um gasto a fundo perdido em segurança ou educação, esse benefício é apenas aparentemente gratuito. Na verdade, implicou custos que colocam em questão não apenas a economia dos meios utilizados mas também a validade do benefício alcançado ou concedido.

Definido nesses termos o princípio da racionalidade parece algo óbvio, cuja obediência não deveria ter problemas. E, no entanto, nada é mais difícil em política econômica do que segui-lo, tais são as pressões políticas para violentá-lo.

E preciso, entretanto, tomar cuidado com o princípio da racionalidade, porque ele pode ser um disfarce para decisões burocráticas e autoritárias, na medida em que aqueles que tomam as decisões pretendem ser ideologicamente neutros, observando exclusivamente os ditames da razão técnica, da racionalidade econômica. Podemos com certa cautela falar na existência desses princípios quando discutimos os meios, os custos, mas quando o problema é o da escolha dos resultados a serem alcançados e de quem deve ser beneficiado, não se pode mais falar em racionalidade econômica com tanta facilidade. Nesse momento os critérios de justiça, para não falar nos puros e simples interesses de grupos e de classes, terão que necessariamente ser considerados.

3.

Os responsáveis pela política econômica não podem, porém, escapar das decisões sobre os resultados a serem alcançados e principalmente sobre quem deverá ser mais beneficiado - ou prejudicado - com as medidas a serem tomadas. Isto significa que eles não podem deixar de reconhecer as condicionantes políticas a que estão sujeitos e a fazer opções ideológicas claras.

Estamos discutindo os limites da política econômica em países capitalistas. Isto significa que uma opção obviamente não está aberta: a alternativa revolucionária. Não faz sentido que alguém empenhado em instaurar a curto prazo o socialismo em um país se responsabilize pela política econômica. Quando fui ministro da Fazenda lembro-me de ter respondido com uma gostosa gargalhada à observação de um grande amigo socialista e utópico que me disse, um ou dois meses depois que assumi o Ministério: “Acho que você está indo no caminho certo; o único problema é que você está seguindo a lógica do capitalismo”.

Em uma economia capitalista é impossível deixar de adotar uma política econômica que deixe de obedecer a lógica do capitalismo, que ameace ou deixe de garantir o lucro e a acumulação de capital. Não é necessário, porém, adotar integralmente “a lógica dos capitalistas”, não é preciso adotar sempre políticas que interessam as empresas. Existe sempre a possibilidade e, mais do que isto, a necessidade de optar entre uma política econômica conservadora e uma política econômica progressista. A alternativa aparentemente mais coerente com o capitalismo é a conservadora, de centro-direita. Escolher esta alternativa significa dar prioridade ao lucro em relação ao salário, à produção em relação à distribuição, à segurança e, portanto, à estabilidade de preços em relação à produção ou o desenvolvimento, ao mercado em relação a qualquer forma de intervenção do Estado, mesmo que moderada. E a alternativa do liberalismo econômico, que no plano da teoria econômica corresponde à teoria neoclássica, ao monetarismo e à teoria das expectativas racionais. Sua preferência pelo mercado é coerente com sua prioridade para a produção e o lucro, já que teoricamente é possível demonstrar que a concorrência perfeita asseguraria otimização da produção e do lucro, sem, no entanto, oferecer qualquer garantia quanto a uma distribuição mais justa (já que não há uma “distribuição ótima”) da renda. Isto não significa que o economista conservador não se preocupe com a distribuição da renda. Esta é colocada como um dos seus objetivos, mas um objetivo subordinado, que pode ser sempre postergado em favor do lucro e da produção, que caminhariam necessariamente juntos.

Formuladores de política econômica geralmente adotam ou tentam adotar a alternativa conservadora, as soluções ortodoxas ou monetaristas, mesmo quando os governos que representam tenham sido eleitos por partidos social-democratas. Por uma série de razões é muito mais fácil ou mais seguro adotar essa alternativa: 1) as pressões das empresas e dos capitalistas são muito fortes nesse sentido; contrariar essas pressões é não apenas politicamente perigoso mas também pode levar as empresas a comportamentos indesejados (suspender investimentos, por exemplo); 2) as vertentes dominantes da teoria econômica e da ideologia (duas coisas muito próximas) apontam na direção de políticas conservadoras; as teorias alternativas nem sempre estão tão bem formuladas, ou, quando estão, como é o caso da teoria keynesiana, foram de tal forma diluídas, cooptadas pelos economistas conservadores, que perdem sua identidade. Foi o que aconteceu com a chamada “síntese neoclássica” ou, na expressão de Joan Robinson, com o “keynesianismo bastardo”, que se tornou dominante nos livros-texto de macroeconomia.

A alternativa conservadora é também quase sempre adotada pelos economistas tecnocráticos, que pretendem ser meros técnicos, que afirmam estar imunes ou equidistantes das ideologias. Esses economistas evitam as discussões teóricas e pretendem se ater ao bom-senso ou à racionalidade técnica. Mas ao adotar essa atitude “prudente” eles na verdade se subordinam aos interesses, às teorias e às ideologias dominantes.

Existe, entretanto, a possibilidade da opção por uma alternativa socialmente progressista. Depois de vinte anos de política econômica conservadora - embora nem sempre ortodoxa -, durante o regime autoritário tecnoburocrático-capitalista, inaugurou-se no Brasil, com a Nova República, ou mais precisamente com a ascensão de Dílson Funaro ao Ministério da Fazenda, uma política econômica progressista. Esta política, entretanto, depois do êxito representado por um choque heterodoxo competentemente formulado, com base na teoria da inflação inercial que economistas brasileiros haviam desenvolvido - o Plano Cruzado-, afinal fracassou, levando ao descrédito a heterodoxia econômica.1 1 Para uma análise do desenvolvimento da teoria da inflação inercial e dos primeiros meses do Plano Cruzado ver Bresser-Pereira e Nakano (1987) e Wemer Baer (1987). Para a análise do fracasso desse plano ver Baer e Beckerman (1987) e Peter Knight et alii (1987). Meu desafio era demonstrar, como demonstraram os socialistas franceses depois de uma série de erros cometidos entre 1981 e 1982, que uma política econômica progressista e relativamente heterodoxa era viável; que, da mesma forma que os socialistas - na verdade, social-democratas - franceses, seria possível administrar a economia brasileira de forma mais competente do que os capitalistas, do que os conservadores.

Para alcançar esses objetivo, entretanto, é preciso antes de mais nada evitar alguns equívocos. É preciso não confundir uma política econômica progressista, de centro-esquerda, com estatismo, populismo, ou com nacionalismo, inclusive porque há tanto populismo e nacionalismo de esquerda como de direita. É preciso não pretender que o desenvolvimento seja obtido a qualquer custo. É preciso não enveredar pelo distributivismo que facilmente se confunde com o populismo. É preciso reconhecer que os empresários ou as empresas continuam a ser os principais responsáveis pelo desenvolvimento, na medida em que comandam o processo de acumulação de capital. É preciso lembrar que cabe ao mercado e ao sistema de preços, e não ao Estado, a coordenação de um sistema capitalista. É preciso reservar sempre para a política econômica, ou seja, para o processo de regulação econômica por parte do Estado, um papel subsidiário, complementar em relação ao mercado.

Entretanto, da mesma forma que o estatismo, o erro oposto do liberalismo radical deve ser cuidadosamente evitado. Imaginar que o mercado possa resolver todos os problemas é ignorar a própria natureza do capitalismo tecnoburocrático contemporâneo onde o Estado tem um papel definitivamente importante não apenas para garantir uma melhor distribuição de renda - o que beneficiaria os trabalhadores -, mas principalmente para assegurar a própria acumulação de capital. Essa é uma das razões pelas quais Michel Aglietta (1976Aglietta, Michel (1976) - Régulation et Crises du Capitanisme, Paris, Calman-Lévy, 1982 (1.ª ed., 1976).) fala em um “sistema de regulação” ao invés de um sistema de mercado para caracterizar o capitalismo contemporâneo.

Na verdade, o que distingue uma política econômica progressista de uma conservadora não é um eventual maior intervencionismo estatal da primeira. Os economistas progressistas conservam sua convicção quanto à necessidade da ação reguladora do Estado, ou seja, a necessidade da política econômica, mas revelam uma insatisfação cada vez maior com relação ao Estado empresarial. Só no início do processo de industrialização, quando as possibilidades de acumulação privada são claramente limitadas, haveria justificativa para esse tipo de intervenção estatal. Fundamentalmente a distinção entre conservadores e progressistas deve ser buscada na tentativa dos verdadeiros economistas progressistas de compatibilizar de forma efetiva desenvolvimento econômico com distribuição de renda.

Para alcançar uma distribuição mais igualitária da renda os instrumentos fundamentais são três: 1) uma reforma tributária que implante impostos progressivos; 2) a orientação da despesa pública para atender aos mais pobres em vez de privilegiar os mais ricos; e 3) uma política salarial que garanta que o salário médio real aumente à mesma taxa que o aumento da produtividade, e o salário-mínimo real a uma taxa maior. Uma política de elevação dos salários reais acima da produtividade é, em princípio, inviável levando apenas à inflação, porque os empresários não aceitam a redução de sua taxa de lucros. Uma política econômica progressista seria plenamente bem-sucedida se conseguisse elevar os salários dos trabalhadores um pouco acima do aumento da produtividade, manter a taxa de lucros das empresas em um nível que estimule seus investimentos, e reduzir os rendimentos dos rentistas, que vivem de juros e aluguéis, na proporção do aumento dos salários acima da produtividade.

4.

Seja qual for a opção ideológica, o responsável pela política económica enfrentará em seguida limitações de várias naturezas. Ver-se-á diante de limites para a sua ação de natureza econômica e política.

A primeira limitação de caráter econômico reside na própria imprecisão e no caráter ideológico de grande parte da teoria econômica. A Economia Política é uma ciência social e portanto, inerentemente, uma ciência imprecisa, porque tem como objeto o comportamento de homens e mulheres dotados de um razoável grau de liberdade; porque sendo seu o objeto histórico, está sempre em processo de mudança; porque envolvendo a distribuição da renda ou a repartição do excedente econômico está submetida a interesses poderosos. Distinguir teoria econômica e ideologia nem sempre é fácil.

Mas é preciso não exagerar a importância dessa limitação. A teoria econômica, especialmente a teoria macroeconômica, teve um grande desenvolvimento a partir de Keynes e Kalecki; um corpo de conhecimento comum vem se desenvolvendo através dos anos: o sistema de contas nacionais e as estatísticas econômicas e financeiras em geral aperfeiçoaram-se, um registro vem sendo feito das experiências de política econômica. Nesses termos parece razoável afirmar que bons economistas, independentemente de sua orientação ideológica ou de sua filiação teórica, quando discutem política econômica devem concordar em algo parecido com oitenta por cento dos casos. Ou, em outras palavras, devem fazer frente comum diante da irracionalidade presente em tantas propostas de política econômica. Conforme observou Sir Alec Cairncross, em sua conferência inaugural na reunião anual da American Economic Association: “Há momentos em que pergunto se as discordâncias entre teóricos econômicos, mesmo hoje, são tão profundas quanto sua solidariedade quando são colocados diante de heresias que tão frequentemente caracterizam as políticas econômicas dos governos” (1985Cairncross, Alec (1985) “Economics in Theory and Practice”, a Richard T. Ely Lecture, em American Economic Review, vol. 75, n.º 2, maio.: 6-7).

Enquanto fui responsável pela política econômica do Brasil eu várias vezes encontrei essa solidariedade em economistas com formação teórica muito diferente da minha. É por isso que as variações em termos de política econômica não podem ser muito grandes. E por isso que a distinção entre ortodoxia e heterodoxia é às vezes perigosa, porque um bom economista progressista deverá muitas vezes adotar soluções consideradas “ortodoxas”, mas que na verdade fazem parte do acervo comum da teoria e da política econômica. É por isso que na prática da política econômica é preciso ter a humildade de desconfiar sempre de suas próprias teorias e as estar submetendo sempre ao debate e à crítica dos próprios fatos.

Na verdade, uma limitação fundamental à política econômica é o caráter excessivamente abstrato e, em consequência, desligado da realidade de grande parte da teoria econômica, especialmente da teoria econômica neoclássica e monetarista que domina o ensino nas universidades. Não há. dúvida de que os modelos teóricos baseados na abstração dos casos particulares constituem o cerne da Economia Política. Um requisito fundamental para um bom economista é ter uma grande capacidade de abstração, que até certo ponto se confunde com sua habilidade em trabalhar com os símbolos e a linguagem matemática. Costumo dizer que nenhum jovem deveria escolher a profissão de economista se não estiver convencido de que possui essa capacidade. Mas as distorções provocadas pelo excesso de abstração, pelo uso abusivo da matemática na economia foram o principal fator que levou Hyman Minsky a afirmar que “as conclusões baseadas nos modelos derivados da teoria econômica padrão não podem ser aplicadas para a formulação de política no nosso tipo de economia. A teoria econômica dominante, especialmente a teoria fortemente matemática desenvolvida depois da Segunda Guerra Mundial, pode demonstrar que um mecanismo de trocas abstratamente definido levará a um resultado coerente senão ótimo. Entretanto esse resultado matemático está comprovado para modelos que abstraem os conselhos de administração das grandes corporações e Wall Street” (1986Minsky, Hyman P. (1986) Stabilizing an Unstable Economy, New Haven, Yale University Press.: 3-4).

Limite de caráter diverso é aquele representado pela insuficiência dos instrumentos de política econômica. Em certos momentos é possível tomar uma medida de política econômica dramática, como um choque heterodoxo, e ficamos então com a impressão de que a política econômica tudo pode. Esses momentos, porém, são excepcionais. Choques, ortodoxos ou heterodoxos, só podem ser adotados em momentos muito particulares e são sempre perigosos devido às consequências indesejáveis que podem acarretar.

Aliás, uma das características da política econômica é que todas as decisões que são tomadas têm um custo. Esta lei geral da Economia Política se aplica também à política econômica. Quando decidimos limitar a expansão de moeda para aumentar a taxa de juros e reduzir a demanda agregada, esse aumento da taxa de juros favorece os rentistas e pode trazer recessão. Quando desvalorizamos a moeda nacional para equilibrar o balanço de pagamentos, o resultado indesejável pode ser a aceleração da taxa de inflação. Quando elevamos o salário-mínimo real para melhor distribuir a renda, a consequência não desejada pode ser novamente o aumento da inflação. Quando aumentamos os impostos para reduzir o déficit público, o resultado imediato pode ser o aumento da inflação e a médio prazo a elevação dos custos das empresas, o desestímulo ao investimento e a recessão. Quando controlamos administrativamente os preços para evitar ganhos especulativos de empresas oligopolistas, o resultado pode ser grave desequilíbrio nos preços relativos. Em contrapartida, quando liberamos os preços para permitir que o mercado equilibre os preços relativos, a consequência não desejada poderá ser a aceleração da inflação.

Mas não são apenas os efeitos não desejados que limitam a utilização de instrumentos de política econômica. Mais grave é o fato de que o poder efetivo que o governo tem de manipular esses instrumentos é limitado porque as leis econômicas são mais fortes.

O caso mais típico é o da política monetária. Os monetaristas consideram a oferta de moeda exógena e, portanto, perfeitamente manipulável pelas autoridades monetárias. Não há dúvida de que o governo tem uma certa capacidade de decidir sobre a quantidade de dinheiro em circulação, mas essa capacidade é essencialmente limitada. A oferta de moeda é basicamente endógena, ajustando-se às necessidades reais de circulação da moeda, como lgnácio Rangel (1963Rangel, lgnácio (1963) - A Inflação Brasileira, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.) e Kaldor (1970Kaldor, Nickolas (1970) - “The New Monetarism”, em Lloyd’s Bank Review, julho.) pioneiramente demonstraram. Se a inflação se acelera, aumenta a quantidade nominal de moeda para manter constante a sua quantidade real. Se o governo reduz artificialmente a liquidez, a velocidade de circulação da moeda aumenta para compensar a redução de sua quantidade.

O mais grave, entretanto, está no fato de que quando a inflação atinge níveis insuportáveis os graus de liberdade da política monetária se tornam mais reduzidos. Quando o governo é obrigado, como ocorre hoje no Brasil, a financiar quase diariamente sua dívida interna mobiliária a uma taxa de juros nominal aproximadamente igual à taxa de inflação do dia, é claro que não se pode mais falar em política monetária.

Outra limitação econômica importante para a ação do governo reside na crescente interdependência das políticas econômicas nacionais. O caso mais dramático foi o da França em 1981. Os socialistas assumiram o poder e decidiram enfrentar o grande desemprego de então com uma política econômica expansionista de inspiração keynesiana. Como a França está fortemente integrada no Mercado Comum Europeu e mais amplamente no sistema econômico internacional, e como os demais países centrais continuaram a praticar políticas fiscais e monetárias rígidas, a consequência foi o desequilíbrio do balanço de pagamentos e o aumento da taxa de inflação.

Finalmente, em um plano mais geral, a limitação econômica fundamental da ação do governo é a existência da dinâmica do ciclo econômico. A política econômica tem sua razão de ser no pressuposto de que o mercado é incapaz de regular de maneira satisfatória o desempenho do sistema econômico. Por isso seria necessária a ação supletiva do governo, corrigindo as eventuais distorções. Mesmo os liberais mais extremados não negam esse pressuposto. Apenas restringem o escopo da intervenção governamental. Há, entretanto, uma distorção ou um desequilíbrio contra o qual os poderes da política econômica são reduzidos: o ciclo econômico. As empresas aumentam e diminuem seus investimentos ciclicamente segundo leis que a política econômica não pode derrogar. Os economistas monetaristas e das expectativas racionais radicalizam ao afirmar a total impotência do governo nesse caso. Estão errados. Mas é cometer erro de igual tamanho imaginar que o governo possa controlar o ciclo econômico. No máximo pode atenuar seus efeitos.

5.

Se os limites de caráter econômico, especialmente em um país subdesenvolvido e em crise como o Brasil, inviabilizam o que os economistas chamam de “sintonia fina”, ou seja, o ajustamento preciso das variáveis econômicas fundamentais, os limites de caráter político podem inviabilizar a própria política econômica.

Limitação política por parte do governo significa falta de poder, significa incapacidade de agir com a independência e o vigor necessários para levar adiante uma política econômica adequada. Essa falta de poder pode originar-se na falta de firmeza do próprio governo, ou pode ter como causa o excesso de poder relativo dos grupos de pressão que agem sobre o governo. Na verdade, as duas causas são interdependentes. O populismo, o fisiologismo do governo, que se traduzem na sua falta de firmeza, são, ao mesmo tempo, fruto de seu oportunismo, de sua falta de princípios, e o reflexo de sua carência relativa de poder em relação aos grupos de pressão de todos os tipos: políticos stricto sensu, empresariais, trabalhistas, burocráticos.

Quando um governo se sente fraco politicamente, sem apoios na sociedade ou no parlamento, frequentemente adota como estratégia, consciente ou inconscientemente, o populismo e o fisiologismo. O Brasil no presente momento histórico é um bom exemplo do que estamos afirmando. Por populismo deve-se entender aqui a tentativa de agradar a todos com o uso dos recursos do Estado.2 2 Esta concepção de populismo, ou, mais precisamente, de política econômica populista, está baseada em Carlos Dias Alejandro (1981). Não deve ser confundida com o conceito de populismo usado para definir um determinado tipo de pacto político. Aos empresários se dá subsídios, incentivos, encomendas, aumento do crédito, redução de impostos ou sua não fiscalização adequada. Aos trabalhadores e funcionários, aumentos de salários e de benefícios sociais, além de preços subsidiados de bens e serviços públicos. Às comunidades locais, melhoramentos públicos. Aos políticos, empregos para seus protegidos, verbas para os municípios onde obtêm votos. O fisiologismo, por parte do governo, consiste exatamente nesse último aspecto: comprar o apoio dos políticos com verbas públicas; por parte dos parlamentares, em participar desse jogo corrupto. Porque afinal não existe diferença sensível entre a corrupção típica do setor público - apropriar-se privadamente dos recursos públicos através da exigência de comissões dos que fornecem ao Estado ou dele recebem benefícios - e utilizar esses mesmos recursos públicos para atender aos interesses particulares dos governantes através da compra de apoios. Os resultados do populismo e do fisiologismo são o aumento do déficit público, a perda de efetividade da política econômica e afinal a desmoralização dos governantes.

As limitações políticas às decisões econômicas do governo ficam patentes em relação ao problema do déficit público ou, mais amplamente, da política fiscal. Embora esse problema seja dramático para os países subdesenvolvidos, é também uma constante preocupação para os desenvolvidos. Conforme declara James Buchanan, “talvez o mais importante problema econômico que enfrentam as democracias ocidentais nos anos que faltam para o fim do século XX é a propensão dos governantes em operar no vermelho, em gerar déficits orçamentários em resposta a pressões dos eleitores e de grupos especiais de pressão” (1986Buchanan, James, Charles Rowley e Robert Tollison (1986) - “Government by Red Ink”, em Deficits, livro org. pelos mesmos autores, Oxford, Basil Blackwell.: 3).

Os alunos de Economia Política aprenderão nesta universidade que há uma eterna discussão entre os keynesianos e os monetaristas, os primeiros privilegiando as políticas fiscais e os últimos as monetárias.3 3 Para uma discussão recente sobre o assunto ver, por exemplo, Richard Musgrave (1987-1988). Ainda que esse debate seja muito importante no plano teórico, na prática ele pouco significa, porque é comum vermos economistas keynesianos serem obrigados a limitar sua ação à política monetária pela simples razão de que a política fiscal é sempre politicamente muito mais difícil de ser implementada. Enquanto a política monetária depende de algumas decisões que são de responsabilidade exclusiva das autoridades monetárias, as decisões de política fiscal envolvem outros poderes. Para cortar a despesa pública é necessária a colaboração de ministros e governadores; para aumentar impostos é essencial a participação do poder legislativo. Além disso, enquanto a política monetária é pelo menos aparentemente indiscriminada, a política fiscal geralmente atende ou prejudica interesses muito específicos. Em consequência, seus patrocinadores ou seus opositores são muito mais vocais, organizam-se em grupos de pressão de todos os tipos com muito maior facilidade.

6.

Os grupos de pressão, os lobbies, são um fenômeno típico das democracias modernas. Pressionam o executivo, pressionam o legislativo, pressionam o judiciário. Usam de todos os meios, legais e ilegais, para alcançar seus objetivos - geralmente reivindicações específicas dirigidas a um dos três poderes. É em grande parte através desse expediente que a classe dominante - e aos poucos também setores das classes dominadas - fazem valer seus interesses junto ao aparelho do Estado. Por outro lado, existe o debate e a hegemonia ideológica da classe dominante, que se exerce através dos aparelhos ideológicos que ela tende a dominar - a imprensa, a universidade, as escolas, as igrejas, algumas associações de classe mais importantes (na maioria, meros grupos de pressão).

Tanto os grupos de pressão quanto as condicionantes ideológicas estabelecem limitações para a política econômica. Essas limitações, entretanto, podem ser parcialmente superadas pelo governo, dependendo de três variáveis: 1) da legitimidade do próprio governo; 2) das alianças que logre realizar; 3) da qualidade moral - entendida esta expressão em seu sentido amplo - de seus líderes.

A palavra “legitimidade” tem muitos sentidos. Uso-a aqui com um sentido muito preciso: um governo é legítimo quando tem o apoio da sociedade civil; a maior ou menor legitimidade de um governo é proporcional ao maior ou menor apoio com que esse governo conta junto à sociedade organizada em classes e frações de classe e ponderada de acordo com os respectivos poderes econômicos e políticos, ou seja, junto à sociedade civil. Legitimidade não deve ser confundida com legalidade - um governo é legal quando assumiu o poder de acordo com as leis então vigentes no país -, nem com popularidade ou representatividade, que é o apoio que esse governo tem junto ao povo. Porque povo deve ser claramente distinguido de sociedade civil. Enquanto no conceito do povo - conjunto de cidadãos - estes são por definição iguais perante a lei, no conceito de sociedade civil não há essa igualdade. Os indivíduos são ponderados pelos poderes que possuem pessoalmente ou como parte de grupos e instituições de todos os tipos.

Em qualquer sistema político é na sociedade civil que reside o poder. Em regimes fortemente autoritários a sociedade civil pode quase se confundir com o próprio governo, já que todo o poder social está concentrado nas mãos de muito poucos. A sociedade civil pode ser ela mesma mais ou menos democrática, na medida em que os poderes estejam mais ou menos distribuídos dentro dela. Mas um governo só será legítimo e, portanto, só terá efetivamente poder quando tiver um razoável apoio da sociedade civil. Quando um governo perde esse apoio, como aconteceu nos últimos anos do regime autoritário, e como volta agora a acontecer com o governo Sarney, quando todas as classes sociais e especialmente as classes dirigentes perdem a confiança no governo, vemo-nos diante de uma crise de legitimidade.

Fala-se muito hoje no Brasil que estaríamos entrando em uma situação de ingovernabilidade. Com isso o que se pretende afirmar é que o governo se encontra sem poder para governar, e, portanto, - em um plano mais específico - que não tem autonomia nem para formular nem para implementar uma política econômica efetiva. O governo conserva apenas o poder legal, formal. Pode editar decretos, portarias, resoluções, gastar ou deixar de gastar. Mas esses poderes, ainda que não possam ser subestimados, são na verdade pouco efetivos dada a crise de legitimidade. Sem apoio na sociedade civil o próprio poder formal tende a diminuir, porque o governo, não obstante todo o fisiologismo a que recorra, começa a perder a maioria parlamentar necessária para governar.

A legitimidade de um governo está relacionada com os êxitos ou fracassos da administração que venha realizando, e particularmente da efetividade de sua política econômica, mas depende também das alianças políticas em que se apoie. Nas sociedades capitalistas, especialmente nas fases de sua consolidação econômica e política, tendem a se constituir o que Gramsci chamou de “blocos de poder”. Ou seja, surgem alianças de classes e frações de classes dirigentes, que assumem o controle do aparelho do Estado, que se transformam em governo. Os governos são, portanto,, em princípio, o resultado dessas alianças de classe. Podem, no entanto, ser também agentes da formulação e manutenção dessas alianças.

No Brasil o processo de redemocratização ocorrido entre 1975 e 1984 foi fruto da aliança de setores democráticos e progressistas das classes médias (média burguesia e média tecnoburocracia) com a grande burguesia industrial.4 4 Analisei extensamente este fenômeno em O Colapso de uma Aliança de Classes (1979) e em Pactos Políticos (1985). Esta se transformou na classe dirigente hegemônica por excelência. O capital agrário mercantil, embora mantivesse um razoável poder no parlamento graças à sua presença ainda dominante no Nordeste, foi ou deveria ser o grande derrotado com o advento da Nova República. O governo que surgiu dessa aliança, entretanto, não soube compreender ou não foi capaz de se identificar com o novo bloco de poder que se formara. Preferiu restabelecer velhas alianças com o velho capital agrário-mercantil amplamente dependente das benesses do Estado. Em consequência, o primeiro governo da Nova República entrou em contradição com o novo regime, tornando-se extremamente parecido com os governos da Velha República. Francisco Weffort (1984Weffort, Francisco (1984) - Por que Democracia?. São Paulo, Brasiliense.) chamou o processo de redemocratização ocorrido no Brasil de “transição conservadora”. Na verdade, cabe hoje perguntar se chegou a haver transição. Eu responderia que sim, que houve a transição, porque o Congresso Nacional Constituinte está em funcionamento e prestes a aprovar uma nova constituição democrática para o Brasil. Mas, na medida em que o governo não soube se identificar com o novo bloco de poder, que tentou e continua tentando destruí-lo sem, no entanto, lograr substituí-lo por outro, acabou anulando grande parte dos avanços da transição democrática. Em consequência perdeu o apoio da sociedade civil e levou o país a uma crise de ilegitimidade e de ingovernabilidade. As esperanças na transição democrática e na Nova República estão agora depositadas nos trabalhos da Constituinte e na perspectiva do término deste governo de transição.

7.

O homem público e mais particularmente o responsável pela política econômica deve, portanto, estar sempre desenvolvendo estratégias para superar as condicionantes que enfrenta. Ter consciência clara dos limites econômicos e políticos que o cercam é o primeiro passo. Tentar superá-los ou contorná-los, fazendo as concessões necessárias, mas não cedendo no essencial, é o segundo.

Quando o governo, do qual fazem parte os responsáveis pela política econômica, é politicamente forte, possui legitimidade, essa tarefa de contornar ou enfrentar os obstáculos é relativamente simples. Mas quando o governo passa por uma grande crise de legitimidade, como ocorreu no período em que respondi pelo Ministério da Fazenda, a situação torna-se muito mais difícil. Nesses momentos a própria sociedade torna-se confusa. Seus valores, seus objetivos perdem clareza. Nenhum grupo dentro das classes dirigentes consegue definir os rumos a serem seguidos. A própria hegemonia da classe dominante perde nitidez na medida em que não consegue exercer adequadamente sua função de classe dirigente.

Nesses momentos uma estratégia possível, que eu próprio adotei durante algum tempo com certo êxito, foi o que eu chamei de “teoria do vetor”. A ideia é relativamente simples. Já que não há nenhum grupo hegemônico na sociedade, já que os empresários, os tecnoburocratas e os trabalhadores estão principalmente voltados para a defesa de seus interesses corporativos, já que os partidos políticos, inclusive seu próprio partido, estão divididos e minados pelo fisiologismo, já que o próprio governo a que você pertence tem como seu principal objetivo, ao qual tudo mais se subordina, permanecer por mais algum tempo no poder - nessa situação o melhor é fazer uma avaliação das forças e ideias dominantes e, respeitando o princípio da racionalidade econômica e as suas próprias convicções, traçar um vetor resultante de política econômica e tratar de segui-lo, sem levar muito em consideração as pressões de fora e de dentro do governo.

Mas para que essa estratégia tenha êxito é essencial o apoio e a colaboração do chefe do governo. Quando esse apoio e essa colaboração começam a faltar, seja porque os objetivos políticos do chefe do governo passam a conflitar com os objetivos da política econômica, seja por que motivo for, nessa hora a única coisa a fazer é solicitar demissão do seu cargo. As limitações econômicas e políticas podem sempre ser contornadas ou superadas. Já a falta de apoio do chefe do governo, seja ele o presidente ou o primeiro-ministro - porque no Brasil é sempre bom lembrar que o ministro da Fazenda está muito longe de ter os poderes de um primeiro-ministro - inviabiliza qualquer política econômica.

8.

Diante dos limites econômicos e políticos à implementação de uma política econômica adequada, racional, muitos acreditam que o recurso ao autoritarismo pode ser uma solução. Não vou fazer aqui uma comparação da eficiência econômica dos regimes autoritários e democráticos. Além de inconclusiva essa comparação seria gratuita, já que a liberdade política, a democracia, é um objetivo que não pode ser sacrificado em favor de qualquer meta econômica. O autoritarismo, entretanto, pode estar presente na forma pela qual as decisões de política econômica são tomadas no seio de um regime pelo menos · formalmente democrático.

Não é fácil resolver o problema do autoritarismo nas decisões sobre política econômica. É comum encontrarmos um democratismo radical que pretende que todos os problemas de política econômica sejam antes cabalmente discutidos para que depois possa ser tomada a decisão. Ora, o que é uma discussão cabal, completa? E quais os fóruns em que ela deve ser travada? É evidente que essas perguntas não têm resposta simples. Geralmente, em um regime democrático, deveria ser o parlamento o fórum mais adequado. Em certos casos, conselhos ou comissões podem ser muito úteis. Mas todos esses fóruns de discussão e de decisão são limitados. Há um certo momento em que é preciso decidir com urgência e firmeza. As decisões muitas vezes são técnicas, muitas vezes são políticas. Um acordo nem sempre é possível ser alcançado. Imaginar que cada decisão de política econômica possa ser o resultado de uma vocação é impensável.

Não há dúvida, porém, de que é possível ir aumentando gradual, mas firmemente o grau de democracia presente nas decisões sobre política econômica. Para alcançar esse objetivo é essencial, em primeiro lugar, combater o vício burocrático do segredo. Uma das características essenciais da administração burocrática, conforme já ensina Max Weber, é o segredo. E formulação de política econômica, na medida em que é uma atividade técnica, assume frequentemente o caráter burocrático: Guardar segredo, só ter ele próprio acesso a dados, a estatísticas essenciais para a avaliação e formulação de política econômica é um instrumento de poder do tecnoburocrata. Lembro-me de um deles, que adotava de forma quase caricatural essa estratégia. Frequentemente ia para reuniões com uma série de informações que utilizava para decidir ou para cobrar dos demais algum tipo de ação, mas dizia que não forneceria aqueles dados aos presentes “porque não tinha tido tempo de tirar cópia xerox”.

A alternativa para esse tipo de comportamento é a transparência das decisões e das informações. É procurar difundir o mais possível os resultados da política econômica, sejam eles positivos ou negativos. É utilizar não apenas como princípio moral, mas também como estratégia de governo, a ideia de que toda a sociedade deve participar do controle da política econômica na medida em que tem acesso às informações relevantes. Nos regimes democráticos a imprensa desempenha um papel muito importante nesse sentido, mas os responsáveis pela política econômica podem dificultar ou facilitar sua tarefa.

Mais grave do que o segredo sobre as informações é a sua distorção ou manipulação. No Brasil essa prática tem sido frequente. E é sempre adotada em nome da eficiência da política econômica ou mesmo do interesse nacional. Recuso-me, porém, a me estender sobre o assunto porque o seu caráter não apenas antidemocrático, mas imoral é por demais evidente. É preciso, no entanto, assinalar que infelizmente existe uma certa leniência para com esse tipo de comportamento no Brasil.

Um problema que ainda não está resolvido é o do segredo no caso de choques heterodoxos. O congelamento geral de preços, que em certos momentos se impõe como a única alternativa para eliminar ou reduzir o componente inercial da inflação, só é viável se for implementado de surpresa. Caso contrário os aumentos de preços feitos nas vésperas do choque alteram de tal forma o equilíbrio dos preços relativos que inviabilizam a medida. A partir dessa análise e da necessidade de medidas de emergência para debelar uma crise sem precedentes em que se encontrava a economia brasileira no momento em que assumi o Ministério da Fazenda, eu próprio tomei em segredo a decisão de em segredo congelar todos os preços. Estava, entretanto, claro para mim que, dado o caráter emergencial da decisão, ela teria que ser repetida no prazo de aproximadamente um ano, quando então poderia ser uma medida definitiva para eliminar a inflação inercial. Esse segundo choque, entretanto, só poderia ser decidido depois de uma ampla discussão com toda a sociedade, nos moldes do que foi feito em Israel, de forma que os três principais atores do processo econômico - os empresários, os trabalhadores e o governo - pudessem assumir plenamente suas responsabilidades. A data do choque ainda deveria permanecer em segredo, mas a discussão sobre a sua necessidade e sobre as regras gerais a serem seguidas por todos após o choque deveria ser a mais ampla e franca possível. A política econômica é inviável se não existir na sociedade algum tipo de pacto social implícito ou explícito. Só assim as decisões tomadas serão obedecidas. Ora, um choque de preços representa um caso limite de uso do poder em política econômica. Necessita, portanto, como condição essencial do seu sucesso a aprovação e a participação da sociedade, não apenas na fiscalização dos preços, mas na própria formulação do plano.

9.

Espero ter deixado claro nesta aula que, se as esperanças depositadas na política econômica são muito grandes, maiores ainda são as limitações ou as condicionantes econômicas e políticas que pesam sobre ela. Tomar decisões de política econômica competentes, efetivas e democráticas é um permanente desafio para as sociedades contemporâneas. É preciso, entretanto, não superestimar essas condicionantes. É preciso lembrar que uma parte ponderável dessas limitações pode ser superada pelas qualidades morais e culturais dos governantes.

Os cientistas sociais, que de uma forma ou de outra sofreram a influência de Marx e de Freud, tendem a dar grande importância às condicionantes econômicas e sociais ou então ao papel do inconsciente na determinação do comportamento dos governantes. Depois de cinco anos de experiência em cargos de direção no setor público, e principalmente depois dos sete meses e meio de permanência no Ministério da Fazenda, cheguei à conclusão de que, embora aquelas condicionantes não possam ser ignoradas, não devem ser superestimadas. As qualidades morais dos governantes - a dignidade, a honestidade, o desprendimento, a coragem - e suas qualidades culturais, ou seja, sua capacidade de ter uma visão global da sociedade e da economia brasileira e de sua inserção no sistema capitalista-tecnoburocrático contemporâneo, são qualidades fundamentais, indispensáveis.

Homens públicos com essas qualidades são capazes de enfrentar e superar muitas das limitações políticas e econômicas que acabamos de analisar. Os estadistas são exatamente os governantes que, graças à sua visão e à sua coragem, conseguem enfrentar as limitações e superar as crises; são os políticos que em um determinado momento de grave crise são capazes de interpretar os interesses nacionais e realizá-los, ainda que para alcançar esse objetivo sejam obrigados a contrariar interesses particulares poderosos e a enfrentar convicções ideológicas dominantes na sociedade.

De qualquer forma, se não é possível esperar de cada mulher e de cada homem público o desempenho de um estadista - inclusive porque para isso é necessário ocupar no governo um posto com poder formal compatível -, certamente é razoável deles exigir aquele mínimo de qualidades morais e culturais que lhes permita enfrentar as limitações econômicas e políticas, que acabamos de analisar, com alguma possibilidade de êxito. Essas limitações podem explicar o êxito parcial e até o fracasso de certas políticas econômicas, mas jamais justificam a conivência ou a rendição a essas limitações.

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  • *
    Aula Magna na Faculdade de economia e Administração da Universidade de São Paulo, 4 de março de 1988.
  • 1
    Para uma análise do desenvolvimento da teoria da inflação inercial e dos primeiros meses do Plano Cruzado ver Bresser-Pereira e Nakano (1987Bresser-Pereira, Luiz Carlos e Yoshiaki Nakano (1987) - The Theory Inertial lnflation, Boulder, Lynne Rienner Publisher.) e Wemer Baer (1987Baer, Werner (1987) - “The Ressurgence of Inflation in Brazil, 1974-86”, em World Development, vol. 15, n.º 8, agosto.). Para a análise do fracasso desse plano ver Baer e Beckerman (1987Baer, Werner e Paul Beckerman (1987) - “The Decline and Fall of Brazil’s Cruzado”, College of Business and Public Administration, University of Illinois at Urbana-Champaign, Faculty Working Paper n.º 1393.) e Peter Knight et alii (1987Knight, Peter T. et alii (1987) - Brazil: A Macroeconomic Evaluation of the Cruzado Plan, Washington, Banco Mundial.).
  • 2
    Esta concepção de populismo, ou, mais precisamente, de política econômica populista, está baseada em Carlos Dias Alejandro (1981Alejandro, Carlos Dias (1981) - “Southern Cone Stabilization Plans”, em Cline e Weintraub (1981).). Não deve ser confundida com o conceito de populismo usado para definir um determinado tipo de pacto político.
  • 3
    Para uma discussão recente sobre o assunto ver, por exemplo, Richard Musgrave (1987-1988Musgrave, Richard A. (1987-88) - “U.S. Fiscal Policy and Keynes”, em Journal of Post Keynesian Economics, vol. X, n.º 2, inverno.).
  • 4
    Analisei extensamente este fenômeno em O Colapso de uma Aliança de Classes (1979) e em Pactos Políticos (1985Bresser-Pereira, Luiz Carlos (1985) Pactos Políticos: do Populismo à Redemocratização, São Paulo, Brasiliense.).
  • 6
    JEL Classification: H11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1988
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