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Hiperinflação na América Latina* * Agradecimentos a Blair La Bage, Julia Blewer e Glória Grandolini pela valiosa assistência de pesquisa. Traduzido por Ricardo B. Costa.

Hyperinflation in Latin America

RESUMO

Este artigo discute porque a inflação é tão alta na América Latina e o que pode ser feito para detê-la. A primeira parte começa com uma análise do monetarismo. Discute também os modelos de senhoriagem, o impacto da crise da dívida e da dolarização sobre a inflação. Em seguida, revisamos o estruturalismo e sua visão mais recente: a inércia inflacionária. Em seguida, integramos as diferentes interpretações da inflação. A segunda parte examina os programas de estabilização, começando pela análise dos programas derivados do diagnóstico monetarista, ou programas ortodoxos. Em seguida, nos voltamos para programas heterodoxos, incluindo tanto programas populistas quanto programas baseados em uma nova interpretação da inflação. Os programas de estabilização da década de 1980 não conseguiram obter a consolidação orçamentária e os grandes déficits orçamentários levaram a economia a uma situação clássica de finanças inflacionárias.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; hiperinflação; política monetária; estabilização

ABSTRACT

This paper discusses why inflation is so high in Latin America and· what can be done to stop it. The first part starts with an analysis of monetarism. It also discusses seignorage models, the impact of the debt crisis and of dollarization on inflation. Next, we review structuralism and its most recent insight: inflation inertia. Then we integrate the different interpretations of inflation. The second part examines stabilization programs, beginning with the analysis of programs derived from the monetarist diagnosis, or orthodox programs. Next, we turn to heterodox programs, including both populist programs and programs based on a new interpretation of inflation. The stabilization programs of the 1980s failed to obtain budget consolidation and large budget deficits have pushed the economy into a classic inflationary finance situation.

KEYWORDS:
Inflation; hyperinflation; monetary policy; stabilization

A inflação elevada na América Latina representa uma ameaça às suas incipientes democracias. Corrói o poder de compra dos salários, cria uma forte sensação de insegurança e mina o apoio popular aos governos constitucionais. Muito tem sido dito na literatura sobre os custos da estabilização. Não são menores os custos de uma inflação alta prolongada, como a que existe hoje (novembro de 1988) na Argentina, Brasil e Peru. Enquanto tudo está indexado, incluindo salários, preços, taxas de juros, impostos e sistemas contábeis, para as classes mais baixas, cuja subsistência não está protegida, a inflação em aceleração traz um profundo impacto social. A escalada de conflitos no Brasil e no Peru em níveis históricos sugere que inflação e má distribuição, juntos, não configuram uma combinação estável. A sabedoria convencional afirma que as políticas de estabilização, sendo impopulares por implicarem uma diminuição dos padrões de vida, são problemáticas para os governos que não contam com a coerção, mas dependem do consentimento.1 1 A sabedoria convencional sustenta que o autoritarismo é uma condição necessária para uma estabilização bem-sucedida na América Latina. O argumento é de que os governantes de regimes democráticos adiam ao máximo ações corretivas porque os setores populares, têm, sob estes regimes, maior capacidade de minar as políticas de estabilização. Em contraste, a administração efetiva de um processo de estabilização econômica é mais facilmente executada sob o autoritarismo em função da autonomia dada aos tecnocratas. Veja Skidmore (1977), Kaufman (1986) e Kaufman e Stallings (1988). Contudo, os regimes autoritários igualmente não primam pela implementação de programas de estabilização. A análise de Remmer (1986) sobre os programas de stand-by do FMI na América Latina conclui que os regimes autoritários não são mais inclinados a iniciar programas de estabilização nem mais aptos a sobreviverem às suas reverberações políticas. A razão é que as democracias gozam de forças que não têm sido levadas em conta como legitimidade e apoio popular. Além disso, a racionalidade, eficiência, perícia e capacidade coercitiva dos governos autoritários têm sido grosseiramente exagerada. O trabalho de Remmer também indica que as mudanças de regime podem fazer uma diferença importante para o sucesso de um programa porque o colapso de um regime em conjunção com crise econômica abre um espaço incomum à implementação de programas de estabilização. Surpreendentemente, a inflação elevada hoje representa uma ameaça maior à democracia do que as políticas de estabilização. Os resultados de uma pesquisa realizada em outubro de 1988 no Peru mostraram que 75% dos respondentes eram favoráveis à adoção de um acordo com o Fundo Monetário Internacional.2 2 Ver Boston Globe, 7.11.1988 Esses resultados indicam que a inflação atualmente é mais impopular do que os programas de estabilização.

A inflação também ameaça o crescimento sustentado. A incerteza gerada pela inflação determina horizontes curtos para as decisões de produção e a concentração de ativos em garantias e medidas compensatórias. A estrutura econômica resultante privilegia as finanças em detrimento da produção. O resultado é a fuga de capitais, um fenômeno que tem sido endêmico na Argentina e que faz sua primeira aparição no Brasil nos últimos poucos anos. Enquanto a experiência argentina de perda do valor da moeda tem tradicionalmente significado a fuga de capitais para o dólar ou para depósitos bancários em Miami, no Brasil a experiência também levou à criação de um mercado interno de dinheiro cada vez mais perfeito. O governo tem US$ 35 bilhões de dívida interna pendentes, e esta dívida tem um vencimento efetivo de um dia. Está indexada e, portanto, em princípio protegida contra o risco da inflação. Entretanto, quando o público perde a confiança na habilidade ou intenção do governo de pagar a indexação integral, há uma fuga do overnight para os ativos reais e para o dólar, o que desencadeia uma hiperinflação. E a hiperinflação significa caos econômico e social. Resta ainda saber se Argentina, Brasil e Peru passarão por essa situação extrema.

Este trabalho analisa por que a inflação é tão elevada na América Latina e o que pode ser feito para contê-la.3 3 Amplas discussões sobre a inflação na América Latina podem ser encontradas em Baer e Kerstenezky (1964), Pazos (1972), Dornbusch (1982), Diaz-Alejandro (1982), Hirschman (1987) e Bruno et alii (1988). Há basicamente duas interpretações da inflação na América Latina e dois programas de estabilização correspondentes que derivam dessas interpretações. O monetarismo é a explicação mais antiga da inflação. De acordo com esta escola, a inflação é o resultado de gastos deficitários: a inflação na América Latina seria causada por enormes déficits orçamentários financiados pela criação de moeda. Para conter a inflação, os déficits orçamentários devem ser cortados.

O estruturalismo, como visão oposta, sustenta que os déficits orçamentários simplesmente não importam. As causas da inflação estão nas faltas de oferta, nos pontos de estrangulamento e nas reivindicações discrepantes dos diferentes grupos da sociedade tentando apropriar-se de uma fatia maior do bolo. Para os estruturalistas, uma política de renda é a resposta para conter a inflação.

Ambos os diagnósticos para a inflação são incompletos e, portanto, os remédios que indicam são necessariamente falhos, e invariavelmente fracassam. Contudo, como argumentado neste trabalho, é possível integrar as duas interpretações e projetar um programa que poderá efetivamente conter a inflação.

A análise é apresentada em duas partes. A primeira expõe as diferentes interpretações da inflação e a segunda examina os programas de estabilização derivados dessas interpretações. A primeira parte começa com uma análise do monetarismo, explorando as relações entre a inflação e a moeda. São analisados os modelos de senhoriagem, bem como o impacto da crise da dívida e da dolarização sobre a inflação. Em seguida, faz-se uma revisão do estruturalismo e de seu mais recente insight: a inércia inflacionária. São então integradas as diferentes interpretações da inflação.

A segunda parte do trabalho analisa os programas de estabilização. Inicia-se com a discussão de programas derivados do diagnóstico monetarista ou programas ortodoxos. Incluímos dentro desta categoria os programas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e a experiência neoconservadora do Cone Sul. Voltamos a atenção em seguida aos programas heterodoxos. Estes incluem tanto programas baseados numa interpretação populista do estruturalismo, como por exemplo o Plano Inti no Peru, quanto aqueles baseados numa nova interpretação da inflação, exemplificados pelo Plano Cruzado no Brasil e Plano Austral na Argentina. Todos fracassaram. As razões do fracasso são explicadas nas últimas duas seções.

Alguns números

Antes de iniciarmos a análise, é interessante inserirmos nossa discussão sobre a inflação em seu contexto. Embora elevadas em comparação com a inflação de países industrializados, as taxas de inflação na América Latina têm diferido enormemente no tempo e entre os vários países. De maneira global, elas cresceram substancialmente durante o início dos anos 80. A experiência mais notória foi a hiperinflação boliviana de 1985, em que os preços registraram uma alta de 12000%. Mesmo sendo o caso da Bolívia um exemplo extremo, uma taxa de inflação de três dígitos tem sido um fenômeno persistente na Argentina e no Brasil. A Tabela 1 divide os países latino-americanos (exceto Cuba e Nicarágua) em três grupos. Durante os 28 anos que vão de 1960 a 1987, o grupo de países de inflação alta viveu taxas de inflação média acima de 30% ao ano. Todos esses países estão abaixo da linha do Equador. O grupo de países de inflação baixa registrou taxas de inflação média abaixo de 10% durante o período considerado. Localizados na América Central, estão entre os países mais pobres da América Latina, excetuando-se a Venezuela. As projeções para 1988 mostram que para muitos deles a inflação está subindo.

Tabela 1:
Taxas de inflação na América Latina 1960-1988 (% ao ano durante o período)

1. AS CAUSAS DA INFLAÇÃO

1. 1. Monetarismo e financiamento do déficit

O monetarismo explica a inflação como o resultado de um processo em que dinheiro em excesso corre atrás de bens em escassez. A razão para o excesso de dinheiro é o financiamento dos déficits orçamentários por meio da criação de moeda. A principal crença do monetarismo é de que qualquer alteração na demanda agregada que o governo consiga provocar acabará redundando em preços mais altos e não em aumento da produção. Os aumentos do déficit público e do estoque de moeda podem ter efeitos de curto prazo na economia apenas enquanto as pessoas não consigam antecipar os aumentos de preços. Uma vez que a inflação é incorporada às expectativas, os aumentos da oferta de moeda resultam tão-somente em aumentos do nível de preços. Este processo pode até ser extremamente rápido se as expectativas forem racionais.

A verdade básica no monetarismo é que a inflação não pode persistir sem um crescimento sustentado da moeda. As Figuras 1 e 2 ilustram a forte correlação positiva entre inflação e crescimento da moeda na América Latina.4 4 As observações mostradas nas Figuras 1 e 2 de taxas de inflação média e de crescimento da moeda entre 1965 e 1985 na América Latina produzem a seguinte linha de regressão: taxa de inflação = - 0 , 167 + 1 , 46 taxa de cresc. da moeda ; R 2 = 0 , 986 t-estatístico : 34 , 02

Figura 1:
Inflação e moeda na América Latina Países de inflação alta

Figura 2:
inflação e moeda na América Latina Países de inflação média e baixa

Senhoriagem

A senhoriagem é o nome dado à fonte de receitas do governo provenientes da emissão de moeda. Quando o governo financia o déficit criando dinheiro, este é absorvido pelo público. À medida que os preços sobem, o poder de compra de um dado estoque de saldos nominais cai. A inflação atua, portanto, como um imposto.

Qual é o volume de receitas que os governos da América Latina obtêm através da emissão de moeda? O montante de receitas reais que o governo pode levantar emitindo moeda é o incremento da base monetária deflacionado pelo índice de preços, como mostra a Figura 3. Quando a economia está crescendo, o governo obtém alguma receita com a senhoriagem mesmo não havendo inflação. Como a demanda por liquidez cresce quando há um crescimento da renda real, o governo pode criar algum dinheiro sem produzir inflação. Mas à medida que o crescimento da moeda aumenta acima do crescimento da renda real, a inflação sobe. A renda com a senhoriagem também cresce, mas a uma taxa decrescente. Isto acontece porque, à medida que a inflação sobe, as pessoas reduzem suas participações reais da base monetária, já que mantê-las torna-se cada vez mais custoso. Assim, a senhoriagem crescerá menos do que proporcionalmente com o aumento do crescimento da moeda e da inflação. Eventualmente, a inflação poderá tornar-se tão alta que não haverá aumento do crescimento da moeda capaz de produzir um aumento real da senhoriagem.

Figura 3

A ilustração clássica para os modelos de senhoriagem é uma economia de guerra em que o governo, não podendo aumentar os impostos, tem que financiar seus gastos com a defesa por meio da emissão de moeda. A Nicarágua é um exemplo atual. Durante os últimos cinco anos, mais da metade do orçamento nacional da Nicarágua tem sido dedicado à defesa. Não podendo aumentar os impostos, o governo foi forçado a emitir moeda para financiar seu déficit orçamentário crônico, acelerando a inflação. Em meados de 1988, a taxa de inflação anual em Managua foi estimada em 10.000%.

Inflação e dívida

Podemos explicar a inflação em outros países latino-americanos usando o modelo de senhoriagem? Para os países da Tabela 2, não parece existir qualquer relação clara entre inflação e senhoriagem. As experiências do Brasil, Argentina e México devem ser interpretadas à luz de seus endividamentos externos. A história da inflação dos anos 80 começa com a crise da dívida, quando os governos latino-americanos foram privados dos influxos de capital estrangeiro para financiar seus déficits. Para produzir os excedentes comerciais e as divisas necessárias ao serviço da dívida, as taxas de câmbio foram fortemente depreciadas. As desvalorizações tiveram consequências inflacionárias por conta do impacto sobre a importação de bens finais e intermediários. Tiveram também um importante impacto sobre o custo interno do serviço da dívida externa. Como as desvalorizações fizeram crescer o serviço da dívida em moeda local, o déficit orçamentário medido em moeda local também cresceu, aumentando a necessidade de criação de moeda bem como a inflação. O resultado foi que a inflação latino-americana dobrou no início dos anos 80 (ver Tabela 1).

Tabela 2:
Senhoriagem e inflação* (países selecionados, porcentagens)

Dolarização

À medida que a inflação se eleva e a confiança no dinheiro do país diminui, as pessoas tendem a substituir a moeda local por moeda estrangeira. O uso de dólares americanos pelos latino-americanos no lugar de sua moeda local é referido como o processo de dolarização da América Latina. Para medir a dolarização, precisaríamos conhecer a extensão do uso de dólares americanos em transações e para a especulação. Como não há dados sobre a circulação de moeda americana na região, podemos usar dados referentes aos depósitos denominados nessa moeda no México e na Bolívia como uma indicação do processo de dolarização.

A razão entre os depósitos em dólares e aqueles denominados em pesos no México é mostrada na Figura 4 (ver p. 334). Cresceu de 5% em 1975 para 25% por volta do primeiro quarto de 1977, e para 58% em 1982. Já pelo final de 1982, com o congelamento dos depósitos e com as reformas financeiras radicais, essa razão caiu subitamente. Note-se que os anos de marcados aumentos da razão de dolarização foram anos de fim de governo, quando tanto as expectativas de desvalorização quanto rumores de possíveis mudanças no regime econômico exerceram um papel importante na explicação da dolarização mexicana.

Figura 4:
Razão dólar/peso de depósitos no sistema financeiro mexicano

A razão entre os depósitos a prazo em dólares e aqueles denominados em pesos bolivianos nos bancos comerciais desse país aumentaram de 10% em 1973 para mais de 150% em 1982, período durante o qual o país havia subido de uma inflação de um dígito para uma inflação de três. A Bolívia constitui um excelente exemplo para o argumento monetarista. Há uma nítida relação entre a crise da dívida, o aumento do déficit orçamentário e a criação de moeda. Em 1982, Hernán Siles-Suazo assumiu o poder liderando uma coalizão esquerdista. O governo queria satisfazer as demandas sociais e ao mesmo tempo teve que enfrentar um aumento do serviço da dívida devido ao aumento das taxas de juros internacionais. As receitas provenientes da taxação das exportações encolheram com a queda dos preços do estanho, e os empréstimos internacionais secaram. O déficit do governo foi enfrentado por meio de um aumento da criação de moeda. A inflação aumentou ainda mais o déficit, já que as receitas fiscais reais caíram devido às defasagens na arrecadação dos impostos. A busca de receitas com a senhoriagem combinada com a perda do valor do dinheiro levou à hiperinflação em 1985.

1.2 O ESTRUTURALISMO

O estruturalismo inicial

Os estruturalistas latino-americanos alegam que os diferentes setores da economia se desenvolvem a velocidades diferentes, dando origem a pontos de estrangulamento. Na presença de situações de rigidez para baixo dos preços em alguns setores, esses pontos de estrangulamento originam impulsos inflacionários que não são corrigidos com apertos monetários, embora estes certamente provoquem mais desemprego. Os estruturalistas, portanto, preconizam o investimento em áreas em que os pontos de estrangulamento deverão aparecer (aquelas áreas em que as receitas sociais excedem as receitas privadas), mesmo que o investimento só possa ser financiado com a criação de moeda.

Um modelo estruturalista amplamente usado, que explica a inflação nos países de baixa produtividade do setor agrícola, enfatiza o papel desempenhado por mudanças· nos preços relativos. Durante o processo de industrialização, há uma transferência de recursos do setor agrícola para o setor industrial. Com um setor de produção de alimentos estagnado, o crescimento do setor industrial fará aumentar a demanda por alimentos mais rapidamente do que sua oferta. Como o poder de compra inadequado das exportações impede uma importação de alimentos suficiente, o excesso de demanda por alimentos induz o aumento de preços. Estes preços, entretanto, não são acompanhados por diminuição de preços do setor industrial. Isso acontece porque os preços industriais embutem margens sobre os salários, e o comportamento dos salários depende dos preços dos alimentos. Assim, uma inflação global é induzida.5 5 Ver Cardoso (1981).

Os estruturalistas também apontam discrepâncias distributivas - um conjunto de aspirações pela renda real que não podem todas ser satisfeitas simultaneamente a partir da produção real da economia - como uma fonte de inflação.6 6 Ver Taylor (1983).

A discussão sobre se as discrepâncias distributivas poderiam realmente causar inflação levou a concessões entre monetaristas e estruturalistas. Muitos monetaristas já aceitam que a crescente incompatibilidade das aspirações sobre a renda se traduz em déficits orçamentários maiores, produzindo com isso maior inflação mediante uma política monetária acomodativa. Por outro lado, a maioria dos não monetaristas atualmente admite que a aceleração da inflação não pode persistir indefinidamente sem uma acomodação monetária.

Recentemente, os estruturalistas foram sucedidos por um novo grupo de economistas que enfatiza a inércia inflacionária.

O novo estruturalismo: a inércia inflacionária

Uma inflação que se autoperpetua é chamada de inflação inercial. Aparece quando as pessoas têm expectativas sobre a inflação futura com base na inflação passada. A indexação generalizada, atrelando automaticamente as obrigações monetárias ao nível de preços, pode desempenhar o mesmo papel desempenhado pelas expectativas na perpetuação de uma inflação continuada.

Na presença de uma inflação crônica, a indexação dos salários protege os que recebem salário de rápidas diminuições de sua renda real enquanto constantes alterações da taxa de câmbio previnem sua sobrevalorização. O custo da indexação reside na perpetuação da inflação, tornando a estabilização mais difícil.

Começar pela análise de uma economia perfeitamente indexada auxilia-nos a compreender as consequências da indexação. Nela, todos os contratos são ajustados simultaneamente por um índice, que poderá ser o Índice de Preços ao Consumidor. Essa economia teria sérias dificuldades em ajustar-se a um choque que infligisse alterações nos preços relativos, como, por exemplo, o choque do preço do petróleo. Contudo, serviria bem ao ajuste decorrente de um choque monetário. Um crescimento da moeda mais rápido levaria a uma inflação mais rápida, mas a economia real estaria isolada do efeito inflacionário da oferta de moeda.

A vida real não é assim tão fácil. Em primeiro lugar, nenhuma indexação é livre de defasagens e, portanto, uma indexação perfeita é impossível. Segundo, não há registro de uma inflação pura em que a oferta de moeda tenha começado a crescer por um capricho das autoridades monetárias. Há sempre alguma razão econômica real que força os governos a se voltarem para políticas inflacionárias. Os contratos indexados, portanto, não auxiliam o ajustamento, mas antes restringem-no.7 7 Ver Cardoso (1983), Simonsen (1985) e Williamson (1985).

1.3 Integração de diferentes interpretações da inflação

Os monetaristas geralmente estão corretos no caso especial da hiperinflação quando argumentam que a moeda e o comportamento da velocidade8 8 A velocidade é a razão entre renda e saldos efetivos reais. Taxas de inflação ascendentes reduzem a demanda por saldos efetivos reais e aumentam a velocidade. explicam a maior parte do que ocorre. Mas à medida que nos distanciamos das hiperinflações, somos forçados a admitir que os estruturalistas têm algo a ensinar, os fatores do lado da oferta e a inércia inflacionária não podem ser ignorados. A equação (1) leva em conta todos esses fatores para descrever a inflação. A inflação corrente depende da inflação passada via indexação dos salários, da taxa de câmbio e dos preços do setor público. A inflação, contudo, não se faz apenas devido à inércia. Os gastos deficitários ou a contenção excessiva, isto é, o nível de atividade, também afetam a inflação corrente porque influenciam no custo marginal das firmas na medida em que a rotatividade da força de trabalho pode ser usada para cortar salários. Devem também ser considerados os choques de oferta, permitindo-nos descrever o processo de inflação como segue:

Inflação hoje = Inflação ontem + efeitos do nível de atividade + efeitos dos choques de oferta . (1)

Esse processo inflacionário tem várias implicações. Em primeiro lugar, os choques de oferta de um período são automaticamente transmitidos aos períodos futuros. Um aumento no preço do petróleo, uma depreciação real, aumentos· dos impostos indiretos, a eliminação de subsídios no setor público ou aumentos no preço real dos bens agrícolas aumentam a taxa corrente de inflação e são transmitidos, via indexação, para uma inflação maior em períodos subsequentes. No círculo vicioso criado pela indexação, os choques inflacionários - como uma desvalorização ou um aumento de preços no setor público - são perpetuados. A indexação do sistema financeiro, da estrutura tributária e da dívida pública implica que mudanças na taxa de inflação são automática e integralmente acomodadas. Além disso, uma redução na taxa de crescimento dos dispêndios nominais não é capaz de eliminar a inflação de um dia para o outro porque se depara com o efeito advindo de uma inflação defasada.

2. PROGRAMAS DE ESTABILIZAÇÃO

2.1 A Ortodoxia

Os programas ortodoxos baseiam-se no diagnóstico monetarista da inflação. Déficits orçamentários e rápido crescimento da moeda conduzem inevitavelmente a um excesso de demanda que se expressa em inflação e em déficits de conta corrente. Se fixada a taxa de câmbio, a inflação promove sua sobrevalorização, o que agrava ainda mais os déficits de conta corrente. O mais antigo remédio ortodoxo para a crise do balanço de pagamentos e inflação consiste em dois ingredientes principais: uma desvalorização (ou corte nos salários reais) e um corte no déficit orçamentário. Esses remédios tradicionalmente fazem parte de programas do FMI, os quais também enfatizam a necessidade de liberar os preços. A Tabela 3 mostra as políticas mais frequentemente utilizadas em programas do FMI.

Tabela 3:
Políticas empregadas por programas de ajustamento apoiados pelo Fundo 94 programas para 67 países entre 1980 e 1984

O resultado dessas políticas é a recessão. A duração da recessão depende da manutenção ou não do corte nos salários reais e de quão rapidamente a economia se ajusta à mudança nos preços relativos. Os economistas mais conservadores tendem a acreditar que os custos do ajustamento são passageiros. Argumentam que, uma vez cortados os orçamentos e mantidos em níveis mais competitivos os salários relativos, a economia se ajusta rapidamente, voltando a crescer. Outros economistas enfatizam que as economias levam tempo para ajustar-se em resposta a mudanças nos preços relativos e que, enquanto isso, os assalariados carregam a maior parte do fardo do ajustamento. Teoria e história têm demonstrado que a segunda hipótese é a verdadeira. Durante um programa de estabilização à la FMI, os assalariados têm que conviver com maior desemprego e salários reais menores até que sejam mobilizados capitais para um setor de bens comerciais mais lucrativo. Durante o período de ajustamento, os baixos padrões de vida e a inquietação política são produtos importantes das experiências do FMI.

Dos anos 50 até os anos 80, a América Latina sofreu com a aplicação de numerosos programas ortodoxos: Chile (1956-1958, 1973-1978), Argentina (1959-1962, 1976-1978), Bolívia (1956), Peru (1959, 1975-1978), Uruguai (1959-1962, 1974-1978), México (1983) e Brasil (1982-1983). Os resultados foram considerados pavorosos. Reduções temporárias da inflação e dos déficits externos combinaram-se com grandes aumentos no desemprego e uma redução da participação do trabalho na produção.

Manuel Pastor (1987PASTOR, Manuel (1987). “The effects of IMF programs in the Third World: Debate and evidence from Latin America”. World Development, fev. ) fez uma análise empírica dos programas do FMI na América Latina no período 1965-1981. Seus principais achados foram que os programas do Fundo: 1. induziram melhoras significativas no balanço de pagamentos, os quais deveram-se mais a um aumento do influxo de capitais induzido pelo selo de aprovação do FMI do que em função de melhoras significativas na conta corrente; 2. haviam misturado os impactos nas taxas de crescimento; 3. estavam associados com a aceleração da inflação e não com uma redução da taxa inflacionária; 4. estavam significativa e consistentemente associados com diminuições da· participação dos salários na produção. Assim, os programas do FMI são considerados como tendo induzido uma pior distribuição de renda e exacerbado as tensões sociais, sem terem alcançado nenhuma melhora no tocante à inflação e à fundamentação do crescimento.

A experiência brasileira de meados dos anos 60 é atualmente citada como exemplo bem-sucedido de programas ortodoxos. Deve ser reconhecido, contudo, que o programa de estabilização de meados daquela década no Brasil não era estritamente ortodoxo, já que lançou mão de uma política de renda. Seguindo-se a vários anos de estagnação, inflação elevada e inquietação política, o golpe militar de 1964 deu início a um período de rigorosa estabilização. No primeiro período do programa, o déficit orçamentário foi drasticamente cortado através do aumento de impostos e da redução dos gastos do governo, e, ao mesmo tempo, expandindo os investimentos públicos. Como parte do programa, a taxa de câmbio foi desvalorizada e foram impostas restrições aos aumentos de salários. O resultado foi que a taxa de inflação caiu para os 20% ao ano, o que é uma taxa modesta para os padrões brasileiros e latino-americanos. O crescimento real de início caiu, mas, após 1967 e até 1973, foi mantido por volta de 10% ao ano, combinado com uma forte posição externa. Os custos, contudo, não foram menores para o grupo que pagou a conta. A queda dos salários reais com graves efeitos na distribuição de renda só foi possível graças a uma repressão política em larga escala.

As recentes experiências chilena e mexicana são às vezes contadas como histórias de sucesso. Vale notar que os custos da estabilização no Chile foram muito altos. Atualmente, 20% da população chilena recebem 81% da renda, e o salário-mínimo chileno é menor do que a metade do da Argentina. Atentaremos agora mais de perto para o caso mexicano.

México

A inflação elevou-se no México durante o final dos anos 70 como um resultado dos déficits orçamentários do governo do presidente Lópes Portillo.

Não obstante terem aumentado de 12 vezes as receitas públicas com a exportação de petróleo de 1977 até 1981, estas mantiveram-se atrás dos gastos do governo, que se multiplicaram assustadoramente na tentativa de apressar o desenvolvimento econômico. Para evitar mais inflação, foram postergados os aumentos de preços e tarifas dos bens e serviços fornecidos pelo setor público e financiados os déficits aumentados do governo com empréstimos externos.

Os efeitos da recessão internacional no início dos anos 80 foram significativos, como também o foi a queda das receitas com o petróleo e o aumento nos pagamentos do serviço da dívida. Os déficits de conta corrente resultantes e a contínua deterioração do balanço de pagamentos, apesar das desvalorizações de 1981 e 1982, fizeram nascer a expectativa de que uma depreciação gradual da taxa de câmbio não seria suficiente para corrigir os desequilíbrios de conta corrente. Como resultado, a fuga de capitais alcançou níveis sem precedente. Sua magnitude e a consequente perda de divisas finalmente convenceram o governo a impor controles sobre o câmbio, fechar o mercado do mexodólar e nacionalizar o sistema financeiro.

A estabilização veio no final de 1982. O alvo crítico do programa era a redução do déficit público de 17,6% do PIB em 1982 para 8,5% em 1983. Os custos do ajustamento foram enormes: aproximadamente 750 mil empregos foram perdidos. Por volta do final de 1983, a maior parte do temor de um desastre financeiro que prevalecia um ano antes havia desaparecido. O programa, entretanto, não conseguiu conter a inflação, que só cedeu em 1988 por causa do congelamento da taxa de câmbio, salários, preços do setor público e uma série de preços privados.

Há pelo menos uma importante lição a ser tirada da experiência mexicana. Políticas de contração provaram ser inefetivas para reduzir a inflação devido à inércia. O mesmo pode ser dito no caso do Brasil em 1982-1983. A política monetária restritiva de 1982-1983, combinada com choques adversos e ajustamentos de velocidade, resultou em altas taxas de juros reais, recessão e desemprego, deixando, no entanto, inalterada a taxa de inflação.

A abordagem neoconservadora

A restauração do papel dos mercados livres tornou-se a ideologia dominante do neoconservadorismo. Sua estratégia consiste em: 1. liberar preços; 2. eliminar restrições quantitativas ao comércio e reduzir tarifas; 3. promover um mercado de capitais interno por meio da liberação das taxas de juros e eliminação de controles sobre a alocação de créditos; 4. promover a livre entrada e saída de capitais; 5. reduzir a participação do setor público na produção.

Ramos (1986RAMOS, Joseph (1986). Neoconservative economics in the Southern Cone of Latin America. 1973-1983. Johns Hopkins University Press. ) oferece um passeio excelentemente conduzido através dos altos e baixos da experiência neoconservadora na Argentina, Chile e Uruguai.9 9 Ver também Corbo et alii (1986) e Foxley (1983). A distinção entre os programas neoconservadores no Cone Sul do final dos anos 70 de outros programas ortodoxos é a adoção do uso da taxa de câmbio para se conseguir a desinflação. A abordagem neoconservadora baseia-se no monetarismo global. O monetarismo global sustenta que uma taxa de câmbio fixa torna os bens importados mais baratos, forçando os produtores internos a reduzir seus preços. A taxa de câmbio fixa também é encarada como o preço central em torno do qual formar-se-ão as expectativas de preço. Uma taxa de câmbio fixa seria assim o meio principal para se atingir a desinflação, enquanto a disciplina fiscal evitaria o enfraquecimento do programa.

Um congelamento da taxa· de câmbio, juntamente com um pacote fiscal que permita a sua sustentação, a longo prazo abaixa a inflação a níveis internacionais. Mas enquanto houver inércia inflacionária e não estando os outros preços congelados, a sobrevalorização sobrevirá. A sobrevalorização implica grandes déficits de conta corrente e a fuga· de capitais. A dívida será acumulada, forçando a reversão das políticas. Excedentes comerciais terão que ser gerados para servir à dívida, e taxas de inflação ainda mais altas virão em seguida, como demonstrado pela experiência argentina.

Argentina

A inflação na Argentina subiu para mais de 100% ao final da administração peronista de meados de 1975. No início de 1976, a inflação havia alcançado 400%, e os militares mais uma vez tomaram o poder. Martínez de Hoz liderou a equipe econômica por cinco anos. A primeira fase do programa de desinflação apoiou-se no controle dos salários. Concomitantemente, o déficit fiscal foi gradualmente reduzido. Essas políticas obtiveram resultados favoráveis no combate à inflação.

Em dezembro de 1978, um novo programa de estabilização dos preços foi instituído. A redução da inflação resultante foi paga ao preço de uma enorme sobrevalorização, mostrada na· Figura 5. Por volta de 1981, a sobrevalorização havia precipitado uma maciça fuga·de capitais e o endividamento externo. O colapso da taxa de câmbio que se seguiu determinou um novo surto inflacionário. Os sucessores de Martínez de Hoz falharam em conter a inflação devido à deterioração do comércio, ao racionamento de créditos externos e a condições debilitadoras geradas pela guerra das Malvinas. A inflação acelerou-se até que os preços foram congelados em 1985 por ocasião da adoção de um programa heterodoxo.

Figura 5:
Argentina: taxa de câmbio real Valorização

2.2 A Heterodoxia

A heterodoxia populista

Programas de cunho populista na América Latina são algumas vezes chamados de programas heterodoxos. Baseiam-se no argumento estruturalista de que os déficits orçamentários não importam e que, para conter a inflação, é preciso dinamizar o crescimento internamente orientado e manter os preços sob controle. Esses programas tipicamente aplicam controles de preços extensivos concomitantemente com uma expansão dos salários e dos gastos do governo. Nunca falham em colocar a economia rapidamente no caminho da hiperinflação. As administrações peronistas na Argentina e a recente administração de Alan Garcia no Peru ilustram os programas populistas.

Peru: O Plano Inti

A inflação elevada no Peru data da segunda metade dos anos 70. Quando Alan Garcia assumiu o governo peruano em agosto de 1985, a taxa anual de inflação corria a 240%. Sua primeira medida foi a limitação do serviço da dívida externa a 10% das exportações. Isto deu ao governo um alívio temporário. O controle de preços reduziu a inflação drasticamente, enquanto subiam o nível de emprego e os salários reais. A experiência de um nível de crescimento elevado e uma inflação moderada foi, no entanto, apenas o produto de uma taxa de câmbio fixada, do controle de preços e de subsídios do governo. A inflação acelerou-se rapidamente quando os preços controlados tiveram que ser ajustados. Não levou muito tempo para que o Peru aprendesse que crescimento rápido e grandes aumentos dos salários reais eram incompatíveis com a redução da inflação: em setembro de 1988, a inflação passava dos 100% ao mês.

A nova heterodoxia

Os programas baseados numa política de rendas combinada com uma correção fiscal são também chamados programas heterodoxos, em oposição aos pacotes convencionais do FMI, que enfatizam uma política monetária apertada e a correção fiscal como instrumentos exclusivos de estabilização. É importante enfatizar desde o início que programas heterodoxos só funcionam se ocorrer uma consolidação fiscal. A diferença entre programas heterodoxos e os programas do FMI é que a heterodoxia reconhece que a disciplina na demanda agregada não é suficiente para atingir a estabilidade: o importante papel desempenhado pela inércia inflacionária requer o uso de uma política de rendas para conter a inflação.

Em 1985-1986, Argentina e Brasil adotaram programas de estabilização cujos pontos-chave eram o uso de controles de preços e salários e de uma taxa de câmbio fixa. Embora não se tenha conseguido a consolidação fiscal em nenhum dos dois casos, ela fazia parte do programa inicial.10 10 Ver Heymann (1987), Arida e Lara-Rezende (1985), Cardoso e Dornbusch (1987) e Dornbusch e Simonsen (1987). Uma reforma monetária era também um importante componente de seus programas heterodoxos.

A razão para as reformas monetárias

Há pelo menos três razões para a reforma monetária. A mais óbvia é a de facilitar a contabilidade por meio da eliminação de zeros. Uma outra é a de reduzir as expectativas inflacionárias, fazendo uso da nova moeda como um símbolo de uma mudança de política.

A razão mais importante para uma reforma monetária consiste em evitar as transferências de riqueza que ocorreriam após a estabilização. Os contratos que não estão explicitamente indexados de forma retroativa - como os empréstimos de curto prazo do sistema financeiro - embutem ajustamentos de inflação futura. A qualquer momento, há um determinado estoque pendente relativo a tais contratos. Seus vencimentos podem chegar até seis meses ou um ano. Especificam taxas de juros que refletem expectativas inflacionárias. Se a inflação desaparece, uma taxa de juros de 10% ao mês torna-se a taxa de juros reais. Uma súbita desinflação implicaria uma redistribuição arbitrária entre devedores e credores, bem como um processo penetrante de falências.

Uma reforma monetária fornece um modo prático de rever contratos. Uma tablita, que converte o dinheiro velho em novo de acordo com uma tabela de depreciação, é um instrumento de alinhamento dos valores reais dos pagamentos com expectativas implícitas quando do fechamento dos controles.

Contratos salariais

Os contratos salariais representam outro problema delicado na preparação de um congelamento. Na mesma hora em que o governo se prepara para declarar inflação zero, alguns contratos estão prestes a serem renovados e os trabalhadores reivindicarão a compensação pela inflação passada. Mas isso levaria a um aumento dos custos e nova inflação. Outros terão acabado de receber seus reajustes, encontrando-se com salários reais elevados quando comparados com a média, o que será percebido pelos que estão na média como um congelamento desigual. O programa terá que incluir uma nova estipulação dos contratos, de modo a evitar o efeito inercial. Aqueles que tiveram aumentos recentes terão que ter seus salários diminuídos, enquanto os que estiverem em posição inferior precisarão de um ajustamento para cima. Esse foi o ponto central do Plano Cruzado no Brasil.

O Plano Cruzado

Escolhemos nos concentrar no plano brasileiro por ser ele atualmente considerado como o mais óbvio exemplo de fracasso de um plano heterodoxo na contenção da inflação. Assim, ele nos obriga a olhar para o que pode dar errado com esses programas.

Quando o Plano Cruzado foi anunciado em fevereiro de 1986, haviam sido amplamente discutidos por mais de um ano no Brasil planos de estabilização da inflação que giravam em torno da dificuldade crítica da inércia. Os técnicos acreditavam que os choques inflacionários passados estavam sendo perpetuados pelo círculo vicioso criado pela indexação e que o congelamento de preços, taxas de câmbio e salários faria uma ruptura com o passado, permitindo à economia livrar-se da inflação inercial.

Entre fevereiro e junho de 1986, a inflação acumulada foi zero. Entre junho e novembro, no entanto, o programa tomou seus próprios rumos. Incentivado por forte apoio popular ao congelamento de preços, o ministro da Fazenda, Dílson Funaro, levou o controle a níveis dogmáticos. Deixou-se o orçamento deteriorar dramaticamente, os excedentes comerciais desapareceram e tornaram-se penetrantes as faltas de mercadorias e os mercados negros.

Dentre os fatores que levaram ao fracasso o Plano Cruzado, o mais proeminente foi o superaquecimento da economia através de políticas fiscais e monetárias frouxas, bem como através da política salarial.

Pelo lado fiscal, esperava-se que a reforma de dezembro de 1985 tivesse realizado a maior parte do trabalho de embasamento da estabilização. Os aumentos de arrecadação esperados seriam suficientes para fechar o déficit orçamentário em 6% do PIB. Contudo, durante o ano de 1986 as receitas com impostos subiram desapontadoramente pouco, as receitas das companhias estatais foram atingidas pelo congelamento de preços, os gastos correram· mais altos do que o esperado e os subsídios cortados durante o período de 1983-1984 reapareceram. A folha de pagamento do setor público também subiu, acompanhando a tendência do resto da economia.

Uma política monetária frouxa produziu taxas de juros muito baixas, o que permitiu às empresas que não confiavam no programa acumular estoques especulativos, aguardando o fim do congelamento. de preços para embolsar ganhos de capital. Os indícios de demanda. excessiva e inflação represada começaram a amontoar-se, mas os gestores da política econômica preferiram negar as evidências a abrir mão. do fetiche da inflação zero por políticas mais realistas.

Além disso, o aumento, nos salários reais promovido pelo Piano Cruzado e o rápido crescimento da economia rapidamente, fizeram expandir os salários, sustentando uma explosão de consumo. Em iulho: de 1986 já estava evidente o superaquecimento da economia, Faltas agudas, especialmente de carne e leite, comandavam as manchetes de todos os · jornais. Começaram a florescer mercados negros de todos os tipos de bens.

As reformas introduzidas em novembro aumentaram os impostos sobre vendas e reintroduziram uma indexação parcial; criando um novo sistema de correção diária da taxa de câmbio e vinculando os pagamentos de juros das cadernetas de poupança e de outros instrumentos financeiros à taxa de juros de curto prazo. Em fevereiro, foi abolida a proibição à indexação de contratos de vencimento menor do que um ano, e foi removido o congelamento, sobrevindo a explosão dos preços.

CONCLUSÕES

O grande mérito dos programas heterodoxos é fornecer um período durante o qual a estabilidade dos preços pode ser alcançada sem recessão. Assim, fornecem o apoio político necessário à implementação das reformas fiscais necessárias à estabilidade. Esta oportunidade foi perdida na Argentina, Brasil e Peru. A lua-de-mel inicial com o congelamento de preços foi confundida com o sucesso, e a consolidação fiscal foi evitada. Os programas então se perderam. A política de rendas constitui um meio valioso para se conseguir a desinflação, porém, sozinha, é insuficiente. A desinflação não é viável sem a consolidação fiscal e, com uma explosão do crescimento, não dura sequer por muito tempo.

A situação do setor público na América Latina atualmente está gravemente comprometida pela necessidade de extrair recursos do setor privado para o serviço da dívida externa. Os programas de estabilização dos anos 80 falharam na obtenção da consolidação orçamentária e os enormes déficits orçamentários empurraram a economia para a clássica situação de finanças inflacionárias.

Como conseguir a consolidação fiscal ainda é o grande problema a ser enfrentado. Aumentar os impostos para cumprir com o serviço da dívida é uma decisão política pouco vendável, particularmente nas economias em que os conflitos distributivos conduzem inevitavelmente a fortes pressões no orçamento. Contudo, a estabilização só será conseguida se forem reduzidos os déficits fiscais. Isto hoje significa postergar o serviço da dívida, dando tempo à América Latina para estabilizar e reconstruir suas economias.

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  • 1
    A sabedoria convencional sustenta que o autoritarismo é uma condição necessária para uma estabilização bem-sucedida na América Latina. O argumento é de que os governantes de regimes democráticos adiam ao máximo ações corretivas porque os setores populares, têm, sob estes regimes, maior capacidade de minar as políticas de estabilização. Em contraste, a administração efetiva de um processo de estabilização econômica é mais facilmente executada sob o autoritarismo em função da autonomia dada aos tecnocratas. Veja Skidmore (1977SKIDMORE, Thomas (1977). “The politics of economic stabilization in postwar Latin America”. In: MALLDY, James, ed. Authoritarianism and corporatism in Latin America, University of Pittsburgh Press. ), Kaufman (1986KAUFMANN, Robert (1986). “Democratic and authoritarian responses to the debt issue: Argentina, Brazil, Mexico”. KHALER, ed. The politics of international debt. Cornell University Press. ) e Kaufman e Stallings (1988KAUFMANN, Robert e STALLINGS, Barbara, eds. (1988). Debt and democracy in the 1980s. Westview Press. ). Contudo, os regimes autoritários igualmente não primam pela implementação de programas de estabilização. A análise de Remmer (1986REMMER, Karen (1986). “The politics of economic stabilization: IMF stand-by programs in Latin America, 1954-1984”. Comparative Politics, out. ) sobre os programas de stand-by do FMI na América Latina conclui que os regimes autoritários não são mais inclinados a iniciar programas de estabilização nem mais aptos a sobreviverem às suas reverberações políticas. A razão é que as democracias gozam de forças que não têm sido levadas em conta como legitimidade e apoio popular. Além disso, a racionalidade, eficiência, perícia e capacidade coercitiva dos governos autoritários têm sido grosseiramente exagerada. O trabalho de Remmer também indica que as mudanças de regime podem fazer uma diferença importante para o sucesso de um programa porque o colapso de um regime em conjunção com crise econômica abre um espaço incomum à implementação de programas de estabilização.
  • 2
    Ver Boston Globe, 7.11.1988
  • 3
    Amplas discussões sobre a inflação na América Latina podem ser encontradas em Baer e Kerstenezky (1964BAER, W. e KERSTENEZKY, eds. (1964). Inflation and growth in Latin America, Yale University Press. ), Pazos (1972PAZOS, Felipe (1972). Chronic inflation in Latin America. Praeger Publishers. ), Dornbusch (1982DORNBUSCH, R. (1982). “Stabilization policy in developing countries: What lessons have we learnt?”, World Development, n.º 9. ), Diaz-Alejandro (1982DIAZ ALEJANDRO, Carlos (1982). “Southern Cone stabilization plans”. In: W. CLINE, W. e WEINTRAUB, S., eds. Economic stabilization in developing countries, Brookings. ), Hirschman (1987HIRSCHMAN, Albert (1987). “The political economy of Latin American development: seven exercises in retrospection”, Latin American Research Review. ) e Bruno et alii (1988BRUNO, Michael, et alii, eds. (1988). Stopping high inflation, Cambridge, MIT Press. ).
  • 4
    As observações mostradas nas Figuras 1 e 2 de taxas de inflação média e de crescimento da moeda entre 1965 e 1985 na América Latina produzem a seguinte linha de regressão:
    taxa de inflação = - 0 , 167 + 1 , 46 taxa de cresc. da moeda ; R 2 = 0 , 986 t-estatístico : 34 , 02
  • 5
    Ver Cardoso (1981CARDOSO, Eliana (1981). “Food supply and inflation”, Journal of Development Economics, p. 269-84. ).
  • 6
    Ver Taylor (1983TAYLOR, Lance (1983). Structuralist macroeconomics. New York, Basic Books.).
  • 7
    Ver Cardoso (1983CARDOSO, Eliana (1983). “Indexação, acomodação monetária e inflação inercial”. Revista Brasileira de Economia, p. 3:lL ), Simonsen (1985SIMONSEN, Maria (1985). “Indexation: Current theory and the experience in Brazíl.” ln: DORNBUSCH, R. e SIMONSEN, M. H., eds. Inflation, debt and indexation, MIT Press. ) e Williamson (1985WILLIAMSON, John, ed. (1985) Inflation and indexation, Institute for International Economics. ).
  • 8
    A velocidade é a razão entre renda e saldos efetivos reais. Taxas de inflação ascendentes reduzem a demanda por saldos efetivos reais e aumentam a velocidade.
  • 9
    Ver também Corbo et alii (1986CORBO, Vittorio, et alii (1986). “What went wrong with the financial reforms in the Southern Cone?” Economic Development and Cultural Change, abr. ) e Foxley (1983FOXLEY, Alejandro (1983). Latin American experiments in neoconservative economics, University of California Press. ).
  • 10
    Ver Heymann (1987HEYMANN, Daniel (1987). “The Austral Plan”. American Economic Review, maio. ), Arida e Lara-Rezende (1985ARIDA, P. e LARA REZENDE, A. (1985). “Inertial inflation and monetary reform in Brazil”. In: WILLIAMSON, J., ed. Inflation and indexation, Institute for International Economics. ), Cardoso e Dornbusch (1987CARDOSO, Eliana e DORNBUSCH (1987). “Brazil’s tropical plan.” American Economic Review, p. 288-92. ) e Dornbusch e Simonsen (1987DORNBUSCH, R. e SIMONSEN (1987). Inflation stabilization with incomes policy support. New York, Group of Thirty. ).
  • *
    Agradecimentos a Blair La Bage, Julia Blewer e Glória Grandolini pela valiosa assistência de pesquisa. Traduzido por Ricardo B. Costa.
  • 12
    JEL Classification: E31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1989
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