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O protesto agrícola e as modificações da política para o setor

The agricultural protest and policy changes for the sector

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo fazer um resgate dos anúncios governamentais desde 1986 sobre a política agrícola e a reação de grupos organizados do setor a ela, com atenção especial dada ao papel dos preços mínimos.

PALAVRAS-CHAVE:
Política agrícola; exportações; preços mínimos

ABSTRACT

This paper aims to make a recollection of the government annoucements since 1986 on the agricultural policy and the reaction of organised groups from the sector to it, with special attention given to the role of minimum prices.

KEYWORDS:
Agricultural policy; exports; minimum prices

Finalmente, em 25 de fevereiro passado, o governo, através dos ministros Dílson Funaro e Íris Resende, anunciou os novos preços mínimos e as normas de comercialização e financiamento da safra de verão (aprovadas ad referendum pelo Conselho Monetário Nacíonal).1 1 Nesta nota analisaremos a questão dos novos preços mínimos; as normas de comercialização e de financiamentos disponíveis são discutidas em uma nota seguinte. É preciso esclarecer que, praticamente desde a introdução do Cruzado II, em 21 de novembro de 1986, vinha aumentando o quadro de ansiedade dos produtores agrícolas, situação que culminou na manifestação de protesto em 12 de fevereiro passado em Brasília.2 2 Veja Homem de Melo, F,; “O Protesto Agrícola e o Após-Cruzado para o Setor”, Folha de São Paulo, 21 de fevereiro de 1986.

Adicionalmente, não deixa de ser interessante a constatação de que as mesmas lideranças da classe agropecuária, em especial aquelas identificadas com a Frente Ampla (OCB, SRB, entre outras), responsáveis pela coordenação do movimento de protesto de 12 de fevereiro último, aplaudiram, em 14 de agosto de 1986, também em Brasília, o lançamento da nova política agrícola (Plano de Metas) pelo Presidente José Sarney. Naquela ocasião e nas semanas subsequentes, a única restrição ou, mais propriamente, temor, dessas lideranças, em relação à nova política agrícola, estava ligada à possibilidade de falta de recursos creditícios para o cumprimento das metas enunciadas. Em outras palavras, não se criticou o conteúdo ou os termos básicos daquela política agrícola; ao contrário, alguns de seus aspectos, tais como o conceito de preços mínimos plurianuais, o horizonte (três anos) de estabilidade para o setor e o destaque para o funcionamento mais livre dos mercados, inclusive os de exportação, foram elogiados pelas lideranças do setor agrícola da região Centro-Sul.

Dado que a política agrícola introduzida em agosto de 1986 tinha definido uma política de preços mínimos, incluindo-se os mecanismos de seus reajustes ao longo do tempo, para os produtos alimentares básicos (arroz, feijão, milho, mandioca e sorgo) e para os de exportação, deve ficar claro que o anúncio pelo governo, em 25 de fevereiro, de novos preços mínimos, representou, em boa parte, uma ruptura com aquela política. Isso nos leva a identificar, através do material e noticiário disponíveis, quatro formulações/reivindicações referentes a preços agrícolas, a serem discutidas no presente trabalho:

  1. a posição do governo em 14 de agosto de 1986, através da nova política agrícola (contida no Plano de Metas);

  2. a posição do governo em 10 de fevereiro de 1987, na antevéspera do protesto agrícola;

  3. a reivindicação dos representantes da Frente Ampla da Agropecuária, como colocada antes e depois de 10 de fevereiro de 1987;

  4. a posição tomada pelo governo em 25 de fevereiro de 1987, com o anúncio dos novos preços mínimos.

PREÇOS MÍNIMOS NA NOVA POLÍTICA AGRÍCOLA

Vejamos, rapidamente, alguns aspectos referentes a preços mínimos na política agrícola do Plano de Metas de agosto de 1986. No documento então divulgado consta que “A Política de Preços Mínimos visa, basicamente, aumentar a produtividade e reduzir o risco econômico, de modo a obterem-se reduções nos custos de produção e nos preços de alimentos”. Logo adiante, naquele mesmo documento, menciona-se que os preços mínimos serão fixados de acordo com as seguintes regras:

“ - arroz, milho, sorgo, mandioca e feijão: os mesmos níveis determinados para a safra 86/87 permanecerão constantes nos próximos 3 anos. A Companhia de Financiamento da Produção (CFP) procederá à divulgação mensal de um Índice de Preços Pagos (IPP) pelos insumos utilizados na produção. Os preços mínimos desses cinco produtos básicos serão reajustados por esse índice, obedecendo aos mesmos princípios dos Artigos 20 e 21 do Decreto-Lei n. 2.284, referentes a salários. Para esses produtos considerar-se-á, como data-base, 01 de agosto de 1986: a) a cada ano, nessa data, o governo garantirá um reajuste de, no mínimo, 80% da variação acumulada desse IPP em cada produto; b) toda vez que, para algum produto, tal acumulação atingir 20% a partir de 01.08.1986, o preço mínimo desse produto será automaticamente reajustado, a título de antecipação; c) esse esquema vigorará por um período de três anos, findos os quais se fará uma revisão dos preços mínimos para incorporar ganhos de produtividade. Com esse esquema, os riscos econômicos na produção dessas culturas serão sensivelmente diminuídos, incentivando-se aumentos de área e melhorias de produtividade, necessárias à redução de custos; - produtos de exportação - soja, amendoim, algodão, mamona: para esses produtos, os preços mínimos levarão em conta as cotações internacionais, permitindo a produção ajustar-se à realidade de mercado”.

Esse esquema de preços mínimos, assim como os valores para os produtos da safra de verão 1986/87, foram formalizados através do Decreto n. 93.118 de 14 de agosto de 1986. Além daquilo que já foi transcrito acima, vale mencionar que o Art. 2o, § 4o, desse Decreto explicitava que “ao final do período de vigência os preços mínimos serão revisados, considerando o nível de atendimento do mercado interno, a necessidade de formação de estoques reguladores e eventuais ganhos de produtividade’’.

Por outro lado, o documento básico de política agrícola já mencionado, indicava que “as culturas de exportação serão beneficiadas por uma maior exposição aos sinais de preços internacionais e por um conjunto de medidas visando reduzir ou eliminar entraves de natureza institucional e administrativa, que impedem a expansão e o desenvolvimento de mercados modernos e dinâmicos. Ao setor privado caberá o importante papel de formar estoques, cabendo ao governo apenas uma pequena participação para ajuste de situações emergenciais”.

Ainda com referência aos produtos alimentares básicos que, doravante, identificaremos como produtos domésticos ou de mercado interno, aquele mesmo documento fazia menção à uma política de estoques reguladores: “As aquisições dos estoques reguladores serão realizadas pelo Governo, de preferência por ocasião das safras, procurando evitar preços deprimidos para os agricultores. A venda dos estoques ocorrerá quando os preços de mercado estiverem muito aquecidos, sendo que o Governo deverá incorporar aos preços os custos de manutenção de tais estoques”. Entretanto, desde então, regras para o funcionamento de tal esquema não foram introduzidas. É possível que isso não tenha ocorrido nos meses subsequentes a agosto de 1986, pela continuidade do congelamento/tabelamento de preços do Decreto-lei n. 2.284 (Plano Cruzado). Em nosso entender, além dos preços mínimos - safra 1986/87 - já definidos pelo Decreto n. 93.118, deveria o Governo fixar preços-teto, que, quando alcançados no mercado, detonariam o início da liberação/venda dos estoques.3 3 Veja Homem de Melo, F., Estabilização de Preços: Domésticos vs. Exportáveis, São Paulo, Relatório de Pesquisa, IPE/USP, 1986 Quando da aprovação dos novos preços mínimos pelo Conselho Monetário Nacional em 14 de agosto de 1986 (voto CMN 235/86), o Governo assumiu o compromisso de estabelecer regras para regular suas intervenções na comercialização de produtos agrícolas.4 4 Veja Lopes, M.R., “O Estado Atual da Agricultura”, Carta Mensal da SUPEC, Informativo CEP, ano II, n. 2.

Essa era, portanto, a política de preços introduzida pelo Governo em 14 de agosto de 1986 no contexto da nova política agrícola (Plano de Metas). Em resumo, ela envolvia um horizonte mínimo de três anos e um tratamento favorecido às culturas de mercado interno - preços mínimos plurianuais e reajustes automáticos pelo IPP (o gatilho agrícola); os produtos de exportação ficariam de fora desse esquema, pois os reajustes ocorreriam apenas uma vez por ano (a cada 01 de agosto), mas, em compensação, tiveram a garantia governamental de maior respeito às forças de mercado. É importante ressaltar que o documento-base dessa nova política agrícola reconheceu que “são exatamente os produtos alimentares de mercado interno os que mais necessitam de uma adequada política de preços mínimos e de estoques reguladores, em especial para se conseguir diminuições no risco enfrentado pelos produtores na comercialização de suas colheitas, como flutuações dos preços e da receita auferida. Os produtos de exportação contam com um quadro mais estável ao longo do tempo, pelas características da nossa política cambial e pelas menores flutuações das cotações internacionais”.

Sem dúvida, essa foi uma manifestação importante de política agrícola, particularmente quando se considera o padrão recente de crescimento agrícola, caracterizado pela expansão da produção por habitante das culturas de exportação e pelo declínio das culturas alimentares de mercado interno,5 5 Veja Homem de Melo, F., O Problema Alimentar no Brasil, São Paulo, Editora Paz e Terra, 1983. ponto, aliás, que foi explicitamente reconhecido pelo documento de política agrícola do Plano de Metas: “A estratégia para corrigir as distorções mencionadas e colocar a agricultura numa trajetória de crescimento harmônico com o desenvolvimento global do país compreende um conjunto sincronizado de ações de política: em primeiro lugar, o Governo acionará os instrumentos de política de crédito rural, de preços mínimos e de estoques reguladores para estabilizar preços e conseguir um incremento substancial na produção de alimentos”.

Esse substancial incremento está, aparentemente, a caminho. No levantamento da FIBGE, com dados de fevereiro de 1987, a safra brasileira de grãos - arroz, feijão, milho, soja e trigo - deverá alcançar 62.706 mil toneladas,6 6 A produção prevista para 1987 é objeto de outra nota nesta mesma carta. em comparação aos 56.186 mil toneladas de 1985, e aos 63.475 mil toneladas que foram previstos pelo documento de política agrícola do Plano de Metas. Se tomarmos apenas as produções de culturas domésticas - arroz, milho e feijão - a comparação seria de 40.600 mil toneladas em 1987, com 33.585 mil toneladas em 1985 (15,5% a mais por habitante). Também, em termos de área plantada (Centro-Sul e Rondônia), as culturas de mercado interno mostraram o significativo incremento de 6,7% em relação à de 1986.

Ainda que não sendo a única possível explicação, é bastante provável que os termos da nova política agrícola de 1986, especialmente quanto aos preços mínimos plurianuais, tenham efetivamente contribuído para os incrementos observados nas áreas plantadas e na produção de alimentos de mercado interno. Entretanto, ao lado dessa resposta positiva do setor agrícola, pelo menos três eventos desfavoráveis contribuíram para a constituição de um quadro de protesto pelos agricultores.7 7 Para mais detalhes, veja Homem de Melo, F., “O Protesto Agrícola ....”, op. cit. Primeiro, ao final de 1986, após a edição do equivocado pacote do Cruzado II, tivemos, na economia brasileira, uma tendência de forte aceleração inflacionária, com uma situação de completa reversão de expectativas. Por exemplo, de uma inflação (IPC) de 1,90% em outubro de 1986 - mês de plantio na região Centro-Sul - o País passou a uma inflação de 16,82% em janeiro de 1987, exatamente às vésperas do protesto agrícola (12 de fevereiro), e a uma de 13,94% em fevereiro de 1987. Essa substancial elevação da taxa de inflação, ao lado do consequente aumento da taxa de juros no mercado livre de crédito afetou negativamente os produtores que aplicaram recursos próprios e/ou tomaram financiamentos bancários a taxa de mercado, sem dúvida correspondendo a uma expressiva parcela do produto agrícola.8 8 Deve-se, obviamente, excluir do problema ocorrido os agricultores que foram capazes de tomar financiamentos à taxa nominal de 10% para a grande parte de suas necessidades.

Em segundo lugar, quando, nesse momento de aceleração inflacionária, mais importante seria o conhecimento do IPP - Índice de Preços Pagos -, o Governo não tinha, ainda, sequer iniciado sua divulgação. Ou seja, o instrumento que, aparentemente, havia sido delineado para diminuir os riscos de mercado dos produtos domésticos (variabilidade de preços e receitas reais), nem mesmo foi introduzido, o que deve ter contribuído para aumentar e não diminuir as incertezas. Claramente, o IPP para os preços mínimos dos alimentos básicos seria o mesmo mecanismo do gatilho salarial, pois “todas as vezes que o IPP apresentar uma variação acumulada igual ou maior que 20%, dentro de um mesmo ano agrícola, os preços mínimos desses produtos serão automaticamente reajustados a título de antecipação” (Decreto 93.118 de 14 de agosto de 1986). Na realidade, hoje, pode-se constatar que, apesar de introduzido em agosto de 1986, o IPP acumulado foi divulgado pelo Governo apenas ao final de fevereiro, desconhecendo-se as razões para tal grande atraso.9 9 Comunicado CEP/DAEP/SUTEC, n. 001/87, de 27 de fevereiro de 1987, indicando uma variação de 26,14% de junho de 1986 a janeiro de 1987.

Em terceiro lugar, a inclusão de inúmeros produtos alimentares entre aqueles rigidamente tabelados pela SUNAB introduziu um outro problema para o setor agrícola, além de ter caracterizado uma grande incoerência com os termos da política agrícola de agosto de 1986. Enquanto esta podia ser interpretada como de estímulo, via instrumentos de mercado, ao aumento da produção e produtividade das culturas de mercado interno, a prática de tabelamento introduz um artificialismo incompatível com o sistema de mercado e tem os ingredientes para o desestímulo dessas mesmas culturas nas próximas safras10 10 Ao final de março, o Governo liberou os preços de arroz e feijão, até então tabelados pela SUNAB. , além de introduzir uma incerteza adicional a curto prazo aos agricultores.

A POSIÇÃO DO GOVERNO EM 10 DE FEVEREIRO DE 1987

Do exposto acima, pode-se concluir que o Governo Federal foi capaz de, em agosto de 1986, formular e divulgar uma coerente política agrícola de médio prazo; essa política havia sido, inclusive, aplaudida pela lideranças agrícolas da região Centro-Sul. Problemas, entretanto, surgiram após sua introdução: a) a aceleração inflacionária, causada pelos erros da política econômica do próprio Governo; b) a não divulgação mensal do IPP; e c) a inclusão de vários produtos alimentares, entre os quais, arroz, feijão e mandioca (farinha), na lista de produtos tabelados da SUNAB, os dois primeiros até o final de março. A isso poderíamos acrescentar que até fevereiro de 1987, mês de maior intensidade do protesto agrícola, o Governo havia sido incapaz de definir uma política de estoques reguladores para os alimentos básicos, conforme prometido pela nova política agrícola.

A Frente Ampla da Agropecuária havia marcado o dia 12 de fevereiro de 1987 para a marcha dos produtores agrícolas a Brasília, o que seria o principal evento do chamado protesto agrícola. Na antevéspera dessa manifestação, o Governo divulgou sua posição quanto à correção dos preços agrícolas. Através daquilo que foi divulgado pela imprensa e outras publicações11 11 Veja Informativo CFP, “Política Agrícola”, Companhia de Financiamento da Produção, 09-13.2.1987. , nossa interpretação da posição do Governo em 10 de fevereiro é a seguinte:

  1. arroz, feijão, milho, mandioca e sorgo: correção dos preços mínimos fixados em 14 de agosto de 1986 (Decreto n. 93.118) pelo IPP acumulado junho-janeiro, vigorando a partir de 01 de março de 1987. Em 01 de abril, 01 de maio e 01 de junho, esses preços mínimos seriam corrigidos pelas variações observadas para o IPP nos meses de fevereiro, março e abril, encerrando-se o processo de reajustes no mês de junho;

  2. produtos de exportação: soja, algodão, amendoim e mamona: manutenção dos níveis nominais dos preços mínimos estabelecidos no Decreto n. 93.118 de 14 de agosto de 1986, com o argumento de que, para tais produtos, a desvalorização cambial ocorrida a partir de 16 de outubro de 1986 - 28,7% até 12 de fevereiro de 1987 - provocaria os necessários reajustes nos preços de mercado;

  3. essas medidas vigorariam até junho de 1987.

Até lá seria criado um Grupo de Trabalho composto por nove membros: três da Frente Ampla da Agropecuária, três da Frente Parlamentar da Agricultura e três do Governo Federal, visando a definição de uma política agrícola para a safra 1987/88.

Em comparação aos termos da política agrícola introduzida em 14 de agosto de 1986, a posição do Governo como proposta aos agricultores em 10 de fevereiro de 1987 apresentou algumas alterações, ainda que sendo capaz de manter o espírito da anterior. A primeira alteração dizia respeito à mecânica da aplicação do IPP. Enquanto na política original ele seria automaticamente acionado quando alcançasse 20% ou mais, na nova proposta, ele seria aplicado integralmente na taxa de variação junho-janeiro, a vigorar em 01 de março e, depois, sucessiva e mensalmente até 01 de junho, sempre com um mês de defasagem.

O Governo não deu uma explicação pública para o grande atraso na divulgação do primeiro IPP. Extraoficialmente, mencionaram-se dificuldades metodológicas e de coleta de dados. A primeira é de difícil aceitação, pois o Brasil, através de várias instituições de pesquisa, tem suficiente conhecimento sobre metodologia de índice de preços, e o IPP é, simplesmente, um índice de preços pagos pelos agricultores na compra de insumos e mão-de-obra. A dificuldade de coleta, por outro lado, deve existir, particularmente em um País como o Brasil, de grande dimensão e com grande espalhamento geográfico da agricultura. Entretanto, passados alguns meses, esse eventual problema deveria ter sido contornado; evidência disso está em que ao final de fevereiro de 1987, o Governo divulgou o IPP acumulado junho-janeiro, com uma variação de 26,14%, o que indica que eventuais problemas de coleta já haviam sido ultrapassados.

A defasagem de um mês na aplicação do IPP, na posição do Governo em 10 de fevereiro de 1987, indica que a CFP estaria impossibilitada de divulgá-lo ao início de cada mês, referente à variação do mês anterior. Essa impossibilidade, entretanto, não deveria ser maior problema visto que uma adaptação pode ser feita em termos do período de cobertura (exemplo, dia 25 de um mês a 25 do outro), como, aliás, era o procedimento do antigo IPCA da FIBGE (até novembro de 1986), ou, mesmo, do IGP da FGV. Deve-se mencionar que os principais índices de preços existentes no Brasil são, mensalmente, divulgados, entre os dias 05 e 15 de cada mês (FGV, FIBGE, FIPE e DIEESE).

Adicionalmente, a correção mensal e defasada dos preços mínimos dos cinco produtos alimentares básicos tornaria a sistemática anterior (IPP, gatilho agrícola) menos flexível e diferentes da referente ao gatilho salarial, na qual foi baseado. A simetria anterior, nas correções de salários e preços mínimos de alimentos, era mais capaz de preservar a relação salários-preços de alimentos, importante aspecto distributivo da política agrícola.

A segunda alteração foi o estabelecimento do mês de junho de 1987 como último em que ocorreriam correções de preços mínimos, ao mesmo tempo em que se criaria um Grupo de Trabalho para a formulação de outra política agrícola, agora para 1987/88. Ora, isso representa, pura e simplesmente, o abandono, sem maiores justificativas, da política agrícola introduzida em agosto de 1986. A não ser que, em uma possibilidade remota, esse Grupo de Trabalho recomendasse a sua manutenção. É preciso realçar esse ponto. A política agrícola de agosto de 1986, que na parte de preços não foi cumprida pelo Governo, era uma política de médio prazo, esboçada para funcionar pelo menos até 1989 e com clara definição de objetivos e instrumentos. Agora, volta-se atrás e o País deixa de ter uma política com essas características, sem que aquela que foi introduzida pelo presidente Sarney fosse, sequer, implementada em seus pontos mais importantes.

É claro que reconhecemos que a negociação é parte inerente ao processo político, no caso entre produtores agrícolas e o Governo. Fica, entretanto, algo estranho que o Governo introduza (em agosto de 1986) uma política agrícola de médio prazo, política esta que foi, no geral, aplaudida pelos produtores na época, mas que não a cumpra em seus pontos básicos; gere, com isso, um quadro de grande incerteza aos agricultores e, a seguir, aceite sua própria revisão, através do mencionado Grupo de Trabalho, composto por produtores, deputados e técnicos governamentais.

A REIVINDICAÇÃO DA FRENTE AMPLA DA AGROPECUÁRIA

Como já mencionado, essa nova posição do Governo com respeito à política agrícola, foi anunciada em 10 de fevereiro de 1987, antevéspera do chamado protesto agrícola em Brasília, manifestação que chegou a reunir de 20 a 30 mil produtores em nossa capital. Na realidade, a movimentação dos produtores e de suas lideranças vinha sendo intensificada desde meados de dezembro e, mais claramente, início de janeiro. Isso também indica que o desastrado Cruzado II, com a grande reversão de expectativas inflacionárias, foi o agente detonador desse protesto, ao possibilitar grandes perdas de renda para a agricultura.

No capítulo de preços mínimos, a reivindicação da Frente Ampla da Agropecuária contrariava frontalmente a filosofia da política agrícola introduzida no Plano de Metas de agosto de 1986. Isso, pelos seguintes motivos. Primeiro, pleiteava a correção dos preços mínimos para todos os produtos da pauta e não apenas para os cinco produtos alimentares básicos. Segundo, que o critério norteador dessas correções fosse o custo de produção de cada cultura, introduzindo “o mesmo tratamento que foi dado aos preços industriais conforme reajustados pelo Conselho Interministerial de Preços”.12 12 Veja Informativo CFP, “Política Agrícola ... “, op. cit. Aliás, o mesmo tipo de sugestão aparecia em Lopes.13 13 Lopes, M.R., “O Estado Atual da Agricultura”, Informativo CFP, Carta Mensal da SUPEC, ano II, .n.2. “Realinhar os preços com base nos custos efetivos de produção, que é o critério usado para o setor industrial, uma vez que o IPP não parece ter atingido os 20% que disparam a correção automática em virtude de problemas naturais na fase de sua implantação, que vão desde a não inclusão do custo financeiro (aumento) até a virtual impossibilidade de se medir o ágio”.

A argumentação da Frente Ampla da Agropecuária (FAA) era de que “o reajuste feito pelo IPP, ao corrigir linearmente os preços dos cinco produtos básicos, desconhece a evolução específi­ca dos custos de cada produto no período”,14 14 Informativo CFP, “Política Agrícola ... “, op. cit. além da menção, em variadas circunstâncias, aos problemas de não se captar os ágios, a não inclusão dos custos financeiros etc., como acima indicado.

É preciso, para avaliar a reivindicação da FAA, lembrar que o tratamento prioritário e diferenciado dado pela política agrícola de agosto de 1986 aos produtos de mercado interno, estava baseado, em nosso entender, corretamente, em um diagnóstico do comportamento recente da agricultura brasileira,15 15 Veja nosso estudo: Homem de Melo, F., Prioridade Agrícola: Sucesso ou Fracasso?, São Paulo, Pioneira, 1985. assim como no crescimento econômico previsto no próprio Plano de Metas e na ênfase social da política governamental. Nesse sentido, era coerente a introdução dos preços mínimos plurianuais e a garantia, para arroz, milho, mandioca, feijão e sorgo, de reajustes automáticos pelo IPP - Índice de Preços Pagos-, sempre que sua variação alcançasse 20%, à semelhança do gatilho salarial.

Em função dessa clara definição de prioridades na política agrícola de agosto de 1986, é que se pode considerar a reivindicação da FAA como incoerente, ainda que perfeitamente compatível com a defesa dos interesses do setor agrícola em um momento de forte aceleração inflacionária, especialmente a partir de novembro de 1986. Os maiores problemas com a reivindicação da FAA não estão nesse aspecto do pleito, ainda que esse mesmo aspecto fosse um grande problema para o Governo, caso atendesse a solicitação da FAA. Esse ponto será mais discutido na próxima seção, ao analisarmos as medidas tomadas pelo Governo em 25 de fevereiro de 1987.

É necessário, entretanto e desde já, reconhecer que a forte aceleração inflacionária que o país experimentou a partir do Cruzado II justifica alguma preocupação com as culturas de exportação e, não apenas, com as de mercado interno. Por outro lado, não se pode desconsiderar que as desvalorizações cambiais, que foram formalmente retomadas a partir do Cruzado II, permitem uma quase perfeita indexação dos preços do mercado interno aos preços de exportação;16 16 Esse aspecto será mais analisado adiante neste trabalho. adicionalmente, em se tratando de produtos regularmente exportados, a determinação dos preços mínimos deve, obrigatoriamente, levar em conta as cotações externas e a política cambial, sob pena de causar gravosidade do produto brasileiro.

Agora, com relação ao critério norteador das correções de preços mínimos, como solicitado pela FAA, deve-se dizer que reajustes com base em variações de custos de produção ao longo do ciclo produtivo não encontram respaldo teórico. Os dados de custo de produção devem, junto com outras variáveis, ser considerados no momento de fixação dos preços mínimos a cada ano, isto é, 01 de agosto e antecedendo o plantio das culturas anuais. Os reajustes posteriores, antes da próxima data-base, não deveriam, em condições normais, considerar as variações de custos em cada cultura, visto que esse procedimento eliminaria os riscos inerentes à atividade, no contexto de mudanças nos preços relativos de insumos. Como atenuante, poder-se-ia mencionar que a aceleração inflacionária após o plantio foi um evento anormal. Isso, todavia, justificaria alguma correção de preços mínimos (IPP?) mas, certamente, não pelo critério de custos de produção. É fácil perceber que a utilização desse critério pode trazer a gravosidade de um produto exportado pelo Brasil e, portanto, impedir sua comercialização externa. Afinal, deseja-se mercados livres ou com intervenções do Governo?

Acima, mencionamos condições normais. A esse respeito, é necessário indicar que a política agrícola de agosto de 1986, reconhecia que os produtos de abastecimento interno eram um caso especial: “É válido, também, observar que são exatamente os produtos alimentares de mercado interno, os que mais necessitam de uma adequada política de preços mínimos e de estoques reguladores, em especial para se conseguir diminuições no risco enfrentado pelos produtores na comercialização de suas colheitas, como flutuações dos preços e da receita auferida”. Em nossos estudos,17 17 Homem de Melo, F., Estabilização de Preços: Exportáveis vs. Domésticos, op. cit. a característica de produtos de mercado interno (e, não de exportação) justificava uma política de estabilização de preços e de estoques reguladores, inclusive preços mínimos plurianuais. Em ambos os casos, entretanto, a correção, durante o ano, não seria por custos de produção de cada cultura, mas, sim, pelo IPP - na política governamental - ou pelo índice de inflação (o indexador na economia), como em nossos trabalhos, no caso de se adotar um indexador único na economia. O pleito por reajustes de preços mínimos por variações de custos de produção durante o ano agrícola, adicionalmente, indica um certo mal-entendido das classes produtoras quanto ao papel do instrumento preço mínimo vis-à-vis - preço de mercado nos mercados agrícolas.

A outra crítica da FAA ao mecanismo de correção dos preços mínimos das culturas alimentares básicas estava ligada à não captação de ágios nos preços de insumos, e à não inclusão dos custos financeiros no IPP. Certamente, o problema dos ágios foi bastante sério na economia brasileira em 1986, especialmente com a insistência governamental em manter o congelamento/tabelamento de preços. Esse foi um problema que ocorreu para todos os índices de preços no Brasil, em maior ou menor grau, em especial até novembro de 1986. Após a edição do Cruzado II, esse problema foi se tornando menos sério, inclusive pelo fato de que inúmeros preços foram inteiramente liberados dos controles governamentais. Como resultado, o principal efeito da existência de ágios foi o de mudar o perfil das taxas medidas de variação de preços durante 1986 e início de 1987, no sentido de que os índices nos meses iniciais deste ano terem sido maiores do que na circunstância de captação dos ágios em 1986.

Sem dúvida, esse mesmo problema ocorreu para o IPCA e INPC (os chamados IPCs) e os indexadores de salários - gatilho do Decreto-Lei n. 2.284 - mas, não por isso, a classe trabalhadora deixou de apoiar o mecanismo de correção automática de salários na economia. O mesmo poderia ter ocorrido com o IPP, que seria um mecanismo permanente e não temporário de correção dos preços mínimos. Mesmo porque, em fevereiro de 1987, quando o protesto agrícola atingiu seu pico e as reivindicações da FAA foram apresentadas, o problema dos ágios já caminhava para o desaparecimento. Deixar de lado um mecanismo/indexador permanente por uma questão puramente temporária (ágios) não parece fazer o menor sentido, caso se mantenha a análise e o diagnóstico da política agrícola - Plano de Metas - em mente. Para tal, portanto, outras devem ter sido as razões justificadoras da atitude da FAA.

No que diz respeito à deficiência do IPP pela não inclusão de custos financeiros, como argumentado pela FAA, acreditamos haver um equívoco de natureza técnica. O IPP, como apresentado no Decreto n. 93.118 de 14 de agosto de 1986, é um índice de preços como qualquer outro na economia, apenas que especifico a preços pagos pelos agricultores por insumos e fatores utilizados na produção agrícola. Como tal, ele é semelhante ao IPA-DI e ao ICC (Construção Civil), ambos calculados pela Fundação Getúlio Vargas. Portanto, o que é preciso, é padronizar certos procedimentos, como coleta de preços à vista dos diversos insumos, representando o nível de preços pagos num dado momento pelos usuários do setor agrícola. A utilização produtiva desses insumos na agricultura deverá propiciar um retorno que, em termos de expectativa, será maior que o custo (real), entendido como a taxa real de juros paga ou o custo de oportunidade dos recursos próprios utilizados pelos agricultores.

O ANÚNCIO DOS NOVOS PREÇOS MÍNIMOS EM 25 DE FEVEREIRO

Como a própria data de 25 de fevereiro indica, o anúncio dos novos preços mínimos para a safra 1986/87 foi feito após a primeira rodada de propostas, isto é, a do Governo em 10 de fevereiro e a da FAA, aproximadamente à mesma época, assim como após o protesto agrícola de 12 de fevereiro em Brasília. Na Tabela 1 apresentamos. os novos preços mínimos, os anteriores (de 14 de agosto de 1986) e os percentuais de reajuste, com os produtos classificados (pelo governo) em: a) prioritários; b) de exportação; e c) regionais, conforme os termos do Decreto n. 94.077 de 05 de março de 1987. Lembremos, como acima exposto, que, pelo Decreto n. 93.118 de 14 de agosto de 1986, a correção dos preços mínimos, ao longo do período 01.08.1986 a 01.08.1987, se daria, pelo IPP, apenas para as culturas chamadas prioritárias na Tabela 1. Para as demais, a política agrícola colocava mais ênfase em preços de mercado, liberdade de exportações e na capacidade das desvalorizações cambiais em reajustar os seus preços internos.

Tabela 1:
Preços mínimos para a safra 1986/87

Adicionalmente aos dados da Tabela 1, é preciso mencionar que todas as culturas prioritárias terão reajustes mensais em abril, maio e junho, “pela variação do IPP válida para esses meses” (voto assinado pelo ex-ministro da Fazenda Dilson Funaro, ad referendum do Conselho Monetário Nacional), de acordo com o Decreto n. 94.077. Para as demais, os preços listados como “preço em 01.03.87” na Tabela 1, são preços mínimos definitivos, isto é, válidos até 01.08.1987 em que, como anteriormente estabelecido, era considerada como “data-base” para a determinação anual de preços mínimos (Decreto n. 93.118 de 14 de agosto de 1986).

Comparando-se esta posição/política do Governo, tomada em 25 de fevereiro de 1987, com a política agrícola adotada no Plano de Metas de agosto de 1986, como expostas neste trabalho, pode-se constatar a existência de diferenças fundamentais. Mudanças importantes ocorreram, também, em relação à posição do Governo avançada em 10 de fevereiro de 1987, na antevéspera do protesto agrícola, ainda que na primeira comparação as alterações sejam bem mais básicas. Vejamos as razões para essa conclusão.

Em primeiro lugar, ao contrário dos termos da nova política agrícola, todos os preços· mínimos tiveram reajustes a partir de 01 de março de 1987 e, não, apenas, os produtos prioritários (culturas alimentares básicas do Plano de Metas). Pela Tabela 1 percebe-se uma faixa de 26,0 a 49,5% para os reajustes das diversas culturas, sendo os maiores aumentos para algodão e amendoim - produtos de exportação - e o menor, para os produtos regionais e mais o girassol, a mamona e trigo mourisco, colocados como produtos de exportação. Com reajustes intermediários, de 35 a 36%, ficaram todas as culturas prioritárias e mais a soja, um dos principais produtos de exportação.

Portanto, não foram preservados os termos básicos da nova política agrícola, pois todas as culturas tiveram reajustes de preços mínimos e a taxas diferenciadas. Não foram propiciadas informações ou explicações para tal procedimento, além da seguinte menção ao mecanismo do IPP: “Todavia, como tal mecanismo de correção automática estaria se mostrando inadequado para a realidade atual da economia brasileira, proponho a adoção das seguintes medidas, resumidas na Tabela anexa”18 18 Voto assinado pelo ex-ministro Dilson Funaro, ad referendum do Conselho Monetário Nacional, publicado em Gazeta Mercantil, 26 de fevereiro de 1987. (Tabela 1). Em nenhum momento, mencionaram-se as razões pelas quais o IPP estaria se mostrando inadequado para a “realidade atual da economia brasileira”. Isso é ainda mais estranho quando se considera que, por esse mesmo voto, esse inadequado mecanismo (do IPP) passará a reajustar os preços mínimos das culturas básicas (prioritárias, Tabela 1) em abril, maio e junho, como acima mencionado.

Em segundo lugar, a não utilização do IPP para o reajuste dos preços mínimos, conforme os termos da política agrícola de agosto de 1986, implica o uso de algum outro critério. Ainda que nada tenha sido mencionado por escrito, os maiores aumentos para algodão e amendoim, culturas altamente dependentes de mão-de-obra, indica que o critério básico deva ter sido as variações de custos de produção em cada cultura ou grupo de culturas, mecanismo que tem os sérios inconvenientes já explicitados neste trabalho (eliminação indesejável dos riscos inerentes à atividade, possível gravosidade internacional etc.).

Aliás, no caso de culturas de exportação, como algodão e soja, a utilização do critério variação em custos de produção trouxe, de fato, um sério problema de gravosidade internacional. No caso da soja, por exemplo, o preço mínimo passou de Cz$ 125,40 para Cz$ 170,40 por 60 kg a partir de 01 de março de 1987. Na última semana de fevereiro, o boletim Informativo CFP relatava os seguintes preços recebidos no mercado pelos agricultores: Rio Grande do Sul: 148,00; Paraná: 157,00; São Paulo: 155,00 - o que significa preços de mercado abaixo do novo preço mínimo em, respectivamente, -13,1%, -7,9% e -9,0%. No mesmo momento, o preço da soja aos produtores no Centro-Oeste estava em Cz$ 130-140,00 por 60 kg, ou -17,8 a -23,7% abaixo do novo preço mínimo.

Assumindo-se uma taxa de desvalorização do cruzado de 100/o ao mês nos próximos meses,19 19 Lembremos que, em fevereiro, a desvalorização do cruzado foi 4,8% acima da taxa de inflação medida pelo IPC (13,94%), isto é, ocorreu uma desvalorização real expressiva. resulta que apenas, com mais clareza, a partir do final de março/início de abril, é que a soja colhida no Paraná, São Paulo e Rio Grande do Sul começaria a perder a gravosidade que, entretanto, continuaria a existir no Centro-Oeste. Até lá, todos os produtores desejariam (preços externos constantes) vender ao Governo na forma de AGFs; o Governo, por seu lado, tem obrigação legal em comprar todo o produto oferecido pelos agricultores. Esse problema foi, mesmo, previsto pelos analistas da CFP, pois no último informativo de fevereiro, logo após a divulgação dos novos preços mínimos, está escrito que “aquele nível de preço mínimo anunciado implicará uma extraordinária gravosidade do produto, até em regiões do Sul do país mais próximas do porto”.20 20 CEP, Informativo CEP, Ministério da Agricultura, ano VII, n. 08, p. 8.

Nesse mesmo boletim da CFP mencionam-se duas possibilidades, em havendo recursos de AGF: a) a compra de toda a safra de soja do Centro-oeste; e b) a compra (mínima) de 50% da produção brasileira de soja em 1987. Em nossos cálculos, isso exigiria, da parte do Governo, um dispêndio, apenas com AGF de soja, de cerca de Cz$ 16,7 bilhões (caso a) ou de Cz$ 23,5 bilhões (caso b). Isso, efetivamente, garantiria a sustentação do preço de mercado ao nível do preço mínimo, a despeito do irrealismo deste; para tal, o Governo precisará dispender, a curto prazo, um gigantesca quantia, que pode chegar a mais de 50% do total previsto para AGF/EGFs em 1987. Adicionalmente, a desorganização de nossas exportações seria inevitável caso essa garantia irrealista, de fato, fosse cumprida, pois o setor privado se veria excluído dos negócios normais de exportação. Finalmente, no caso de efetivo cumprimento do preço mínimo da soja, fica uma constatação de especial tratamento a um produto de exportação que enfrenta uma desfavorável conjuntura externa (preços). Entretanto, ao final de março, momento de redação final deste trabalho, os preços de soja aos produtores estavam abaixo do mínimo em todos os Estados, segundo dados da CFP.21 21 De acordo com os dados do Instituto de Economia Agrícola de São Paulo, publicados na Folha de S. Paulo, na semana anterior a 31 de março de 1987, o preço médio da soja aos produtores foi de Cz$ 163,14 por 60 kg.

A situação é agravada quando se verifica a introdução de idêntico e especial tratamento ao algodão, outro produto de exportação; pela Tabela l, nota-se que esse foi o produto com o maior aumento de preço mínimo, de 49,5%, supostamente baseado na variação do custo de produção no Centro-Sul, passando de Cz$ 66,90/arroba para Cz$ 100,05/ arroba. O algodão, desde alguns anos, vem apresentando problemas de competitividade internacional, circunstância que tem em muito limitado nossas exportações de pluma; em 1986 isso foi agravado pelos subsídios concedidos pela política agrícola americana, o que deprimiu as cotações internacionais do produto. Havia, entretanto, uma perspectiva de que, em 1987, com alguma recuperação da cotação externa, a continuidade da política cambial e a melhoria de produtividade na lavoura, o Brasil pudesse retomar essas exportações através do próprio mercado.

Ainda segundo o boletim Informativo CFP, na última semana de fevereiro de 1987, o preço recebido pelos produtores em São Paulo e Paraná era de Cz$ 90,00/arroba em caroço, enquanto ao nível de atacado em São Paulo a cotação era de Cz$ 335,00/arroba em pluma; ao mesmo tempo, o preço FOB de exportação era de Cz$ 292,70/arroba em pluma, indicando uma gravosidade de 14%. Com o novo preço mínimo do caroço (Cz$ 100,05), o nível compatível do atacado em São Paulo seria da ordem de Cz$ 372,00/arroba em pluma, correspondendo a uma gravosidade de 27%. Isto é, um nível de gravosidade muito mais difícil de ser eliminado a curto prazo. Novamente, portanto, fica caracterizado um tratamento especial a um produto de exportação via política de preços mínimos, situação que poderá levar a um grande dispêndio, pelo Governo, em AGFs. A própria CFP disse: “A inconveniência do estabelecimento de preços de garantia acima dos preços de mercado (os preços do produto da safra nova giram atualmente em torno de Cz$ 90,00/15 kg), se deve, a despeito das expectativas positivas acima mencionadas, ao receio da estatização na ·comercialização”22 22 Informativo CFP, ano VII, n. 8. (grifo nosso).

Levando-se em conta que esse procedimento irrealista do Governo, em especial no caso da soja, deverá levar a grandes compras na forma de AGFs, fica a dúvida de se o mesmo Governo terá condições orçamentárias adicionais para compras dos produtos alimentares básicos que, pelas previsões da FIBGE, terão significativos aumentos de produção (arroz e milho) como, aliás, anteriormente mencionado. A existência de um expressivo crescimento na área cultivada e da produção de alimentos de mercado interno em 1987, em parte, pelo menos, resultado positivo da nova política agrícola (Plano de Metas) de agosto de 1986, que priorizava essas culturas, nos remete, ao completar esse trabalho, à questão de qual poderia ter sido o comportamento das autoridades governamentais perante os aspectos fundamentais que justificaram o protesto agrícola de fevereiro passado.

UM EVENTUAL AJUSTE DA POLÍTICA AGRÍCOLA

Alguns pontos básicos precisam ser relembrados para se discutir um eventual ajuste na política agrícola. Primeiro, o Governo formalmente introduziu, em agosto de 1986, um política agrícola que, por sua vez, continha prioridade ao segmento de produtos de mercado interno, mas colocando um enfoque de maior liberdade comercial nas transações dos produtos de exportação. Segundo, essa política foi, nos seus aspectos mais importantes, apoiada pelas lideranças do setor agrícola. Terceiro, o próprio Governo Federal não desenvolveu maiores esforços para implementar essa nova política agrícola, pois, o IPP, instrumento básico de apoio aos produtos de mercado interno, foi divulgado apenas ao final de fevereiro de 1987 (Comunicado CFP n. 001/87 de 27 de fevereiro de 1987), com uma variação de 26,14% entre junho de 1986 e janeiro de 1987. Quarto, entre a introdução da nova política agrícola (agosto de 1986) e a divulgação do IPP (fevereiro de 1987), a inflação no Brasil experimentou uma drástica elevação. Em nossa avaliação, a combinação destes dois últimos eventos pode explicar uma boa parte da situação de protesto na agricultura.

Na tabela 2 apresentamos as variações mensais de algumas das importantes variáveis econômicas relevantes a esta análise. Devemos lembrar que a série mensal referente ao IPP não foi divulgada pelo Governo, mas nos foi cedida pelos técnicos da CFP; o divulgado em 27 de fevereiro de 1987 foi o índice acumulado, junho de 1986-janeiro de 1987, de 26,14%. Enquanto o Decreto n. 93.118 de 14 de agosto de 1986 estabelecia o IPP com data-base de 01 de agosto de 1986 e, portanto, com 07/1986 = 100, o Comunicado CFP n. 001/86 estabeleceu 06/1986 = 100. Isso não fez diferença para os reajustes dos preços mínimos em 25 de fevereiro de 1987 {Tabela 1), já que estes não foram, como visto acima, baseados nas variações do IPP.

Tabela 2:
Taxas mensais de variação do IPP, IPC e Câmbio (Cz$/US$), Junho 1986 - Fevereiro 1987

As variações do IPC testadas na Tabela 2, além de nos darem as taxas de inflação no Brasil, podem, também, ser tomadas como uma indicação aproximada das taxas de juros no segmento livre do mercado. Por outro lado, as taxas de variação cambial podem, assumindo-se preços externos dados, ser tomadas como indicativas das variações dos preços internos dos produtos de exportação. Vejamos, então, o comportamento das três séries. Em primeiro lugar, entre julho e outubro, todas as variações mensais do IPP foram maiores que as do IPC e do câmbio, com os acumulados respectivos de:

  • IPP = 13,40%

  • IPC = 6,65%

  • Câmbio = 0,94%

Apenas em novembro de 1986 é que esse quadro começou a se alterar, com o IPC sendo ligeiramente maior que o IPP, mas ambos com variações bem superiores à cambial. A grande mudança, entretanto, ocorreu em dezembro de 1986, pois tivemos um IPC de 7,27%, um IPP de 3,95% e uma variação cambial de l,00%. Caso aceitemos o IPC como um indicador limite inferior para os juros de mercado, dezembro de 1986 pode ser identificado como a origem do problema agrícola, através do descasamento entre os ativos e passivos dos agricultores. Isso foi agravado em janeiro para os produtores de culturas alimentares básicas, que são as beneficiadas pelo mecanismo IPP, pois naquele mês as variações foram: IPP, 3,78%; IPC, 16,82%, e câmbio, 7,90%. Na margem, portanto, os produtores de culturas de exportação passaram a ficar com razoável equilíbrio entre ativos e passivos, ainda que acumulando um pesado desequilíbrio no período julho-dezembro de 1986. Para os produtos de mercado interno, esse desequilíbrio continuou em fevereiro de modo um pouco menos grave que em janeiro.

Lembrando que o acumulado do IPP, de 26,14% entre junho de 1986 e janeiro de 1987, foi divulgado pelo Diário Oficial apenas ao final de fevereiro (ainda que não utilizado como instrumento de correção dos preços mínimos), poderíamos indagar se a crise agrícola teria sido evitada com a divulgação do IPP em datas apropriadas. Considerando-se que o Decreto n, 93.118 que o introduziu foi de meados de agosto, parece-nos razoável que em 90 dias, ou seja, meados de novembro, a CFP pudesse iniciar uma sistemática mensal e rotineira de sua publicação.

Examinando-se os dados mensais do IPP na Tabela 2, pode-se perceber que, em meados de novembro de 1986, deveríamos ter disponível o acumulado até outubro, de 13,40%, assim como suas respectivas variações mensais. Com essa informação, os produtores deveriam ter uma expectativa de acionamento do gatilho dos preços mínimos em um ou, o mais tardar, dois meses, isto é, com o IPP de novembro ou de dezembro. Caso esse procedimento tivesse ocorrido, acreditamos que a crise agrícola teria sido aliviada. De fato, com os dados da Tabela 2 (base IPP em junho de 1986), verifica-se que esse gatilho, caso tivesse sido rotineiramente publicado após meados de novembro, teria sido acionado com o IPP de dezembro (21,54%) que, supostamente, deveria ter sido publicado ao início de janeiro de 1987.

O acionamento do gatilho dos preços mínimos no início de janeiro, em linha com o Decreto n, 93.118 para os cinco produtos básicos (arroz, milho, feijão, mandioca e sorgo), implicaria um reajuste dos preços mínimos de 21,5%, utilizando-se a sistemática prevista no Decreto n. 93.118, assim como o início de um novo período de contagem para as variações do IPP. É preciso reconhecer que, mesmo se esse procedimento tivesse sido cumprido, não se resolveria a totalidade do problema agrícola (ativo versus passivo), em especial pelas discrepâncias das taxas mensais do IPP e IPC no trimestre de dezembro 1986-fevereiro 1987 (Tabela 2) o que, por sua vez, reflete as grandes divergências de preços relativos, câmbio, juros e inflação na economia brasileira nesse crítico período. É difícil imaginar quem, de alguma maneira, imobilizado com seus recursos, não tenha sofrido perdas com a aceleração inflacionária desse período; produtores agrícolas, pequenos e médios empresários industriais e comerciais, trabalhadores assalariados, outros produtores com preços controlados, sem dúvida, foram bastante prejudicados nesse período.

Com o passar dos meses em 1987, com o processo de realinhamento de preços promovido pelo Governo e, talvez mesmo, o retorno de vários setores a uma economia de mercado, as grandes divergências de preços relativos, câmbio, juros e inflação tenderiam a diminuir; eventualmente, a estabilização da taxa de inflação se daria a um nível bem mais elevado, talvez próximo aos 200-250% do período anterior ao Cruzado. Caso isso ocorresse, o IPP voltaria a ser um instrumento de proteção aos produtores das culturas alimentares básicas. Portanto, a nossa recomendação, em linha com a política agrícola de agosto de 1986, seria de manter seus pontos básicos e seu estrito cumprimento, incluindo os reajustes anuais. Perdas teriam ocorrido no período dezembro 1986-fevereiro de 1987, mas o grupo de cinco produtos seria melhor protegido até 1989.

Ao contrário do caso dos produtos básicos, os produtos de exportação tiveram seu pior período durante março-novembro de 1986, e um quadro bem melhor daí para a frente. Naquele período, enquanto a variação do IPC foi de 14,0%, a do câmbio foi de apenas 1,95%. Com a retomada das desvalorizações do Cruzado após 21 de novembro de 1986, essa distorção passou a ser corrigida: entre dezembro de 1986 e fevereiro de 1987, para uma variação do IPC de 42,78%, a cambial foi bastante próxima, de 29,27%. Tudo indica que isso continuará ao longo de 1987. Desse modo, assumindo-se constância de preços internacionais, os preços internos (de mercado) dos produtos de exportação tenderiam a seguir as variações cambiais.

Por outro lado, pelo Decreto n. 93.118, que formalizou os preços mínimos para a safra 1986/87 e estipulou regras até 1989, os produtos de exportação, por exclusão, teriam reajustes apenas a cada 01 de agosto, já que não foram beneficiados pelo mecanismo do IPP. O documento de política agrícola dizia que para os produtos de exportação - soja, amendoim, algodão e mamona -, “os preços mínimos levarão em conta as cotações internacionais, permitindo a produção ajustar-se à realidade de mercado” (grifo nosso). Ora, como vimos anteriormente, as mudanças nos preços mínimos introduzidas pelo Governo em 25 de fevereiro e consubstanciadas no Decreto n. 94.077 de 05 de março de 1987, inteiramente contrariam aquela orientação, com os maiores aumentos aos produtos de exportação, supostamente baseados em variações de custo de produção e, não, nas cotações internacionais. Gravosidade e grandes compras governamentais serão as consequências desse procedimento sem respaldo técnico de maior seriedade, em se cumprindo o prometido.

Qual teria sido uma alternativa a esse procedimento? É preciso reconhecer a grande alteração inflacionária entre o momento da introdução da política agrícola em agosto de 1986 e fevereiro de 1987, quando se publicaram os novos preços mínimos. Por outro lado, os preços internacionais de nossos produtos de exportação continuaram deprimidos, e a variação cambial até dezembro de 1986 ficou bem abaixo da inflação interna. Algum alívio seria obtido pelos produtores casos os preços mínimos fixados em agosto de 1986 fossem reajustados para vigorar a partir de 01 de março de 1987, considerando-se, como previsto pela política, as cotações internacionais, a taxa de câmbio e os custos de comercialização (exemplo, soja Centro-Oeste). Isso teria permitido um reajuste dos preços mínimos de soja e algodão da ordem de 15-20%, reajuste que não causaria os problemas de gravosidade e compras pelo Governo.

Em contrapartida, o Governo permitiria, como aliás prometido na nova política agrícola, um funcionamento mais livre do mercado de produtos de exportação, em especial quanto às quantidades exportadas. Desse modo, para esses produtos, a nossa proposta seria de maior confiança nas forças de mercado e menos na política de preços mínimos. Tanto quanto para os produtos básicos - arroz, feijão, milho, sorgo e mandioca - essa proposta, ainda que realista e factível, implicaria perdas aos produtores, em função da aceleração inflacionária que ocorreu no Brasil após novembro de 1986, com o desastrado Cruzado II. Talvez mesmo, com o sentimento de principal culpado (pela introdução do Cruzado II) é que o Governo tenha cedido às lideranças de classe, com mudanças na política agrícola e de preços de cunho irrealista e com baixa probabilidade de cumprimento. Caso esta última possibilidade seja confirmada, perdas também ocorrerão aos produtores, talvez em maiores proporções e, adicionalmente, terá desaparecido a· confiança que os agricultores adquiriram com a nova política agrícola (Plano de Metas).

  • 1
    Nesta nota analisaremos a questão dos novos preços mínimos; as normas de comercialização e de financiamentos disponíveis são discutidas em uma nota seguinte.
  • 2
    Veja Homem de Melo, F,; “O Protesto Agrícola e o Após-Cruzado para o Setor”, Folha de São Paulo, 21 de fevereiro de 1986.
  • 3
    Veja Homem de Melo, F., Estabilização de Preços: Domésticos vs. Exportáveis, São Paulo, Relatório de Pesquisa, IPE/USP, 1986
  • 4
    Veja Lopes, M.R., “O Estado Atual da Agricultura”, Carta Mensal da SUPEC, Informativo CEP, ano II, n. 2.
  • 5
    Veja Homem de Melo, F., O Problema Alimentar no Brasil, São Paulo, Editora Paz e Terra, 1983.
  • 6
    A produção prevista para 1987 é objeto de outra nota nesta mesma carta.
  • 7
    Para mais detalhes, veja Homem de Melo, F., “O Protesto Agrícola ....”, op. cit.
  • 8
    Deve-se, obviamente, excluir do problema ocorrido os agricultores que foram capazes de tomar financiamentos à taxa nominal de 10% para a grande parte de suas necessidades.
  • 9
    Comunicado CEP/DAEP/SUTEC, n. 001/87, de 27 de fevereiro de 1987, indicando uma variação de 26,14% de junho de 1986 a janeiro de 1987.
  • 10
    Ao final de março, o Governo liberou os preços de arroz e feijão, até então tabelados pela SUNAB.
  • 11
    Veja Informativo CFP, “Política Agrícola”, Companhia de Financiamento da Produção, 09-13.2.1987.
  • 12
    Veja Informativo CFP, “Política Agrícola ... “, op. cit.
  • 13
    Lopes, M.R., “O Estado Atual da Agricultura”, Informativo CFP, Carta Mensal da SUPEC, ano II, .n.2.
  • 14
    Informativo CFP, “Política Agrícola ... “, op. cit.
  • 15
    Veja nosso estudo: Homem de Melo, F., Prioridade Agrícola: Sucesso ou Fracasso?, São Paulo, Pioneira, 1985.
  • 16
    Esse aspecto será mais analisado adiante neste trabalho.
  • 17
    Homem de Melo, F., Estabilização de Preços: Exportáveis vs. Domésticos, op. cit.
  • 18
    Voto assinado pelo ex-ministro Dilson Funaro, ad referendum do Conselho Monetário Nacional, publicado em Gazeta Mercantil, 26 de fevereiro de 1987.
  • 19
    Lembremos que, em fevereiro, a desvalorização do cruzado foi 4,8% acima da taxa de inflação medida pelo IPC (13,94%), isto é, ocorreu uma desvalorização real expressiva.
  • 20
    CEP, Informativo CEP, Ministério da Agricultura, ano VII, n. 08, p. 8.
  • 21
    De acordo com os dados do Instituto de Economia Agrícola de São Paulo, publicados na Folha de S. Paulo, na semana anterior a 31 de março de 1987, o preço médio da soja aos produtores foi de Cz$ 163,14 por 60 kg.
  • 22
    Informativo CFP, ano VII, n. 8.
  • 23
    JEL Classification: Q11; Q18.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1987
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