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Novos padrões tecnológicos, competitividade industrial e bem-estar social: perspectivas brasileiras

New technological patterns, industrial competitivity, and social welfare: Brazilian perspectives

RESUMO

Este texto começa explorando o modelo japonês de relações e organização industrial como alternativa à crise do fordismo-taylorismo que ocorre nos países desenvolvidos do leste. Reconhece, para tanto, a importância da melhoria das relações capital-trabalho, ou seja, da participação dos trabalhadores nas definições e nos benefícios de objetivos comuns que resultem, por exemplo, em melhor distribuição de renda. Tomando o caso brasileiro, diagnostica-se que o atual modelo de “desenvolvimento” está levando o país ao caos. Mudanças econômicas, sociais e políticas radicais são necessárias para recriar um modelo contemporâneo de desenvolvimento capitalista baseado nas especificidades brasileiras. Nesse modelo, o bem-estar social é uma de suas principais forças econômicas, uma genuína competitividade internacional resultará naturalmente do fortalecimento do mercado interno e o trabalho não é considerado apenas um custo de produção, mas um importante recurso para a construção de vantagens comparativas dinâmicas.

PALAVRAS-CHAVE:
Desenvolvimento econômico; relações de trabalho; mudança estrutural

ABSTRACT

This text begins by exploring the Japanese Model of industrial relations and organization as an alternative to the crisis of Fordism-Taylorism occurring in Eastern Developed Countries. Acknowledges for such, the importance of improved capital-labour relations, i.e., workers’ participation in the definitions and in the benefits of common objectives that results for example in better income distribution. Taking the Brazilian case, it is diagnosed that the present model of “development” is leading the country to chaos. Radical economic, social, and political changes are required to recreate a contemporary model of capitalist development based on Brazilian specificities. In such model, social welfare is one of its major economic strengths, a genuine international competitiveness will naturally result from the strengthening of the internal market, and labour is not merely considered a cost of production but an important resource for building dynamic comparative advantages.

KEYWORDS:
economic development; labour relations; structural change

Este texto pretende discutir aspectos da lógica do processo de desenvolvimento econômico brasileiro neste limiar de mudança de século (e de milênio). Tratará de algumas das possibilidades, e respectivos requisitos, de mudança nos padrões de organização industrial vigentes no país.

O diagnóstico, ou melhor, a constatação básica é de que um parque produtivo de consideráveis dimensões e elevada complementariedade industrial foi instalado no Brasil num tempo razoavelmente curto, sem que as relações trabalho/capital (ou relações salariais, como seriam chamadas pela teoria francesa da regulação) tivessem evoluído correspondentemente. Ao contrário, em termos relativos deterioraram-se.

Consequentemente, tanto a eficiência macroeconômica dos investimentos locais, na geração de emprego e renda, tem diminuído em função da atrofia relativa do mercado interno (que por sua vez resulta da contínua e perversa piora na distribuição de renda), como a aparente competitividade internacional atingida na produção manufatureira tem, muitas vezes, um caráter “espúrio” (como denomina Fajnzyber, 1988), no sentido de que seus benefícios são apropriados individualmente, por segmentos de interesses muito restritos que, com frequência, nem se situam no país. Como essa “competitividade espúria” depende, em última instância, justamente da desvalorização do trabalho local, a maioria dos seus supostos benefícios não reverte, sequer indiretamente, para a sociedade como um todo.

O argumento que aqui será proposto levanta, uma vez mais, a hipótese de que não apenas a melhoria do bem-estar da população em geral, mas também o aumento da própria competitividade internacional será alcançado como consequência da recuperação da relação salarial e, logo, com a dinamização do mercado interno. Em vez de defender, abstratamente, a necessidade de modernização da indústria através do uso de novas tecnologias, ou através da abertura da economia para o capital estrangeiro, é preciso compreender as especificidades do tecido industrial e repensar toda a lógica da organização social da produção no Brasil, tanto ao nível micro como ao nível macro.

No que diz respeito ao processo decisório intrafirma, o caminho é no sentido de um relacionamento entre capital e trabalho mais harmonioso (particularmente no que concerne a questões relativas ao processo de produção, ao produto e aos respectivos projetos) e, por isso mesmo, mais adequado à utilização seletiva de novas tecnologias de automação flexível (TAF). É bom que se diga, desde logo, que novas tecnologias de organização social da produção (TOSP) deveriam ser implementadas na esmagadora maioria das empresas industriais no Brasil, independentemente da utilização de TAF. Do mesmo modo, há muito o que fazer para melhorar a articulação interfirmas, tornando o tecido industrial mais eficiente e genuinamente competitivo. Tudo isto é especialmente importante no capitalismo contemporâneo, onde a tendência à internacionalização cada vez mais se faz presente, e onde as regras concretas de produção e apropriação de excedente econômico estão sendo redefinidas, provocando um acirramento da tendência à polarização social, previamente existente, intra e interpovos. Como se pode notar, tudo isso pressupõe e implica um efetivo processo de democratização do país.

1. TECNOLOGIAS DE AUTOMAÇÃO FLEXÍVEL E AS NOVAS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL DA PRODUÇÃO: REFLEXÕES SOBRE O CASO JAPONÊS

Existe um reconhecimento generalizado entre técnicos e especialistas de que o atual paradigma de eficiência e produtividade industrial é representado pelo chamado “modelo japonês”. Não há dúvida de que, por mais extensas e profundas que tenham sido as pesquisas e os estudos sobre este modelo, é muito difícil a compreensão exata de sua dinâmica por parte dos estudiosos ocidentais. A maior barreira para captar a plena e verdadeira dimensão desse fenômeno talvez seja mesmo cultural e, por isso mesmo, não se pode dizer que seja um modelo a seguir “ao pé da letra”. No entanto, alguns aspectos já apontados na literatura merecem ser destacados com o objetivo de iluminar possíveis caminhos a serem trilhados por países em desenvolvimento (e aqui interessa particularmente o Brasil) e de, inclusive, desmistificar aspectos econômicos, tecnológicos e sociais do caso japonês, que chegam ao Ocidente como miragens idealizadas e ideologizadas de seu sucesso.

A precedência da organização social da produção sobre o “determinismo tecnológico”

Muito se fala das TOSP, dentro da fábrica ( just-in-time, CCO, zero defeito etc.) e mesmo fora dela (isto é, sistema de subcontratações), como se estivessem umbilicalmente ligadas às TAF. De fato, em muitos casos, e em especial no caso japonês, estão. Porém, é preciso que se tenha claro que não apenas não são a mesma coisa, ou a rigor não vêm necessariamente juntas, como a evidência histórica é de que o sucesso na introdução de TAF é tanto maior quanto mais e melhor as TOSP tiverem previamente sido implementadas.

A verdade é que, em geral, há bastante o que fazer para aumentar a eficiência das fábricas e unidades produtivas, sem que seja necessário utilizar as TAFs. As grandes escalas encobrem, frequentemente, muitas ineficiências e desperdícios não apenas de natureza técnica stricto sensu, mas também de natureza gerencial ou organizacional. Além disso, o clima de antagonismo, monotonia e/ou alienação que, também frequentemente, é vivido em grandes e pequenas empresas em função de administrações antiquadas ou “despóticas” (como no taylorismo-fordismo), é caldo fértil para a germinação de “porosidades” no trabalho. A atividade de trabalho, via de regra, poderia ser desempenhada com ritmo e qualidade muito superiores, caso houvesse interesse por seu resultado, bem como condições “salutares” e adequadas à sua execução.

O melhor exemplo disso vem da indústria automobilística, que serviu de “carro chefe” do processo de industrialização em diversos países. A periodização feita pelo World Automobile Program do Massachussetts Institute of Technology, sobre o desenvolvimento da indústria automobilística mundial, aponta exatamente nessa direção. Segundo o estudo, a primeira grande transformação dessa indústria ocorreu nas décadas de 1910 e 1920, com a introdução, por parte dos produtores americanos, dos conceitos de linha de montagem para produção em massa desenvolvidos por Henry Ford, e com os então novos conceitos de gerenciamento e controle das operações administrativas de grandes empresas. Vale dizer, por sinal, que se estabeleceu então o que a escola francesa da regulação chamou de “padrão fordista de acumulação”, baseado em elevada produtividade de produtos padronizados (associado, assim, a grandes escalas de produção com acentuado conteúdo de automação rígida), salários elevados e, logo, um forte dinamismo da economia. A segunda grande transformação da indústria automobilística teria ocorrido na Europa, depois da Segunda Guerra Mundial, caracterizando-se por uma significativa diversificação de modelos produzidos, particularmente no que concerne ao segmento de carros pequenos e, mais tarde, ao segmento de carros de luxo com altos preços.

A terceira grande transformação da indústria automobilística teria ocorrido no Japão. Nesse país foi levado a cabo um duplo movimento de licenciamento de modelos europeus e de adoção de técnicas de administração científica da produção importadas dos EUA, que foram. devidamente modificadas, a fim de atender às prioridades japonesas (condicionadas por escassez de espaço, material e energia) e aproveitar as peculiaridades de seu tecido industrial, auferindo assim vantagens comparativas resultantes de sua especificidade (capacidade e legitimidade do trabalho em grupo, formas de articulação e integração dos grupos empresariais locais etc.) (Tones, 1985).

Só então, após disseminadas as TOSP no Japão, seguir-se-ia uma quarta transformação, iniciada em meados dos anos 70 e chegando aos dias de hoje, que parece mudar radicalmente a maneira de se fazer carros. Essa transformação, baseada na acelerada difusão de dispositivos microeletrônicos no processo de produção lato sensu, isto é, desde a fase de projeto de produto e de processo (com o uso de CAD e CAE) até os testes finais, passando pelo processo de fabricação em si (com o uso de robôs, máquinas de controle numérico, controladores lógico-programáveis etc.), implica maior flexibilidade do processo e reduz as economias de escala inerentes a essa indústria. Isso reflete o acirramento da concorrência nessa indústria em âmbito mundial, permitindo que os produtores possam não apenas colocar no mercado produtos de melhor qualidade, mas também atender, de modo passivo ou ativo, às modificações no volume e no perfil da demanda.

O cerne dessa nova trajetória tecnológica (Nelson e Winter, 1982NELSON, R. e WINTER, S. (1982). An evolutionary theory of economic change. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press. e Dosi, 1984DOSI, G. (1984). Técnica change and industrial transformation. London, Macmillan. ) que Coriat (1988CORIAT, B. (1988). Flexibilité dinamique et production de masse. (Mimeografado) ) define como “uma série orientada e cumulativa de inovações sucessivas”, responde a dois tipos de fenômenos. Em primeiro lugar, trata-se do “enfraquecimento relativo das técnicas tayloristas e fordistas de organização do trabalho como meio de obter aumentos de produtividade”, devido à dificuldade de equilibrar as linhas de produção de modo a eliminar seus tempos mortos e improdutivos (Coriat, 1988CORIAT, B. (1988). Flexibilité dinamique et production de masse. (Mimeografado) , p. 3). Estudos indicam que, independentemente da produtividade do trabalho, a taxa de ocupação das máquinas-ferramenta (isto é, seu tempo de efetivo funcionamento) na indústria manufatureira é surpreendentemente baixo (ver, por exemplo, Shaiken, 1985SHAIKEN, H. (1985). Work transformed, automation and labour in the computer age. New York, Holt, Richard & Winston. ). “Existiriam, assim, importantes reservas de produtividade que uma organização da produção mais adequada faria aflorar” (Coriat, 1988bCORIAT, B. (1988b). New technologies, labour and new job contents. Campinas, Unicamp. (Mimeografado) ).

Em segundo lugar, está em questão a capacidade de atender à demanda, instável e diferenciada, em tempos de crise e de rápida mutação tecnológica. Aqui, trata-se do surgimento das chamadas economias de escopo, associadas à difusão de equipamentos rapidamente reprogramáveis (logo, flexíveis) por dispositivos de controle microeletrônicos (máquinas com controle numérico, controladores lógico-programáveis, robôs, CADs etc.). A rápida obsolescência de produtos e modelos - seja por razões tecnológicas, seja por razões mercadológicas - característica dos tempos atuais, pode ser, assim, até certo ponto contrabalançada por sistemas de produção de vida útil mais longa, na medida em que são mais facilmente reprogramáveis e reconversíveis para atender à demanda por novos produtos com diferentes características e/ou especificações.

A nova trajetória tecnológica permite, desse modo, delinear novos padrões para o processo de produção, no que concerne à sua integração e à sua flexibilidade. “A integração visa converter os tempos mortos da produção em tempos efetivamente produtivos, sejam esses tempos relativos ao trabalho, à taxa de utilização dos equipamentos ou aos tempos de estocagem ... a plena exploração dos potenciais benefícios da integração supõe a introdução de inovações organizacionais no arranjo das linhas produtivas”. Pode-se falar, assim, de “economias de organização”, que Leibenstein (1966LEIBENSTEIN, H. (1966). Allocative efficiency versus efficiency. In: The American Economic Review, 56. p. 392-415. ) chamou de “efeitos de eficiência X”. Já “a flexibilidade permite, se necessário, fabricar (ou projetar, adiciono eu) simultaneamente e de maneira automática uma gama diferenciada de peças e de produtos, a partir de uma instalação básica elementar”, pp. 4-5); ver também Coriat, 1983CORIAT, B. (1983). La Robotique, La Découverte, Paris, Maspero. e 1988bCORIAT, B. (1988b). New technologies, labour and new job contents. Campinas, Unicamp. (Mimeografado) ).

O que é importante ressaltar aqui é a associação geralmente existente entre as novas TAF (no sentido de hardware) e as novas TOSP (que, ao nível micro, poderiam ser chamadas de software organizacional). Mais do que isso, no entanto, o argumento ora proposto estabelece uma precedência da questão organizacional sobre a inovação tecnológica stricto sensu. Isto é, há um reconhecimento generalizado de que a utilização minimamente eficiente das TAFs pressupõe mudanças na concepção gerencial da produção (para dar conta da lógica sistêmica que é bastante estendida, chegando a afetar até o trabalho individual direto) e no conteúdo e na organização do trabalho. Adiciono, entretanto, que a eficiência buscada será tanto melhor alcançada quanto mais já tiverem sido disseminadas determinadas precondições sociais que potencializam o desempenho da atividade coletiva.

As mudanças apregoadas na organização do trabalho estariam, assim, não apenas condicionadas pela dimensão tecnológica inerente às características físicas e operacionais dos equipamentos, mas também condicionadas por fatores sociais que catalisam ou obstruem o desenvolvimento das plenas potencialidades das TAF. O desenvolvimento de TOSP adequadas à cultura industrial japonesa seria, então, o fator desequilibrador dos níveis de eficiência lá alcançados. Não fosse esse o caso, não haveria muita, ou convincente, explicação para o fato de que as plantas japonesas têm uma produtividade aparente e uma eficiência operacional muito superior às suas congêneres em outros países desenvolvidos, mesmo quando estas têm um grau de utilização de TAF equivalente ou mesmo superior. Seguem-se alguns exemplos ilustrativos, tirados da paradigmática indústria automobilística.

Um primeiro exemplo trata do envolvimento do trabalhador com o progresso técnico. Esse ponto é extraordinariamente importante. Não se conhece caso nas economias capitalistas modernas (e quiçá nas socialistas) onde a intervenção do trabalho na definição das características técnicas, específicas do processo de produção, seja tão grande. Em muitos casos, é quase como se houvesse uma divisão do trabalho em termos de projeto do processo, em que aos trabalhadores diretos, no local da produção, seriam deixadas as inovações incrementais, em complementação às inovações radicais, das quais se encarregariam os projetistas, nos escritórios (Kaplinsky, 1986KAPLINSKY, R. (1986). Restructuring the labour process and the international division of labour in manufacturing: some lessons from the automobile industry, Brighton, IDS, University of Sussex. Nov. (Mimeografado) , e Freeman, 1984FREEMAN, C. (1984). “Prometheus unbound”. ln: Futures, 15. p. 494-507. ). Neste sentido, a elevada interação do pessoal de campo com o pessoal de escritório pode ser mostrada pelo quase estarrecedor (pelo menos aos redondos olhos ocidentais) número de sugestões (e de seu efetivo aproveitamento) feitas pelos empregados da Toyota para melhoria dos produtos e dos processos de produção (ver Tabela 1).

Tabela 1:
Sugestões feitas por empregados da Toyota para aperfeiçoamento de produtos e processos

Por maiores que sejam as peculiaridades da Toyota (e é bom que se ressalte que os dados acima são fornecidos por ela própria) quanto às formas e recompensas para que essa notável marca seja conseguida, essa empresa está longe de ser um caso único no Japão. Ao contrário, esse tipo de participação trabalhadora parece ser crescente: “Uma pesquisa com mais de 300 firmas japonesas em 1979, envolvendo mais de 2 milhões de trabalhadores, computou uma média de 7,19 (sugestões/ empregado/ano), bem superior às 4,5 encontradas em 1973” (Kaplinsky, op. cit., p. 23, baseado em Baba, 1985BABA, Y. (1985). Japanese colour television firm’s decision making from the 1950’s to the 1980’s: oligopolistic corporate strategy in the age of microeletronics, PhD Thesis, Princeton, University of Sussex. ). Por mais, também, que se reconheça (como, aliás, Kaplinsky o faz) que muitas dessas sugestões possam não ter maior expressão, transparece a existência de alguma espécie de “pacto de interesses” minimamente comuns entre empresários e trabalhadores (ou cooptação destes) em torno dos objetivos dessas empresas, Kaplinsky (ibidem) sugere que isto traz, como consequência, uma endogeneização da mudança tecnológica dentro do próprio processo de trabalho, fazendo com que, segundo Baba (1985BABA, Y. (1985). Japanese colour television firm’s decision making from the 1950’s to the 1980’s: oligopolistic corporate strategy in the age of microeletronics, PhD Thesis, Princeton, University of Sussex. ), a fábrica fosse vista pelos japoneses como um grande laboratório (e, por que não dizer, uma escola permanente).

Ora, independente do grau de veracidade da última hipótese, isso tudo seria praticamente impensável nas empresas dos países desenvolvidos ocidentais. Na grande maioria delas, a dicotomia capital-trabalho é muito acirrada pelos rígidos padrões fordistas-tayloristas de organização da produção, particularmente no que relacionam divisão de trabalho com hierarquização funcional. É claro que existem as honrosas exceções, mas impensável mesmo é esperar que se encontre esse “clima cooperativo” como padrão nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, onde mais do que meramente uma dicotomia capital-trabalho há, sim, um flagrante conflito, expresso (e causado) por padrões de reprodução social da classe trabalhadora cada vez mais miseráveis.

A não ser no caso das mencionadas exceções e da existência de condições muito específicas, pergunto ao leitor, por que haveria um trabalhador genérico, de uma empresa genérica desses países, de fazer sugestões para aperfeiçoamento de processos e produtos que lhe são tão frontalmente antagônicos? O ritmo dos processos produtivos· convencionais é cada vez mais intenso, monótono e controlado por gerentes autoritários, num arremedo das técnicas tayloristas, que, por sinal, estão em franco processo de obsolescência mesmo nos países desenvolvidos. Não há, via de regra, nenhuma estabilidade ou garantia de emprego, o que quer dizer que o aumento de produtividade per ele proposto poderia perfeita e impunemente estar destruindo seu próprio emprego: um suicídio do trabalho. Não existe nem perspectiva de uma elevação significativa na remuneração salarial que lhe permita a aquisição de bens que muitas vezes ele próprio produz. Ao contrário, salários reais escorchantemente cadentes e inflações endêmicas galopantes o afastam cada vez mais do consumo de tais bens (apenas um exemplo brasileiro atual: o mais barato carro nacional, que era vendido em 1985 pelo equivalente a 59 salários-mínimos, hoje o é por 145·salários-mínimos). Mesmo a ascensão da hierarquia dentro do local da produção com uma correspondente melhora salarial, geralmente ainda o deixa muito distante dos padrões “desenvolvidos” de consumo das elites.

Enfim, há muita desconfiança por parte dos trabalhadores em particular de negociações que envolvam as questões estruturais de organização da produção (no sentido micro e macro), pois nem o empresariado nem o Estado guardam credibilidade para isso. No caso brasileiro, o que de concreto se está tentando no momento é algum tipo de acordo de curto prazo visando, basicamente, a deter a inflação que foge ao controle. É preciso, no entanto, que um amplo pacto social vá efetivamente mais além, tratando também das condições estruturais do crescimento econômico, e das questões do desenvolvimento social básico, conforme será visto adiante.

Um segundo, e breve, exemplo do extraordinário desempenho alcançado pela indústria japonesa diz respeito ao tempo de reprogramação (change over time) dos equipamentos flexíveis, em função da possibilidade de redução do tamanho das séries e lotes, para atender às variações da demanda. Enquanto apenas recentemente (no princípio desta década) a troca de moldes nas prensas das seções de estamparia das montadoras americanas foi reduzida de 8 horas para 45 minutos, na Mazda esse tempo é de 2 minutos (Kaplinsky, op. cit.). É claro que dispondo de equipamentos basicamente semelhantes, o fator organizacional, que envolve o conhecimento e a participação trabalhadora, provavelmente dá conta de grande parte dessa impressionante diferença de produtividade.

Outro exemplo bastante ilustrativo refere-se à adoção da TOSP just-in-time (ou KAN-BAN), que cada vez mais torna-se padrão na indústria japonesa. Com os resultados (espetaculares lá) alcançados, que tendem a reduzir drasticamente os estoques intermediários e finais, a introdução e difusão desse sistema de organização da produção faz aflorar muitas das ineficiências preexistentes. Para que esse tipo de TOSP funcione a contento, é necessário que essas ineficiências sejam sanadas ou, pelo menos, minimizadas. Exige, assim, um elevadíssimo grau de coordenação, precisão e qualidade das atividades executadas dentro da fábrica (como a política de zero defeito, que só é possível com a participação ativa dos operários, e que torna a questão da busca da qualidade inerente ao processo de trabalho). Exige, do mesmo modo, uma harmoniosa articulação e integração da empresa com o restante do tecido industrial com que se relaciona. As entregas, é bom lembrar, devem ser feitas regularmente em intervalos de tempo muito menores, e os produtos devem obedecer rigorosamente aos padrões de qualidade especificados. Os resultados impressionantes alcançados com a introdução de just-in-time no Japão podem ser mostrados através da Tabela 2, que compara a rotação dos estoques da Toyota com as principais montadoras americanas.

Tabela 2:
Rotação anual dos estoques* nas montadoras americanas e na Toyota

É verdade que o grau de subcontratação das montadoras japonesas é muito maior que o das americanas: as peças e componentes fornecidos por empresas subcontratantes chega a cerca de 75% do valor de compra do carro japonês, enquanto no caso americano esse índice chega apenas a 55 % (Cole Yakushiji, 1984, citado por Aoki, 1986AOKI, M. (1986). “Horizontal vs. vertical integration of the Firm”. The American Economic Review, 76, (5) dez. ). Isso explica, em parte, a “discrepância” encontrada na Tabela 2. No Brasil, o grau de internalização da produção, tanto das montadoras como das empresas produtoras de autopeças, também é elevado. Essa “excessiva integração” torna o sistema desnecessário e prejudicialmente rígido.

O maior grau de subcontratação igualmente deve explicar, mas também apenas parcialmente, a impressionante diferença aparente de produtividade encontrada entre os trabalhadores das montadoras japonesas e americanas, conforme está registrado na Tabela 3.

Tabela 3:
Produto por empregado nas montadoras americanas e japonesas e veículo/ ano)

Uma nota sobre o Japão, algumas desmitificações

Já que está em pauta o Japão e o sucesso de seu modelo de industrialização recente, cabe fazer alguns comentários para que não fique a impressão de que se está propondo a adoção incondicional do “modelo japonês”, como se este fosse a oitava maravilha do mundo. Não apenas não se pode negligenciar a diferença cultural em relação aos países ocidentais e, particularmente, em relação aos latino-americanos, como nem tudo foram (e são) flores na história industrial recente daquele país. Não obstante, o tremendo hiato de produtividade que ele gerou talvez possa servir para, pelo menos, iluminar alguns dos possíveis caminhos a trilhar no próximo ciclo de desenvolvimento econômico brasileiro.

Para que se esclareça um pouco das origens do atual padrão de sindicalismo no Japão, é particularmente importante ressaltar que o movimento sindical tradicional do país foi praticamente destruído no princípio dos anos 50, após longas greves e intensos conflitos. As disputas giravam em torno de aumentos salariais, novos sistemas de remuneração, atividades dos sindicalistas durante os horários de trabalho etc., e eram bastante polarizadas politicamente. O estado atual do sindicalismo não é, assim, “natural” do ponto de vista da cultura ou tradição, e depende de um esforço consistente e continuado por parte das gerências e dos sindicatos para manter-se (Nomura, 1985NOMURA, M. (1985). “Model Japan “? Characteristics of industrial relations in the Japanese automobile industry. Berlin, II CRR/Labour Policy, DP 85-207. Jul. ).

Um aspecto interessante a mencionar é a organização por empresa dos sindicatos japoneses. Sem entrar no mérito de se essa é ou não uma forma que enfraquece o poder da classe trabalhadora como um todo, é importante que se tenha em conta que a forma de associação traz pelo menos dois aspectos positivos no que tange à adoção das TAPs. O primeiro ponto, pouco mencionado, é que, por não haver uma mistura com empregados de outras empresas, estas sentem-se mais à vontade para abrir seus planos de desenvolvimento tecnológico e industrial, bem como seus planos estratégicos de investimento, sem tanto temor de que eles vazem para os concorrentes. Supostamente, o interesse para o sucesso da empresa é comungado com os trabalhadores. O segundo ponto é que com as novas TAFs, a organização sindical por categoria profissional, que estabelece acordos de atividades e tarefas, fica limitada em termos das negociações a respeito das multitarefas e multiqualificações inerentes à utilização mais eficiente (ou adequada) das novas tecnologias. Um terceiro ponto, mas contraditório, diz respeito à pouca mobilidade social dos trabalhadores que lidam com projeto e produção de novas tecnologias: se, por um lado, isso facilita um caldo cultural tecnológico cumulativo dentro da empresa, por outro dificulta a difusão de conhecimentos, normas e procedimentos já alcançados e desenvolvidos em determinadas empresas, através cio tecido industrial.

De qualquer modo, há um imbricamento entre os sindicatos (por empresa, ressalte-se) e as próprias empresas, através de trabalhadores que ocupam postos de gerência e ao mesmo tempo são dirigentes sindicais, fato praticamente inexistente no mundo ocidental. Na verdade, ser um dirigente sindical nessas empresas é, no mínimo, meio caminho andado para se ocupar um elevado posto (provavelmente de gerente) na hierarquia funcional. Sem este tipo de interpenetração e sem uma mentalidade propensa à legitimação pelo consenso no meio social (estendido ao local de trabalho), que atenuam e mascaram os conflitos de classe diretos, dificilmente os esquemas participativo/cooperativo teriam funcionado com tanto sucesso.

O processo decisório em geral é lento e longo. Envolve diversas instâncias, horizontal e verticalmente, dentro (e mesmo fora) da empresa, em busca de um consenso legitimador das decisões, que tendem, assim, a ser implementadas mais eficazmente. O sucesso e o fracasso são, desse modo, compartilhados pelo coletivo. No entanto, “apesar do consenso do grupo, a gerência tem uma parcela importante nas decisões, porquanto as propostas circulam da base para o topo da pirâmide e podem ser mudadas ou vetadas em qualquer ponto da sua trajetória, sendo, em seguida, postas novamente em circulação para aprovação geral” (Rattner, 1988RATTNER, H. (1988). Impactos sociais da automação. O caso do Japão. São Paulo, Nobel. , p. 79). Neste sentido, “contrariamente a alguns conceitos errôneos ou idealizados, o trabalhador não é fanático pelo seu trabalho por natureza - suas atitudes, comportamento e ética no local do trabalho são induzidos e manipulados pela gerência (ibidem). Por isso, “para alguns sindicalistas ocidentais os trabalhadores japoneses parecem ser os melhores escravos que o capitalismo jamais teve” (Nomura, op. cit., p. 4).

Para finalizar estas considerações, é importante dizer que o famoso “emprego vitalício” existe apenas para cerca de 30% dos trabalhadores, geralmente empregados de grandes empresas. Existem empregados regulares, temporários, subcontratados e mesmo sazonais. Estas três últimas categorias são as que mais sofrem com as oscilações da atividade econômica (recessões, crises etc.). servindo como uma espécie de colchão de acomodação (buffer) do emprego. Por outro lado, podem servir também como degraus para a estabilidade, através do ingresso na categoria de trabalhadores regulares· nos tempos de crescimento mais acelerado. Estima-se que “em empresas privadas com mais de 500 empregados, 68% (dos trabalhadores) são sindicalizados; em empresas com 100 a 499 empregados, 28,1% ; em empresas com 30 a 99 empregados, 8,3%, e em empresas com menos de 29 empregados, apenas 3,2%. Além disso, 78% de todos os trabalhadores sindicalizados estão no setor privado e 28,8% no setor público” (Nomura, op. cit., p. 2). Neste (setor público) os sindicatos são muito mais militantes, não cabendo falar de “relações industriais cooperativas” (ibidem). Discutir e entender a complexidade da teia formada pelos diversos tipos de relações industriais é muito difícil, e as encontradas na indústria automobilística constituem apenas uma delas (é bem verdade que das mais importantes, pela sua representatividade).

2. BEM-ESTAR SOCIAL E COMPETITIVIDADE INTERNACIONAL

Competitividade e distribuição de renda

O fato de um país vender produtos no mercado mundial não quer dizer que tenha competitividade internacional. Muitas qualificações devem ser feitas antes de se afirmar essa competitividade. Ter preço de venda compatível com a demanda de um dos muitos segmentos deste mercado é, sem dúvida, um dos requisitos mais importantes, mas certamente não é o único. Abstraindo dos complexos fatores políticos, dos monopólios coloniais e de outras questões mais gerais e/ou afeitas à esfera da circulação das mercadorias e do dinheiro (como políticas de câmbio, acesso e controle dos canais de comercialização e de crédito junto aos agentes financeiros internacionais), gostaria de deter-me em alguns pontos relativos à esfera do trabalho.

Principalmente quando se trata de manufaturados e dos estratos mais sofisticados do mercado mundial, existe uma série de requisitos técnicos (como respeito a normas, especificações e padrões de qualidade, capacidade de entrega a tempo e à hora etc.) que somente podem ser atendidos quando um razoável grau de desenvolvimento industrial tiver sido alcançado no país. Isto é pacífico, e, independente de uma série de observações críticas que se seguirão, é importante reconhecer a capacitação do parque industrial brasileiro para exportar uma quantidade crescente de seus produtos. De fato, o aumento das exportações brasileiras e o aumento da participação dos manufaturados na pauta destas exportações, têm sido, até certo ponto, surpreendentes pelos níveis que alcançaram, evidenciando a existência de um mínimo de competitividade na economia local, sem a qual isto não ocorreria. Em outros trabalhos (Tauile, 1986TAUILE, J. R. (1986). Automação e competitividade. Uma avaliação das tendências no Brasil. OIT /CNRH/PNUD, Relatório de pesquisa e TD 111. Rio de Janeiro, IEI/ UFRJ. , 1987TAUILE, J. R. (1987). A difusão de novas tecnologias no mercado de trabalho. ln: SAIM, C. org. O mercado de trabalho brasileiro. Estrutura e conjuntura. Rio de Janeiro, Ministério do Trabalho e IEI/UFRJ. e 1988TAUILE, J. R. (1988). Notas sobre tecnologia, trabalho e competitividade no Brasil. ILDES, Relatório de pesquisa e TD 160. IEI/UFRJ. ) mostrei que as vantagens comparativas que consubstanciam a competitividade dos diversos setores e complexos industriais brasileiros são específicas e diferenciadas entre eles (ver também Erber et alii, 1985ERBER, F., ARAUJO Jr., J. T. e TAUILE, J. R. (1985). Restrições externas, tecnologia e emprego. Uma análise do caso brasileiro. Rio de Janeiro, OIT/PNUD, Relatório de Pesquisa. Também, TD 76, IEI/UFRJ. ).

O baixo custo do fator trabalho é somente um dos determinantes das vantagens comparativas brasileiras, afeito apenas a determinados segmentos e/ou complexos industriais, como têxtil, confecções e calçados, relativamente intensivos em mão-de-obra. Nesses segmentos, outros fatores também são bastante relevantes para determinar o nível das exportações, e sustentá-las, tais como a utilização intensa de recursos naturais relativamente abundantes (como couro, algodão etc.), o acesso aos canais de comercialização e de distribuição dos produtos, o controle de marcas etc. Do mesmo modo, os serviços de engenharia, que se beneficiam internacionalmente do baixo custo da mão-de-obra barata disponível no Brasil, não seriam passíveis de exportação, caso não houvesse outros fatores de natureza bastante diversa a consubstanciá-los tão ou mais decisivamente. Esses fatores vão desde a efetiva capacitação e experiência técnica para realizar determinados tipos de projeto, até condicionantes de natureza política, passando por associações empresariais multinacionais que, na forma de joint ventures abrem caminho através de mercados protegidos pela tradição ou por “interesses nacionais”. Como se percebe, ao contrário do discurso generalista, há razões de sobra para que, não somente entre diferentes setores, mas até mesmo dentro de um mesmo complexo industrial, a natureza e a intensidade das exportações variem bastante.

Assim é que, num outro extremo, encontram-se aqueles complexos industriais produtores de insumos e bens intermediários, como siderurgia, petroquímica e celulose/papel, cuja produção, por ser organizada na forma de processos contínuos, é pouco empregadora. As crescentes exportações brasileiras desses produtos beneficiam-se não só da disponibilidade e baixos preços dos insumos localmente disponíveis (carvão, derivados de craqueamento, madeira etc.), como principalmente da modernidade das instalações feitas em época relativamente recente. Em outras palavras, aqui as exportações são favorecidas pela idade tecnológica média do parque brasileiro, cuja capacidade produtiva foi significativamente expandida a partir do II PND.

Num estágio intermediário está o complexo metal-mecânico. Para que um conjunto de bens de razoável sofisticação tecnológica como bens de consumo durável, bens de produção, aeronaves, armamentos etc., possa ser exportado é preciso que haja, antes de mais nada, um mínimo de sofisticação na correspondente capacidade de produzi-los, que por sinal existe no país. Não obstante, analisando as exportações desse complexo, verifica-se que, de acordo com a tese “linderiana”, elas atendem adequadamente à demanda de mercados específicos semelhantes, ou que têm bastante afinidade, com as características dos correspondentes mercados brasileiros. “Neste contexto, uma parte substancial destas exportações destina-se a um comércio entre semelhantes com países de nível de desenvolvimento próximo ou inferior ao do Brasil, mas estende-se também a nichos de mercados dos chamados países desenvolvidos do Norte, como atestam as exportações· de aeronaves, automóveis e autopeças para estes países.” (Tauile, 1987TAUILE, J. R. (1987). A difusão de novas tecnologias no mercado de trabalho. ln: SAIM, C. org. O mercado de trabalho brasileiro. Estrutura e conjuntura. Rio de Janeiro, Ministério do Trabalho e IEI/UFRJ. , p. 114).

Essas observações são importantes, pois, como será visto, os baixos níveis salariais aqui vigentes não são condição sine qua non para a participação brasileira no mercado mundial. Do mesmo modo, é importante ressaltar que é desprovida de conteúdo a afirmação genérica de que “precisamos modernizar e automatizar para poder exportar”, na medida em que ignora a especificidade diferenciada dos complexos e setores industriais e, até mesmo, das diversas atividades num mesmo processo produtivo (ibidem). Mais do que isso, essa afirmação ignora também as condições socioeconômicas vigentes no país. bem como, via de regra, seus interesses estratégicos.

Quando se pensa no longo prazo ou, pelo menos, na entrada no século XXI, não há dúvida de que é muito importante levar em consideração a inserção do Brasil na, cada vez mais internacionalizada, economia mundial. De fato, os padrões dessa inserção serão, em grande medida, determinados pelas vantagens comparativas que a economia brasileira então tiver. Mas, pensar no Brasil do século XXI obriga necessária e prioritariamente a pensar em como elevar substancialmente o padrão de vida da maioria da população brasileira, hoje comprimido por um lamentável e distorcido perfil de distribuição de renda. Os dados do Banco Mundial para o ano de 1986 indicam que, entre os 50 países que apresentaram dados sobre distribuição de renda, o Brasil ocupava o último lugar. 10% da população detém cerca de 50% da renda nacional (Suplicy, 1988SUPLICY, E. M. (1988). A distribuição da renda e dos direitos à cidadania. Rio de Janeiro, ILDES. e Hoffman, 1988HOFFMAN, R. (1988). A desigualdade da distribuição de renda no Brasil. ESALQ/USP. (Mimeografado) ). Isso não só é vergonhoso e inaceitável socialmente, como também reduz a eficiência do investimento (devido ao baixo nível do multiplicador) na geração de renda e de emprego, e macula a pretensa competitividade da indústria local na medida em que ressalta seu componente “espúrio”. Há um reconhecimento cada vez maior de que a noção de competitividade autêntica está associada à elevação do padrão de vida da respectiva economia. “O significado importante da competitividade é a habilidade de competir numa economia mundial aberta com salários elevados e crescentes.” (Cohen e Zysman, 1987COHEN, S. e ZYSMAN, J. (1987). Manufacturing Matters. New York, Basic Books. , p. 11).

Uma competitividade autêntica, que permita sustentar e mesmo aumentar a participação nos mercados internacionais, requer uma constante busca de incremento da produtividade através da incorporação do progresso técnico, mas implica também a “elevação paralela dos níveis de vida da população” (Fajnzylber, 1988FAJNZYLBER, F. (1988). Competitividade internacional: objetivo de consenso, tarefa árdua. Santiago do Chile. (Mimeografado) , p. 14). Retornando brevemente ao exemplo japonês, onde foi maior o aumento da produtividade e a evolução tecnológica nas últimas décadas, “na década de 60-70, o aumento de renda per capita ... alcançou 10,9%” e “entre 1975 e 1984, os custos de pessoal por empregado dobraram, aproximadamente, de 2,7 para 5,3 milhões de ienes, por ano” (Rattner, op. cit., pp. 29 e 59-60).

É claro que existe uma série de políticas de curto prazo (como desvalorização da moeda local, subsídios diversos etc.) que permitem uma melhora relativa na inserção imediata de determinadas empresas no mercado internacional. Entretanto, para o conjunto das empresas, ou para uma economia que almeja o crescimento continuado, essa é uma posição circunstancial. A competitividade espúria é frágil e incompatível com o crescimento no longo prazo, pois nada garante que tais condições perdurarão. Muito pelo contrário, se isso ocorrer, a coesão social e política, que dá sustentação ao crescimento econômico de longo prazo (e ao próprio processo de internacionalização), pode ficar seriamente ameaçada: “Enfrentar o tema da competitividade, com base em uma sequência de desvalorizações (cambiais) que substituam o aumento da produtividade e a incorporação do progresso técnico, conduz à erosão da coesão social, comprometendo, em última instância, a proposta de favorecer a inserção internacional. Para uma empresa é legítimo competir internacionalmente aproveitando a disponibilidade de mão-de-obra barata, recursos financeiros artificialmente subsidiados, compensando margens reduzidas e inclusive · negativas no mercado externo através de elevados ganhos no mercado interno protegido, aproveitar franquias impositivas especiais etc. A agregação, entretanto, para o conjunto das empresas, acompanhada de uma redução da demanda interna, não configura uma situação nacional de competitividade, mesmo que no curto prazo isso possa melhorar a balança comercial e o coeficiente de exportações” (Fajnzylber, op. cit., p. 14).

Padrão de desenvolvimento: a caminho do caos?

Após haver completado, em torno de 1980, um primeiro grande ciclo de sua industrialização, efetuado sob a lógica da substituição de importações e com base na eletromecânica, o Brasil vagou, durante a década de 80, ao sabor da indefinição política, em busca ou, talvez fosse melhor dizer, à espera da configuração de um projeto nacional que legitimasse não somente suas (novas) instituições, mas também criasse uma nova lógica para nortear a retomada do desenvolvimento socioeconômico e a consequente renovação e reorganização do seu parque industrial.

O movimento foi bastante inconsistente. Apesar de uns curtos surtos de crescimento, a economia estagnou. O máximo que se conseguiu foi um certo aumento de eficiência das empresas, pressionadas para ocupar sua capacidade ociosa e enfrentar melhor as primeiras crises industriais deste país. Como consequência, houve um redirecionamento da produção com destino às exportações, estimuladas também pelo Estado devido à necessidade de cumprir com as obrigações da dívida externa. As mais bem-sucedidas nesse movimento foram as corporações multinacionais, que, aliás, já entre 1976 e 1978 detinham 44% da produção industrial doméstica (Fritsch e Franco, 1988FRITSCH, W. e FRANCO, G. H. B. (1988). Foreign direct investment and patterns of industrialization and trade in developing countries: notes with reference to the Brazilian experience. Rio de Janeiro, PUC, Depto. Economia. (Mimeografado) ). Apesar da estagnação, ou mesmo encolhimento, do mercado interno a partir do princípio desta década, para elas foi muito mais fácil tornarem-se “orientadas para fora”, dada a amplitude de suas próprias perspectivas, como empresas planetárias que são. Assim é que “a participação das empresas estrangeiras nas exportações é, em termos agregados, significativamente maior (do que das nacionais): as empresas estrangeiras (mais de 10% de controle estrangeiro) são responsáveis por 49% das exportações das maiores cem firmas no Brasil, que correspondem a 54% do total das exportações brasileiras” (Willmore, 1987WILLMORE, L. (1987). Transnationals and foreign trade: In: Anais do XV Encontro da ANPEC. , p. 167, citado por Fritsch et alii, ibidem).

O relativo sucesso das empresas estrangeiras na reorientação de parte de sua produção para a exportação deve ser visto apenas em termos de adequação para o enfrentamento de oscilações conjunturais de curto prazo no nível da atividade econômica. A maioria, tanto das empresas estrangeiras quanto das nacionais, viu-se impedida de fazer avaliações para decisões estruturais, dado o quadro de indefinições políticas e movimentos econômicos contraditórios reinante ao longo da década (que incluem uma escalada impressionante de especulação financeira). Houve até um refluxo dos investimentos estrangeiros no Brasil, “culminando, em 1986, numa saída líquida de capitais” (Pereira, 1988PEREIRA, E. A. (1988). A economia brasileira no fluxo internacional de capitais - década de 80. IEI/UFRJ. (Mimeografado) , p. 1). Nesse contexto se, por um lado, foi possível terminar com o período de ditadura militar e eleger-se uma Assembleia Nacional Constituinte (ainda não se podem precisar os avanços e retrocessos havidos na nova Constituição, que aliás pode ou não, “pegar”), por outro lado houve uma grave deterioração das condições de vida para a maioria da população. Além disso, fermentou uma crise de credibilidade em relação aos governantes e políticos em geral, sem precedentes, que inibe fortemente, até hoje, as decisões estratégicas de investimento produtivo de longo prazo.

O estado de coisas atual, além de tremendamente aflitivo para quase toda a população, gera uma grande impaciência em grande parte dos empresários, ansiosos para ter condições mínimas de previsibilidade que lhes permitam realizar seus cálculos econômicos, necessários para que suas poupanças monetárias sejam desviadas da especulação financeira para os investimentos produtivos. Por isso, a prorrogação do mandato do presidente por mais um ano foi uma grande infelicidade, a não ser para aqueles que se beneficiaram diretamente dos privilégios econômica e socialmente injustificados (ZPEs, ferrovia Norte-Sul, concessões de rádio FM e AM etc.) que, como é de amplo conhecimento, foram criados e/ou distribuídos para atender aos grupos de interesse que dão sustentação ao atual governo.

A “nova política industrial” (NPI), segundo sua formulação original constante no decreto de maio passado, aponta aparentemente na direção de maior internacionalização da economia, estimulando o comércio exterior através da reformulação e simplificação de tarifas e de procedimentos burocráticos. Aponta também para uma agilização da intervenção do Estado, inclusive através da moderna concepção de cadeias produtivas ou complexos industriais, o que pode permitir o início de uma difícil, mas útil reestruturação da política de relacionamento interfirmas que formam o tecido industrial, abrangendo inclusive a difusão de técnicas “a tempo e à hora”/ just-in-time. Pretende estimular até a modernização do parque produtivo em geral, via alguns estímulos para importação de equipamentos e também para ciência e tecnologia etc. No entanto, a NPI carece de um quesito essencial: credibilidade.

Já dizia o velho Keynes (ver Teoria Geral, cap. XXII) que a retomada dos investimentos produtivos, que geram emprego e renda, e a reversão do ciclo dependem fundamentalmente do que chamou de “estado de confiança nos negócios”. Transparece às pessoas, e particularmente aos empresários, brasileiros e estrangeiros, com um mínimo de visão e conhecimento da economia brasileira, que esta tem condições estruturais para viabilizar um acelerado e sustentado ritmo de crescimento. Vide sucesso da conversão da dívida (que permite a aquisição de ativos normalmente rentáveis, mas já bastante desvalorizados com descontos significativos). A normalização da atividade econômica e os investimentos destinados à expansão industrial, no entanto, esperam este governo passar. Está decretado, e não é por lei, mas por bom senso.

Além de carecer da legitimação necessária para sua plena e “eficaz” implementação, o modelo de internacionalização dependente que atualmente se tenta induzir, ou reforçar (não obstante o que possa conter a NPI e sua posterior regulamentação), é frágil como sustentáculo de uma dinâmica de crescimento no longo prazo. Tem levado à desnacionalização da capacidade de produzir e da decisão de investir. Os frutos de uma (suposta) modernização apregoada com o objetivo de tornar acessível (para uma pequena minoria, é bom que se ressalte) certos bens sofisticados já disponíveis nos países desenvolvidos e também “justificada” pela necessidade exógena de saldar a dívida externa, tendem a provocar uma polarização social ainda maior. Isto porque “nesta visão, nossas principais vantagens comparativas estariam, também supostas e erroneamente, na disponibilidade de mão-de-obra barata. Neste sentido o moderno é velho e indesejável” (Tauile, 1988bTAUILE, J. R. (1988b). “Estrutura industrial brasileira no século XXI”. Folha de S. Paulo. 20 jul. 1988. Caderno de Economia. ).

Nessa desastrada trajetória, que desrespeita as prioridades sociais e econômicas, básicas e primárias do país, ele corre o risco de em pouco tempo transformar-se numa imensa “Roça Pelada”, onde o grande projeto seria uma estrada de ferro ligando as inúmeras “Rocinhas” espalhadas por este país, às muitas “Serras Peladas” que dilapidam e pilham o patrimônio nacional. A grande questão seria a administração e o controle do caos, gerando um farto mercado de trabalho para policiais e psicólogos, necessários para conter a violência e a loucura social.

Um modelo alternativo, e óbvio

Um caminho (para mim evidente) de retomada do crescimento econômico acelerado e sustentado no longo prazo deve, necessariamente, satisfazer o desejo social de bem-estar da população em geral. Vale dizer que, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, esse caminho não é conflitante com o desejo de maior participação no mercado mundial, pois acabaria por forjar, naturalmente, uma inserção internacional adulta e digna, consubstanciada por uma competitividade genuína. A competitividade internacional resultaria do fortalecimento do mercado interno, sem ferir as necessidades fundamentais de seu dinamismo. Além disso, sendo a produção industrial brasileira cada vez mais capaz de atender o mercado internacional em termos de preço e de qualidade, não há por que não haver internamente um mercado de trabalho que também tenda a ser valorizado nos padrões internacionais. É justamente levando estes pontos em consideração, que se pode sustentar a viabilidade deste modelo, baseado num processo de redistribuição de renda e que pressuporia, antes de mais nada, a minimização do conflito capital-trabalho no Brasil, em busca de algo parecido com o que a escola da regulação está chamando de “democracia salarial”.

Uma melhoria da distribuição de renda, conforme dois dos maiores economistas do século XX tão bem o demonstraram (Keynes e Kalecki, obras completas), eleva a propensão a consumir média do sistema e, logo, eleva também o chamado efeito multiplicador (o dinheiro correspondente a determinado gasto troca, em sequência, mais vezes de mãos), alavancando o crescimento econômico. O acesso das camadas inferiores da população aos mercados de renda mais elevada estimula, assim, a atividade econômica através da elevação do efeito multiplicador sobre a renda e o emprego, o que, por sua vez, aumenta a eficiência do investimento global. Em última instância, desde que mantido o nível agregado do investimento (público ou privado), o incremento da parcela de remuneração do trabalho, que foi muito comprimida ao longo das últimas décadas, não afeta significativamente o volume de lucros gerados, que aliás é, atualmente, enorme neste país. Haveria assim, pelo menos teoricamente, uma ampla margem para negociações e concessões por parte do empresariado como um todo. Ressalve-se, entretanto, que tudo isso só pode ser válido caso a inflação seja minimamente controlada e, consequentemente, esvaziado o cassino da especulação financeira que suga o excedente econômico e o desvia de sua aplicação produtiva.

Trata-se em essência de, pura e simplesmente, transformar a demanda potencial em demanda efetiva. A melhora da distribuição de renda é um mecanismo muito mais eficaz para o crescimento do PIB (porque atua diretamente sobre o multiplicador) do que uma política baseada primariamente num incremento das exportações (que tem um caráter relativamente estático). De fato, estudos preliminares que orientei mostraram que, no Brasil, a piora na distribuição de renda entre 1970 e 1975 pode ter sido responsável por uma queda de cerca de 9% no multiplicador, a qual deveria ser compensada por um aumento de aproximadamente 60% nas exportações para que se mantivesse o mesmo nível de renda, alcançável com o valor anterior do multiplicador (Young e Silveira, 1987YOUNG, C. E. F. e SILVEIRA, A. H. (1987). A matriz departamental de Kalecki. Um exercício de construção para o Brasil. TD. 151, IEI/UFRJ. ).

Este país tem um imenso potencial de crescimento a partir de um novo padrão de consumo, correspondente a uma distribuição de renda menos concentrada e distorcida. Nos primeiros meses do discutível Plano Cruzado, a súbita elevação dos salários reais provocou um boom de consumo e uma breve, mas significativa, aceleração da atividade econômica. A brusca mudança nos padrões de consumo parece ter sido parcialmente responsável (mas, apenas parcialmente) por alguns dos estrangulamentos que acabaram por gerar e difundir o ágio na economia. O mais forte componente daquele ágio, entretanto, provavelmente foi a irresponsável e desastrosa manutenção (por razões “eleitorais”) de uma estrutura de preços desalinhada, além do tempo suportável por inúmeras empresas, principalmente aquelas que no momento do congelamento tinham seus preços defasados, fazendo com que grande parte dos estrangulamentos fossem, na verdade, financeiros.

De qualquer modo, para que não ocorressem estrangulamentos reais resultantes de uma nova estrutura de demanda, a implantação de uma política de crescimento baseada na redistribuição de renda exigiria preparar a estrutura industrial com os investimentos devidos, inclusive com a eventual importação estratégica de tecnologias, de modo a expandir a produção e a criar “choques de produtividade” em pontos específicos do sistema. Esses pontos nevrálgicos podem, em sua grande maioria, ser identificados através de exercícios de simulação que rebatam o novo perfil da demanda sobre a estrutura produtiva existente. Um destes pontos nevrálgicos, e de caráter geral, é a baixa confiabilidade do tecido industrial brasileiro no que tange, especialmente, a prazos de entrega e controle de qualidade, pois dificulta em muito a adoção de técnicas just-in-time que, se amplamente difundidas, tornariam o sistema produtivo muito mais flexível e eficiente.

Salários reais mais altos necessariamente estimulariam as empresas a buscar processos produtivos mais bem organizados (inclusive no que tange à integração com fornecedores e subcontratantes), mais eficientes, modernos e automatizados, tornando-se, como consequência, mais competitivas internacionalmente. É importante ressaltar que a causalidade deve fluir do fortalecimento do mercado interno para a competitividade internacional. Naturalmente, é preciso que se reconheça que há muito espaço para recuperação do cada vez mais aviltado valor do fator trabalho, o que, por sua vez e de maneira agregada, estimulará a atividade econômica, na forma de um consumo fortalecido. Naturalmente é, também, preciso que se respeitem os direitos básicos dos trabalhadores como em qualquer país civilizado e desenvolvido.

Seria justamente a hora de o empresariado assumir um papel social contemporâneo na história do Brasil. Seja num movimento interempresarial promovendo um processo de “desintegração integrada” do tecido industrial, à semelhança da também bem-sucedida Itália (Proença e Caulliraux, 1988PROENÇA, A. e CAULLIRAUX, H. (1988). Desintegração integrada: um novo paradigma de organização industrial? UFRJ. (Mimeografado) ). Seja tomando a iniciativa de desarmar os ânimos e criar um clima cooperativo, juntamente com os trabalhadores, na busca de objetivos comuns para as empresas. Discutindo, assim, a introdução de novas tecnologias em consonância com a introdução de incentivos e novos padrões de remuneração, criando novas formas de organização e de gestão, e métodos de produção mais eficientes (à la Japão, mas respeitando a especificidade brasileira) etc. Aliás, neste ponto, seria possível estabelecer mais uma comparação, mutatis mutandis, com a experiência industrial recente daquele país oriental.

A história do sindicalismo brasileiro no último meio século também foi marcada por muitas lutas e pela destruição parcial de suas lideranças durante os dois períodos ditatoriais vividos. Também aqui se tentou a cooptação, através de intervenção indireta do Estado (inclusive via peleguismo), que vingou apenas parcialmente. Talvez essa cooptação não tenha vingado também devido à participação, muito maior do que no Japão, das empresas estrangeiras que, vindo aqui se instalar com todo o apoio (tecnológico, gerencial e financeiro) e experiência empresarial prévia de suas matrizes, e aproveitando o longo período de crescimento econômico (onde cresciam o emprego e a massa salarial, mas não a renda per capita dos trabalhadores), pouco se importaram com “ganhar” a cooperação dos trabalhadores. Estes, por sinal, pouca experiência tinham com o padrão industrial de produção e respectivas formas de organização sindical.

Hoje em dia, os métodos tayloristas/fordistas que as grandes empresas estrangeiras implantaram estão sendo seriamente questionados mesmo em seus países de origem. Por outro lado, nos últimos dez anos, a classe trabalhadora industrial brasileira, já mais experiente, vem renovando suas perspectivas e formas de atuação, bem como amadurecendo sua capacidade de negociação. O tempo para uma mudança profunda nesta relação entre capital e trabalho no Brasil, caracterizando um ponto de inflexão nestas relações, poderia estar se configurando justamente agora (wishfull thinking? ... may be ...). De qualquer forma, para que isso se confirme, é fundamental reconhecer, como ponto de partida, que se, por um lado, os trabalhadores brasileiros ainda têm muito a dar, por outro, nada mais têm a conceder. Falando em bom “economês”, os retornos da desvalorização do trabalho hoje no Brasil são vertiginosamente decrescentes.

Vale dizer, neste ponto, que salários reais mais altos, implícitos numa política de redistribuição de renda, resultariam não apenas da elevação dos salários nominais, mas também da produção (ou disponibilidade) barata de bens/salário, isto é, basicamente, alimentação, vestuário e moradia. Aliás, não existe maior dificuldade tecnológica nesses ramos no país, que os impeça de usufruir as importantes economias de escala que podem ser associadas à produção desses bens. Não existem barreiras tecnológicas nem para o desenvolvimento de possíveis formas alternativas de organização e de gestão da produção, de modo a utilizar os recursos humanos e materiais mais eficientemente, em harmonia com a disponibilidade de fatores e com os tratos culturais locais. O “jeitinho” brasileiro, entendido enquanto capacidade de adaptação, engenhosidade e flexibilidade, pode até acabar por transformar-se num importante fator de produção que, talvez chegue mesmo a caracterizar uma vantagem comparativa contemporânea específica do trabalhador brasileiro.

É bom lembrar ainda que a recuperação dos salários reais decorre também de melhores condições de vida fora do local de trabalho, isto é, resulta concretamente de maiores investimentos em obras de infraestrutura social, como em transporte, saneamento e saúde. Apesar de que aqui, como no caso anterior, não há maiores dificuldades tecnológicas básicas, as novas tecnologias (biotecnologia, novos materiais e microeletrônica) podem ser utilizadas para desenvolver aplicações que modifiquem bastante a estrutura física de tais serviços, aumentando de muito a sua eficiência. Eventuais importações seriam benvindas em ambos os casos, quando e onde grassassem a incompetência (não a inexperiência) ou os lucros excessivos de monopólio, de modo que pressões de custo não fossem sistematicamente repassadas para os preços.

3. TOSP, TAF E ALGUMAS CONCLUSÕES

Os ajustes nos diversos processos de trabalho e na estrutura produtiva como um todo, que naturalmente resultariam da nova proposta de democracia salarial, induziriam provavelmente à utilização mais intensa das TOSP e das TAFS juntamente com a difusão da biotecnologia e dos novos materiais.

A aplicação das TOSP deveria ser generalizadamente estimulada através do parque produtivo, de modo a aumentar sua eficiência, independentemente da utilização de dispositivos e equipamentos de automação com base na microeletrônica. Pequenas e médias empresas poderiam ser um alvo especial para desenvolvimento de tecnologias organizacionais atualizadas tanto a nível micro, dentro da empresa envolvendo o engajamento efetivo dos trabalhadores, como a nível macro, aperfeiçoando o relacionamento entre as várias unidades do tecido industrial. Neste caso, deve-se levar em conta, principalmente, que tais empresas poderão compor e dar suporte a vigorosos programas de subcontratação que dotariam de maior flexibilidade (capacidade de ajustamento e adaptação) o sistema como um todo. Pode-se até pensar no desenvolvimento de um novo paradigma de organização industrial mais adequado à realidade brasileira contemporânea e que fosse baseado numa desintegração integrada (Proença e Caulliraux, op. cit.).

Nesse sentido, a já mencionada Itália, tanto pela semelhança de sua “latinidade”, como pelo sucesso de seu recente ajuste industrial, inspira também um exemplo interessante. Lá, “particularmente nos setores metal-mecânico e informático, é clara uma tendência à externalização de atividades produtivas no sentido de uma ‘desintegração’ vertical. As empresas diminuem de tamanho passando para o exterior partes do processo produtivo. Este movimento pode se dar de várias formas:

  1. venda a terceiros de linhas de produção, que continuam a produzir para a empresa;

  2. desenvolvimento de fornecedores;

  3. subcontratação de pequenas e médias empresas;

  4. trabalho a domicílio etc. (ibidem, pp. 10-11).

A desintegração integrada implica, igualmente, adotar o “modelo sistêmico” de organização do trabalho “particularmente ... os grupos de trabalho, onde boa parte do trabalho de gerência é transferida para os trabalhadores diretos ... a desintegração da gestão vem (em geral, adiciono) acompanhada de uma integração informática . . . que permite o controle, por parte da gerência integradora, das variáveis fundamentais, sem que, para isso, ela tenha que se encarregar da gerência cotidiana” (ibidem, p. 16).

Já as TAFS seriam importantes para auferir economias de escopo tanto em segmentos do mercado mais afeitos às variações da demanda decorrentes das flutuações cíclicas e das crises conjunturais, como em segmentos de mercado das camadas de renda mais alta, cuja demanda por bens mais sofisticados é, naturalmente, mais diferenciada (lei de Engel). Segmentos manufaturados exportadores, cujos produtos e processos têm maior conteúdo tecnológico, são também, de maneira geral, fortes candidatos à maior utilização das TAFS.

A utilização dessas novas tecnologias é, também, da maior importância estratégica, para que se possa produzir e projetar no Brasil uma parte substancial dos equipamentos e bens de capital a serem utilizados pela indústria local e dos bens mais sofisticados, que poderão também ser dirigidos para o mercado internacional. Porém, antes de mais nada, isto implica (e é bom que se sublinhe) reforçar, desde já, os investimentos em ciência e tecnologia, em educação básica e no retreinamento da força de trabalho.

Cabem, nesse espírito, vários tipos de iniciativa, como, por exemplo, semelhantes à “lei de educação permanente”, que foi implementada na França a partir do início da década de 70, obrigando as empresas a dedicar 1,2% (hoje 1,4%) de seu faturamento ao retreinamento de pessoal. Essa percentagem (que deve ser tomada como um mínimo) acaba por reverter em favor das próprias empresas. Não fosse assim, grandes empresas como a Rhone-Poulanc (matriz da Rhodia) e a Bull (computadores) não dedicariam cerca de 10% de seu faturamento a esse programa. Num outro extremo a relevância desse tipo de investimento pode ser mostrada por um exemplo tirado da própria realidade brasileira. Não fosse a criação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica na década de 50, com seus notórios padrões de excelência e ensino voltado para a formação de uma elite intelectual, não seria possível existir hoje no Brasil uma indústria aeronáutica nacional (basicamente a Embraer) tão competitiva internacionalmente, nem teria sido possível montar uma indústria de informática nacional que tanto incomoda os países desenvolvidos.

São esses investimentos estratégicos que vão permitir que se possa sentar, de igual para igual, a uma mesa de negociações para compra (ou outras formas de transferência) de tecnologia, sem que se comece já inferiorizado pela dependência ou pela ignorância tecnológica. São esses investimentos que garantirão a capacidade de absorver (abrindo as “caixas pretas”), e difundir pelo tecido industrial as técnicas incorporadas nos bens de capital que deverão ser importados, ou licenciados, com o intuito de multiplicar nossa capacidade de gerar tecnologias de ponta. Aliás, é cada vez mais evidente a relevância de se permitir aos pesquisadores brasileiros em comprovada atividade nas universidades e centros de pesquisa, privados ou públicos, o acesso mesmo através de importações, ao que de mais moderno houver em termos de bens de capital criativos, ou seja, àqueles equipamentos que permitam ao trabalhador exercer todo o potencial de sua criatividade, em direção à contemporaneidade. É lógico que devem ser tomadas as precauções necessárias para que não sejam inibidas as iniciativas de produzir aqui esses bens, e sim, ao contrário, garantir que tais iniciativas sejam as mais beneficiadas e incentivadas em decorrência dessas eventuais importações.

Não se deve minimizar a importância dessa questão, pois a migração das formas de trabalho produtivo mais valorizadas para a esfera da atividade intelectual é uma tendência nítida e inquestionável. A vantagem mental de que falava um anúncio de página inteira do New York Times, no ano de 1980 (ao referir-se aos chips, o que aqui não é particularmente importante), é o fator competitivo característico do capitalismo contemporâneo. Sob o risco da imprecisão conceitual: a vantagem comparativa mais estratégica de uma economia contemporânea é a capacidade intelectual de sua força de trabalho, isto é, sua “inteligência social”. É essa vantagem que assegura o poder de uma inserção valorizada na divisão internacional do trabalho. Um programa adequado de educação, que envolva desde o treinamento profissional básico (ou mesmo desde a criação da cultura propícia para o melhor desempenho do trabalho associado a uma nova base técnica), até a criação de condições materiais adequadas à pesquisa de ponta tecnológica é, assim, fundamental para qualquer modelo de crescimento sustentado, a ser adotado pelo Brasil daqui para a frente.

Em termos dos mercados de trabalho de maior valorização e potencial de crescimento, uma atenção particular deve ser dada à produção de software. Nitidamente, mesmo nos países desenvolvidos, as possibilidades abertas pelo atual estágio de desenvolvimento de hardware estão longe de ser preenchidas pela capacidade de gerar software. Hoje é o software que vende o hardware, e as perspectivas futuras indicam que há um espaço muito amplo para expansão desse valorizado mercado de trabalho. Além do mais, as formas de trabalho intelectual envolvidas na produção de software parecem justamente criar possibilidades para o desenvolvimento dos desejáveis esquemas participativos e cooperativos, como aliás já ocorre, inclusive no Brasil. Por sinal, à semelhança dos já mencionados serviços de engenharia, existem aqui vantagens comparativas tanto pelos relativamente baixos salários pagos, como pela engenhosidade dos analistas e programadores locais.

Para esse imenso mercado de trabalho que se descortina, seria altamente recomendável que se atentasse para a formação cultural dos futuros trabalhadores. A lógica sistêmica inerente ao software é muito mais facilmente assimilável por jovens e crianças do que por trabalhadores adultos e experientes, mas que, entretanto, se criaram e formaram profissionalmente orientados para lidar com uma base técnica eletromecânica. Programas criativos e audaciosos para reconversão da força de trabalho no longo prazo deveriam envolver não só o ensino básico, mas diretamente as comunidades de baixa renda, para prepará-las culturalmente e orientar a criatividade de suas crianças. O “micro no morro” poderia ser um deles: doação de micros de 8 bits para associações comunitárias de baixa renda, garantindo as empresas doadoras a implementação de programas educacionais infantis, o treinamento de adolescentes e a manutenção do equipamento, em troca de crédito fiscal.

Por fim, cabe insistir que é essencial reter no país, tanto quanto possível, as formas de trabalho mais valorizadas, como as envolvidas com projeto de equipamentos e produtos (inclusive software) e a produção de bens de capital em geral e de tecnologia de ponta em particular. Consolidar esse valorizado mercado de trabalho é importante, não apenas por questões relativas ao desenvolvimento científico e à suficiência tecnológica, mas também porque, além do mais, é de certo modo “à prova de má distribuição de renda” (já que pagam salários elevados), revertendo, assim, direta e positivamente sobre a dinâmica do mercado interno.

A economia brasileira está diante de uma encruzilhada e vivendo uma crise de identidade. O país precisa urgentemente forjar um novo estilo de desenvolvimento industrial compatível com a realidade contemporânea que se esboça interna e externamente. Os ricos exemplos apresentados do “modelo japonês” podem servir como fonte de inspiração na busca de soluções concretas para os impasses atualmente existentes, respeitando, é claro, a especificidade brasileira. Servem também, e antes de mais nada, para mostrar que há caminhos alternativos aos rígidos modelos ocidentais, sem dúvida inadequados às economias periféricas, e quiçá já ultrapassados em termos de eficácia histórica. No modelo aqui esboçado, o padrão de crescimento pode e deve estar fundado no fortalecimento do mercado interno, do que resultará naturalmente (atenção para a causalidade), uma competitividade internacional maior e mais sólida. Resultará igualmente uma economia mais estável, até porque menos dependente das oscilações do mercado internacional e mais preparada para enfrentá-las.

A mudança no padrão de distribuição de renda deverá propiciar um vigoroso crescimento, que por sua vez colocará novas pressões de demanda sobre o tecido e a estrutura industrial. Os prováveis estrangulamentos de oferta deverão ser atendidos de três maneiras: expansão da produção através de aumento de capacidade produtiva (investimento extensivo) e/ou através de choques de produtividade (investimento intensivo). Já estes podem ocorrer por meio da utilização de novas tecnologias hardware, no sentido físico/material (TAF, biotecnologia e novos materiais), ou software, no sentido organizacional/intelectual (TOSP). As importações também terão um importante papel, tanto as supridoras de carências genéricas, como as de natureza específica (as reguladoras e as estratégicas).

Um desafio se coloca para as elites dirigentes brasileiras: ajudar a desenhar, e a reconstruir, uma nação melhor e mais rica. A significativa votação que o Partido dos Trabalhadores nas eleições de 15 de novembro expressa em parte esse desafio. Vencê-lo exige um senso de contemporaneidade, ainda incomum entre empresários e políticos brasileiros. Para forjarem um país contemporâneo é preciso que percebam a flagrante viabilidade que ele tem de trilhar uma trajetória de crescimento rumo à democracia salarial, fundada na valorização e na participação trabalhadora. Mais do que nunca, uma postura menos espoliadora potencializa a acumulação de riqueza nacional. Independente de ser, como sempre, uma questão de justiça social, este é um imperativo econômico atual.

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    JEL Classification: L53; O15; O10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1989
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