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A economia e a política do Plano Real

Economics and Politics in Plano Real

RESUMO

Este artigo revisa os desenvolvimentos políticos e teóricos que levaram ao Plano Real. Primeiro, discute-se a importância da descoberta da inflação inercial. Em segundo lugar, o impacto da escolha de Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Economia. A seguir, as condições para a implantação da URV e os motivos da superioridade do plano em relação às tentativas anteriores de estabilização da economia brasileira.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; estabilização; Plano Real

ABSTRACT

This paper reviews the political and theoretical developments that lead to the Real Plan. First, the importance of the discovery of inertial inflation is discussed. Secondly, the impact of the choice of Fernando Henrique Cardoso for the Ministry of the Economy. Then, the conditions for the implementation of the URV and the reasons for the superiority of the plan in comparison to the previous attempts of stabilization of Brazilian economy.

KEYWORDS:
Inflation; stabilization; Real Plan

O Plano Real - cujas três fases iniciais foram completadas em 1º de julho de 1994 com a reforma monetária que extinguiu o cruzeiro real e transformou a Unidade Real de Valor (URV) no Real - é certamente, entre os 13 planos de estabilização tentados no Brasil desde que se iniciou a presente crise, em 1979, o melhor concebido.1 1 A primeira fase do Plano Real - a fase do ajuste fiscal, colocado pela equipe como condição para as outras duas fases - estendeu-se de dezembro de 1993 a março de 1994. A segunda fase começou com a introdução da URV, no início de março de 1994, e foi constituída pela conversão dos preços para URVs. No dia 1º de julho iniciou-se a terceira fase, com a reforma monetária que criou o Real. Escrevi esta nota na primeira semana de agosto. Não apenas porque dá conta de forma adequada das duas causas fundamentais da inflação brasileira - a crise fiscal e a inércia inflacionária -, mas principalmente porque, em relação à inércia adotou uma solução rigorosamente inovadora: a coordenação prévia dos preços relativos através da URV. Dessa forma foi possível neutralizar as defasagens nos aumentos de preços que caracterizam a inflação crônica ou inercial.

A teoria neo-estruturalista da inflação inercial, que foi desenvolvida entre 1980 e 1983, foi provavelmente a contribuição mais original que o pensamento latino-americano e particularmente brasileiro ofereceu à macroeconomia. Distinguindo os fatores aceleradores dos fatores mantenedores da inflação, a nova teoria foi capaz de oferecer uma explicação satisfatória para a inflação alta e crônica que havia se tornado comum em muitos países a partir dos anos 70. Essa era uma inflação que nem as teorias monetaristas, baseadas no déficit público, na emissão de moeda e nas decorrentes expectativas inflacionárias, nem as teorias keynesianas apoiadas no déficit público e no decorrente excesso de demanda explicavam. Era também uma inflação para a qual as políticas de estabilização ortodoxas ou convencionais, de caráter monetarista e keynesiano, baseadas no ajuste fiscal e no controle monetário, não se revelavam efetivas, na medida em que a inércia inflacionária tornava a oferta de moeda endógena ou passiva.2 2 Mário Henrique Simonsen (1970), com seus fatores realimentadores da inflação, foi um pioneiro da teoria da inflação inercial. Sua primeira formulação coube a Felipe Pazos (1972). No início dos anos 80 ela foi de fato desenvolvida por um grupo de economistas da PUC do Rio de Janeiro (André Lara Resende, Edmar Bacha, Eduardo Modiano, Francisco Lopes, Pérsio Arida), da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (Bresser-Pereira e Yoshiaki Nakano) e da Universidade de São Paulo (Adroaldo Moura da Silva). Não é meu objetivo nesta nota citar os respectivos papers. Para isto ver Bresser-Pereira e Nakano (1986).

O primeiro teste de uma teoria econômica está na sua capacidade de previsão. Esta capacidade foi confirmada inúmeras vezes. Todos os planos que ignoraram a inércia previsivelmente fracassaram. O segundo teste está na sua capacidade de servir de base para uma política econômica efetiva (que alcance os resultados almejados) e eficiente (a baixos custos). A efetividade e a eficiência da política econômica inercial estão agora sendo testadas e comprovadas pelo Plano Real, que, no final do seu primeiro mês de aplicação, demonstrava ter tido pleno êxito em neutralizar a inércia inflacionária, ou seja, a indexação formal e informal da economia brasileira.

A partir da teoria da inflação inercial surgiram imediatamente duas propostas alternativas de política de estabilização, que tinham em comum compor-se de duas ações básicas: a coordenação dos aumentos defasados de preço e, em seguida (ou ao mesmo tempo), a interrupção súbita (por choque, não gradual) do aumento inercial dos preços, em princípio através de uma reforma monetária que desindexava a economia. A primeira alternativa foi a do congelamento acompanhado de tabelas de conversão dos preços para a média. Foi proposta originalmente por Bresser-Pereira e Nakano (julho 1984BRESSER-PEREIRA, L. e NAKANO, Y. “Política administrativa de controle da inflação”. Revista de Economia Política 4 (3), julho de 1984. Republicado em Inflação e Recessão. São Paulo, Brasiliense, 1984. )3 3 Esta proposta foi realmente formulada em 1983, quando o artigo “Política Administrativa de Controle da Inflação” foi escrito. Sua publicação na Revista de Economia Política aconteceu em julho de 1984. e por Francisco Lopes (agosto 1984LOPES, F. L. “Só um choque heterodoxo pode derrubar a inflação”. Economia em Perspectiva (Conselho Regional de Economia de São Paulo), agosto de 1984. )4 4 Foi através desta nota corajosa (“Só um Choque Heterodoxo Pode Derrubara Inflação”), publicada no boletim do Conselho Regional de Economia de São Paulo, que Chico Lopes cunhou o termo choque heterodoxo. . Nesta alternativa a coordenação dos reajustes de preços ocorria ao mesmo tempo em que o processo inercial era paralisado pelo congelamento transitório dos preços. O choque era constituído pelo próprio congelamento e pela reforma monetária, através dos quais se desindexava a economia.

A segunda alternativa - mais engenhosa e que afinal serviu de base para o Plano Real -, previa a indexação total da economia como estratégia de coordenação prévia dos aumentos de preços, acompanhada por uma reforma monetária na qual se procedia à desindexação (Arida, setembro 1983, outubro 1984ARIDA, Pérsio. “A ORTN serve apenas para zerar a inflação inercial”. Gazeta Mercantil, 19 de outubro de 1984. 5 5 No artigo de setembro de 1993 para a Gazeta Mercantil, Neutralizar a Inflação, uma Ideia Promissora, Arida pela primeira vez sugeriu a reindexação como uma forma de neutralizar o caráter defasado dos aumentos de preços. No artigo de outubro de 1984, A ORTN Serve Apenas para Zerar a Inflação Inercial, escrito após a proposta de uma moeda indexada de Lara Resende (setembro 1984), Arida apresentou a ideia de dividir a reforma monetária em duas fases: uma de sincronização dos preços e consequente neutralização da inércia, e outra de reforma monetária propriamente dita. Dada a relação de amizade entre os dois economistas, e o fato de trabalharem em conjunto com frequência, está claro que a ideia da moeda indexada ou da indexação total da economia foi resultado dessa colaboração. , novembro 1984; Lara Resende, setembro 1984LARA RESENDE, A. “A moeda indexada: uma proposta para eliminar a inflação inercial”, Gazeta Mercantil, 26, 27 e 28 de setembro de 1984. ; Mesquita Neto, novembro 1984; Arida e Lara Resende, novembro 1984; e Francisco Lopes, dezembro 1984LOPES, F. L. “Inflação inercial, hiperinflação e desinflação”. Revista da ANPEC, nº 7, dezembro de 1984. Republicado em Lopes, F. L. Choque Heterodoxo: Combate à Inflação e Reforma Monetária. Rio de Janeiro, Campus, 1986. ). Nesta segunda proposta haveria a coexistência transitória da moeda velha e de uma nova moeda, que seria indexada ao índice de inflação e tornada constante em relação ao dólar. O pressuposto é o de que a nova moeda tenderia a rapidamente expulsar a antiga.

Em 1987, depois da implementação do Plano Bresser, Francisco Lopes e Yoshiaki Nakano consideraram, comigo, como uma das alternativas para a segunda fase do plano, a adoção não de uma segunda moeda, mas de um indexador diário - a OTN - que funcionaria como um índice-moeda transitório, nos termos inicialmente sugeridos por Arida. Preferimos, entretanto, prever um segundo congelamento, dados os riscos de aceleração da inflação em consequência da otenização. A segunda fase, porém, não chegou a concretizar-se porque a recusa do presidente Sarney de apoiar o ajuste fiscal levou-me a pedir demissão do Ministério. No ano seguinte, Francisco Lopes (1988)LOPES, F. .L “O Plano Real - projeto de lei e suas implicações”. Macrométrica, outubro de 1988. apresentou o Plano Real, que propunha a introdução da nova moeda, de valor estável - também chamada Real - logo no início do processo.

A velha moeda (na época, o cruzado) deveria desaparecer rapidamente, expulsa pela moeda estável.6 6 A história dos primeiros planos de estabilização foi contada por Francisco Lopes (1989). Segue-se uma série de tentativas incompetentes de estabilização, com ênfase nas soluções ortodoxas.7 7 Foram ortodoxos os planos Feijão com Arroz (1988), Collor I (março 1990), Ibrahim Eris (maio-dezembro 1990), e Marcílio Marques Moreira (1991-1992). O Plano Collor I, embora contivesse um congelamento, não possuía tabelas de conversão, e o controle dos preços foi logo abandonado. A estratégia era essencialmente monetária, baseada no confisco e no congelamento dos ativos financeiros. Quando esse confisco não se revelou suficiente, o Plano Eris, que pode também ser visto como a segunda fase do Plano Collor I, adotou uma âncora monetária. No entanto, após seu fracasso, Lara Resende restabelece o debate propondo a criação de um currency board e insistindo na coexistência transitória de duas moedas (1992). Finalmente, Pérsio Arida, que publica pouco no período, escreve uma nota pessoal jamais publicada - “Nota sobre Esquemas de Desindexação e Ancoragem” (1993ARIDA, Pérsio. “Nota sobre esquemas de desindexação e ancoragem”. São Paulo, 1993, cópia. ), na qual sugere replicar virtualmente o efeito de contratar através da criação de uma moeda indexada puramente referencial. Isso supõe evidentemente que a paridade entre a moeda indexada e a moeda corrente seja fixada pelas autoridades monetárias. A moeda indexada também teria valor em dólar fixo. Essa mesma ideia foi-me pessoalmente referida por Arida alguns dias antes de aceitar o convite de Fernando Henrique Cardoso para participar de sua equipe (agosto de 1993).

A diferença entre a proposta de uma moeda indexada e um índice-moeda - a URV que foi finalmente adotada - é pequena, mas significativa. No caso da moeda indexada, teríamos durante algum tempo uma dualidade efetiva de moedas, as duas com poder liberatório. Por outro lado, a reforma monetária seria feita no início do plano, ao invés de após a introdução do índice-moeda. Não haveria duas fases - a fase URV e a fase reforma monetária -, mas apenas uma fase na qual a moeda lastreada no dólar aos poucos iria substituindo a antiga moeda.

Além dessas diferenças conceituais, há, entretanto, uma diferença essencial. O sistema do índice-moeda é mais simples do que o da convivência de duas moedas plenas. Provavelmente foi devido à complexidade da ideia inicial que Arida e Lara Resende, quando participaram da equipe do Plano Cruzado, não insistiram nela, e adotaram o congelamento de preços com tabelas de conversão. Esse era um modelo mais simples, que já havia sido provado em Israel em 1985 (e que teria novamente êxito no México, em 1987). Foi também devido aos recorrentes fracassos de planos de estabilização baseados em congelamento que afinal Arida e Lara Resende tiveram condições de fazer prevalecer sua ideia de uma moeda indexada, ou, mais precisamente, de um índice-moeda: uma extraordinária ideia que honra a inteligência brasileira.

O Plano Real adotou uma abordagem rigorosamente de mercado, evitando congelamentos. Todavia, foi realista ao tornar obrigatória a conversão dos salários para a URV no início de sua segunda fase. Dessa forma o problema da indexação salarial foi contornado. Por outro lado, através dessa estratégia estabeleceu-se um parâmetro para a conversão dos demais preços. Mesmo assim, nas últimas semanas da fase URV ocorreu uma clara inflação em URVs, demonstrando que muitas empresas converteram seus preços para URVs por valores acima da média dos últimos meses. Esse fato, entretanto, não chegou a comprometer o plano, seja porque, em seguida à introdução do Real, as empresas reduziram seus preços sob a forma de descontos, seja porque concederam aumentos salariais compensatórios. Apenas nos setores fortemente oligopolistas e pouco organizados sindicalmente o ganho será conservado pelas empresas, provocando um desequilíbrio nos preços relativos.

O Plano Real é o décimo terceiro plano de estabilização tentado no Brasil desde o momento em que a atual crise econômica foi desencadeada em 1979, com o segundo choque do petróleo8 8 Para uma análise dos 12 planos anteriores ver Bresser-Pereira (1993), The Failure to Stabilize. Este trabalho é uma versão ampliada de “1992 -Estabilização Necessária”. Revista de Economia Política 12(3), julho-setembro 1992. Nesse segundo trabalho explico o fracasso dos 12 planos seja porque lhes faltou apoio político, seja porque foram incompetentemente concebidos. No primeiro caso, a dificuldade em realizar o ajuste fiscal constituiu-se no principal obstáculo; no segundo caso, a incapacidade de lidar com a inércia inflacionária foi o fator dominante. . A probabilidade de que tenha êxito e logre afinal estabilizar os preços é alta. Não apenas por sua competência técnica, mas também porque as condições econômicas no momento em que foi lançado lhe são favoráveis: reservas internacionais em um nível que garante a nova moeda; preços relativos equilibrados, embora defasados como é próprio da inércia inflacionária; empresas sólidas e reestruturadas; abertura comercial que protege o mercado interno contra abusos de práticas monopolistas; avanços significativos em matéria fiscal nos anos anteriores ao plano. Por outro lado, as condições políticas são também favoráveis. Há hoje no Brasil um apoio a ajuste fiscal muito maior do que há alguns anos. Por outro lado, os trabalhadores já compreenderam que não poderão ter aumentos reais de salários enquanto a inflação empurrar os juros reais para cima e inviabilizar os investimentos. Uma demonstração deste fato foi sua atitude diante do plano. Quando, na segunda fase, os salários foram convertidos para URVs, os sindicatos tentaram levar seus associados à greve. Não tiveram, porém, êxito, mostrando que as condições políticas para um plano de estabilização haviam se tornado melhores do que usualmente se imagina.

Escrevi uma série de artigos para os jornais sobre o Plano Real e seus antecedentes, a partir do momento em que Fernando Henrique Cardoso aceitou, em abril de 1993, o Ministério da Fazenda do governo Itamar Franco. Os artigos iniciais são políticos. São todos favoráveis ao plano, embora contenham eventuais críticas e sugestões. Não publiquei nenhum artigo na imprensa depois do dia 12 de julho, quando a reforma monetária foi realizada, com a extinção do cruzeiro e a transformação da URV em Real. O plano adotou uma combinação flexível de âncora cambial, âncora dos preços públicos e âncora monetária, evitando a rigidez do Plano de Conversibilidade argentino. E valorizou o Real, ao estabelecer uma taxa de câmbio para a compra de dólares de cerca de 92 centavos de Real. Os juros foram mantidos provisoriamente altos, e os preços, rigorosamente livres.

Ao escrever esta nota, na primeira semana de agosto de 1994, o êxito do plano parecia evidente. A taxa de inflação de julho, comparando-se os preços em Reais de julho contra os em URV em junho, foi de 6,95% (FIPE). Nessa taxa está incluída a aceleração da inflação na segunda quinzena de junho. A inflação de ponta a ponta em julho - o primeiro mês do Real -, tomando-se os primeiros cinco dias de agosto contra os primeiros cinco dias de julho (excluindo-se, portanto, as remarcações pré-plano), foi na verdade uma deflação de 0,69% (FIPE-Estadão). A deflação nos preços industriais foi possibilitada pela conversão acima da média realizada pelas empresas nas últimas semanas de existência da URV.

O plano continua, naturalmente, a enfrentar riscos. As tentações de aumentar o gasto público em um ano eleitoral serão redobradas. Está claro, entretanto, que os custos políticos de um eventual fracasso do plano devido a excesso de gastos são maiores do que os custos de não atender a demandas de aumentos de gastos do Estado. O risco mais importante que o plano enfrenta, porém, é o da reindexação. A economia não foi totalmente desindexada. Os salários continuam indexados anualmente. Os demais contratos podem ser indexados à base anual. A poupança continua indexada mensalmente. A indexação dos salários é particularmente perigosa para o plano. As empresas podem não ser capazes de resistir às pressões por aumentos de salários que deverão ocorrer principalmente em setembro, contando com a volta à prática de concordar com os aumentos salariais e, em seguida, repassá-los para os preços. Esta foi uma prática de indexação generalizada no Brasil na última década. Há, contudo, duas diferenças importantes, que tornam arriscado para as empresas tal prática. Primeiro, a inércia foi quebrada, de forma que o pressuposto de que os concorrentes de outras regiões concederão aumentos de salário semelhantes é falso. Segundo, a abertura comercial mais a âncora cambial transformaram as importações em um verdadeiro limite a aumentos de custos.

Dada a importância do Plano Real, que inicialmente chamei de Plano Fernando Henrique, pareceu-me válido publicar na Revista de Economia Política estes artigos, encabeçados por esta nota introdutória e acompanhados por notas de rodapé que esclarecem o momento em que foram escritos. Espero que eles ajudem os futuros analistas do plano a compreenderem-no melhor.

GRANDES ESPERANÇAS

O Presidente Itamar Franco tinha a intuição de que a escolha de Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda seria a melhor coisa que poderia fazer. Desde que formou seu governo, essa havia sido sua preferência. Jamais, entretanto, poderia ter esperado uma aprovação tão universal para o nome do senador paulista como aquela que afinal a sociedade manifestou quando seu nome foi anunciado. É preciso, agora, entender essa aprovação. Ela não foi gratuita. E não foi apenas ‘um reconhecimento das notáveis qualidades pessoais de Fernando Henrique. Sou seu amigo pessoal há muitos anos. Conheço-o bem. E quando me refiro a ele, sempre me vem a imagem de um homem público extraordinariamente bem-dotado: inteligência invulgar, cultura extraordinária, profundo conhecimento da sociedade e da economia brasileira, grande capacidade política de liderar e de negociar, compromisso comprovado com a democracia, com a equidade e com a honestidade. Mas essas razões não são suficientes para explicar a avassaladora aprovação do seu nome. Com ela a sociedade brasileira quis também manifestar uma grande esperança: a esperança de que afinal a tragédia da inflação brasileira será solucionada.

Mas como pode ser isto verdade se as elites brasileiras têm manifestado com insistência sua desaprovação a qualquer medida de combate mais decidido à inflação? Há um mês o governo lançou um plano econômico que, atendendo à insistente solicitação da sociedade, não continha nenhuma medida de ataque à inflação. A aprovação foi geral, apenas os economistas discordaram. Por que, agora, manifestar essa esperança de que afinal a crise econômica brasileira poderá ser resolvida? Por que essa confiança que Fernando Henrique poderá enfrentar o problema da inflação?

Esta aparente contradição pode ser explicada se imaginarmos que a inflação é tão ameaçadora para sociedade brasileira que esta é levada a pensá-la em dois níveis de consciência. Em um nível mais superficial, as elites brasileiras repudiam qualquer ataque mais firme contra a inflação. Traumatizados com os planos de estabilização anteriores, particularmente com o Plano Collor I, que além de congelar preços de forma incompetente, confiscou ativos financeiros, empresários, políticos e jornalistas não querem saber de planos de estabilização. Irracionalmente pretendem que o governo procure compatibilizar a retomada do desenvolvimento com uma política anti-inflacionária moderada, “sem sustos”. Em um nível mais profundo, no entanto, elas sabem que não existe qualquer possibilidade de superação da crise brasileira enquanto a inflação não for controlada. Por isso, toda vez que surge uma nova possibilidade de estabilizarem-se os preços, a sociedade reage positivamente. Nesse nível de consciência não importa como será controlada a inflação. O importante é que esse controle seja alcançado, e logo. Logo, porque qualquer adiamento significa apenas atrasar e tornar mais dolorosa a solução da crise.

Se esta interpretação é correta, isto significa que existe hoje muito mais apoio para um plano de estabilização do que se imagina. Fernando Henrique Cardoso no Ministério da Fazenda e Itamar Franco na Presidência serão julgados pela sociedade a partir de um critério fundamental: a inflação. Se a controlarem, terão sido bem-sucedidos, senão, terão fracassado.

Sabemos que os 12 planos de estabilização que foram tentados desde que esta crise começou em 1979 fracassaram devido a uma combinação de dois motivos: falta de apoio político para o ajuste fiscal e incompetência na implementação do plano. Desses planos, cinco foram dominantemente heterodoxos, cinco essencialmente ortodoxos, e dois (o Plano Delfim I, de 1979, e o Plano Dornelles, de 1985), indefiníveis. Para todos faltou em maior ou menor grau ou apoio político ou competência. Agora tudo indica que Fernando Henrique terá condições de obter o apoio político necessário, seja porque existe uma predisposição da sociedade nesse sentido, seja porque pouca gente tem melhores condições de negociá-lo do que o novo ministro da Fazenda.

Apoio político, no caso, significa apoio para o ajuste fiscal e para um acordo social. Sem esses dois ingredientes dificilmente será possível estabilizar a economia brasileira. O apoio para o ajuste fiscal é hoje muito maior do que há alguns anos. O populismo econômico continua enraizado na sociedade e na política brasileiras, mas perdeu muita força dada a gravidade da crise fiscal. O mesmo se diga em relação ao acordo social. Há alguns anos os trabalhadores, especialmente os da CUT, eram totalmente contrários a qualquer acordo. Hoje sabem que só têm a perder com a inflação, que todas as suas tentativas de proteger os salários dos trabalhadores são autoderrotantes enquanto perdura a hiperinflação indexada. Por isso estão muito mais propensos a um entendimento.

Quanto à competência para realizar a reforma, não há dúvida que Fernando Henrique e sua equipe a têm e de sobra. Embora sociólogo, o ministro conhece muito bem os problemas da inflação brasileira. E em sua equipe conta com economistas de primeira qualidade, como Winston Fritsch e Gustavo Franco, sem falar nos assessores externos, Edmar Bacha, Roberto Mendonça de Barros e André Montoro Filho. Para a Secretaria Geral foi um dos mais competentes administradores que conheço, com ampla experiência no setor público e no setor privado: Clóvis de Barros Carvalho. E o Banco Central continua bem defendido por Antônio Ximenes.

Serão a competência da equipe e as perspectivas positivas quanto ao apoio político suficientes para garantir o sucesso? Não creio. Além de tudo isso, será preciso coragem e sorte. A crise econômica é tão grave, o Estado brasileiro foi de tal forma destruído, a moeda nacional é de tal forma inexistente, que, além de medidas de política econômica firmes e bem acordadas na área fiscal, monetária e da política de rendas, além da virtú, portanto, será necessária a fortuna que Maquiavel considerava a outra condição essencial para o êxito político. A grande esperança que agora ressurgiu baseia-se na virtú da nova equipe econômica. Resta esperar que afortuna também nos seja benfazeja. (Folha de S. Paulo, 30/5/93)

A HORA E A VEZ

Fernando Henrique Cardoso e sua equipe estão enfrentando sua primeira crise. Haviam pensado em um cronograma para a estabilização, que começaria pelo ajuste fiscal ora em curso, seria seguido pela revisão constitucional e a reforma tributária, no segundo semestre, e se completaria no início do próximo ano com o plano de estabilização propriamente dito. Agora, com a crise provocada pela lei de correção salarial, seguida pela decisão do Presidente de iniciar um processo de acordo social permanente entre empresários e trabalhadores, este cronograma estaria sendo atropelado, causando visível irritação, menos no ministro e mais nos membros de sua equipe. Talvez, entretanto, essa possa ser a oportunidade de afinal se celebrar um acordo social sobre a única coisa sobre a qual vale a pena um acordo no Brasil: o fim da inflação.

Nestes primeiros dois meses de administração Fernando Henrique, com sua atitude a favor da verdade e da transparência, conseguiu uma coisa extraordinária. A ilusão de que a hiperinflação indexada existente no Brasil poderia ser controlada gradualmente desapareceu, e com isso emergiu com toda força a expectativa - senão o desejo da sociedade - de que sejam tomadas medidas mais fortes e radicais no sentido da estabilização. Desde o fracasso do Plano Collor I até a posse de Fernando Henrique Cardoso no Ministério da Fazenda formara-se na sociedade um sentimento profundamente contrário a qualquer novo choque. “Cinco choques já falharam no passado”, afirmava-se, “não é razoável falar em novo plano contra a inflação”, acrescentava-se, esquecendo-se que, desde que a crise brasileira começou, em 1979, sete outros planos gradualistas de estabilização foram tentados sem êxito. Através dessa atitude, porém, a sociedade reafirmava sua ansiedade, seu sentimento de traumatismo mesmo, diante da violência de alguns dos choques, principalmente do Plano Collor I, e diante da frustração nacional que outros planos, principalmente o Cruzado, haviam causado. Essa ilusão gradualista chegou ao auge com o Plano Eliseu Resende, que “compatibilizaria crescimento com inflação”. Uma ilusão que se transformava em uma censura branca sobre os muito poucos que tinham a ousadia de falar em choque. “Não fale sobre esse assunto”, diziam aos ousados seus melhores amigos. “Isto o desmoraliza, ninguém quer ouvir falar em choques. Pode até ser que você esteja certo, mas ‘choque’ virou palavra feia neste país”.

Fernando Henrique, ao chegar ao Ministério da Fazenda, sabia muito bem disso. Não afirmou em momento algum que faria um choque. Começou pelo mais importante: o início do ajuste fiscal. Estava, assim, pondo um mínimo de ordem na casa. E o trabalho que já realizou nessa área é admirável, embora necessariamente limitado. Mas deixou claro que apenas o ajuste fiscal não seria suficiente. Que a inflação não cairia em seguida, por obra e graça do Espírito Santo. Que novas medidas seriam oportunamente necessárias.

Ao que tudo indica sua equipe imaginava que o momento oportuno para o ataque frontal à inflação seria o início do próximo ano, mas observa-se, da parte da sociedade, uma demanda cada vez maior por medidas mais decididas e imediatas contra a inflação. A Carta Política, que publica regularmente a opinião das elites, mostrou recentemente que a expectativa de um choque mais do que dobrou nos últimos dois meses. Os jornalistas, que são um excelente termômetro da sociedade, há alguns meses perguntavam-me: “O senhor ainda insiste em choque?” Agora a pergunta é diferente: “Mas, professor, existe alguma alternativa ao choque?”

Os analistas também se impacientam. Fernando Pedreira sugere que Fernando Henrique está se esquecendo dos ensinamentos de Maquiavel, imaginando que seja possível converter a sociedade aos bons costumes contra a inflação. Ruddiger Dornbusch excede-se ao declarar que Fernando Henrique já fracassou. Como se não lhe sobrasse mais tempo. E um número crescente de pessoas preocupa-se com o problema do timing. As perguntas se sucedem: “Não estaria escapando a Fernando Henrique a oportunidade? Não estaria ele já começando a desgastar-se?”

Ainda há tempo para Fernando Henrique. Ainda há tempo para o Brasil, porque se o ministro fracassar, não sei o que será do país. É sabido que ele é a última esperança do governo Itamar. Se falhar viveremos um ano de caos em meio a uma campanha eleitoral. Há tempo, mas o tempo não é muito.

A decisão do governo de patrocinar um acordo social, ao invés de um mal, talvez seja a oportunidade necessária. No México e Israel, onde a inflação terminou de forma ordenada, a estabilização só foi possível quando empresários e trabalhadores se sentaram com o governo e aprovaram seu plano de estabilização. Para isto é necessário que haja um plano, e que esse plano contenha uma clara política de rendas, dizendo em que nível deverão ficar os salários reais e os preços nominais. Como as resistências à palavra congelamento continuam elevadas, o governo poderá, inicialmente, falar em “prefixação”, que não é outra coisa senão um congelamento gradual. E falar também em “âncora cambial”, em independência do Banco Central via medida provisória, e em um grande acordo com o FMI e os Estados Unidos, além, naturalmente, de medidas adicionais de ajustamento fiscal e de apressamento da privatização. Mas, depois de algumas reuniões, que deveriam ser fechadas e limitadas a um número certo de empresários e líderes sindicais, começaria a ficar evidente que a âncora cambial ou a dolarização à Argentina é incompatível com a prefixação gradual. Que não há outra alternativa senão compatibilizar a dolarização - que pode ser mais flexível que a argentina, permitindo ao novo cruzeiro flutuar dentro de uma faixa - com a prefixação em uma única vez, ou seja, com um rapidíssimo congelamento.

Esta é a hora e a vez de Fernando Henrique Cardoso. O momento é difícil. A confusão no país é enorme. Imagino que a situação não seja diferente dentro de sua equipe. Quando a crise é grande, cada cabeça é uma sentença. Só um líder com a mente clara e a vontade firme resolverá esse problema. Fernando Henrique tem tudo para ser essa pessoa. Habilidade, coragem, inteligência, conhecimento da inflação e dos problemas brasileiros.

As medidas de médio prazo incluídas no plano deverão ser decisivas. Deverão partir do fato de que o Estado brasileiro está falido, e que a condição da estabilização é a sua recuperação financeira. Deverão partir do pressuposto de que a situação é muito grave, não permitindo poupar ninguém. Que a principal função da privatização é garantir a redução da dívida mobiliária interna, por isso não podendo ser admitidas moedas podres; as dívidas relativas a elas deverão ser consolidadas a longo prazo. Deverão deixar claro que o ajuste fiscal, após a adoção da convertibilidade, deverá ser rígido, dentro da regra de que a única emissão legítima será aquela destinada a comprar reservas internacionais. Deverão anunciar que, através da revisão constitucional, serão assegurados os recursos tributários necessários, ao mesmo tempo que o governo continua a aprofundar a campanha contra a sonegação fiscal.

O objetivo será uma inflação inferior a 20% no primeiro ano. Objetivo viável, já que a economia e a sociedade brasileiras estão preparadas para isto. E seu custo será zero ou mesmo negativo. Porque, apesar do aperto fiscal, não haverá recessão. Pelo contrário, em pouco tempo assistiremos à retomada do desenvolvimento, como aconteceu na Argentina. O que não significa que teremos resolvido nossos problemas. Mas, simplesmente, que agora o Brasil enfrentará problemas civilizados, semelhantes aos que uma sociedade civilizada normalmente enfrenta, ao invés de enfrentar a hiperinflação indexada brasileira, que é sinônimo de barbárie. (Folha de S. Paulo, 27/7/93)

INDEXADOR DIÁRIO9 9 Este artigo foi publicado em um domingo. Durante a semana saíram na imprensa as primeiras notícias sobre o indexador diário. Todas elas afirmavam que haveria um redutor gradual nesse indexador. Neste artigo que escrevi sem qualquer inside information afirmo que a ideia do redutor era falsa, incompatível com a competência técnica da equipe econômica. No dia em que o artigo foi publicado, o governo afinal informou a imprensa que, de fato, não haveria qualquer redutor no indexador. Verifiquei depois que uma parte da equipe fora realmente favorável ao redutor, mas afinal prevaleceu a competência dos formuladores principais do plano.

O noticiário da imprensa a respeito do possível plano de estabilização do governo está deixando a sociedade brasileira perplexa. Não apenas porque as informações são contraditórias, mas também porque algumas das medidas anunciadas são tão incompetentes que obviamente não podem estar sendo cogitadas por uma equipe econômica onde estão alguns dos melhores economistas brasileiros, que melhor conhecem a natureza inercial da inflação brasileira. A partir da competência da equipe, entretanto, é possível distinguir quais as medidas que podem fazer parte do plano em elaboração das que definitivamente não podem.

Certamente não fará parte de um plano de estabilização de Fernando Henrique Cardoso e sua equipe a adoção de um indexador único, com um redutor de 2 a 3% em relação à inflação do mês anterior, que reduziria a inflação gradualmente. É muito provável, por outro lado, que a primeira fase de um plano de estabilização seja constituída de um indexador único e diário, baseado nas variações da taxa de câmbio, que seria obrigatório para os contratos a prazo, ao mesmo tempo que se proibiriam vendas ou contratos a prazo prefixados.

Embora se informe que “o Planalto, assessorado por economistas do PMDB”, preferiu a ideia da prefixação gradual da queda da inflação, através do uso de um redutor para a variação da taxa de câmbio e dos preços públicos, que serviria de guia para a elevação dos preços privados, estou seguro que os membros da equipe econômica jamais adotariam um plano nessa linha. Por uma razão muito simples: porque não funcionaria, tendo apenas como resultado a valorização da taxa de câmbio e o atraso dos preços públicos, ou seja, o desequilíbrio da balança comercial e o aumento do déficit público. E não funcionaria porque, ao nível em que a inflação está hoje, seria irracional porque muito arriscado para os empresários aceitar o índice prefixado como guia para o reajuste de seus preços.

Se a inflação, ao invés de 35% ao mês, fosse de 3,5% ao mês, ainda haveria alguma possibilidade de tal estratégia gradualista funcionar. O raciocínio é simples. Imaginemos que a ideia fosse de um redutor que zerasse a inflação em cinco meses, reduzindo-se 20% da taxa inicial de inflação cada mês. Com uma inflação de 3,5%, no primeiro mês de funcionamento do esquema o governo sinalizaria que a inflação, no mês seguinte, seria de 2,8%. O risco dos empresários que aplicassem esse redutor nos seus reajustes seria de 0,7 pontos percentuais. Caso os demais agentes não seguissem a orientação governamental, sua perda se limitaria a isso. Entretanto, se a inflação fosse de 35%, os agentes econômicos deveriam reduzir seus aumentos de preços para 28% no primeiro mês. O risco seria de 7 pontos percentuais. Um empresário com um mínimo de competência não aceitará assumir esse risco.

Um indexador único e diário, baseado na variação do dólar, e obrigatório para as vendas a prazo, seria, porém, algo muito lógico como primeira etapa da estabilização. O grande problema da inflação inercial está no fato de que esta é uma economia indexada ao invés de dolarizada. Sendo indexada, os reajustes de preço ocorrem de forma defasada e assincrônica, tornando inviável uma âncora cambial ou qualquer outra âncora. No dia da aplicação da âncora haverá sempre agentes econômicos com seus preços atrasados, que, em seguida, terão de reajustar seus preços, inviabilizando o plano. Se a economia fosse dolarizada, os preços estariam sendo aumentados diariamente, de acordo com a variação da taxa de câmbio. Não haveria defasagens ou assincronia. No momento em que a taxa de câmbio fosse fixada, todos os agentes econômico teriam seus preços razoavelmente em dia; não haveria desequilíbrio dos preços relativos.

A economia brasileira não é dolarizada, é indexada. Mas, com a adoção de um indexador diário amarrado na variação da taxa de câmbio, e com a exigência de que todos os contratos fossem pós-fixados, teríamos, na prática, as condições da dolarização sem que a economia estivesse dolarizada. Teríamos reajustes diários de preços, que estariam, portanto, sendo aumentados de forma sincrônica.

A transformação da economia brasileira, de uma economia prefixada para uma economia pós-fixada durará, naturalmente, algum tempo. Será o tempo da primeira fase do plano, durante a qual se continuam os esforços pelo ajuste fiscal. Uma vez alcançada uma razoável pós-fixação, o governo estará em condições de deslanchar a segunda fase, que provavelmente incluirá uma reforma monetária, a conversibilidade do cruzeiro em dólar, a fixação dos preços públicos, um acordo com as grandes empresas para que fixem seus preços por algum tempo, e um acordo com as centrais sindicais para que aceitem um salário real convertido pela média dos últimos meses. Nesse momento, se o ajuste fiscal for completado, estará estabilizada a economia brasileira de maneira consistente e sólida. (O Estado de S. Paulo, 21/11/93)

O RISCO DE INFLAÇÃO EM URVS10 10 Este artigo foi escrito com o objetivo de dissuadir a equipe de seu intento inicial de deixar a fase-URV por um período de aproximadamente oito meses. Minha preocupação era a de que houvesse não apenas uma aceleração da inflação, quede fato ocorreu, mas a própria inercialização dessa inflação, o que seria grave. Conversei inclusive com Pérsio Arida, que se convenceu de meus argumentos.

O Plano Fernando Henrique é o mais coerente e engenhoso plano para lidar com a inércia inflacionária até hoje concebido no Brasil, mas nele a transição do cruzeiro para a URV é um momento crucial. Nessa passagem a inflação em URVs poderá ser suficientemente significativa de forma a também inercializar-se. Ora, se isto acontecer o plano estará automaticamente inviabilizado.

A inércia inflacionária deriva da assincronia nos reajustes de preços, que são aumentados defasadamente. É precisamente esse o problema que o Plano Fernando Henrique vem resolver ao introduzir, na sua segunda fase, a Unidade Real de Valor. Ao adotá-la o objetivo é permitir que os preços de cada mercadoria aumentem todos os dias, como acontece nas economias dolarizadas, em que o indexador é a variação da taxa de câmbio. Uma vez obtida essa sincronização dos aumentos de preços, bastará fazer uma reforma monetária, transformar o índice-moeda URV em moeda - que poderíamos chamar de “Real” -, substituir o cruzeiro pelo Real, dar conversibilidade ao real em relação ao dólar, e a inflação estará controlada, desde, naturalmente, que neste momento o déficit público esteja zerado.

O extraordinário deste plano está no fato de dar conta da inércia inflacionária sem quebra de contratos, sem choques, seguindo as leis do mercado. A inflação terminará em um dia, abruptamente, na hora em que a reforma monetária extinguir o cruzeiro.

A adoção voluntária da URV ocorrerá rapidamente já que as empresas compradoras forçarão nesse sentido. Sabem que não haverá “tablita” no dia da reforma monetária, e não podem arriscar continuar comprando pós-fixado, com a inflação embutida no preço a prazo. Os vendedores, entretanto, poderão hesitar em adotá-la, temendo que ela subestime a inflação. A utilização de um redutor qualquer, entretanto, é incompatível com o plano Fernando Henrique, como sua equipe sabe muito bem. Já está estabelecido que a URV acompanhará a taxa de câmbio. E que a taxa de câmbio acompanhará rigorosamente a inflação em cruzeiros. Qualquer outra alternativa destruiria o próprio princípio racional do plano que é o de ter um índice-moeda confiável e preciso, que permita a sua transformação em moeda e o controle da inflação inercial.

Todavia, se a URV for adotada irracionalmente, se as empresas não confiarem na URV e definirem seus preços em URV acima do seu valor de equilíbrio, pelo pico e não pela média, teremos imediatamente inflação em URVs e aceleração da inflação em cruzeiros. A inflação em URVs corresponderá à aceleração da inflação em cruzeiros. Se a inflação mensal, hoje, é de 36%, se a URV fosse adotada hoje, e se, no mês seguinte, a inflação subisse para 40%, a inflação em URVs seria de 4% nesse primeiro mês. Isto seria um desastre. Em pouco tempo teríamos inércia inflacionária também em URVs, e a transformação desta em moeda, no Real, estaria inviabilizada.

Não existem mecanismos de mercado que necessariamente evitem a conversão pelo pico. A forma mais óbvia de evitá-lo seria o controle pelas empresas que compra e - em menor grau - pelos consumidores finais. Como o governo deverá publicar o valor da URV nos 12 últimos meses, dia a dia, será fácil verificar o valor em URVs das últimas compras no dia do pagamento, tirar a média, e só aceitar comprar por esse preço. Os preços em URV serão, naturalmente, sempre o preço à vista. O preço a prazo será o mesmo mais uma pequena taxa de juros real. No dia do pagamento o banco calculará o valor da fatura em cruzeiros, multiplicando o número de URVs da fatura pelo valor da URV no dia.

Para o vendedor também será fácil definir corretamente seu preço em URVs. Se ele tiver um preço verdadeiramente à vista, bastará verificar o preço médio à vista e dividi-lo pelo valor da URV no dia em que sua tabela de preços passar de cruzeiros para URVs. O preço médio à vista levará em conta a periodicidade dos reajustes de cada empresa no momento anterior. Se essa periodicidade for mensal e o reajuste for usualmente feito no dia 1º. do mês, o preço médio à vista será igual ao preço à vista dividido pela URV do dia 15 do mês. Se a empresa não tem um preço à vista, deverá descontar a inflação embutida no preço a prazo. Para isto uma tabela indicativa, publicada pelo governo, de conversão de preços a prazo em preços à vista, pressupondo uma inflação embutida nos preços a prazo igual à inflação corrente no momento da introdução da URV, será muito útil. Uma vez obtido dessa maneira o preço à vista, será necessário convertê-lo ao preço médio à vista.

Os salários, a partir do salário-mínimo, também deverão ser convertidos em URVs pela média dos últimos 12 meses. Para isto bastará calcular o valor em URVs do salário, no dia do pagamento, nos últimos 12 meses, e dividir por 12.

O preço em URVs calculado de acordo com as três fórmulas sugeridas (média dos últimos preços pagos, preço médio à vista, e preço a prazo descontada a inflação) deverá coincidir. Por esse preço ninguém ganhará nem perderá. Os salários, também, manterão rigorosamente seu poder aquisitivo. E o flagelo da economia brasileira, que é a inflação, poderá ser derrotado.

Racional será agir dessa forma. Uma racionalidade perversa, no entanto, poderá ter outro resultado. Líderes sindicais populistas poderão voltar a exigir o pico e não a média, embora saibam que isto não faz o menor sentido. Os vendedores serão tentados a cobrar o preço à vista de pico. Ou, pior ainda, o preço a prazo como se fosse à vista.

Diante dessa eventualidade, os compradores talvez não tenham tanta firmeza em recusar a manobra, acostumados como estão a repassar os aumentos de preço. Se hoje repassam os aumentos de preço em cruzeiros, imaginarão poder também repassar os aumentos em URVs. Se vendedores e compradores agirem dessa maneira, a inflação em URVs será alta e poderá também inercializar-se. Nesse caso o plano estará condenado: não será possível transformar a URV em moeda real. Só nos restará esperar pela hiperinflação - ou por outro congelamento de emergência.

Dada a possibilidade de uma racionalidade perversa do mercado, um mínimo de espírito público será necessário, tanto por parte dos vendedores quanto dos compradores. Mas esse espírito público poderá ser reforçado se os agentes econômicos, principalmente os compradores, tiverem tempo para compreender o mecanismo da URV e calcular o seu valor verdadeiro. É por isso que Pérsio Arida afirmou ao O Estado de S. Paulo no último domingo que o governo não tem pressa em introduzir a URV. Em um primeiro momento introduzirá a URV e publicará seus valores retroativos. Em seguida, dará um tempo para que os compradores e vendedores façam seus cálculos. E só então autorizará sua utilização como unidade de compra nas faturas e demais contratos. (0 Estado de S. Paulo, 21/12/93)

CENÁRIOS DA TORRE DE BABEL11 11 Este artigo foi escrito com o objetivo de fortalecer a posição do Ministro da Fazenda, que enfrentava a descrença inclusive dentro de sua própria equipe. Esta, como uma parte ponderável das elites brasileiras, exagerava os obstáculos políticos e o populismo do presidente Itamar Franco, não percebendo que as condições políticas para um plano de estabilização haviam melhorado sensivelmente nos últimos anos.

No início de 1994 o Brasil lembra uma torre de Babel. A inflação aproxima-se dos 40%, todos afirmam que é ela o maior mal que aflige o país, mas quando chega o momento de enfrentá-la, cada qual pensa nos seus interesses particulares e o acordo social e político necessário não se concretiza. A equipe econômica apresenta um engenhoso plano de estabilização, que tem todas as condições de acabar a inflação abruptamente, mas sem sustos nem quebra de contratos, todos elogiam o plano, mas poucos acreditam que a inflação possa terminar. Durante anos o refrão da sociedade é o de que o ajuste fiscal deve ser feito antes pela redução das despesas do Estado do que pelo aumento dos impostos. O governo apresenta um plano que propõe uma forte diminuição nos gastos governamentais e um pequeno aumento dos impostos, mas fala-se imediatamente em “derrama fiscal”. A concentração de renda é brutal, e pede-se que os impostos sejam progressivos. O governo aumenta a alíquota marginal de imposto de renda para 35 para remunerações acima de 10 mil dólares, e a imprensa grita: “Taxados os salários da classe média!”.

Este quadro de confusão não é condizente com cenários otimistas para 1994. O primeiro cenário que apresentarei, porém, é o cenário ideal. O Congresso aprova o ajuste fiscal ainda neste mês de janeiro, o governo introduz a URV em fevereiro, os empresários e os trabalhadores chegam a um acordo mínimo patrocinado pelo governo e fazem a conversão de seus preços e salários para a URV principalmente pela média, e já no final de março é feita a reforma monetária, com a extinção do cruzeiro. O resíduo inflacionário na nova moeda é pequeno, e é controlado pelo prosseguimento do ajuste fiscal combinado com uma firme política de juros. Depois de uma pequena recessão, o desenvolvimento é retomado ainda no decorrer do ano.

Os cenários pessimistas começam pela recusa do ajuste fiscal por parte do Congresso. Nesse caso, é provável que a equipe econômica se demita. E a inflação, que já estará em 40%, acelerar-se-á rapidamente, apontando para a hiperinflação.

Em um terceiro cenário, o Congresso aprova o ajuste, mas a equipe não consegue o apoio do próprio governo para a conversão pela média do salário-mínimo. Demite-se, e caminhamos, igualmente, para a hiperinflação.

De acordo com um quarto cenário, o problema concentra-se na conversão dos preços e salários para URVs. Estes são feitos por empresas e trabalhadores mais próximo do pico do que da média. A inflação se acelera ainda na fase dois. Os preços relativos ao invés de equilibrarem-se, desequilibram-se. E, quando o governo decidir realizar a reforma monetária - que em qualquer hipótese não poderá esperar muito - os desequilíbrios serão tantos que o seu resíduo inflacionário será suficientemente alto para valorizar a taxa de câmbio e prejudicar o plano. A partir desse momento esse quarto cenário subdivide-se em dois: No primeiro caso (cenário 4.1), uma condução firme da política fiscal e monetária poderá ainda salvar o plano, mantendo-se a inflação na nova moeda sob controle. O custo, em termos de recessão, será, porém, alto. No segundo caso (cenário 4.2), o governo não se sente com condições políticas para levar adiante o ajuste fiscal, o plano fracassa, e a inflação na nova moeda sobe gradualmente. Um terceiro subcenário, com a inflação explodindo devido ao alto resíduo inflacionário é pouco provável.

Os cenários 1 e 4.1 são semelhantes. A diferença está no resíduo inflacionário, que será maior no segundo caso, exigindo um controle fiscal e monetário maior. Algum resíduo inflacionário, no entanto, sempre existirá, obrigando o governo a manter forte austeridade fiscal depois da reforma monetária.

Os pessimistas e descrentes, que são a absoluta maioria, preveem que o Congresso não apoiará o ajuste fiscal. Mas, caso isto ocorra, afirmam que o presidente não terá coragem de promover a conversão do salário-mínimo pela média. Ficam, portanto, com os cenários 2 e 3. Em último caso, apoiam sua descrença no cenário 4.2, segundo o qual o governo não terá forças para fazer frente ao resíduo inflacionário em ano de eleições.

Talvez os pessimistas estejam corretos. Talvez, em uma torre de Babel como é a nação brasileira hoje, realistas sejam os pessimistas. Mas um fato é certo: existe hoje uma oportunidade real de que a inflação seja afinal derrotada. Não porque as condições políticas sejam ideais, mas porque, pela primeira vez depois de muitos anos, está no governo uma equipe tecnicamente capaz de derrotar a inércia inflacionária. Essa equipe ainda não decidiu definitivamente implementar seu plano. Mas, se o ajuste fiscal for aprovado pelo Congresso, e se o Presidente da República mantiver seu apoio firme ao Ministro da Fazenda - duas hipóteses que me parecem perfeitamente razoáveis -, o plano será desencadeado. E a estabilização estará ao nosso alcance.

Não apresentei os cinco cenários econômicos possíveis para 1994 para que as empresas façam suas projeções orçamentárias, mas para que fique mais claro para todos nós quais são os momentos de decisão estratégicos neste ano. São quatro, que se sucederão no tempo: a aprovação pelo Congresso do ajuste fiscal, a aprovação pelo Presidente da conversão do salário-mínimo pela média, a correção dos demais preços e salários pela média, a firmeza no combate ao resíduo inflacionário na nova moeda. Se em cada um desses momentos a sociedade civil pressionar os políticos, os empresários e os líderes sindicais para que tomem as decisões corretas, a estabilização poderá ser alcançada neste ano. Caso contrário, a hiperinflação, já tão próxima dado o nível da inflação, estará rondando a nossa porta. (O Estado de S. Paulo, 8/1/94)

A CANDIDATURA E O PLANO FHC12 12 Este é um artigo essencialmente político. Nele previ que Fernando Henrique Cardoso seria candidato e qual seria o argumento que lhe seria apresentado para justificar sua saída do Ministério da Fazenda: a necessidade de consolidar o plano em 1995. Ambas as previsões foram confirmadas.

Será Fernando Henrique Cardoso realmente candidato à Presidência da República? E seu plano de estabilização é realmente para valer? Estas são provavelmente as duas perguntas mais insistentes que os brasileiros se colocam neste começo de 1994. São perguntas fundamentais porque põem em causa o próprio destino da nação brasileira. Duas perguntas que podem elas próprias indicar a confusão em que vivemos, mas, na verdade, sugerem uma resposta simples, que provavelmente já está sendo percebida por parcelas ponderáveis da sociedade brasileira: o plano de FHC tem condições de, nos próximos meses, controlar a inflação brasileira, e por isso a candidatura à Presidência do Ministro da Fazenda é muito mais do que uma probabilidade, um fato quase certo, já que será a forma de consolidar o êxito deste plano.

É certo que o saber convencional é outra coisa. Afirma que Fernando Henrique deveria permanecer até o final do mandato de Itamar Franco no ministério para garantir o sucesso de seu plano. Como todo saber convencional, a tese aparentemente faz sentido.

Na verdade, um plano de estabilização de uma economia tão cronicamente inflacionária como a brasileira não alcança êxito em um dia ou mesmo em alguns meses. Primeiro, foi necessário um bom tempo para que a equipe econômica conseguisse formulá-lo. Desde novembro estamos em sua primeira fase, a do ajuste fiscal inicial. A segunda, a da introdução da URV, deverá ocorrer em fevereiro e poderá durar dois, no máximo três meses. Em seguida virá a reforma monetária, com a extinção do cruzeiro, que durará um dia, um fim de semana. Mas será o início de uma longa e difícil terceira fase - a fase da consolidação, que não durará meses, mas anos.

Ora, no momento de sua desincompatibilização, no início de abril, Fernando Henrique já terá formulado o plano e estará no final da segunda fase ou no início da terceira. Ao desincompatibilizar-se, fá-lo-á certamente em acordo com o Presidente Itamar, do qual será o candidato. Sua equipe continuará, portanto, implementando o plano, sob o comando de um de seus membros. Provavelmente Pedro Malan. E o argumento que convencerá definitivamente Fernando Henrique de que deve ser candidato é óbvio: para o êxito do plano será melhor candidatar-se para, uma vez eleito, poder consolidá-lo. Sua ausência formal do comando da equipe durante alguns meses será muito menos grave do que a eleição de um candidato sem condições de dar continuidade ao plano.

Mas, argumenta ainda o saber convencional, 1994 é um ano de eleições, um ano em que os políticos gastam muito sem serem bem-sucedidos nos pleitos. É, portanto, um momento desfavorável para um plano de estabilização. Este, porém, é novamente um raciocínio insustentável no caso presente. Para Itamar ser bem-sucedido como presidente e fazer seu sucessor, o Plano FHC terá de ter êxito. E para isso será preciso gastar o mínimo possível, combater o déficit público de todas as formas possíveis e imagináveis. Não serão algumas verbas adicionais que garantirão a eleição de Fernando Henrique, mas o fim da inflação.

Na verdade, apesar de todas as dúvidas que cercam o Plano FHC - dúvidas que derivam em grande parte do desconhecimento de um plano tecnicamente complexo - todos sabem que ele é uma esperança real. É o primeiro plano de estabilização com chances reais de controlar a inflação brasileira desde o Plano Collor I. E um plano muito mais razoável, muito menos violento do que o Plano de Collor e Zélia. Se este plano não for bem-sucedido, teremos a tentativa do próximo presidente. Mas, não sendo ele Fernando Henrique, seu plano será uma incógnita. E a possibilidade de que seja incompetentemente formulado e fracasse é imensa.

A sociedade brasileira, embora desinformada e cética, sabe disso tudo. Sabe que hoje existe uma oportunidade real de estabilização. Uma oportunidade ligada ao plano de estabilização e à candidatura Fernando Henrique. Uma oportunidade que se tomará mais concreta à medida que o plano for avançando. Por isso pressionará Fernando Henrique Cardoso a ser candidato. A ser uma alternativa a Lula, o candidato que hoje lidera folgadamente todas as pesquisas, apesar do receio que ainda provoca nas elites brasileiras.

Temos assim, apesar de todas as dificuldades que o Brasil hoje enfrenta, um cenário otimista para 1994. A Presidência será disputada por dois candidatos da melhor qualidade. Lula, à esquerda, continuará sendo favorito, mas Fernando Henrique Cardoso, que é o único político brasileiro com condições de ser uma alternativa real a Lula, ocupará a centro-esquerda e poderá obter amplo apoio da centro-direita. Suas chances de eleger-se serão enormes, caso seu plano de estabilização dê certo.

Dará certo? É possível garantir. Sabemos que é tecnicamente consistente, na medida em que dá conta da crise fiscal e da inércia inflacionária. Estamos vendo que o plano vem contando com um razoável apoio político. É fácil prever que esse apoio aumentará a partir do momento em que a reforma monetária reduzir para próximo de zero a inflação na nova moeda, e deverá redobrar por parte dos setores conservadores, quando estes perceberem que de seu êxito depende a vitória sobre Lula. Mas, nada garante que o Plano FHC seja bem-sucedido. Nos próximos meses teremos um teste crucial, que será o da conversão dos preços para URV. A continuidade do ajuste fiscal será sempre um desafio permanente.

Está ficando cada vez mais claro, entretanto, que o êxito do plano e a candidatura Fernando Henrique são dois fatos que mutuamente se reforçam. Não é apenas a candidatura que depende do sucesso do plano, mas este, para se consolidar, dependerá também do êxito da candidatura. Quando, recentemente, Fernando Henrique deixou escapar que estava considerando sua candidatura à Presidência, ele não estava manifestando apenas um desejo pessoal. Estava também refletindo um anseio da sociedade, que deseja mais do que qualquer outra coisa vencer a inflação e consolidar essa vitória. (O Estado de S. Paulo, 30/1/94)

AS OBJEÇÕES À FASE-URV13 13 Neste artigo inverti o argumento apresentado anteriormente (O Risco da Inflação em URVs) e procurei demonstrar que os temores, que assaltavam a equipe, de uma explosão inflacionária com a adoção de um índice instantâneo eram improcedentes. Haveria uma aceleração inflacionária, mas nada semelhante ao previsto em modelos puramente teóricos.

Os jornais informam que, depois das advertências de alguns economistas respeitáveis, como Mário Henrique Simonsen, Francisco Lopes e Yoshiaki Nakano, a equipe econômica estaria rediscutindo a ideia da Unidade Real de Valor. Alguns dos seus membros estariam mesmo dispostos a saltá-la, passando diretamente do ajustamento fiscal à reforma monetária com âncora cambial. As dificuldades jurídicas e operacionais relacionadas com a introdução da URV reforçariam essa posição. Ora, não obstante as advertências sejam compreensíveis, não faz sentido suprimir a fase-URV.

Fazê-lo significa ou desistir de vez de estabilizar a economia neste ano, já que uma simples âncora cambial não precedida da fase-URV é inviável no Brasil dadas as defasagens nos aumentos de preços, ou então tentar a sorte através de outro congelamento acompanhado de tablita - solução hoje politicamente inviável.

Vejamos em primeiro lugar a advertência teórica dos três economistas. O que eles nos dizem é que ao se adotar um índice de preços diário e, portanto, ao se indexarem instantaneamente todos os preços, existe o perigo de uma explosão - ou um “deslize”, como prefere Mário Henrique - no sentido da hiperinflação. Creio que esse temor é infundado.

Teoricamente, uma indexação instantânea é explosiva. Qualquer pequeno choque implica em uma espiral inflacionária que levaria a taxa de inflação ao infinito. Na prática, porém, a indexação nunca é instantânea. E os choques são sempre parcialmente absorvidos. Na verdade, uma explosão hiperinflacionária só ocorre quando há um ataque especulativo bem-sucedido contra a moeda, o qual, por sua vez, só pode ocorrer se as reservas internacionais forem baixas - o que não é verdade - ou se o governo resolver atrasar a URV - o que obviamente a equipe econômica não fará.

Não há dúvida que haverá uma aceleração inflacionária com a introdução da URV, já que haverá conversões do cruzeiro para a URV acima do preço médio efetivamente pago ou recebido. Existe, no entanto, um receio exagerado de que os agentes econômicos façam em sua grande maioria a conversão pelo pico. Ao se fazer essa pressuposição está-se raciocinando como se os agentes econômicos fossem todos monopolistas. Ou então como se as regras que prevalecem hoje nos próprios setores competitivos para indexar preços, prevalecerão também na conversão do cruzeiro para a URV.

Na inflação inercial os vendedores podem agir como se fossem monopólios ao corrigirem seus preços de acordo com a inflação passada, sem se importar com a demanda, porque assumem que seus concorrentes também terão de fazer o mesmo, e porque seus compradores, por sua vez, também assumem que poderão repassar o aumento nominal dos custos para seus preços já que seus concorrentes também o farão. No caso da conversão para a URV, entretanto, a situação é diversa. O comprador que aceitar comprar por um preço acima da média não pode assumir que seus concorrentes também aceitarão essa regra de conversão. Ao fazê-lo ele estará aceitando um aumento de custos real, que só não se confirmará se, afinal, o poder do seu fornecedor prevalecer sobre todo o mercado. Ora, não há razão para sustentar essa pressuposição radical.

Haverá, de qualquer forma, alguma aceleração inflacionária em cruzeiros no período em que vigorar a URV como índice-moeda. Por isso, é conveniente que a duração dessa fase seja curta, limitada a, no máximo, dois meses. Esse período não será suficiente para que todos os preços sejam convertidos pela média. Mas não é isto o que se quer da fase-URV. Esta fase não existirá para que se possam equilibrar plenamente todos os preços relativos. Isto só existe em modelo econômico, não na realidade. Nesta, se se deixar prolongar a fase-URV, as distorções sobrevenientes poderão ser maiores do que o equilíbrio a ser alcançado. O que se quer simplesmente com a fase-URV é dar uma oportunidade aos agentes econômicos para que convertam seus preços antes da reforma monetária.

Por outro lado, é preciso entender que a decisão de conversão dos preços para URV não é uma decisão pesada, irreversível, já que não haverá congelamento. Se a conversão for insatisfatória, o agente econômico poderá sempre revê-la.

O governo tem um compromisso claro de não congelar preços, e será irracional não manter esse compromisso. Tão irracional quanto seria atrasar a URV.

O risco que o Plano FHC realmente enfrenta, na conversão para a URV, é o da conversão dos salários. Esta terá também de ser feita pela média. Especialmente a conversão do salário-mínimo, cuja média, nos últimos 12 meses, foi de aproximadamente 67 dólares. Se o governo não tem condições políticas de assegurar essa regra de conversão, é inútil tentar estabilizar. O argumento de que na indústria houve aumento de produtividade que justificaria aumentos reais de salários não se sustenta. Os salários reais só podem aumentar com o aumento da produtividade geral da economia, que se mede pelo aumento da renda por habitante.

Finalmente, argumenta-se que a URV enfrenta problemas práticos. Como converter para URV os preços nos supermercados? Nas passagens de ônibus? Como indexar os impostos sem enfrentar problemas jurídicos adicionais? Ora, em primeiro lugar, não é necessário converter todos os preços para a URV. Novamente, só em modelo isto é necessário, não na prática. Em segundo lugar, nada impede que os impostos continuem a ser indexados pela UFIR. Basta que a variação desta acompanhe rigorosamente a variação da URV.

É compreensível que haja dúvidas em relação ao Plano FHC. Afinal, trata-se de uma estratégia contra a inflação sofisticada, de difícil compreensão. A fase-URV permite um razoável equilíbrio dos preços relativos, uma razoável neutralização dos efeitos distributivos originados na defasagem dos aumentos de preços. Garante, assim, que, após a reforma monetária que extinguirá o cruzeiro e transformará a URV em Real, o resíduo inflacionário na nova moeda seja pequeno.

Desta forma será possível controlar a alta inflação sem recurso, seja ao congelamento, seja à hiperinflação. É, portanto, o mecanismo imperfeito. mas essencial da fase-URV - além do ajuste fiscal que está sendo discutido pelo Congresso - que transforma o Plano FHC na primeira tentativa realmente séria de controle da inflação desde 1990. Será um crime contra o país não aproveitar essa oportunidade, seja pela resistência dos políticos, seja pela insegurança dos economistas em relação ao seu próprio instrumental técnico. (Folha de S. Paulo, 8/2/94).

OS SALÁRIOS E A URV

Diante da iminência do início da segunda fase do Plano FHC - a fase URV - os temores em relação aos salários tornam-se dominantes na sociedade. Há uma pergunta partilhada por quase todos: O que vai acontecer com os salários, se estes forem convertidos para a URV pela média? Ou então: Quanto vão perder os salários com a conversão para a URV?

A resposta a esta segunda pergunta, supondo-se que se use como base o salário médio real dos últimos 12 meses, é simples: Não vai haver perda alguma ( 1) desde que a inflação em seguida à reforma monetária seja próxima de zero; ou, não o sendo, desde que a inflação sobreveniente seja compensada por reajustes salariais que mantenham, a partir daí, o salário médio real; e (2) desde que não tenha havido imediatamente antes do plano uma aceleração da inflação que torne a média de 12 meses inferior à dos últimos meses; ou, caso isto tenha acontecido, se não seja prevista uma compensação para o fato.

Se o plano de estabilização for plenamente bem-sucedido e a inflação zerar, os salários nada sofrerão em seguida. Se a inflação retornar na nova moeda, será naturalmente necessário que os salários também voltem a ser corrigidos. Por algum tempo, e desde que a inflação sobreveniente seja baixa, será razoável que, graças a um acordo social, os salários nominais sejam mantidos constantes. A pequena perda decorrente poderá ser compensada pela retomada do desenvolvimento.

O salário real em URVs deverá ser obtido dividindo-se o salário no dia do pagamento (conceito caixa, portanto) pelo valor da URV nesse dia. Para se obter o salário médio real de 12 meses, considerando-se que o trabalhador recebe seus salários em duas parcelas, será necessário tomar os 24 valores pagos, dividir pela correspondente URV do dia, somar e dividir por 4.

Feita a conversão de cruzeiros para URVs nesses termos, se houver ocorrido uma redução do salário real nos últimos meses devido à aceleração da inflação ocorrida a partir de dezembro último, será necessário estabelecer um fator de correção. Ou seja, a conversão deverá ser feita por um valor um pouco acima da média dos últimos 12 meses. A aceleração da inflação, portanto, apenas sugere uma correção da média, não o abandono do critério em favor do pico.

Mas, se as conversões dos preços das mercadorias e serviços forem feitas principalmente pelo pico e não pela média? Nesse caso, como não foi possível levar em consideração esse fato no cálculo dos salários dos últimos 12 meses, será necessário que o governo ou que instituições de pesquisa confiáveis façam imediatamente um levantamento de quanto as conversões se afastaram da média. Esse afastamento será transformado pelas partes que negociam em um fator de correção, que, somado ao anterior, deverá ser usado para corrigir o salário médio dos últimos 12 meses.

Neste caso, a conversão estará sendo feita por um valor intermediário entre a média e o pico. Tem-se afirmado que tal fato inviabilizaria o plano. Sem dúvida, o ideal seria que todas as conversões fossem feitas pela média, mas se não o forem, o plano ainda poderá ter êxito.

A principal consequência negativa será uma aceleração da inflação imediatamente em seguida às conversões, o que obrigará o governo a adiar um pouco a reforma monetária, para que a aceleração da inflação fique ainda em cruzeiros e não na nova moeda.

As conversões, entretanto, terão o resultado principal desejado de eliminar as defasagens nos aumentos de preços-defasagens que desequilibram os preços relativos e inviabilizam hoje uma âncora cambial. O segundo fator de desequilíbrio dos preços relativos que uma conversão pela média neutralizaria - a variação no prazo de reajustes de preços das empresas - não seria neutralizado pela conversão fora da média, mas é razoável admitir que essas variações hoje são pequenas: a maioria das empresas reajusta seus preços mensalmente.

Em qualquer hipótese, porém, é essencial que a reforma monetária zere o passado. A partir dela e de uma conversão cujo objetivo fundamental será garantir a manutenção do salário médio real, é necessário esquecer não apenas perdas passadas, mas também o sistema de datas-base.

Conforme observou Hélcio Tokeshi em artigo desta Folha (10/12/93), para o êxito do plano é necessário que a partir da reforma monetária os trabalhadores fiquem livres para negociar seus salários, não podendo valer acordos ou normas anteriores, que previam, por exemplo, que na data-base os salários seriam corrigidos por toda a inflação do último ano. Se isto ocorrer, todo o processo neutro, sem ganhadores nem perdedores, de conversão estará prejudicado.

Escrevo este artigo da maneira mais clara possível pensando nas negociações que terão de ser iniciadas em breve entre trabalhadores e empresários intermediadas pelo governo. Nelas, o governo terá um objetivo claro: preservar o poder aquisitivo dos salários, garantir a neutralidade distributiva do plano. As considerações acima levam nessa direção. Mas estas ideias precisarão ser amplamente discutidas e negociadas. Para isso é necessário um debate público, como estou fazendo aqui, e também um debate formal e razoavelmente reservado (não secreto) entre lideranças sindicais e empresariais sob a égide do governo.

O Plano FHC é a primeira tentativa séria, em quatro anos, de acabar com o mais grave mal que a economia brasileira enfrenta. Ele prevê um mecanismo basicamente de mercado para garantir o equilíbrio dos preços relativos no momento da estabilização - a URV. Mas os mecanismos de mercado jamais são perfeitos. Por isso, além de controlar os monopólios e oligopólios, como, aliás, o governo já está se preparando para fazer, um acordo social mínimo é necessário.

Apesar de saber que ainda existem líderes sindicais e políticos populistas prontos a defender salários de pico em qualquer circunstância, tenho motivos objetivos para acreditar que os trabalhadores brasileiros estejam hoje muito melhor preparados do que há cinco ou seis anos para fazer um acordo pela média e não pelo pico. Um acordo que coloque como objetivo fundamental o controle da inflação de forma civilizada, sem a violência e os prejuízos imprevisíveis que ocorrem quando a estabilização é precedida de hiperinflação. (Folha de S. Paulo, 24/2/94)

A SUPERIORIDADE DO PLANO FHC

O Plano FHC, cuja segunda fase está sendo lançada, tem amplas possibilidades de êxito. Se o compararmos com os planos de estabilização anteriores, este é claramente um plano superior na sua concepção, porque enfrenta de forma coerente as duas causas fundamentais da inflação: a inércia inflacionária e a crise fiscal. Por outro lado, embora tenha contra si o fato de estarmos em um ano eleitoral, conta com um ambiente político mais favorável do que os planos anteriores, na medida em que a sociedade brasileira hoje tem uma noção muito mais clara do que tinha há alguns anos da gravidade da crise, da necessidade do ajuste fiscal, e da inviabilidade de conversões de salários ou preços pelo pico.

Esta última mudança, entretanto, ainda não foi completa. Hoje os líderes sindicais sabem que a conversão dos salários deve ser pela média. Abandonaram a ideia de que o pico é o “verdadeiro” salário e que qualquer conversão abaixo do pico significa perda para os trabalhadores. Por motivos políticos, todavia, conservam uma retórica populista, que poderá ser fatal para o Plano FHC. Depois do ajuste fiscal, já aprovado, agora será a conversão do salário-mínimo o teste fundamental do plano. Se o Congresso aprovar a conversão dos salários pela média (em torno de 65 dólares), o plano terá amplas condições de êxito. Os preços também serão convertidos próximo da média. E não haverá perdedores ou ganhadores, que necessitarão aumentar seus preços em seguida para se compensar. Caso, entretanto, se decida por uma conversão por um valor maior, os demais salários seguirão o exemplo, os custos das empresas aumentarão, estas repassarão esses custos para os preços e a inflação residual - ou seja, a inflação logo em seguida à reforma monetária que zerará a inflação - será elevada. Em consequência, o plano fracassará. Estaremos condenados a mais alguns anos de inflação e estagnação.

O Plano FHC é o décimo quarto plano de estabilização implementado no Brasil desde que a atual crise, que mantém o Brasil estagnado desde então, foi desencadeada em 1979, com o segundo choque do petróleo e o choque da taxa de juros internacional. Os planos anteriores fracassaram, ou porque não tiveram apoio político e não puderam ser completados, ou porque foram incompetentes, não tendo levado em conta adequadamente a inércia inflacionária (o caráter formal e informalmente indexado da economia) e a necessidade de ajuste fiscal. Podemos, assim, comparar os principais planos, usando esses dois critérios. O quadro abaixo é um resumo comparativo, no qual apenas os principais planos foram colocados.

Plano Ano Ajuste fiscal Enfrenta inércia Delfim III 1983 Sim Não Cruzado 1986 Não Sim Collor I 1990 Sim Não FHC 1994 Sim Sim

O Plano Delfim III foi um plano ortodoxo, patrocinado pelo FMI, e baseado no ajuste fiscal. Fracassou porque ignorou a inércia inflacionária. O Plano Cruzado foi um plano heterodoxo, que deu conta competentemente da inércia, fazendo as conversões dos preços pela média, mas ignorou o ajuste fiscal e concedeu um aumento real de salários, o que inviabilizou o plano. O Plano Collor foi um plano ortodoxo, embora tenha incluído um rápido congelamento. Sua estratégia era fundamentalmente monetária. Fracassou porque ignorou a inércia inflacionária ao não acompanhar o congelamento por fórmulas de conversão (“tablitas”) e ao não levar adiante a estratégia de política de rendas, essencial quando há inércia, no momento em que uma inflação residual de 3% surpreendeu seus autores.

Na forma de enfrentar a inércia, entretanto, o Plano FHC também inova. Quando foi desenvolvida a teoria da inflação inercial, no início dos anos 80, Nakano, eu e Chico Lopes propusemos, como forma de enfrentá-la, o congelamento acompanhado de tabelas de conversão no momento da reforma monetária. André Lara Resende e Pérsio Arida propuseram uma alternativa: um processo de convivência de duas moedas durante um certo período, para permitir as conversões antes da reforma monetária. Esta, em qualquer das duas hipóteses, deveria incluir uma âncora cambial, ou seja, a fixação da taxa de câmbio. Com congelamento, a convertibilidade em relação ao dólar pode ser dispensada; sem ele, é necessária. Depois do êxito do Plano Cavallo, a ideia da convertibilidade ganhou naturalmente força.

Como o congelamento é uma estratégia mais simples, foi adotado no Plano Cruzado. Foi também adotado no Plano Bresser, que não chegou a completar-se por total falta de apoio político, e no Plano Verão. Agora, no Plano FHC, adota-se a alternativa da dupla moeda, com a diferença que a nova moeda, durante uma certa fase, não é realmente uma moeda, mas um índice-moeda (a URV), que permitirá as necessárias conversões (que neutralizam a inércia, ou seja, os aumentos defasados de preços), mas não tem poder liberatório.

Esta é uma alternativa mais complexa. Por isso existem ainda economistas confusos dizendo que o Plano FHC ainda não está definido, quando já o está. Só não está plenamente definido porque é um plano em três fases. A primeira e a segunda estão claras. A terceira só o estará dentro de aproximadamente dois meses, quando for implementada a reforma monetária. Certamente, porém, conterá a convertibilidade da nova moeda para o dólar.

Apesar da alta probabilidade de êxito do Plano FHC, desde que a conversão do salário-mínimo seja correta, há uma grande descrença na sociedade. Descrença que deriva dos fracassos anteriores, da complexidade do plano, e do fato de que este só apresentará resultados concretos no momento da reforma monetária. Enquanto isso a inflação não cairá, pelo contrário, sofrerá alguma aceleração. No momento da reforma, entretanto, a inflação inercial desaparecerá na nova moeda. E se a inflação residual for pequena, como se espera, será possível a médio prazo consolidar a estabilização. (Folha de S. Paulo, 28/2/94)

O REAL E O CICLO POLÍTICO

De acordo com o bom-senso e a teoria do ciclo político, no momento em que se aproximam as eleições o governo federal, que apoia Fernando Henrique, deveria procurar expandir a economia ou pelo menos evitar de todas as formas uma recessão. O próprio candidato deveria se opor a quaisquer medidas de aperto monetário e fiscal, que aumentariam o desemprego e dificultariam sua eleição. Este bom-senso eleitoral, no entanto, é essencialmente equivocado, por uma razão muito simples: a vitória de Fernando Henrique nas eleições presidenciais será assegurada pelo êxito do Plano Real (que é o seu plano), e este, por sua vez, só poderá ser vitorioso graças a uma estrita disciplina fiscal e monetária no segundo semestre deste ano.

É claro que os populistas de todos os matizes, que dominam a campanha dos demais candidatos, estão também presentes na de Fernando Henrique e no Palácio do Planalto. Todos brandindo a teoria do ciclo político, segundo a qual os governantes tendem a apertar os cintos e pôr a economia em ordem nos primeiros dois ou três anos de governo, para, no final, poder soltar as amarras e expandir a economia. Ora, essa estratégia é perfeitamente racional em países de moeda estável, em que a inflação, quando o dirigente político assume o governo, é altíssima (digamos, de 6% ao ano). Durante os dois primeiros anos o governante logra baixá-la para 4%, para, no final do seu mandato, deixá-la subir para algo em tomo de 5% e assim assegurar sua reeleição. Quando, entretanto, a inflação é de 45% ao mês, a situação muda de figura. A teoria do ciclo político deixa de funcionar, porque agora a melhor forma para o governante assegurar a sua reeleição ou a eleição de seus candidatos é combater e controlar a inflação. Não importa que esse combate implique algum desemprego adicional. O custo de continuar a empurrar com a barriga a crise é tão maior, que os dividendos eleitorais de controlar a inflação se tornam muito maiores do que o prejuízo político decorrente da recessão.

O governante poderia ainda hesitar se não dispusesse de meios para controlar a inflação. Mas este não é o caso. Através de um plano extremamente competente como é o Plano Real, temos condições efetivas de zerar a inflação nos próximos dias, já que o ajuste fiscal alcançado foi satisfatório para o momento, e a forma encontrada para se lidar com a inércia inflacionária - através da URV seguida de uma reforma monetária e de uma âncora cambial - é extremamente engenhosa. Através do mecanismo da URV foi possível evitar congelamentos e tabelas de conversão, e ao mesmo tempo permitir que, no dia 1º de julho, ocasião da reforma, os preços relativos estejam razoavelmente equilibrados, sem ninguém com seus preços adiantados ou atrasados.

Por outro lado, a economia durante a fase URV está se comportando de maneira muito favorável. Minha previsão pessoal era de que, nessa fase, a inflação se aceleraria moderadamente, na medida em que as empresas procurariam converter seus preços para valores acima da média. Não foi, entretanto, o que ocorreu, de forma que a inflação permaneceu, nestes últimos três meses, praticamente estável. A mudança de patamar - de 40% para 45% - ocorreu logo após o anúncio do plano em novembro passado, antes, portanto, das conversões para URV, que só foram autorizadas a partir de abril. Esta estabilidade da inflação é uma indicação segura de que os preços relativos estão equilibrados. Os eventuais desequilíbrios em nível de varejo ocorrem hoje tanto para cima quanto para baixo, e apenas refletem as dificuldades das empresas do setor em se adaptar a um novo sistema em que as margens reais devem ficar constantes, refletindo a alta competitividade das lojas, mas o lucro financeiro desaparece, sendo substituído por margens realistas.

Dentro desse quadro, seria absolutamente irracional do ponto de vista político pretender aplicar a teoria do ciclo político às atuais eleições. Na verdade, seria suicida. Fernando Henrique sabe muito bem disto, e é exatamente por essa razão que, na última semana, circulou a ideia de que não era tanto a sua candidatura que dependeria do êxito do plano, mas que o inverso também é verdadeiro. Ou seja, que Fernando Henrique terá tanto maior capacidade de evitar iniciativas populistas provenientes do Planalto ou de seus próprios companheiros de campanha no PSDB, no PFL e no PTB, quanto maior for sua força eleitoral pessoal nas próximas semanas.

Esta ideia supõe que um certo grau de irracionalidade existe em nível do governo federal e dos partidos da coligação que apoia Fernando Henrique. Irracionalidade que se baseia na recusa populista em se admitir trade-offs - ou seja, situações em que se perde alguma coisa para ganhar outra. Segundo esse tipo de raciocínio, que pretende ganhar de ambos os lados, seria possível obter êxito no Plano Real sem se manter a taxa de juros real em níveis muito altos nos meses imediatamente após a reforma monetária. O combate ao déficit público também não teria de ser radical, já que o perigo de uma bolha de consumo não existiria de fato, e algum déficit sempre poderia ser financiado.

Felizmente, entretanto, semelhantes sandices não são majoritárias nem no governo, nem na campanha. E Fernando Henrique tem a liderança necessária para evitar que esse tipo de raciocínio prevaleça. É preciso, porém, que a sociedade civil fique também atenta. E que não hesite em manifestar seu apoio a políticas. fiscais e monetárias muito rígidas nos próximos meses. A nação está hoje face a uma extraordinária oportunidade de alcançar a estabilização através do Plano Real. A equipe econômica é competente, o plano de estabilização é o melhor que já tivemos, o apoio que ele está recebendo de toda a sociedade, impressionante. Muitos ainda estão descrentes - têm dificuldade de compreender o mecanismo através do qual a estabilização ocorrerá-, mas todos estão esperançosos. E ninguém perdoará aqueles que, opondo-se ao plano por motivos políticos, possam eventualmente inviabilizá-lo, estejam eles no governo ou na oposição. (Folha de S. Paulo, 19/6/94)

REFERÊNCIAS

  • ARIDA, Pérsio. “Neutralizar a inflação, uma ideia promissora”. Economia e Perspectiva (Conselho Regional de Economia de São Paulo), junho de 1993.
  • ARIDA, Pérsio. “A ORTN serve apenas para zerar a inflação inercial”. Gazeta Mercantil, 19 de outubro de 1984.
  • ARIDA, Pérsio. “Economic stabilization in Brazil”. Trabalho apresentado ao Woodrow Wilson Center, Washington, novembro de 1994 (Economic Ossues Seminar Series, working paper nº 149).
  • ARIDA, P. e RESENDE, A. L. “Inertial inflation and monetary reform”. In J. Williamson (org.) Inflation and Indexation: Argentina, Brazil and Israel. Washington: Institute for International Economics, 1985. Originalmente apresentado em uma conferência em Washington, novembro de 1984.
  • ARIDA, Pérsio. “Nota sobre esquemas de desindexação e ancoragem”. São Paulo, 1993, cópia.
  • BRESSER-PEREIRA, L. e NAKANO, Y. “Política administrativa de controle da inflação”. Revista de Economia Política 4 (3), julho de 1984. Republicado em Inflação e Recessão. São Paulo, Brasiliense, 1984.
  • BRESSER-PEREIRA, L. C. “The failure to stabilize”. In Brazil: The Struggle for Modernization. Londres: Institute of Latin American Studies of the University of London. Versão atualizada deste trabalho será publicada no livro Economic Crisis and the State in Brazil. Boulder, Lynne Rienner Publishers, 1995.
  • LARA RESENDE, A. “A moeda indexada: uma proposta para eliminar a inflação inercial”, Gazeta Mercantil, 26, 27 e 28 de setembro de 1984.
  • LOPES, F. L. “Só um choque heterodoxo pode derrubar a inflação”. Economia em Perspectiva (Conselho Regional de Economia de São Paulo), agosto de 1984.
  • LOPES, F. L. “Inflação inercial, hiperinflação e desinflação”. Revista da ANPEC, nº 7, dezembro de 1984. Republicado em Lopes, F. L. Choque Heterodoxo: Combate à Inflação e Reforma Monetária. Rio de Janeiro, Campus, 1986.
  • LOPES, F. .L “O Plano Real - projeto de lei e suas implicações”. Macrométrica, outubro de 1988.
  • LOPES, F. L. O Desafio da Hiperinflação. Rio de Janeiro, Campus, 1989.
  • PAZOS, Felipe. Chronic Inflation. Nova York, Praeger, 1972.
  • SIMONSEN, M. H. Gradualismo X Tratamento de Choque. Rio de Janeiro, ANPEC, 1970.
  • 1
    A primeira fase do Plano Real - a fase do ajuste fiscal, colocado pela equipe como condição para as outras duas fases - estendeu-se de dezembro de 1993 a março de 1994. A segunda fase começou com a introdução da URV, no início de março de 1994, e foi constituída pela conversão dos preços para URVs. No dia 1º de julho iniciou-se a terceira fase, com a reforma monetária que criou o Real. Escrevi esta nota na primeira semana de agosto.
  • 2
    Mário Henrique Simonsen (1970)SIMONSEN, M. H. Gradualismo X Tratamento de Choque. Rio de Janeiro, ANPEC, 1970., com seus fatores realimentadores da inflação, foi um pioneiro da teoria da inflação inercial. Sua primeira formulação coube a Felipe Pazos (1972)PAZOS, Felipe. Chronic Inflation. Nova York, Praeger, 1972.. No início dos anos 80 ela foi de fato desenvolvida por um grupo de economistas da PUC do Rio de Janeiro (André Lara Resende, Edmar Bacha, Eduardo Modiano, Francisco Lopes, Pérsio Arida), da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (Bresser-Pereira e Yoshiaki Nakano) e da Universidade de São Paulo (Adroaldo Moura da Silva). Não é meu objetivo nesta nota citar os respectivos papers. Para isto ver Bresser-Pereira e Nakano (1986)BRESSER-PEREIRA, L. e NAKANO, Y. “Política administrativa de controle da inflação”. Revista de Economia Política 4 (3), julho de 1984. Republicado em Inflação e Recessão. São Paulo, Brasiliense, 1984. .
  • 3
    Esta proposta foi realmente formulada em 1983, quando o artigo “Política Administrativa de Controle da Inflação” foi escrito. Sua publicação na Revista de Economia Política aconteceu em julho de 1984BRESSER-PEREIRA, L. e NAKANO, Y. “Política administrativa de controle da inflação”. Revista de Economia Política 4 (3), julho de 1984. Republicado em Inflação e Recessão. São Paulo, Brasiliense, 1984. .
  • 4
    Foi através desta nota corajosa (“Só um Choque Heterodoxo Pode Derrubara Inflação”), publicada no boletim do Conselho Regional de Economia de São Paulo, que Chico Lopes cunhou o termo choque heterodoxo.
  • 5
    No artigo de setembro de 1993 para a Gazeta Mercantil, Neutralizar a Inflação, uma Ideia Promissora, Arida pela primeira vez sugeriu a reindexação como uma forma de neutralizar o caráter defasado dos aumentos de preços. No artigo de outubro de 1984ARIDA, Pérsio. “A ORTN serve apenas para zerar a inflação inercial”. Gazeta Mercantil, 19 de outubro de 1984., A ORTN Serve Apenas para Zerar a Inflação Inercial, escrito após a proposta de uma moeda indexada de Lara Resende (setembro 1984), Arida apresentou a ideia de dividir a reforma monetária em duas fases: uma de sincronização dos preços e consequente neutralização da inércia, e outra de reforma monetária propriamente dita. Dada a relação de amizade entre os dois economistas, e o fato de trabalharem em conjunto com frequência, está claro que a ideia da moeda indexada ou da indexação total da economia foi resultado dessa colaboração.
  • 6
    A história dos primeiros planos de estabilização foi contada por Francisco Lopes (1989)LOPES, F. L. O Desafio da Hiperinflação. Rio de Janeiro, Campus, 1989..
  • 7
    Foram ortodoxos os planos Feijão com Arroz (1988), Collor I (março 1990), Ibrahim Eris (maio-dezembro 1990), e Marcílio Marques Moreira (1991-1992). O Plano Collor I, embora contivesse um congelamento, não possuía tabelas de conversão, e o controle dos preços foi logo abandonado. A estratégia era essencialmente monetária, baseada no confisco e no congelamento dos ativos financeiros. Quando esse confisco não se revelou suficiente, o Plano Eris, que pode também ser visto como a segunda fase do Plano Collor I, adotou uma âncora monetária.
  • 8
    Para uma análise dos 12 planos anteriores ver Bresser-Pereira (1993), The Failure to Stabilize. Este trabalho é uma versão ampliada de “1992 -Estabilização Necessária”. Revista de Economia Política 12(3), julho-setembro 1992. Nesse segundo trabalho explico o fracasso dos 12 planos seja porque lhes faltou apoio político, seja porque foram incompetentemente concebidos. No primeiro caso, a dificuldade em realizar o ajuste fiscal constituiu-se no principal obstáculo; no segundo caso, a incapacidade de lidar com a inércia inflacionária foi o fator dominante.
  • 9
    Este artigo foi publicado em um domingo. Durante a semana saíram na imprensa as primeiras notícias sobre o indexador diário. Todas elas afirmavam que haveria um redutor gradual nesse indexador. Neste artigo que escrevi sem qualquer inside information afirmo que a ideia do redutor era falsa, incompatível com a competência técnica da equipe econômica. No dia em que o artigo foi publicado, o governo afinal informou a imprensa que, de fato, não haveria qualquer redutor no indexador. Verifiquei depois que uma parte da equipe fora realmente favorável ao redutor, mas afinal prevaleceu a competência dos formuladores principais do plano.
  • 10
    Este artigo foi escrito com o objetivo de dissuadir a equipe de seu intento inicial de deixar a fase-URV por um período de aproximadamente oito meses. Minha preocupação era a de que houvesse não apenas uma aceleração da inflação, quede fato ocorreu, mas a própria inercialização dessa inflação, o que seria grave. Conversei inclusive com Pérsio Arida, que se convenceu de meus argumentos.
  • 11
    Este artigo foi escrito com o objetivo de fortalecer a posição do Ministro da Fazenda, que enfrentava a descrença inclusive dentro de sua própria equipe. Esta, como uma parte ponderável das elites brasileiras, exagerava os obstáculos políticos e o populismo do presidente Itamar Franco, não percebendo que as condições políticas para um plano de estabilização haviam melhorado sensivelmente nos últimos anos.
  • 12
    Este é um artigo essencialmente político. Nele previ que Fernando Henrique Cardoso seria candidato e qual seria o argumento que lhe seria apresentado para justificar sua saída do Ministério da Fazenda: a necessidade de consolidar o plano em 1995. Ambas as previsões foram confirmadas.
  • 13
    Neste artigo inverti o argumento apresentado anteriormente (O Risco da Inflação em URVs) e procurei demonstrar que os temores, que assaltavam a equipe, de uma explosão inflacionária com a adoção de um índice instantâneo eram improcedentes. Haveria uma aceleração inflacionária, mas nada semelhante ao previsto em modelos puramente teóricos.
  • 14
    JEL Classification: E31; E52; E58.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1994
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