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As empresas francesas e o financiamento da industrialização do Brasil* * Traduzido por Tamás Szmrecsányi.

French companies and the financing of industrialization in Brazil

RESUMO

Este pequeno artigo faz parte de uma comunicação sobre empresas francesas na América espanhola. Este é apenas sobre o Brasil. No Brasil, tivemos duas oportunidades de estudar a história dos investimentos franceses naquele país durante os séculos XIX e XX. Aqui estamos passando de um ponto de vista macroeconômico e global para um ponto de vista microeconômico e de empreendedorismo. A posição francesa no Brasil desde 1800 pode ser retomada em algumas palavras: presença demográfica muito fraca, mas muito forte cultural e econômica. Dessa presença econômica, não estudamos o aspecto comercial, mas apenas o financeiro. Parece conveniente lembrar ao público algumas características típicas desse aspecto financeiro antes de examinar alguns tipos de empresas francesas que se dedicam à economia brasileira.

PALAVRAS-CHAVE:
Industrialização brasileira; investimento estrangeiro; história econômica do Brasil

ABSTRACT

This small article is part of a communication about French firms in Spanish America. This one is only about Brazil. On Brazil we had two opportunities to study the history of French investments in that country during the XIXth and XXth centuries. Here we are passing from a macroeconomic and global to a microeconomic and entrepreneurship point of view. The French position in Brazil since 1800 can be resumed in some words: a very weak demographic presence but a very strong cultural one and an economic one in between. Of that economic presence we did not study the commercial aspect but only the financial one. It looks convenient to remember to our public some typical features of this financial aspect before examining some types of French firms that engaged in the Brazilian economy.

KEYWORDS:
Industrialization of Brazil; foreign investment; economic history of Brazil

Anteriormente a este trabalho, já tivemos uma oportunidade de estudar a história dos investimentos franceses no Brasil desde o século XIX.1 1 ‘F. Mauro, “Les Investissements Français au Brésil (XIX’ et XX’ siecles)”, in CNRS, La préindustrialisation du Brésil, Paris, l 984, pp. 145-157. Por esse motivo, poderemos logo passar de uma perspectiva macroeconômica para considerações microeconômicas e empresariais.

A posição da França no Brasil a partir de 1800 pode ser resumida em poucas palavras: uma fraca presença demográfica contrastando com uma fortíssima presença cultural, e uma presença econômica situada num nível intermediário em relação às duas anteriores.2 2 Cf. Mario Carelli, Cultures croisées: histoire des échanges culturels entre la France et le Brésil, de la découverte aux temps modernes. Paris, 1993. Dessa presença francesa, deixaremos de lado os aspectos comerciais, limitando-nos a analisar os financeiros. Assim, pareceu-me conveniente, numa primeira parte, salientar algumas características gerais dessa dimensão financeira, antes de examinar, na segunda, os tipos de empresas francesas que têm investido na economia brasileira.

1. TENDÊNCIAS GERAIS

O melhor é dividirmos estes dois últimos séculos em três períodos: antes de 1914, entre 1914 e 1960, e depois de 1960.

O primeiro deles corresponde às três fases iniciais da Revolução Industrial (capitalismo patrimonial; sociedades anônimas; e capitalismo financeiro representado pelos bancos e trustes, pelas fusões e holdings, e pelo domínio dos cartéis). Mas a situação é muito diversa antes de 1873 (quando ainda estavam em decadência os primeiros impérios coloniais europeus) e depois daquele ano (a partir do qual se deu a grande expansão da Europa pelo mundo). Essa distinção é particularmente significativa no que se refere às relações econômicas entre a França e o Brasil.

Antes de 1873, tivemos, com a transferência da corte portuguesa em 1808, a abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional, uma operação da qual foi a Grã-Bretanha que mais se beneficiou. Apesar disso, acorreram então ao Brasil numerosos demi-soldes (antigos militares franceses dos exércitos de Napoleão, aposentados com metade de seu soldo), os quais se estabeleceram no país como comerciantes e negociantes de todo tipo. É isso que explica a grande expansão do comércio lojista francês no Rio de Janeiro daquele tempo, representado por empresas de confecções, vendedores de perfumes, cabeleireiros etc. Por causa dela, chegou-se até a indagar se as novas tarifas alfandegárias, que vigoraram entre 1844 e 1860, tiveram apenas propósitos fiscais, ou se chegaram também a produzir efeitos econômicos e protecionistas numa indústria nascente. A resposta me parece definitivamente negativa.

A partir de 1873, a situação muda consideravelmente. Entre 1873 e 1896, a economia mundial sofreu a chamada Grande Depressão, uma fase (b) do ciclo de Kondratieff. Na França, a taxa de juros baixou então para 4% ao ano, fazendo com que os investidores olhassem para fora da Europa, à procura de taxas mais remuneradoras. Um exemplo dessas alternativas era o Brasil, levando o governo francês a criar um Banque Française du Brésil, com um capital de 10 milhões de francos. Esse estabelecimento tornou-se lucrativo a partir de 1880, e mais ainda depois de 1900. Entre 1902 e 1914, os investimentos franceses na América Latina duplicaram, crescendo ainda mais acentuadamente no Brasil, cuja participação no total latino-americano passou de 21 a 42 por cento. Além disso, a parcela dos investimentos diretos expandiu-se tão rapidamente que, em 1913, chegou a ultrapassar a dos empréstimos públicos, os quais, até 1902, sempre haviam sido bem maiores do que eles.

Esses investimentos franceses apresentavam três características fundamentais: (a) eles eram suficientemente remuneradores para interessar o público investidor francês; embora fossem baixas as taxas de juros (em média 5% ao ano), os retornos eram relativamente rápidos em prazos de amortização que iam de trinta e cinquenta anos; (b) a partir de 1904, apareceram os títulos “exclusivamente franceses”, mas muitos deles, adquiridos por franceses, eram, na realidade, títulos ingleses ou alemães; (c) desde o início, o sistema bancário francês mostrou-se insuficiente, o que levaria à criação, em 1909, do Banque Française et Italienne pour l’Amérique du Sud (o atual Banco SUDAMERIS).

Por sua vez, as três principais áreas de destino desses investimentos foram: (1) as ferrovias, com a criação de seis companhias específicas, e da Société Franco-Sud­ américaine de Travaux Publics (Paris, 1910), com um capital de 3 milhões de francos, para a construção de estradas de ferro no Estado da Bahia; (2) os bancos: em 1896 existiam no Rio de Janeiro 64 grandes empresas comerciais francesas, mas, dez anos antes, o número delas havia sido dez vezes maior. Esse decréscimo era atribuído à ausência de bancos franceses naquela cidade, justificando a criação de alguns a partir do final do século. Já fizemos referência ao Banque Française du Brésil (1872) e ao Banque Française et ltalienne pour l’Amérique du Sud (1909), mas entre ambos também surgiram o Banque Nationale du Brésil (1893) e o Crédit Foncier du Brésil et de l’Amérique du Sud; (3) os portos: em 1908 foram fundadas a Société de Construction du Port de Pernambouc, a Société Française du Port de Rio Grande do Sul e a Compagnie du Port de Rio de Janeiro.

Essa enumeração mostra a importância das obras de infraestrutura para as empresas francesas que operavam no Brasil naquela época. Em 1913, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, os investimentos franceses no Brasil já montavam a 3,5 bilhões de francos (total acumulado). Nove anos mais tarde, ao final de 1922, esse montante tinha subido para pouco mais de 4 bilhões, assim distribuídos: empréstimos públicos: 2,5 bilhões de francos, bancos: 170 milhões, ferrovias: 1.250 milhões, e indústria: 138 milhões.

Entre 1922 e 1960, o Brasil parece ter enfrentado muitas dificuldades para saldar os seus débitos externos. Foi isso que levou a França a vetar seu ingresso na Sociedade das Nações. Em 1938, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, aquele país tinha investido na América Latina um total de 11,3 bilhões de francos, dos quais 3,4 bilhões se localizavam no Brasil, e 4 bilhões na Argentina. Desde aquela época houve desinvestimentos e, até 1960, não voltariam a ocorrer novos investimentos franceses.

O último período, de 1960 em diante, corresponde à Quinta República Francesa, e tem sido caracterizado por um intenso progresso, refletido na subdivisão dos fluxos em: (a) capitais oficiais, compreendendo empréstimos do Tesouro Público francês a entidades públicas estrangeiras, ou desconto de títulos relativos a expor­ tações por prazos superiores a cinco anos pelo Crédit National, bem como a consolidação ou refinanciamento desses mesmos créditos; (b) créditos garantidos de fornecimento, concedidos pela COFACE (Compagnie Française d’Assurance pour le Commerce Extérieur), os quais têm sido muito importantes para o Brasil e para a Argentina, que, em conjunto, chegaram a absorver 45% do total desses créditos no início dos anos 60; e (c) investimentos privados, previamente autorizados pelo governo francês, o qual, no entanto, tem sido bastante liberal nesse campo, permitindo que os lucros desses investimentos possam ser reinvestidos nas mesmas empresas.

A partir de 1962, podemos acompanhar a evolução dos referidos investimentos através da divulgação periódica de dados do balanço de pagamentos pelo Ministério da Economia e das Finanças. As características gerais de tais investimentos podem ser sintetizadas em poucas palavras. Uma boa parte deles vincula-se ao licenciamento de produtos franceses para empresas brasileiras; outra tem sido utilizada para a criação de subsidiárias, levando à multinacionalização de empresas francesas que, em vez de exportar, passam a preferir a produção in loco.3 3 Para maiores informações a este respeito, veja-se meu trabalho anterior citado na nota 1.

2. TIPOS TRADICIONAIS

Entre as modalidades mais antigas de investimentos franceses no Brasil, têm se destacado de um lado os investimentos no comércio, e do outro os investimentos produtivos indiretos.

Os primeiros foram muito frequentes no comércio varejista durante o século XIX, particularmente na cidade do Rio de Janeiro. Eles deram origem naquela cidade a uma importante comunidade francesa, a qual, por sua vez, criaria a atmosfera necessária para o estabelecimento de empresas maiores: comerciais, bancárias, de seguros marítimos, importadoras e exportadoras etc. Algumas dessas empresas tiveram, simultaneamente, mais de uma das referidas funções. De um modo geral, não se viram tentadas a entrar na indústria, antes do final do século, por falta de aptidões para tanto. Elas se sentiam competentes no comércio, mas não em atividades industriais, e nós sabemos quão diversos entre si são esses dois setores da economia.

O comércio marítimo entre a França e o Brasil era fomentado pelos cônsules daquele país sediados nos diversos portos brasileiros, inclusive naqueles que ainda não tinham muitos lojistas franceses. Como exemplo deste último, pode-se tomar o caso de Fortaleza, cuja empresa comercial de origem francesa foi objeto há poucos anos de uma tese de doutorado.4 4 Denise Monteiro Takeya, Europa, França e Ceará: origem do capital estrangeiro no Brasil (São Paulo: Editora Hucitec, 1995). Trata-se da história da Casa Boris Freres, cujos proprietários eram uma família judia que teve de emigrar da Alsácia-Lorena, após a sua anexação pela Alemanha, em decorrência da guerra franco-prussiana de 1870.

Os três irmãos Boris haviam se deslocado primeiro para Paris, onde, em 1872, fundaram a empresa Maison Boris Frêres. Esta casa comercial era uma sociedade geral com um capital de 300 milhões de francos. Seus proprietários decidiram logo criar uma subsidiária em Fortaleza, o porto do Norte brasileiro de mais fácil acesso, e cidade-capital de uma região rica e subpovoada. Ali operariam primeiro como “comissários de mercadorias”, tornando-se mais tarde agentes de companhias de seguros e de navegação e, muito rapidamente, cônsules da França na região. Finalmente, implantaram uma indústria beneficiadora de produtos de exportação, procedentes de um setor agropecuário em vias de desenvolvimento e de diversificação, e compreendendo gêneros como açúcar, algodão, café e artigos de couro.

As atividades deles eram apoiadas pelo entreposto de Recife, especialmente na importação de produtos franceses, cujo volume foi crescente até 1929. Os irmãos Boris acabaram conquistando uma posição privilegiada face a seus competidores brasileiros, franceses ou de outras nacionalidades. Uma das principais razões disso residia no fato de se haverem tornado banqueiros de uma economia carente de capitais, mantendo fortes laços com a população e os comerciantes rurais. Mesmo assim, durante a grande seca de 1877-79, eles ganharam bastante dinheiro ao deixarem subir os preços dos alimentos.

Já o melhor exemplo de investimento produtivo indireto foi a Brazil Railway Company, cujas atividades se estenderam de 1900 a 1930.5 5 Cf. Flávio A. M. de Saes, “Os investimentos franceses no Brasil: o caso da Brazil Railway Company (1900-1930)”, in Frédéric Mauro (ed.), Transport et commerce en Amérique Latine (Paris: Eds. l’Harmattan, 1990) pp. 91-108. Esta era uma empresa nominalmente norte-americana, mas de fato muito próxima à França, já que diversos investidores franceses haviam adquirido ações desta holding, que pretendia congregar todas as empresas ferroviárias do Sul brasileiro. Em 1916, essas aplicações representavam um quarto de todos os investimentos franceses no Brasil.

Tratava-se de uma empresa holding com algumas características peculiares, que ajudam a entender o seu desenvolvimento através do tempo: (1) os estatutos da companhia haviam sido registrados no Maine, um dos estados norte-americanos de legislação societária mais liberal, no qual a criação de uma sociedade anônima exigia um capital mínimo de apenas 900 dólares; (2) seus fundadores foram pagos em ações, que nada custaram à empresa - um sistema tido, mesmo naqueles tempos, como bastante controverso; e (3) entre 1906 e 1913, a companhia teve uma fase de expansão, seguida, de 1914 a 1917, por uma crise e uma reorganização, através da qual foi transformada, a partir de 1919, numa sociedade eminentemente financeira, cada vez mais distante das atividades produtivas das empresas que congregava.

Dessa experiência da Brazil Railway Company, podemos extrair as seguintes conclusões:

  1. Os investidores franceses não tinham controle de seus investimentos no exterior, particularmente no Brasil, a despeito dos esforços desenvolvidos neste sentido pelo governo de seu país de origem;

  2. Esses investimentos eram, acima de tudo, financeiros; consequentemente, permaneceram submetidos às flutuações financeiras da economia brasileira e, mais particularmente, às do governo federal. Os investidores franceses confiavam mais nas “garantias de juros” do que na performance econômica da empresa. Consequentemente, o malogro dos investimentos franceses vinculou-se mais à sua dimensão financeira do que a uma falta de robustez econômica;

  3. Após a Primeira Guerra Mundial, a desvalorização do franco francês, em relação à libra esterlina, permitiu aos brasileiros reduzir suas dívidas às expensas dos investidores da França, até que a Corte de Haia os obrigou a saldarem seus débitos em francos-ouro;

  4. Esses investimentos franceses foram feitos originalmente para melhorar as exportações de produtos agropecuários, isto é, de produtos do setor tradicional, em nada contribuindo para promover a transformação da economia brasileira; esta padecia então de uma crescente carência de divisas estrangeiras, a qual iria desembocar numa situação de permanente insolvência.

3. UM GRANDE INVESTIMENTO DIRETO

O investimento direto que deu origem ao “império” da empresa Bouilloux­ Lafont6 6 Cf. Flávio Somogyi, “Un exemple de la présence française au Brésil: l’Empire Bouilloux-Lafont”, in F.Mauro, Transport et commerce en Amérique Latine, op. cit, pp. 109-24. merece um capítulo à parte. Conforme já assinalamos, em 1907, foi criada em Paris a empresa bancária Crédit Foncier du Brésil et de l’Amérique du Sud. Tratava-se do início das atividades no Brasil do grupo financeiro da Caísse Commerciale et Industrielle de Paris, cujas empresas foram constituídas em sua maioria entre 1907 e 1914. Neste último ano, seu capital montava a 326 milhões de francos - ou seja, o equivalente a cerca de 10% do valor dos investimentos franceses no Brasil. Entre 1918 e 1930, esse capital foi multiplicado por seis. As concessões de obras portuárias seguiam-se umas às outras e, graças a isso, Bouilloux-Lafont criou a Compagnie Aéropostale e a Société Générale d’Aviation. Em 1932, o capital do grupo no Brasil montava a 1,2 bilhão de francos franceses, acrescidos de 180 mil contos de réis. A história de sua trajetória nesse país pode ser divida em três períodos: de 1906 a 1914, de 1918 a 1930, e depois de 1930.

As atividades do grupo, entre 1906 e 1914, foram muito semelhantes às dos demais investidores franceses no Brasil, desenvolvendo-se essencialmente em três campos:

  1. No setor bancário: o Crédit Foncier, produto da fusão de três bancos comerciais da França, foi na época o mais importante estabelecimento bancário francês em funcionamento no Brasil. Um outro banco francês de renome era o Banque du Crédit Hypothécaire de l’État de Bahia, resultante da aquisição de uma empresa brasileira do ramo, e instrumento de apoio à produção e às exportações de cacau daquele Estado. Essa nova fonte de lucros comerciais pode ter desviado capitais de uma eventual industrialização da Bahia, uma região na qual a vocação industrialista das elites ainda não era muito forte.

  2. Em estradas de ferro: a Compagnie des Chemins de Fer Fédéraux de l’Est Brésilien foi a única empresa ferroviária puramente francesa em funcionamento no Brasil. Por sua vez, a Société Franco-Sud-Américaine de Travaux Publics encarregava-se dos trabalhos de infraestrutura. Nenhuma dessas duas empresas chegava a constituir um bom negócio, e ambas tiveram a sua tábua de salvação nas garantias de juros do governo federal.

No porto de Salvador, cuja concessionária, a Bahia Docks Ltd., havia sido criada por capitalistas brasileiros em 1871. Depois de falir, teve seus ativos adquiridos por uma empresa anglo-francesa, que levantou um empréstimo no mercado financeiro francês e também faliu. Em 1916, Bouilloux-Lafont decidiu-se a tomar em mãos a empresa.

A expansão do grupo entre 1918 e 1930 pode ser examinada através dos três setores acima mencionados. O bancário expandiu-se, inclusive através da aquisição, em 1927, do Banco Estadual de Sergipe, que foi criado naquele estado quatro anos antes. No setor ferroviário, deu-se o mesmo, com a adição de 2 mil quilômetros às linhas do grupo até 1920, ano em que essa expansão se interrompeu. Naquele mesmo ano, o porto da capital baiana tornou-se um dos maiores do Brasil, mas logo passou a enfrentar dificuldades, devido à redução do valor das exportações de cacau. Em 1923, foi criada pelo grupo a Compagnie Brésilienne de Ports, para a melhoria dos portos do Rio de Janeiro, de Niterói e de Angra dos Reis, também tendo sido assinado um contrato para a reforma do porto de Vitória. Esses trabalhos estenderam-se até 1931, quando foram interrompidos pela falência do grupo.

Em 1930, o grupo Bouilloux-Lafont havia chegado a constituir um verdadeiro império no Brasil. Mas, no ano seguinte, ele desmoronou, tal como um castelo de cartas. Sua falência pode ser atribuída a três razões: a eclosão da crise mundial de 1929-30, num momento em que a estrutura organizacional do grupo já era muito arcaica; a personalidade de Marcel Bouilloux-Lafont e suas disputas com o novo regime inaugurado por Vargas; e as constantes necessidades de dinheiro da Compagnie Aéropostale, uma das integrantes do império do grupo.

4. INDÚSTRIAS QUE FICARAM

Há quem pense que a industrialização substitutiva de importações só começou no Brasil com a crise dos anos 30. Dentro dessa perspectiva, as indústrias existentes no país antes daquela época foram unicamente induzidas pelas exportações. Coube, entre outros, a Flávio Versiani a demonstração da insubsistência dessa hipótese, ao apontar para a substituição das importações de tecidos e de artefatos de algodão já no final do século XIX7 7 F. R.Versiani, “ Industrialização e Economia de Exportação : a Experiência Brasileira antes de 1914”, Revista Brasileira de Economia, 34 (1), jan-mar 1980, pp-3-40. Nessa época, casas importadoras, cansadas das flutuações do câmbio e das políticas aduaneiras, resolveram investir parte dos seus capitais na fabricação local das mercadorias que até então apenas importavam. Vimos, porém, no início da primeira parte deste trabalho, que nem todas tiveram essa vocação industrializante.

Algo bem diverso é o que iria ocorrer com as duas grandes empresas que chamamos de “monstros sagrados” dos investimentos industriais franceses no Brasil: a Pont-à-Mousson e a Rhône-Poulenc.

A primeira é, até hoje, uma das maiores empresas metalúrgicas francesas, sediada numa pequena cidade a poucos quilômetros ao norte de Nancy. Antes da Primeira Guerra Mundial, essa empresa exportava ao Brasil canos de ferro para obras públicas. Em 1911, por exemplo, quando se implantou o abastecimento de água da cidade de Fortaleza, ela vendeu tais canos à municipalidade por intermédio da Casa Boris. Tratava-se do pré-requisito da concessão de um empréstimo francês para custear as obras programadas.

Mas, já entre as duas Grandes Guerras, Pont-à-Mousson construiu uma fábrica em Minas Gerais, passando a produzir seus canos no Brasil. Nessa época, a Empresa estava começando a competir com os fabricantes de canos feitos de cimento, um fator que poderia explicar a decisão de abrir a referida fábrica no Brasil. Convém lembrar, no entanto, que tal decisão estava em consonância com a política econômica do governo federal na década de 1930, favorável à industrialização substitutiva de importações.8 8 Sobre a história dessa empresa, veja-se a tese de Alain Baudant, Pont-à-Moussun, 1918-1939: stratégies industrielles d’une dynastie lorraine (Université de Paris X, 1980), 507 pags.

Por sua vez, a Rhône-Poulenc teve como precursora, em 1914, uma empresa de Lyon conhecida pela sigla SCUR. Tratava-se da Société Chimique des Usines du Rhône, uma de cujas principais atividades era a fabricação de lança-perfumes para o Carnaval do Rio de Janeiro e de outras cidades brasileiras. Desde 1912, ela estava enfrentando uma pequena crise, que culminaria, dois anos mais tarde, com a promulgação de novas taxas aduaneiras pelo governo do Brasil. E este foi o principal motivo pelo qual a empresa enviou, em junho de 1914, uma missão a São Bernardo, nas vizinhanças de São Paulo, para comprar um terreno com o fim de ali construir uma fábrica, e assim estar a postos para uma previsível substituição de importações.

A Primeira Guerra Mundial deteve esse projeto, e os lança-perfumes foram substituídos nas exportações da SCUR por fenol. Depois do conflito, a firma francesa voltou a exportá-los, mas, já em 1919, ocorreu a criação da Companhia Química Rhodia Brasileira, da qual a SCUR detinha 80% das ações, cabendo a empresários locais os restantes 20%. O terreno em que se instalou sua fábrica tinha 170 mil metros quadrados, e a produção inicial incluía, junto com os lança-perfumes e a “rhodine”, o estratégico ácido sulfúrico.

Nos primeiros anos, a SCUR teve de bancar sua subsidiária do Brasil, que só começou a dar lucros a partir de 1925. Mas, já em 1928, ela pagou 3 milhões de francos de dividendos à matriz. Naquele mesmo ano deu-se a fusão da SCUR com a Société Poulenc. Em 1961, o grupo Rhône-Poulenc transformou-se numa holding, a qual, durante a década seguinte, foi dividida em diversos departamentos, cada um agrupando várias subsidiárias. O departamento brasileiro reunia, no início, cinco dessas empresas, e logo se tornou o mais lucrativo de todo o grupo. Devido a isso, o número de subsidiárias tem crescido constantemente deste então.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Tem havido, sem dúvida, uma apreciável evolução no comportamento das empresas francesas que investiram no Brasil, e, por isso, é bastante difícil comparar aquilo que havia no final de século XIX com o que foi feito logo após a Segunda Guerra Mundial. Contudo, alguns fatos e algumas características parecem ter sido permanentes: por exemplo, a importância das obras públicas e o papel desempenhado pelos engenheiros franceses9 9 Aspecto que realçamos no trabalho citado na nota 1 deste artigo, tomando como exemplo o caso de Alphonse Guérard, engenheiro-chefe da Ponts-et-Chaussées, que foi mais um consultor do que apenas gerente. De um modo geral, o caso do Brasil mostra algumas especificidades, mas também alguns traços comuns, em relação à América Latina como um todo.

Cabe ainda fazer uma outra observação: nossa análise do caso brasileiro está longe de ter sido exaustiva. Limitamo-nos a indicar algumas das diversas abordagens das relações entre as empresas francesas no seu país de origem e a forma de intervenção delas no Brasil. Não nos preocupamos muito com o tipo de bens produzidos por elas. Sabemos, no entanto, que os problemas da Danone - uma indústria de alimentos - são bem diferentes dos da Pont-à-Mousson e da Rhône­ Poulenc, para não falar dos da Brazil Railway Company.

Tampouco examinamos o caso das patentes e dos licenciamentos, que atualmente desempenham um papel semelhante aos dos engenheiros franceses do final do século XIX e da primeira metade do atual. Tanto as primeiras como os segundos são hoje em dia muito numerosos, configurando em si um capítulo especial de qualquer listagem das empresas francesas em funcionamento no Brasil. A importância de ambos tem crescido ultimamente devido a medidas do governo brasileiro para restringir, cada vez mais, a participação de insumos e de mão-de-obra da França nas fábricas francesas localizadas no país. Mas, está é uma questão que exigiria um artigo à parte.

Para finalizar, continuamos impressionados com a desproporção que existe entre a limitada importância das empresas francesas no Brasil e o impacto humano que elas exercem na cultura e na nação brasileiras, bem como na opinião pública. Essa desproporção pode ser explicada pelo fato de a indústria francesa nunca ter sido dominante no Brasil, desempenhando antes um papel compensatório face ao peso econômico das empresas inglesas e norte-americanas. Cumpre lembrar que essa já era a posição da França em Portugal antes de 1800.

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  • 1
    ‘F. Mauro, “Les Investissements Français au Brésil (XIX’ et XX’ siecles)”, in CNRS, La préindustrialisation du Brésil, Paris, l 984, pp. 145-157.
  • 2
    Cf. Mario Carelli, Cultures croisées: histoire des échanges culturels entre la France et le Brésil, de la découverte aux temps modernes. Paris, 1993.
  • 3
    Para maiores informações a este respeito, veja-se meu trabalho anterior citado na nota 1.
  • 4
    Denise Monteiro Takeya, Europa, França e Ceará: origem do capital estrangeiro no Brasil (São Paulo: Editora Hucitec, 1995).
  • 5
    Cf. Flávio A. M. de Saes, “Os investimentos franceses no Brasil: o caso da Brazil Railway Company (1900-1930)”, in Frédéric Mauro (ed.), Transport et commerce en Amérique Latine (Paris: Eds. l’Harmattan, 1990) pp. 91-108.
  • 6
    Cf. Flávio Somogyi, “Un exemple de la présence française au Brésil: l’Empire Bouilloux-Lafont”, in F.Mauro, Transport et commerce en Amérique Latine, op. cit, pp. 109-24.
  • 7
    F. R.Versiani, “ Industrialização e Economia de Exportação : a Experiência Brasileira antes de 1914”, Revista Brasileira de Economia, 34 (1), jan-mar 1980, pp-3-40.
  • 8
    Sobre a história dessa empresa, veja-se a tese de Alain Baudant, Pont-à-Moussun, 1918-1939: stratégies industrielles d’une dynastie lorraine (Université de Paris X, 1980), 507 pags.
  • 9
    Aspecto que realçamos no trabalho citado na nota 1 deste artigo, tomando como exemplo o caso de Alphonse Guérard, engenheiro-chefe da Ponts-et-Chaussées, que foi mais um consultor do que apenas gerente.
  • 11
    JEL Classification: N66; N63; N76; N73.
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Traduzido por Tamás Szmrecsányi.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1999
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