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Estabilidade Dinâmica e Transformações dos Regimes Monetários Internacionais* * Tradução de Danielle Ardaillon.

Dynamic Stability and Changes in International Monetary Regimes

RESUMO

Neste artigo, o autor discute a dinâmica dos regimes monetários internacionais. Em oposição à economia convencional, esses regimes são vistos como instituições históricas irreversíveis, caracterizadas por uma instabilidade estrutural. Eles são definidos pelo grau de rigidez cambial, pela mobilidade dos capitais e pelo peso dos objetivos internos na função de preferência dos governos. Sua dinâmica é baseada em uma sequência irreversível definida pela crescente degradação dos ajustes macroeconômicos, levando ao acúmulo de tensões e a uma instabilidade estrutural, à medida que a economia mundial muda, e finalmente a questionar os princípios fundadores do regime monetário internacional.

PALAVRAS-CHAVE:
Regime monetário; política monetária; integração econômica; euro

ABSTRACT

In this paper the author discusses the dynamics of the international monetary regimes. In opposition to mainstream economics, these regimes are seen as irreversible historical institutions characterized by a structural instability. They are defined by the degree of exchange rate rigidity, by the mobility of capitals, and by weight of internal objectives in the preference function of governments. Their dynamics is based on an irreversible sequence defined by the increasing degradation of macroeconomic adjustments, leading to the accumulation of tensions and to a structural instability, as the world economy changes, and finally to questioning the founding principles of the international monetary regime.

KEYWORDS:
Monetary regime; monetary policy; economic integration; euro

Em economia monetária internacional, a irreversibilidade é um tema tão vasto, diverso e árduo, que seria temerário querer uma visão de conjunto. Adota-se aqui um procedimento muito mais modesto. Partindo de três exemplos, sugere-se na primeira parte deste trabalho que a irreversibilidade dos processos econômicos não pode ser analisada dentro de um quadro teórico qualquer. No domínio da economia monetária internacional, o regime monetário parece ser o instrumento de análise mais pertinente. A segunda parte é dedicada à apresentação das características dos regimes monetários internacionais necessários para tratar dos problemas de irreversibilidade. As três últimas partes trazem luz sobre três fenômenos que ilustram o tema geral e fazem uso das ferramentas analíticas da segunda parte. A terceira parte aborda as propriedades da assimetria de um regime que tem uma moeda dominante, um país líder e câmbios fixos, bem como a robustez da hegemonia e as circunstâncias que levam à sua deterioração. A quarta parte examina os problemas de estabilização macroeconômica num regime monetário (ajustamento funcional) e os processos irreversíveis que alteram esses ajustes. Para tanto serão estudadas as relações entre os Estados Unidos e os outros grandes países da OCDE no final do sistema de Bretton-Woods. Na quinta parte, analisa-se o problema da continuidade e das rupturas na transição entre regimes monetários. O campo de observação é fornecido pela passagem do SME (Sistema Monetário Europeu) à união monetária europeia.

I. MOEDA INTERNACIONAL E IRREVERSIBILIDADE: TRÊS EXEMPLOS

Na história das relações monetárias internacionais, saber se certos processos são irreversíveis ou não é objeto de debates sem fim. Os pontos de vista dependem das hipóteses feitas para se representar o sistema monetário internacional e do horizonte temporal considerado.

Primeiro exemplo: é a paridade dos poderes de compra (PPA) que regula o funcionamento do mercado de câmbio? Vários teóricos acreditam que sim. As flutuações observadas nos mercados de câmbio são sobre ajustamentos reversíveis. Modificações nas taxas de câmbio reais podem ocorrer, mas seus determinantes são independentes dos ajustamentos monetários. Eles provêm de evoluções no gosto dos consumidores, das técnicas de produção e das dotações fatoriais. Chega-se à concepção tradicional do equilíbrio evolutivo. É uma transformação da neutralidade da moeda a longo prazo. Os elementos de irreversibilidade são exógenos e não têm incidências sobre a lógica do sobre ajustamento e da volta ao equilíbrio. Outros economistas observam, por outro lado, que as taxas de câmbio desviam de maneira sistemática e durável de qualquer medida de PPA. Os mercados de câmbio não parecem ter a PPA como ponto de referência das antecipações. As taxas de câmbio evoluem segundo modelos de antecipações e segundo atitudes face aos riscos que dependem estreitamente das regras adotadas pelas autoridades monetárias para conduzir a política econômica. Isso leva a modelos nos quais o nível da taxa de câmbio a médio prazo depende da trajetória e, notadamente, das escolhas das autoridades monetárias. Assim, a PPA não é o mecanismo universal dos câmbios flexíveis. É no máximo aquele de um regime monetário muito peculiar, definido por uma perfeita mobilidade dos capitais e uma separação estrita das demandas de moeda. Além disso, os determinantes a longo prazo das taxas de câmbio reais não são também independentes das trajetórias de taxas de câmbio. A experiência do Japão e de outros países asiáticos mostrou amplamente que a subavaliação sistemática real da taxa de câmbio durante toda uma fase do desenvolvimento era uma condição poderosa para atingir um crescimento rápido e para segurar taxas de investimentos muito elevadas em capital material e não material. O poderio crescente dos países· que seguem tal trajetória permite evidentemente a apreciação ulterior de sua taxa de câmbio real, que pode se aproximar de algumas medidas de PPA. A muito longo prazo, essa última é verificada empiricamente. O significado econômico dessa observação, porém, não tem nada a ver com o modelo de equilíbrio dos câmbios postulado pelos monetaristas. É o resultado de um itinerário de desenvolvimento.

Segundo exemplo: é citado por KindlebergerKINDLEBERGER, C. P. (1988) Reversible and Irreversible Processes in Economics. International Economic Order. Harverter: Wheatsheaf. e diz respeito ao Plano Marshall. A pergunta é a seguinte: intervenções políticas excepcionais, associadas ao estabelecimento de um regime monetário, são capazes de introduzir bifurcações decisivas no crescimento e até mesmo nos sistemas econômicos dos países considerados? Essa pergunta pode parecer inútil, pois as suposições do que teria sido a evolução econômica se essas escolhas políticas não tivessem sido feitas, são maculadas por uma incerteza impenetrável. Entretanto, se as tendências econômicas num longo período não são independentes das escolhas políticas em momentos críticos, isso tem consequências para a interpretação da história econômica. Em primeiro lugar, é preciso poder dar um sentido econômico à ideia de situação crítica. Depois, é preciso admitir que as decisões políticas nessas situações não são elas próprias predeterminadas pelas condições estruturais subjacentes. É preciso que aconteça algo diferente daquilo que aconteceu. Enfim, é preciso considerar que o trabalho dos historiadores possa transformar a teoria econômica das relações internacionais. É a substituição de um processo baseado sobre as leis de especialização e de troca por um motivo fundado sobre regimes internacionais.

No que diz respeito ao Plano Marshall, a percepção de muitos contemporâneos e a análise de diversos historiadores é de que a Europa Ocidental estava ameaçada por uma catástrofe econômica que poderia alterar seu destino político de maneira decisiva. A conjunção de toda a penúria, da escassez do dólar e da exasperação das populações definia uma situação crítica. Nesse quadro, os mecanismos de mercado e as abordagens habituais da intervenção do Estado são inoperantes. Somente os Estados Unidos podiam fazer os aportes de dólares necessários para objetar ao deslocamento das trocas comerciais. Ao associar essas quantias de dólares a procedimentos não mercantis de aquisição de bens identificados como prioritários, o governo do país mais apegado ao liberalismo reconhecia a paralisia dos ajustamentos mercantis. Historiadores revisionistas, porém, colocam em dúvida essa interpretação de uma irreversibilidade maior. Aproximam-se assim da posição dos economistas clássicos do pós-guerra imediato. Para essa corrente de pensamento, a raridade do dólar era consequência de más políticas econômicas na Europa e podia ser corrigida por medidas ortodoxas, sem que os Estados Unidos interferissem e, sobretudo, sem a violação dos ajustamentos de mercado. A penúria era reversível com preços relativos adequados. É evidentemente impossível escolher entre esses pontos de vista já que eles são fundados em paradigmas incompatíveis. Não há uma teoria global para contê-los. Os fatos posteriores também não ajudam muito. A rapidez da passagem da escassez para a superabundância de dólares parece dar razão aos clássicos. Mas todos sabem que a guerra da Coréia teve seu papel e que a retomada das trocas comerciais na Europa deve muito à reconstrução de um sistema multilateral dos pagamentos, a UEP, que era sustentado pelo Plano Marshall.

Terceiro exemplo: A concorrência das moedas. A teoria dos portfolios trata as moedas como mercadorias. Os agentes privados são capazes de identificar as características da qualidade de cada moeda e de ponderá-las em suas funções de utilidade. As proporções desejadas das diferentes moedas nas carteiras de ativos financeiros expressam uma estrutura de referência flexível na margem em função de mudanças nos rendimentos e de volatilidade relativa dos ativos financeiros registrados nas diferentes moedas. Assim concebida, a concorrência das moedas pode ser regulada pelo mercado e pode determinar taxas de câmbio de equilíbrio para uma determinada emissão de dívidas internacionais em divisas diferentes. Esse equilíbrio se deforma com a ocorrência de mudanças nas preferências que respondem a modificações de regulamentação financeira, e nas estruturas de emissão das dívidas por divisas. É uma concepção do equilíbrio escorregadio, certamente diferente da PPA. Obedece, entretanto, ao mesmo princípio: o mercado tem todas as virtudes necessárias para gerir a concorrência das moedas como de qualquer outro objeto econômico. Não há nada que lembre a lei de Gresham. Para esses teóricos, aliás, essa famosa lei decorre da rigidez nos preços relativos das moedas. Se o mercado atuar plenamente, não haverá por que temer a irreversibilidade anunciada pela lei de Gresham. Decorre daí uma atitude otimista para a viabilidade de um sistema monetário com várias divisas.

Mas o mercado só faz ajustamentos ao redor das estruturas de preferência. A exogeneidade dessas estruturas em relação aos ajustamentos é essencial para que haja desequilíbrio e reversibilidade dos desequilíbrios. Para bens ordinários, essa hipótese é verificada muitas vezes quando cada um desses bens possui uma utilidade intrínseca para os consumidores, um custo de produção bem definido e não nulo, uma qualidade conhecida por todos e determinada independentemente dos preços. Essas condições desaparecem quando se trata da concorrência entre moedas. Estas não são produzidas, e sim emitidas, o que implica regras enunciando os critérios segundo os quais a moeda é criada e destruída. As moedas não têm utilidade intrínseca. Se se quiser introduzi-las a todo custo nas funções de utilidade, elas suprimem a separabilidade dessas funções. Pois a aceitabilidade de uma moeda decorre de uma externalidade positiva: cada um terá mais razões de utilizar uma moeda na medida em que esta for utilizada por outrem. Enfim, a qualidade de uma moeda não é independente de seu preço. Suponhamos essa qualidade identificada à liquidez, e definamos essa última pela atualização dos fluxos de serviço de transação futuros fornecidos por uma unidade de moeda. Esses fluxos dependem da antecipação dos futuros poderes de compra até o último período de uso da moeda, isto é, até o infinito. Opondo radicalmente a moeda aos bens, tais características engendram equilíbrios múltiplos. Não se pode afastar a indeterminação senão por disposições institucionais que definem regimes monetários. E são esses regimes, e não preferências individuais exógenas, que constrangem as condições da substituição entre moedas e acarretam estruturas de preferências para as carteiras.

Pode-se entender assim em que medida a lei de Gresham é profunda. Em termos modernos, ela expressa a impossibilidade da concorrência entre moedas completas, isto é, concorrentes para as mesmas funções no mesmo espaço. Ou a substitutibilidade entre as moedas tende a tornar-se perfeita e não pode haver diferenças entre elas: uma moeda faz desaparecer a outra, ou se tornam indistinguíveis. Ou então, a divisão das funções monetárias entre divisas concorrentes é regulada por uma organização cujos princípios constitutivos são combinados num regime monetário internacional. A formação de um regime é sempre irreversível, uma vez que ele se impõe em relação a outros possíveis segundo um processo que se analisa como a gênese de um bem público. Sendo ele mesmo um conjunto organizado de regras, esse bem público tem uma estrutura complexa, no sentido em que estende as funções da moeda além dos limites das comunidades nacionais de pagamentos. Com a complexidade, introduz-se a dupla dimensão da regulação funcional (dos ajustamentos macroeconômicos reversíveis) e da alteração no decorrer do tempo da eficácia dessa regulação (problema de estabilidade dinâmica e de deterioração irreversível do regime).

II. CARACTERÍSTICAS DOS REGIMES

Os regimes monetários podem ser caracterizados a partir dos princípios que os definem e das interações entre as nações; essas interações dizem respeito ao estabelecimento dos princípios, de um lado, e, do outro, à realização dos mesmos.

Constituição dos regimes monetários

As definições dos regimes monetários propostas pelos teóricos concordam no essencial. Segundo MundellMUNDELL, R. N. (1968) International Economics, Macmillan., o regime é o conjunto dos princípios que engendram regras de ajustamento capazes de compatibilizar as políticas econômicas das nações. O conjunto desses princípios forma uma doutrina que legitima, aos olhos dos governos encarregados de colocá-los em prática, os constrangimentos provocados pelo ajustamento. Para KeohaneKEOHANE, R. O. (1984) After Hegemony, Princeton. , um regime internacional é o conjunto dos princípios, explícitos ou implícitos, graças aos quais as antecipações dos agentes convergem para referências comuns que têm natureza de convenções. Do seu lado, KenenKENEN, P. (1988) “International Money and Macroeconomics”. In: Elliott, K. A. e Williamson, J. (orgs.). World Economic Problems, relatório especial 7, IIE, abril. define o regime como um conjunto de regras formais ou informais que guiam o uso das divisas no pagamento das transações internacionais.

Nota-se, em primeiro lugar, que um regime é uma organização complexa, pois comporta dois ou mais níveis lógicos. A distinção mais essencial é aquela entre as regras constitutivas que fundam a ordem monetária, e as regras atributivas que permitem a sua realização. Esses dois níveis, entretanto, podem ser desdobrados. As regras constitutivas combinam valores, que são crenças comuns sobre o dever-ser nas relações internacionais e inspiram a doutrina (por exemplo o liberalismo ou a coexistência pacífica), e normas, que são guias de comportamentos adequados, definidos em termos de direitos e de obrigações. As regras atributivas distinguem as prescrições ou as proscrições explícitas para as ações, e os procedimentos de decisões que são as práticas reconhecidas e aceitas dos ajustamentos.

Assim como no sistema de Bretton-Woods, os valores são as vantagens coletivas de uma multilateralização dos pagamentos pela convertibilidade das moedas como princípio de garantia do livre-câmbio. As normas são as restrições que os países se impõem, na busca dos seus interesses econômicos, para evitar desvalorizações competitivas. O respeito dessa doutrina exige, como regra, câmbios fixos, porém ajustáveis em caso de desequilíbrios estruturais, constatados após apresentação dos argumentos do país demandante e consulta, sob égide do FMI. Os procedimentos combinam financiamentos públicos entre governos ou pelo intermédio do Fundo, e ajustamentos através de políticas macroeconômicas destinadas a tornar excepcionais as mudanças de paridade.

Os princípios constitutivos decorrem da impossibilidade da concorrência entre moedas completas, isto é, da não-viabilidade de uma economia monetária internacional que seria regulamentada exclusivamente pelo livre-câmbio integral em todos os mercados (Kareken e WallaceKAREKEN, J. e WALLACE, N. (1981) “On the Indeterminacy of Equilibrium Exchange Rates”, Quarterly Journal of Economics, maio. ): impossibilidade da combinação de taxas de câmbio de equilíbrio, de uma perfeita substitutibilidade das divisas, de nações independentes nas suas políticas econômicas. Tal combinação leva teoricamente à indeterminação das taxas de câmbio. A outra face do mesmo resultado é dizer que os três critérios seguintes têm espaços de variação mutuamente constrangidos: o grau de rigidez das taxas de câmbio, o grau de mobilidade dos capitais, a ponderação dos objetivos internos na função de preferência dos governos. Uma modificação em um dos três critérios deve acarretar mudanças nos outros dois; o regime monetário deve ser transformado. Mas os princípios de definição de um regime monetário não são mercadorias que se ajustam em mercados. Na economia mundial, quando forças influenciam um dos critérios (por exemplo, a mobilidade dos capitais), não há harmonia automática no deslocamento dos dois outros critérios. Há discordância, resistência, tensão. Daí resulta uma instabilidade estrutural entre condições que não são compatíveis num regime monetário em equilíbrio. Essa instabilidade estrutural é a fonte das mudanças irreversíveis. Para identificar essas fontes de instabilidade, deve-se precisar a tipologia dos regimes possíveis.

O triângulo equilateral é um referencial cômodo para representar as combinações admissíveis dos três critérios (figura 1). Um ponto dentro do triângulo representa as escolhas de um país segundo os três critérios, medidas pelas distâncias entre o ponto e suas projeções sobre os três lados. Os três vértices representam regimes monetários-limite: A é o bilateralismo integral, B é a moeda única, C é a flexibilidade pura dos câmbios. A partir do centro do triângulo, que é o ponto de equitensão, pode-se desenhar losangos que só têm como ponto comum o ponto O, e que são orientados para um dos três regimes-limite. Cada um desses losangos engloba as combinações dominadas por um dos três critérios: o controle dos capitais domina o losango de grande diagonal OA, a norma de convertibilidade domina o losango de grande diagonal OB, a independência das políticas econômicas domina o losango de grande diagonal OC. Um regime monetário internacional viável é constituído se os países emissores das principais divisas se colocarem num mesmo losango. Uma situação de instabilidade estrutural se cria pela incompatibilidade das escolhas entre as nações cujas moedas dividem entre si o uso internacional. O quadro 1 explicita os três grandes tipos de regimes monetários segundo o seu critério dominante e enuncia as características do funcionamento desses regimes.

Figura 1:
Combinação de critérios

Quadro 1:
Tipologia dos Regimes Monetários

Interações estratégicas entre as nações

As análises precedentes mostram que um regime monetário é um bem público que confronta as externalidades negativas, inerentes à concorrência das moedas. O regime conjura a má concorrência; aquela que impede o fornecimento dos serviços da moeda a um custo menor de transação nos pagamentos internacionais, aquela que suscita a incerteza nos mercados financeiros com toda a sua patologia (bolhas, crenças irracionais, prêmios de risco variáveis, mudanças dos modelos de antecipação), aquela que leva as nações a lances maiores, à rejeição mútua dos constrangimentos, à exploração de vantagens em detrimento de outras. O regime promete a boa concorrência, aquela que orienta o movimento dos capitais para as melhores oportunidades, às quais se tornam apostas das antecipações graças à estabilidade das condições monetárias globais. Sendo uma organização com múltiplos níveis de regras, um regime tece entre os diversos países laços por sua vez complexos. Para HamadaHAMADA, K. (1985) The Political Economy of International Monetary Interdependence. Cambridge. , dois níveis devem ser cuidadosamente discriminados. A escolha de um regime, o estabelecimento de suas regras constitutivas tem como forma canônica o jogo de coordenação. O ajustamento das políticas econômicas para regras constitutivas dadas, isto é, a atribuição das iniciativas e dos encargos no ajustamento, tem como forma canônica o dilema do prisioneiro.

O estabelecimento de um regime é uma descontinuidade maior. É da natureza de um bem público fornecer uma vantagem comum, sem exclusão e sem rivalidade. Embora sob uma forma incompleta, um regime monetário internacional fornece as externalidades positivas que decorrem da aceitação unânime de suas regras. Esse benefício é superior à instabilidade estrutural das situações de crise durante as quais nenhum regime internacional de competências universais pode ser estabelecido. O estabelecimento de um regime é um equilíbrio de Nash que se autorreproduz, uma vez que é imposto. Há, porém, vários regimes possíveis, todos eles superiores às situações de crise. Não são nem intercambiáveis, nem equivalentes para os países que participam de sua formação. São equilíbrios de coordenação, pois cada um tem interesse em que seus parceiros não tenham outra escolha. Mas a multiplicidade dos equilíbrios, com a distribuição diferente dos constrangimentos de ajustamento e das funções da moeda internacional, cria uma indeterminação que pode perpetuar uma situação de crise. Só se pode atingir uma solução, isto é, chegar a um certo regime e não a outro, por coordenação a priori, vinda de uma negociação, ou por hierarquia, quando apenas um país define a constituição do regime monetário à qual os outros subordinam suas próprias instituições. Foi o caso, por exemplo, em 1958, quando os países europeus aboliram a UEP para restabelecer a convertibilidade das moedas nacionais conforme a Carta de Bretton-Woods.

Nesta dimensão do jogo monetário, a mais fundamental, os governos não cooperam segundo o critério de Pareto, mas sim o de Bergson. De fato, não se trata de melhorar seus próprios objetivos de acordo com sua função de preferência. Trata-se de elaborar um objetivo coletivo ao instaurar um bem público. A cooperação, nas palavras de Keohane, é um conflito dominado. Ela vence a instabilidade estrutural que provém da ausência de regime internacional. A racionalidade que nela se expressa não é da ordem da otimização, mas do procedimento. Não há nenhuma meta-teoria que permita afirmar que um regime é melhor do que outro. A vantagem de qualquer bem público é aquela da normalização, que reduz a gama das condutas antecipadas dos Estados àquelas que são compatíveis com os princípios superiores comuns definindo o regime.

Entretanto, a existência de um regime não suprime os conflitos nos ajustamentos macroeconômicos. O regime internacional é uma estrutura fraca que não prefigura a existência de uma ordem internacional além dos Estados-nações. Existe permanentemente uma tensão entre as normas constitutivas do regime e as soberanias nacionais. Pois na atribuição das responsabilidades e dos encargos de ajustamento, existe uma pluralidade de políticas possíveis entre aquelas que são conformes à doutrina do regime estabelecido. É um outro tipo de jogo. Seu objetivo é a maximização dos lucros ou a minimização das perdas segundo uma função de preferência própria de cada país. Nesse tipo de jogo, o conflito se expressa na figura do dilema do prisioneiro: cada país tem uma preferência incondicional por sua política econômica (estratégia dominante); cada país tem uma preferência incondicional para a escolha do seu parceiro, qualquer que seja o seu próprio tipo de conduta; essas duas preferências são incompatíveis. Mesmo que a rivalidade não esteja inscrita nos objetivos das nações, a ineficácia das regras atributivas pode acarretar equilíbrios macroeconômicos ineficazes no interior de um regime monetário. Sabe-se que esses conflitos podem ser superados por diferentes tipos de relações entre os países: os automatismos que descentralizam os constrangimentos, a hegemonia aceita na qual todos os outros países têm interesse em seguir as orientações de um líder, ou a corresponsabilidade que nasce de condutas mutuamente vantajosas, emergem da repetição dos jogos.

Assim, a organização multidimensional das regras monetárias internacionais autoriza a distinção entre a instabilidade estrutural (crise de regime), de um lado, quando não há um conjunto de regras para assegurar as funções coletivas de uma moeda completa, e os equilíbrios ineficazes no seio de um regime (disfunção), do outro, quando os ajustamentos conflituosos deterioram os desempenhos macroeconômicos. Concebe-se que um acúmulo de tensão entre os países soberanos, provocada por desacordos em relação às regras atributivas, possa recolocar em questão a própria constituição do regime, engendrando assim uma irreversibilidade maior. Examinamos a seguir algumas situações desse tipo.

III. ESTABILIDADE E EROSÃO DA HEGEMONIA MONETÁRIA

Foi mostrado anteriormente que era necessário distinguir cuidadosamente a formação de um regime monetário internacional, seus ajustamentos no decorrer do seu funcionamento normal, sua adaptação aos choques, sua degradação e sua desintegração soturna ou brutal. Nós nos interessamos aqui pelos regimes monetários que preservam uma economia mundial aberta ao liberalismo econômico e que são estabelecidos sob a égide de uma potência hegemônica. Esse país ganha sua posição no regime a partir de uma situação histórica que lhe conferiu uma superioridade na proteção das riquezas e no desenvolvimento dos meios do poder político. Essa posição só se torna hegemônica se o Estado persegue uma estratégia deliberada para defender os princípios sobre os quais o regime internacional é fundado. A hegemonia é legítima quando os países que lhe são subordinados aceitam esses princípios porque encontram maior vantagem ao conformar-se a eles do que com eles entrar em conflito. Para que assim seja, os grupos sociais que influenciam de maneira preponderante as orientações políticas da potência hegemônica, devem ter visão de longo prazo e coesão suficiente para sacrificar ganhos econômicos imediatos à estabilidade da ordem internacional. Quando essas condições são preenchidas, o regime monetário internacional com regulação hegemônica é dinamicamente estável. Historicamente, são regimes com divisa-chave.

Somente essa mediação política pode associar a eficácia técnica e o poder de mercado, presentes nos agentes econômicos de um país, à hegemonia monetária de uma nação, a serviço de uma ordem internacional. A questão teórica que se coloca é então a seguinte. Quando um sistema monetário internacional funciona com regulação eficaz sob a conduta de uma potência dominante e as condições econômicas subjacentes mudam, torna-se ele dinamicamente instável? Assim será no caso em que a capacidade reguladora da potência hegemônica está enfraquecida de maneira endógena pelo seu próprio exercício, no momento em que essa regulação for reconduzida a longo prazo. A estabilidade funcional do regime engendraria a sua instabilidade dinâmica.

Esse problema é particularmente árduo. Nós o apresentamos teoricamente numa definição estilizada do regime monetário a partir de um modelo de EichengreenEICHENGREEN, B. (1987) “Hegemonic Stability Theories in the International Monetary System’’, Brookings Discussion Paper in Internal Economics, n. 54, fevereiro. para dois países. Esse modelo será estendido a n países e tentaremos generalizar as conclusões.

Consideremos um regime monetário definido por uma convertibilidade com câmbios fixos declarados num numerário comum. O sistema nacional é formado de dois países. As unidades são escolhidas de tal maneira que: e = e*. Supõem-se os capitais móveis. Retirar-se do regime estabelecido equivale a abandonar os câmbios fixos. A convertibilidade é aqui o bem público. Retirar-se acarreta um custo coletivo e que é sofrido tanto pelo país que modifica a sua taxa de câmbio como pelo outro país. Esse custo resume o conjunto dos custos de transação ligados a uma pluralidade de moedas flutuantes.

Trata-se do custo associado a uma externalidade negativa: cada país paga o custo da desistência do outro. Assim, cada país deve comparar a vantagem da estabilidade monetária e aquela que provém de uma desvalorização de tamanho ∆ e. No equilíbrio, a produção global Q no sistema é dividida segundo as proporções se 1- s. Essas proporções normais são modificadas marginalmente por uma desvalorização unilateral. Tem-se, portanto, as relações seguintes:

Q = Q + Q * Q * = s Q + α ( e * - e ) Q = ( 1 - s ) Q - α ( e * - e )

A essa redistribuição das vantagens em função do parâmetro de sensibilidade corresponde o custo conjunto de um abandono da convertibilidade. Os países suportam sc e (1-s)c.

Introduzimos agora a assimetria entre os dois países. Um deles é o líder. Ele é o pilar do regime monetário: tanto os agentes econômicos dos dois países como o governo do segundo país sabem que o governo do país líder não tomará a iniciativa de uma desvalorização competitiva. Ao segundo país cabe a escolha de desvalorizar de um montante ∆ e* ou de seguir o líder no respeito dos termos de convertibilidade. Se a desvalorização for decidida, o país líder persistirá em sua adesão aos câmbios fixos no numerário externo ou se posicionará com uma desvalorização da mesma amplitude? Para responder, é preciso construir o quadro dos ganhos e perdas nas diferentes eventualidades.

Quadro 2

Quanto menor for o país seguidor, menor será a sua parte inicial de mercado, s, maior chance terá o ganho da desvalorização competitiva a/se” de ser superior ao custo do abandono da estabilidade monetária, sc, e mais esse país terá interesse em desligar-se. Entretanto a sua saída só trará o ganho esperado se quem tomar a iniciativa não temer as represálias do país líder. Nesse caso a perda total para o sistema é c, mas o líder suporta uma perda superior a c. Quando o líder responde à desvalorização do seu concorrente, a perda coletiva é 2c. Ela é dividida segundo a proporção se 1-s. Para determinar a sua atitude, o líder compara essas duas perdas. Ele não faz nada quando:

α e * + ( 1 - s ) c < 2 ( 1 - s ) c

ou quando αe*<(1-s) e, o que tem maiores chances de acontecer na medida em que (1-s) for maior. Quanto mais assimétricos são os países para um custo coletivo c dado, mais vantagem encontrará o país pequeno em desvalorizar, conquanto a desvalorização se encontre na faixa:

s c < α e * < ( 1 - s ) c

Suponhamos agora que o país líder denominado O seja rodeado de um certo número de países pequenos denominados 1, ... , n. A desvalorização de um deles pode acarretar a de outros países sem que o país líder faça alguma coisa. Com partes s i pequenas na produção do sistema, desvalorizações de um mesmo montante ∆ e dos n países podem permitir a esses que conservem uma vantagem de competitividade n α0 ∆ e > ns i c. O líder sofre uma perda igual a:

n α 0 e + n ( 1 - Σ s i ) c

É o que ocorre quando os deslocamentos das partes do mercado. provocados pelas desvalorizações sucessivas, são aditivos para o líder, isto é, quando a distribuição da produção se escreve:

Q = Q 0 + Q i + . . . . . + Q i + . . . . . + Q n

quando i = 1, .... n.

Q i = s i Q + α 0 ( e i - e 0 ) + Σ α i j ( e i - e j )

onde j i,

Q 0 = ( 1 - Σ s i ) Q - α 0 Σ ( e i - e 0 )

com αij = αji

Entretanto, cada país pequeno considera sua influência demasiadamente fraca sobre as partes do mercado dos seus concorrentes para desencadear uma reação dos outros. Ele pensa poder desvalorizar quando α0 ∆ e > s i c. Quando um número cada vez maior de países pequenos se encontra nessa situação, e desvaloriza sequencialmente, a estabilidade do regime monetário enfraquece. De fato, chega-se a um patamar crítico além do qual o líder tem interesse em abandonar o sistema. Se assim o fizer, ele ocasionará a desvalorização de todos os outros países, aumentando assim o custo coletivo da violação da convertibilidade. Pode, portanto, existir um número m de países que desvalorizaram de tal maneira que:

para (m-1) o líder tem ainda interesse em manter o regime de convertibilidade porque:

( m - 1 ) α 0 e + ( m - 1 ) ( 1 - Σ s i ) c < ( n + 1 ) ( 1 - Σ s i ) c

Para m, a perda de partes de mercado é superior ao custo coletivo do desaparecimento do bem público:

m α 0 e + m ( 1 - Σ s i ) c > ( n + 1 ) ( 1 - Σ s i ) c

Isto é:

( n - m + 1 ) m ( 1 - Σ s i ) c < α 0 e < ( n - m + 2 ) m - 1 ( 1 - Σ s i )

Tratemos de tirar desse modelo uma série de conclusões de alcance mais geral para a questão da irreversibilidade:

  • - A ordem liberal, confortada pelo regime de convertibilidade monetária, favorece o crescimento dos mercados e a difusão do progresso técnico. Esses processos, porém, minam a posição hegemônica do líder ao aumentar as partes de mercado dos concorrentes. Mais as s 1 aumentam, mais as desvalorizações dos concorrentes correm o risco de provocar represálias por parte do líder, e mais o sistema internacional se torna frágil. A estabilidade funcional do regime com divisa-chave se transforma em instabilidade estrutural. Isto é mais provável na medida em que o líder é levado a explorar o que lhe sobra de dianteira na competitividade para restabelecer a sua posição anterior, quando esta se vê contestada.

  • - O regime de convertibilidade pode, porém, perpetuar-se por um tempo imprevisível a priori, quando os outros países estão conscientes da certeza de represálias por parte do líder. Eles se abstêm de desencadear desvalorizações competitivas se puderem avaliar que a perda certa que registrarão no final, perda do bem público, será maior do que a vantagem transitória da desvalorização no intervalo de tempo em que o país líder deixou de reagir.

Assim, um sistema hegemônico pode funcionar segundo duas configurações:

  • - Um grande país líder rodeado por pequenos países. É a liderança tolerante que minimiza as ocasiões de conflito. Os pequenos países podem ajustar suas taxas de câmbio dentro de certos limites sem temer que o país líder possa recolocar o sistema monetário em questão.

  • - Um país líder, rodeado por um pequeno número de países dinâmicos, cuja participação na renda mundial vai aumentando, forma um sistema dinamicamente instável, porque submetido a fortes rivalidades potenciais. A liderança pode perpetuar-se por inércia, apesar do acúmulo de tensão, graças à dissuasão recíproca. Isso ocorre enquanto os sócios são conscientes das perdas resultantes de uma reação do líder contra suas ações unilaterais, quando transgridem a regra comum. Mas o líder pode dar esse passo para levar livremente uma política nacionalista. É o que ocorreu ao sistema de Bretton-Woods.

IV. AJUSTAMENTO MACROECONÔMICO E TRANSMISSÃO DOS DESEQUILÍBRIOS NO SISTEMA DE BRETTON WOODS, E A TRANSIÇÃO PARA OS CÂMBIOS FLUTUANTES

Tratamos aqui das regras atributivas do regime monetário dito de Bretton Woods, e dos ajustamentos decorrentes. Esses ajustamentos macroeconômicos configuram o tipo de conjuntura mundial e a redução das alterações do balanço corrente. Para entender o seu modus operandi, é preciso compreender de que maneira as regras atributivas do regime reforçam aquelas interdependências macroeconômicas conformes à coerência funcional desse regime e enfraquecem aquelas que lhe são estranhas. Por outro lado, pode-se explicar como o regime monetário estabelecido se degrada progressivamente até atingir um patamar de instabilidade estrutural que o questiona nos seus próprios princípios constitutivos. As tensões aparecem nos ajustamentos macroeconômicos quando interdependências, disfuncionais em relação às regras atributivas do regime estabelecido, são reativadas. Isso pode se produzir após mudanças na eficácia produtiva dos principais países comparada com a escala dos níveis de desenvolvimento quando o regime se estabeleceu. Isso pode decorrer também da exacerbação da soberania nacional, além dos limites tolerados para o respeito dos princípios necessários à criação coletiva do bem público, que é a estabilidade monetária global. Isso pode resultar, enfim, de transformações na organização dos mercados, mudando o grau de mobilidade dos capitais em relação àquele compatível com o regime monetário estabelecido. Essas três causas de degradação só foram produzidas, ao mesmo tempo, na segunda metade dos anos 60.

O ensino para a questão da irreversibilidade é a sequência seguinte: degradação progressiva da eficácia dos ajustamentos macroeconômicos −> acumulação de tensões não reabsorvidas −> instabilidade estrutural que altera o perfil da conjuntura mundial −> requestionamento dos princípios fundadores do regime monetário. Quanto aos três tipos de fenômenos (econômicos, políticos, financeiros) que acabam minando a estabilidade dinâmica do regime ao perturbarem seus ajustamentos funcionais, é inevitável que eles ocorram. Pois a vida econômica e social é feita de movimento, de mudança quantitativa e qualitativa. As regras de direito, porém, têm como razão de ser a permanência; é a virtude que faz delas pontos de referência coletivos. É pela sua perenidade que um regime fornece o bem público, ou seja, o conjunto dos serviços da moeda internacional. Aliás, se há uma tal contradição entre movimento e imutabilidade, pode-se perguntar de que maneira um regime internacional é viável durante períodos históricos que podem estender-se por dezenas de anos. Como é possível que não estejamos condenados à instabilidade estrutural? A resposta encontra-se na complexidade da organização do regime monetário onde pudemos identificar vários níveis lógicos.

A complexidade introduz um grau de flexibilidade nos ajustamentos, sem que a identidade do regime esteja ameaçada e sem que a sua legitimidade esteja contestada. É preciso que essa flexibilidade se transforme em acumulação de tensões não reabsorvidas, para que certos participantes do fornecimento do bem público façam o cálculo formalizado no parágrafo precedente, para entender o questionamento da hegemonia. O custo das distorções nos ajustamentos é maior do que as vantagens da conformidade às regras comuns.

A característica mais importante da regulação internacional no regime de Bretton Woods é uma ampla autonomia das conjunturas nacionais com um avanço do ciclo conjuntural americano sobre aquele dos outros países desenvolvidos. Essa dessincronização conjuntural faz com que o constrangimento do balanço de pagamentos, que é a consequência lógica de um regime com fraca mobilidade de capitais, atue plenamente sobre os países seguidores. Pelo contrário, a deterioração, e, a seguir, a destruição do regime de Bretton Woods, se dão paralelamente com uma sincronização conjuntural que expressa a alteração dos ajustamentos e o acúmulo da tensão. É claro que isso é verdadeiro para esse regime monetário. No regime do padrão-ouro, ao contrário, o ciclo mundial era a forma do ajustamento funcional em relação aos critérios de constituição do regime.

O gráfico 1 visualiza claramente o fenômeno que acaba de ser enunciado. Trata-se agora de analisar a sua lógica.

Gráfico 1:
Comparações Internacionais dos Ciclos Econômicos

Graças à fraca mobilidade dos capitais nas regras constitutivas, a intensificação das trocas de bens e serviços depois da Segunda Guerra Mundial não impediu o uso de instrumentos nacionais de controle macroeconômico nas regras atributivas. A transmissão internacional das conjunturas não foi forte. A partir do final dos anos 60, a mobilidade do capital aumentou, a inflação generalizou-se, as dívidas públicas e privadas tornaram-se estruturais e cada vez mais preocupantes. Os instrumentos de controle da atividade econômica nacional foram paralisados. O regime monetário transformou-se, passando por uma transição marcada por mudanças qualitativas: abandono efetivo da convertibilidade-ouro do dólar em março de 1968, abandono de direito dessa convertibilidade em agosto de 1971, tentativa de estabelecer um regime de padrão-dólar puro em dezembro de 1971, instauração dos câmbios flutuantes em fevereiro de 1973. No plano macroeconômico, houve inversão das correspondências. No funcionamento normal do regime de Bretton Woods, as evoluções dos preços dos bens trocáveis eram estreitamente paralelas e as evoluções das produções, em relação ao seu trend, amplamente discrepantes. Na deterioração do regime de Bretton Woods e na situação de crise mundial que lhe sucedeu, as variações de preço tornaram-se divergentes, as flutuações da produção mutuamente constrangidas.

Para dar conta dessa transformação, é preciso identificar, em primeiro lugar, os canais de interdependência econômica passíveis de existir no regime estudado. Nos passos de J. F. VidalVIDAL, J. F. (1987) Les fluctuations internationales (tomo II), Université de Rennes I, dezembro. , podemos encontrar quatro deles:

  • - Transmissão pela variação da renda nos Estados Unidos e pelo comércio internacional. É a relação, de certa maneira mecânica, cuja intensidade depende da abertura das economias e das elasticidades-renda do comércio exterior. Como no regime de Bretton Woods os Estados Unidos tinham uma fraca propensão para importar, o aumento de suas importações só tinha efeito significativo sobre o crescimento da produção dos outros países da OCDE no final do ciclo, quando os graus de utilização das capacidades de produção da economia norte-americana atingiam o cume. A intensidade da transmissão era descrita pelo jogo dos multiplicadores cruzados do comércio exterior inseridos num modelo dinâmico. As defasagens chegavam facilmente a dois anos. Esse modo de transmissão acarretava, portanto, defasagens conjunturais que se reencontravam nos balanços de pagamentos: abundância de dólares e balanços correntes não constrangidos no exterior ao final da expansão e no cume do ciclo norte-americano; restrição de dólares e constrangimento efetivo sobre os balanços de pagamentos no exterior durante a recessão americana e a fase de retomada. As reservas acumuladas anteriormente permitiam o espichamento do ajustamento face a esse constrangimento. Esse primeiro modo de interdependência favorecia, portanto, a dessincronização conjuntural.

  • - Transmissão financeira pela variação da taxa de juros e os movimentos de capitais. No regime de Bretton Woods, a mobilidade dos capitais era limitada e os estoques de ativos financeiros sobre o exterior, em mãos dos agentes privados, eram muito pequenos em relação aos ativos domésticos. Não era o modelo de portfolio que se aplicava, mas o modelo Mundell-Fleming com substituição imperfeita, no qual os fluxos de capitais são função direta das diferenças de taxa de juros. Era preciso que a conjuntura norte-americana fosse suficientemente adiantada em relação à dos países europeus para que a taxa de juros crescesse proporcionalmente à taxa da Europa. Uma importação de capital para os Estados Unidos ocorria então, sustentando o dólar e financiando a diminuição do balanço corrente. Na Europa, a exportação de capital era a contrapartida do balanço corrente excedentário naquela fase, levando em conta o primeiro modo de interdependência. As taxas de juros europeias só eram levadas à alta no momento em que o acréscimo da produção deteriorava o balanço corrente e obrigava esses países a adotar medidas de estabilização. Assim o segundo modo de transmissão vinha acompanhar os efeitos do primeiro. Era também salvaguarda da dessincronização conjuntural.

  • - Transmissão monetária pela variação da liquidez internacional no regime com câmbios fixos e fundado sobre o dólar. É a consequência dinâmica da assimetria fundamental desse regime. Vários autores já mostraram que, pelo fato de as reservas oficiais dos bancos centrais estarem formadas por dólares e detidas quase exclusivamente em títulos públicos americanos, ocorria, no sistema bancário americano, uma esterilização passiva de qualquer saída de liquidez para o exterior. Por isso a massa monetária mundial era preponderantemente determinada pelas contrapartes da massa monetária dos Estados Unidos e, portanto, pela política monetária do Fed. Ao acomodar uma expansão inflacionária, um acréscimo sensível da massa monetária norte-americana acarretava aumento das reservas oficiais nos bancos centrais europeus, expansão monetária nesses países e estímulo da inflação. Quando tem intensidade significativa, esse modo de transmissão é muito rápido. Ele favorece a sincronização das conjunturas entre os países com moedas convertíveis, ligados pelos acordos de Bretton Woods.

  • - Transmissão pelas matérias-primas. A formação de estoques é o elemento da demanda mais sincronizado internacionalmente. O conteúdo de importações é alto por causa das matérias-primas. Os estoques são retidos por transação, por precaução e por especulação como se fossem reservas monetárias. Podem ser comprados e vendidos em mercados mundiais a prazo. Sob o regime de câmbios fixos de Bretton Woods, a incidência dos estoques passava por um acelerador flexível. O efeito da demanda era preponderante. Os movimentos de estoques não alteravam, portanto, as defasagens conjunturais. Quando a transmissão monetária se tornou determinante e puxou os preços internacionais, as variações de estoque foram sensíveis às antecipações sobre as mudanças de preço. A sincronização da conjuntura pelos estoques liga-se à sincronização monetária segundo o processo seguinte: expansão do crédito −> alta dos preços −> acumulação de estoques −> acréscimo em valor do comércio internacional −> expansão do crédito.

As transmissões conjuntas pela moeda e pelas matérias-primas dependem, ambas, do desenvolvimento do crédito na economia mundial e, portanto, das transformações na finança internacional ocorridas na segunda metade dos anos 60 com o desenvolvimento do euro-dólar. Esses processos, por sua vez, nutriram a inflação generalizada pelo excesso de oferta de moeda nos países e pelas indexações dos preços internos aos preços internacionais.

Esses quatro tipos de interdependência autorizam uma associação rigorosa entre o aspecto regulador do regime de Bretton Woods e o aspecto fundador, cujo questionamento foi popularizado pelo dilema Triffin. A desregulamentação estrutural veio de uma mudança de ritmo na expansão da liquidez internacional que questionou a confiança no dólar. O quadro que segue ilustra a ruptura.

Quadro 3:
Variação Anual Média das Reservas Oficiais de Câmbio (fora Estados Unidos)

A desregulamentação monetária inibiu os dois primeiros modos de transmissão e exacerbou os dois últimos. Por sua vez, o enfraquecimento da regulação macroeconômica que funcionava anteriormente estimulou a expansão do crédito e acirrou a perda de confiança no dólar. Nessa altura, o balanço dos custos e vantagens em relação à hegemonia do dólar nas regras de Bretton-Woods ficou desequilibrado para a Alemanha, enquanto os Estados Unidos recusavam-se em continuar a fornecer o bem público. O destino desse regime monetário estava selado.

V. RUPTURAS E CONTINUIDADE NO SME PARA A UNIÃO MONETÁRIA

Na Europa, estamos nos deparando com a dificuldade de estabelecer um novo regime monetário de competência regional. Vimos na segunda parte deste texto que, quando se trata de concordar sobre princípios fundadores de um novo regime, as relações entre as partes contratantes são aquelas de um jogo de coordenação. Todos os países, tanto os atuais membros do SME como também os outros países da Comunidade, têm mais interesse em entender-se a respeito das mesmas regras, do que deixar desenvolver-se uma situação de discórdia com possível agravamento entre um bloco franco-germânico, o Reino Unido e, eventualmente, os países da Europa do Sul. Entretanto, no momento, as posições relativas ao regime mais bem adaptado à integração econômica e financeira parecem inconciliáveis. A união monetária completa opõe-se a um livre-câmbio generalizado, acompanhado por um sistema de câmbios mais maleáveis e de políticas monetárias com credibilidade em relação à estabilidade monetária interna dos países. Estamos visivelmente numa encruzilhada maior onde intervêm atitudes doutrinais. Essas dizem respeito à qualidade da integração visada (zona de livre-câmbio ou espaço comum com solidariedades inter-regionais e identidade em relação ao exterior) e ao conteúdo futuro das soberanias nacionais (com uma concepção indivisível da soberania, segundo a qual não se pode abandonar as prerrogativas nacionais de controle da moeda, nem uma concepção instrumental da união monetária que reforçaria, em vez de enfraquecê-los, os meios de ação dos Estados em outros domínios econômicos).

Essa questão crucial sobre o futuro monetário da Europa, na perspectiva do Ato único, não se esgotou apesar da contribuição do Gabinete Delors. Entretanto não é a questão que se quer discutir aqui, nesta nossa reflexão sobre a irreversibilidade nos regimes monetários. Há problemas mais urgentes e mais diretamente ligados às considerações analíticas desenvolvidas anteriormente. Mesmo que a união monetária fosse o regime futuro que todos os governos da Comunidade desejassem estabelecer, coloca-se um delicado problema de transição, ou mais exatamente, da sequência e do ritmo das transformações necessárias para aumentar as chances de se chegar à união visada. É claramente um problema de adestramento da mudança na qual os níveis de organização da moeda internacional identificados acima devem interagir de uma maneira coerente, embora sofram mutações qualitativas.

À primeira vista uma via gradual se mostra razoável. Ela opta pela continuidade. O andaime institucional do SME seria por enquanto suficiente, assim como os instrumentos de coordenação técnica à disposição dos bancos centrais. As regras constitutivas do SME não devem ser modificadas. É preciso adaptar continuamente as regras atributivas, que são da responsabilidade das autoridades monetárias nacionais, no sentido de uma convergência aprofundada dos desempenhos macroeconômicos. Será necessário encontrar, pela experiência, em que deve consistir essa convergência capaz de garantir o grau de rigidez dos câmbios que se tem imposto, faz algum tempo, entre os países que constituem o núcleo duro do SME, para depois estender essas práticas aos países da Comunidade que viriam aderir assim que as circunstâncias lhes parecessem oportunas. Haverá, portanto, uma transformação gradual dos ajustamentos. À medida que a convergência se fizer mais estreita, ocorrerá a passagem de um sistema bastante assimétrico, sob preponderância alemã, para um sistema mais interdependente num mercado de capitais mais próximo da unificação. É claramente um procedimento que postula repercussão unilateral e progressiva dos ajustamentos macroeconômicos sobre os critérios que fundam o regime monetário. A passagem do SME para um estado de pré-união monetária seria contínua sem que novas regras tivessem sido instauradas.

Apesar de sua aparente tranquilidade, esse processo dissimula grandes perigos. De fato, ele postula que a natureza, a amplitude e a frequência das perturbações que o SME deverá absorver não evoluam senão lentamente, no mesmo passo dos ajustamentos macroeconômicos mais precisos e mais constrangedores que os governos decidirão fazer. Nada, porém, justifica esse postulado. Pois a liberalização dos mercados de capitais é muito rápida, ela está prevista, de maneira completa e na maior parte dos países, logo para julho de 1990. Uma discordância entre a intensificação das repercussões financeiras mútuas de uma parte, e a lentidão dos melhoramentos nas convergências macroeconômicas de outra, se analisa teoricamente como um divórcio entre a mobilidade dos capitais e a substitutibilidade das divisas. Num regime monetário que não garante, aos olhos dos operadores privados, uma equivalência antecipada das moedas, uma forte mobilidade dos capitais desencadeia crises de balanço de pagamentos. Com essas crises, voltam, de forma nefasta porque sofrida, as descontinuidades que, acreditava-se, tinham sido afastadas. Sem mudar as regras do SME, um aumento da mobilidade autorizado pela liberalização financeira faz transitar fluxos de capitais mais elevados do que anteriormente através dos mercados de câmbio. Para segurar de qualquer maneira os câmbios fixos, garantia de uma convergência progressiva segundo o procedimento anteriormente enunciado, seria preciso consentir em variações relativas das taxas de câmbio provavelmente muito importantes. A volatilidade intensificada das taxas de juros acarretaria um agravamento da incerteza, um aumento dos prêmios de risco exigido pelos credores e uma elevação do nível médio das taxas na Europa. Seria a forma tomada pelo custo coletivo da negação em se estabelecer instituições capazes de fornecer o bem público que é a equivalência das moedas europeias. Uma outra saída poderia ser o recurso mais frequente aos realinhamentos de paridades para evitar variações excessivas das taxas de juros. Nos dois casos, a convergência gradual seria posta em xeque. Aliás, se a mobilidade dos capitais for total, qualquer antecipação de divergência nas políticas monetárias provocará uma crise especulativa contra a moeda cuja desvalorização é temida. A partir do momento em que os agentes privados podem, em princípio, endividar-se de maneira ilimitada, na divisa atacada, para vendê-la no mercado de câmbio, empréstimos e créditos igualmente ilimitados seriam necessários entre os bancos centrais para manter as paridades ante tal crise. Do contrário haveria passagem do SME para um regime de câmbios flutuantes. Seria a dissolução das relações intra-europeias num vasto mercado mundial de capitais com câmbios flexíveis generalizados.

Essas considerações dinâmicas nos trazem de volta às características fundamentais dos regimes monetários que encontram sua aplicação nos problemas europeus. Uma transição se faz necessária: haverá um ou mais regimes monetários entre o SME atual e a união completa. Mas o processo da transição não pode ser puramente gradual e unilateral. Ele deve combinar mudanças descontínuas nas regras constitutivas do regime monetário e fases de aprofundamento da cooperação, graças a ajustamentos macroeconômicos que não podem ser desenvolvidos no SME atual.

A fraqueza do gradualismo ao mero nível macroeconômico está em que a instabilidade potencial das crises especulativas aumenta mais rapidamente, por causa da mobilidade dos capitais, do que a adequação possível das políticas monetárias. Continuará assim enquanto essas políticas forem definidas separadamente, enquanto forem conduzidas com técnicas diferentes e enquanto expressarem arbitragens, entre as preferências internas e o compromisso em defender as paridades, desiguais de um país para outro. Os países membros do SME são os primeiros a se defrontarem com a transformação do regime monetário. Para evitar o perigo das crises especulativas, preservando, porém, a marcha em direção aos câmbios fixos, é preciso fazer progredir a substitutibilidade das moedas ao ritmo da mobilidade dos capitais. Isso implica um rearranjo das regras monetárias. Várias propostas já foram feitas, mas não falaremos delas no âmbito deste trabalho. A exigência mínima parece ser um rearranjo dos níveis de responsabilidade: engajamento exclusivo por parte de cada banco central de mobilizar os meios adequados (diferença de taxa de juros, mobilização das reservas, empréstimos mútuos ilimitados) para manter fixas as paridades; definição comum de objetivos monetários para o conjunto do sistema, coordenação das ações dos bancos centrais nos mercados monetários nacionais para pilotar a taxa média de juros do sistema em conformidade com os objetivos decididos em comum, conduta de uma política de câmbio comum entre o bloco das moedas do SME transformado e as outras divisas.

VI. CONCLUSÃO

Os casos analisados neste estudo sugerem que a irreversibilidade é um fator importante da economia monetária internacional. Vários exemplos podem ser oferecidos, desde a lei de Gresham até o sobre-endividamento que degenera em crise financeira, passando pela contestação de uma liderança monetária e pela lenta deterioração dos ajustamentos macroeconômicos no seio de um sistema tão fortemente institucionalizado como aquele de Bretton Woods.

Essas irreversibilidades provêm da racionalidade dos agentes privados em contextos concorrenciais para os quais os mercados não podem estabelecer um equilíbrio único e/ou não podem fornecer a informação pertinente que permitiria aos agentes anteciparem a estrutura das relações compatíveis com aquele equilíbrio, se ele existir. As irreversibilidades se devem também às interações estratégicas entre os governos, quando as interdependências internacionais provocam externalidades no desenvolvimento dos instrumentos da política macroeconômica dos principais países.

A substituição de divisas que aumentam a sensibilidade dos deslocamentos de carteira à antecipação de um choque, de amplitude dada, sobre os câmbios, são irreversibilidades do primeiro tipo. Elas ocasionam crises de balanços de pagamentos, o que explica o malogro das tentativas de manter as taxas de câmbio dentro de limites predeterminados, quando os governos implicados nessas tentativas não têm uma atitude corresponsável para fixar as antecipações dos operadores nos mercados de câmbio. Nesse caso, a irreversibilidade se manifesta sob a forma da ruptura de uma margem de variações toleráveis da taxa de câmbio quando os agentes privados antecipam racionalmente que o esgotamento das reservas de câmbio provocará uma mudança qualitativa de regime. Tais irreversibilidades, tomando a forma de patamares críticos, observam-se também na área do endividamento, porque a qualidade dos empréstimos concedidos a um devedor individual depende da totalização futura, radicalmente incerta, dos empréstimos para toda uma classe de devedores do mesmo tipo, e da modificação, ou não, das condições financeiras gerais na economia mundial, fenômeno imprevisível para os credores privados.

De maneira menos dramática, irreversibilidades nos comportamentos individuais e nos ajustamentos macroeconômicos podem resultar de mudanças de estruturas na finança internacional. Tal foi o caso nos anos 80 dos progressos da mobilidade internacional dos capitais. Uma mobilidade maior intensifica o fluxo dos capitais, desencadeado por uma diferença dada de rendimentos antecipados entre diferentes divisas. Quando está acoplada a políticas econômicas discordantes, a mobilidade internacional dos capitais não favorece nem um pouco a realização de um equilíbrio internacional estável. As políticas discordantes aumentam as diferenças de rendimento antecipadas e os fluxos de capitais validam essas antecipações. A volatilidade das taxas de câmbio fica maior; isto acarreta um aumento dos prêmios de risco que se inscreve na estrutura das taxas de câmbio sob a forma de uma elevação das taxas a longo prazo. Toda a economia mundial se vê afetada por movimentos conjuntos de taxas de juros que a flexibilidade dos câmbios não permite compensar.

Essa configuração está na junção das irreversibilidades do segundo tipo. Nela ocupa uma posição muito importante o nacionalismo monetário, nutrido pelo postulado errôneo de que a flexibilidade dos mercados pode proteger um país da influência de políticas levadas por outros países. Essas externalidades são evidentemente ampliadas no seio de um conjunto de países que respeitam uma regra de câmbios. Quando esses países sofrem o mesmo choque externo que não podem evitar, e quando reagem a ele de forma independente, eles se jogam mutuamente as consequências desse choque. Ao fazer isso, chegam a um equilíbrio muito menos vantajoso para todos eles do que se houvessem interiorizado suas externalidades na formação de uma política cooperativa de resposta apropriada. Aqui, a irreversibilidade toma a forma da seleção de um equilíbrio insatisfatório no meio de uma multiplicidade possível de equilíbrios estratégicos.

As diversas feições da irreversibilidade nas relações monetárias internacionais mostram a importância de organizações específicas. A coerência global não resulta da agregação de comportamentos microeconômicos pelo mercado, a própria nação sendo considerada como micro agente. Os insucessos da coordenação podem ser observados sob formas diferentes: flutuação das taxas de juros e de câmbio que não é inteiramente explicável em termos de determinantes fundamentais das economias reais, avaliações precárias das posições financeiras, multiplicidade a priori dos equilíbrios estratégicos, ausência de referências para avaliar objetivamente situações críticas.

A coerência global observa-se através das propriedades reguladoras de formas de organização mediadoras. Pela nossa hipótese, essas propriedades poderiam ser reagrupadas na definição de regimes monetários. Um regime é um conjunto de regras que se impõem às instituições mediadoras (bancos centrais, governo) e que, pelas ações dessas últimas, influenciam os comportamentos dos agentes privados de uma maneira conforme à autopreservação das regras. Dessa forma, um regime monetário restringe o domínio dos equilíbrios compatíveis com as regras que o definem e provoca ajustamentos que se opõem à flutuação e impedem que acidentes resultantes de choques imprevisíveis degenerem em crises globais.

Muitas pesquisas são necessárias para entender não somente as capacidades reguladoras de um regime, como também as razões pelas quais essas capacidades se deterioram. Parece, entretanto, que um regime deva sua robustez a uma hierarquia entre níveis de coordenação. Existem regras constitutivas de nível superior e regras atributivas ou processos decisórios que definem os ajustamentos conformes aos princípios expressos nas regras superiores. Essa hierarquia é a maneira cuja organização concilia a permanência do regime, condição da coerência global, e a necessária diversidade de ajustamentos capaz de dar resposta a choques imprevisíveis e de qualquer natureza. A hierarquia permite conceber desvios legítimos, isto é, desequilíbrios que não são necessariamente reversíveis do ponto de vista dos ajustamentos macroeconômicos (funcionamento do regime), mas que são viáveis relativamente aos princípios constitutivos do regime, e que, portanto, permanecem credíveis e não suscitam processos cumulativos de desconfiança. Um exemplo contemporâneo dessa situação é dado pelos Estados Unidos, com o desequilíbrio dos pagamentos. Este se inscreve num regime onde a integração financeira permite a remoção da obrigação de equilíbrio, mesmo que tendencial, do balanço dos pagamentos correntes, como regra constrangedora de ajustamento. Um déficit permanente do balanço corrente dos Estados Unidos é viável num regime monetário policêntrico que seria caracterizado pela relaxação das residências monetárias dos agentes privados exteriores ao espaço do dólar. Essa viabilidade não se define por regras automáticas de ajustamento. mas por uma corresponsabilidade dos governos sobre um princípio de estabilidade monetária que ofereça ancoragem às antecipações privadas.

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    Tradução de Danielle Ardaillon.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1992
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