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Dolarizações e heterodoxia na América Latina* * Traduzido por Solange Ramos Esteves.

Dollarization and heterodoxy in Latin America

RESUMO

As mudanças nos mercados financeiros internacionais implicaram novas condições para o financiamento da dívida externa latino-americana. A “dolarização” dessas economias, tanto no sentido amplo (utilização do dólar em vez da moeda local) quanto no sentido estrito (fuga de capitais), adquiriu nova importância, afetando intensamente a soberania monetária desses países. Como resultado, novas políticas econômicas foram instituídas na Argentina e no Brasil com o objetivo de reduzir a inflação, impondo um congelamento de preços e uma desindexação geral da economia sem causar recessão, bem como manter um serviço mínimo de suas dívidas externas. O autor leva em consideração tanto o contexto externo quanto as estruturas econômicas e de acumulação de capital, que variam conforme o país e o momento, ao analisar as limitações das medidas utilizadas para frear a “dolarização” de longo prazo e as principais características dos planos “Austral” e “Cruzado”, que se apresentavam como heterodoxos. Por fim, apresenta a eventual necessidade de adoção de medidas mais heterodoxas do que as previstas naqueles planos: o sucesso decorreria de uma moratória parcial do pagamento da dívida externa e de uma modificação sensata na distribuição de renda.

PALAVRAS-CHAVE:
Dolarização; estabilização; inflação

ABSTRACT

Changes in the international financial markets implied new conditions for the financing of Latin American foreign debts. The “dolarização “ of these economies, both in the broad sense (using the dollar rather than the local currency) and strict (capital flight) sense, acquired new importance, intensely affecting the monetary sovereignty of these countries. As a result, new economic policies were instituted in Argentina and Brazil aimed at reducing inflation by imposing a price freeze and a general de-indexation of the economy without causing a recession as well as at maintaining a minimal servicing of their external debts. The author takes into account the external context as well as both the economic structures and the accumulation of capital, which vary depending on the country and moment, as he analyzes the limitations of the measures used to slow down the long-terrn “dolarização” and the main features of the “Austral” and “Cruzado” plans, which were presented as heterodox. Lastly, he presents the possible need to adopt measures that are more heterodox than those foreseen in those plans: success would be a result of a partial moratorium of the payment of foreign debts and a sensible modification of the distribution of income.

KEYWORDS:
Dollarization; stabilization; inflation

Uma dupla evolução caracteriza a economia de endividamento latino-americana. A primeira concerne às condições de financiamento da dívida externa, a segunda ao aparecimento de novas políticas econômicas qualificadas de heterodoxas.

Os mercados financeiros internacionais vivem um período muito delicado. Os créditos bancários dos consórcios dos quais se beneficiam os tomadores latino-americanos, reduziram-se sensivelmente. As emissões de obrigações internacionais tiveram um grande impulso, mas os países subdesenvolvidos praticamente não se beneficiaram quase nada disso.1 1 Banco dos Pagamentos Internacionais - 57º. Relatório, Bâle, 9 de junho de 1986, ver pp. 98, l 09, 142 e segs. Sobre os novos produtos financeiros, ver o artigo de H. de la Bruslerie, “Les marchés financiers internationaux et l’evolution del’activité bancaire”, em H. Bourguinat e J. Mistral, La crise de l’endettment international, Ata II, Ed. Economica, 1986. O fluxo de capitais segue outras orientações privilegiando os Estados Unidos, e a transferência líquida de capital das economias latino-americanas para os bancos do Centro cresceu.2 2 Banco Mundial, Debt and Developing World 1984; ver igualmente J. Ramos, “Stabilization and adjustment policies in the Southern Cone 1974-1983”, Revista da CEPAL, n? 25, abril de 1985.

A dolarização tomou uma nova importância. Ela se define pela substituição das moedas (fuga de capital) e pelo novo papel desempenhado pelos títulos indexados com base no dólar como unidade contábil no lugar da moeda local. A primeira chama-se dolarização no sentido estrito. A segunda no sentido lato. Ambas afetam profundamente a soberania monetária do país, a qual vem se enfraquecendo nos últimos dez anos. Novas políticas econômicas apareceram, então, na Argentina e no Brasil tendo como objetivo reduzir sensivelmente a inflação impondo o congelamento dos preços e a desindexação geral, iniciando a reindustrialização em um caso e retomando o crescimento no outro.

Estes objetivos são muito ambiciosos. Entretanto, a dificuldade localiza-se em outro ponto: eles devem ser atingidos ao mesmo tempo em que se assegura o serviço mínimo da dívida externa. Duas questões se colocam, então: O pagamento do serviço da dívida não se constituiria na dificuldade maior para atingir os objetivos fixados? A dolarização, no sentido estrito e no sentido amplo, pode ser freada por muito tempo se não forem igualmente tomadas medidas de acompanhamento mais heterodoxas do que as previstas nos Planos de ajustamento: moratória parcial, temporária, modificação sensível da distribuição da renda?

O objeto deste artigo é trazer elementos para responder a estas questões. A fuga de capitais agravou profundamente o endividamento (I). A relação política econômica/dolarização não é suficiente para explicar esse agravamento (II). O contexto externo modificou-se sensivelmente e conduziu a uma elevação do serviço da dívida, a qual, por sua vez, provocou um agravamento do endividamento. As estruturas econômicas, os regimes de acumulação, diferentes segundo os países e segundo os momentos, têm igualmente sua parte de responsabilidade (IlI). O estudo do conjunto destes fatores permite dar respostas, diferentes segundo os países, às questões colocadas (IV).

I.

Não é simples medir a quantidade de fuga de capitais. Diferentes formas de avaliação são possíveis. Vamos examiná-las em seguida:

  • 1) Podemos nos reportar às estatísticas publicadas pelo FMI e pelo Boletim do Tesouro Americano. Estas instituições registram o montante dos depósitos efetuados por não residentes, à exceção dos bancos e dos depósitos oficiais, junto aos bancos estrangeiros.3 3 Estes dados superestimam o montante das fugas de capital pois eles incluem os depósitos no estrangeiro das empresas públicas, de um lado. De outro, eles subestimam as fugas. Não levam em consideração os depósitos não identificados e sobretudo não compreendem o conjunto dos efetivos liberados em divisas, depósitos e retenções individuais em divisas que permaneceram no país e que não foram, portanto, efetuados nos bancos estrangeiros. Em setembro de 1985, os depósitos efetuados nos bancos estrangeiros eram avaliados em 8,2 bilhões de dólares para a Argentina (dos quais 4,1 em bancos americanos), 8,5 para o Brasil (dos quais 1,7 em bancos americanos), 15,3 para o México (dos quais 11,1 em bancos americanos), 12,6 para a Venezuela (dos quais 7,1 em bancos americanos).4 4 World Financial Market, abril e maio de 1986. Os capitais em fuga não foram apenas remetidos para os EUA e para os bancos americanos. O Uruguai serviu de exemplo de santuário para os capitais argentinos. O montante dos depósitos efetuados pelos argentinos atingiu, aí, 1 bilhão de dólares.

Podemos atribuir estas fugas de capital aos depósitos dos “não bancos” junto a seu sistema financeiro nacional (Quadro 1).

Quadro 1:
Depósitos dos “não bancos” dentro e fora de seus países (Em bilhões de dólares)

Este quadro mostra que a relação B/A evolui acentuadamente de 1981 a 1985 (multiplicou-se, aproximadamente, por três ou por quatro segundo o país). Constata-se que esta evolução ocorreu, em grande parte, durante 1982 e 1983. Os depósitos junto ao sistema bancário nacional baixaram acentuadamente na Argentina e no México, os depósitos no exterior aumentaram pouco; a relação B/A cresce, então, sensivelmente. Somente em 1983 ocorre o mesmo no Brasil, em consequência, fundamentalmente, de uma duplicação dos depósitos no exterior.

Estas cifras revelam a amplitude da fuga de capitais. Elas diminuem, entretanto, na maioria dos países. São inferiores às cifras da substituição de moedas. Esta, também denominada dolarização no sentido estrito, compreende, com efeito, além dos depósitos no exterior, o conjunto das divisas e dos efetivos liberados em divisas retidos no interior do país. Assim como estas cifras sugerem, igualmente, que a responsabilidade das fugas de capital na elevação da dívida externa é muito importante no México, na Venezuela, na Argentina, mas não é no Brasil. Esta conclusão é reafirmada no Quadro 2, no qual tentamos dimensionar o impacto das fugas de capitais, supondo, em primeiro lugar, que, em sua falta, a dívida e o pagamento de juros teriam sido reduzidos e, em segundo, que os outros fluxos de capital (investimentos diretos, balança de serviços, além dos juros pagos) teriam sido mantidos.

Quadro 2:
Dívida externa bruta (fim de 1985) (US$ bilhões)

Trata-se aqui apenas de uma apresentação contábil constatável. Como veremos mais adiante as mediações são mais complexas. Este dados trazem à luz dois pontos interessantes:

  • - é um equívoco atribuir ao Estado e às empresas públicas total responsabilidade pelo endividamento. As políticas econômicas adotadas têm frequentemente facilitado a fuga de capital. Voltaremos a isso. Mas elas estimularam os empréstimos no mercado europeu para compensar - entre outras razões - esta fuga. O jogo não foi feito a dois: o que empresta e o que toma emprestado, mas a três: o que empresta, o que toma emprestado e o especulador;

  • - os bancos internacionais aproveitaram-se grandemente dos empréstimos que fizeram aos países da América Latina até o início da década de 80. Beneficiaram-se igualmente dos depósitos efetuados pelos não residentes especulando com sua própria moeda. As cifras citadas para o México, Argentina e Venezuela são surpreendentes. Se é possível afirmar, como o faz J. Sachs, que “os bancos forneceram de algum modo uma intermediação: os agentes privados latino-americanos, emprestando dólares ao setor público latino-americano, a partir do exterior do país”,5 5 Jeffrey D. Sachs em um comentário do texto de Carlos Díaz Alejandro: “Latin American debt: I don’t think we are in Kansas anymore”, p. 398, Brocking Papers on Economic Activity, no. 2, 1984. é igualmente possível pensar que tudo se passou como no jogo infantil chamado “Banco Imobiliário”. Cada vez que o devedor ultrapassava a casa “saída”, as fugas de capital aumentavam e a dívida crescia.

  • 2) A avaliação feita pelo FMI e pelo Tesouro Americano subestima a importância da fuga de capital. Da maneira como foi avaliada, ela toma apenas uma parte da substituição das moedas efetuada em favor do dólar. Outras avaliações fundamentam-se no estudo da balança de pagamentos e correspondem mais à dolarização - no sentido estrito - que sofrem estas economias.

O Banco Morgan mede a fuga de capitais fazendo a diferença entre, de um lado, o fluxo de investimento direto, o crescimento da dívida externa bruta e, de outro lado, o saldo da balança das contas correntes ao qual se acrescenta o crescimento dos ativos retidos no exterior pelos bancos e pelas autoridades monetárias (Quadro 3).

Quadro 3:
Fluxos Acumulados, 1976-1985 (Em Bilhões De Dólares)

As cifras obtidas com esse método são mais significativas que as precedentes. Elas representam a demanda de dólar satisfeita correspondente aos residentes “não bancos”. Estes dólares, entretanto, não são todos colocados em bancos no exterior. Segundo a legislação cambial em vigor, a política monetária e cambial adotada, eles são igualmente colocados nos bancos no próprio país em contas-dólar.

Como se pode constatar, a Argentina (26 bilhões de dólares), o México (53), e a Venezuela (30) são profundamente atingidos pela fuga de capitais. A dolarização no sentido estrito é menos importante no Brasil (10). A fuga de capital parece haver diminuído sensivelmente na Argentina a partir de 1983. A diminuição é nítida na Venezuela também. No México, parece não seguir o mesmo ritmo.6 6 A fuga de capitais é sobretudo importante em 1983 quando ela retoma o nível atingido em 1981. Diminui pela metade em 1984 e em 1985 e poderia desaparecer em 1986. As estimativas feitas pelo Manufacturer Hanover e pelo Morgan Bank permitem supor que uma ligeira inversão dos fluxos poderia aparecer em 1986. The Economist, jun. 1986. Como destaca Sachs, os países do Sudeste da Ásia, até uma data recente, parecem menos atingidos por esse fenômeno. Aplicando o mesmo método de cálculo, as fugas de capital efetuadas na Argentina, no Brasil, no Chile, no México e na Venezuela elevam-se a 62,2 bilhões de dólares de 1979 a 1982 contra apenas 0,3 bilhão para a Coréia, a Malásia, as Filipinas, o Sri Lanka e Taiwan.7 7 Sachs, op. cit., p. 397.

Carlos Díaz Alejandro sublinha que o item “erros e omissões” do balanço de pagamentos constitui um indicador pertinente da importância tomada pelas fugas de capitais.8 8 C. Díaz Alejandro, op. cit., pp. 346, 347 e 362. O indicador é tão pertinente que a dívida privada não garantida não é conhecida. Rafael Paniagua Ruiz utiliza igualmente estes itens para avaliar a fuga de capitais em seu estudo sobre o México. Este item passa pela seguinte evolução: +686,2 milhões de dólares (1979), - 3,65 bilhões (1980), - 8,37 bilhões (1981) e - 6,57 em 1982 segundo o Banco do México. A razão erros e omissões sobre conta de capital líquido evolui de 30,5% em 1980 a 38,3% em 1981 e 108% em 1982,9 9 R. Paniagua Ruiz: Estado e Capital: O Caso do México. Tese da Universidade de Picardia 1984, p. 287, publicada sob o título: Prolegómenos para una teoría de los limites financieros del Estado; Iztapalapa, UAM, 1986. o que significa que foi necessário buscar, desde 1980, recursos no exterior10 10 A conta capital líquido passou de 4,5 bilhões de dólares em 1979 a 12 bilhões em 1980 para atingir 21,8 bilhões em 1981. para compensar a fuga de capitais. Estes recursos foram insuficientes em 1982.

O essencial da dívida externa de vários países latino-americanos poderia ser explicado pelas fugas de capital. Os números apresentados o sugeriram. Os dados mais precisos que acabamos de expor poderiam confirmar este julgamento. Tal explicação é, entretanto, insuficiente. Uma apresentação contábil deste tipo omite a influência de outros fatores. Antes de estudá-los em detalhe e de situar, assim, a responsabilidade da dolarização no sentido estrito no agravamento do endividamento, convém analisar as causas destas fugas de capital.

II.

Sabe-se que os regimes de câmbio são muito diversificados. Cinquenta e uma moedas são ligadas a uma outra, das quais trinta e três são ligadas ao dólar. Numerosas outras moedas são ou poderiam ser ligadas ao dólar por um sistema de “paridades flutuantes’’ que permite levar em conta a evolução de indicadores como o diferencial de inflação na fixação de paridade em relação ao dólar.

Como lembra H. Bourguinatd,11 11 H. Bourguinat: L’économie mondiale à decouvert, Ed. Calman Levy, 1985, pp. 54 a 64, principalmente. uma moeda pode pretender ser uma moeda veicular se ela possuir dois atributos: é preciso que ela possa gozar de uma aceitabilidade e de uma liquidez no conjunto do espaço monetário mundial; é preciso que ela seja estável ou, mais precisamente, que suas evoluções possam ser previstas. As funções de moeda de circulação e de pagamento correspondem ao primeiro atributo. As funções de reserva de valor e de numerário correspondem ao segundo.

O DM e o iene vêm desempenhando um papel crescente. O dólar, enquanto numerário, viu seu papel contestado, notadamente pelos DTS (Droits de Tirages Speciaux). As questões levantadas por ocasião da fixação do preço do petróleo são esclarecedoras a este respeito. Enquanto instrumento de câmbio, o peso do dólar relativizou-se. Os faturamentos seguem cada vez mais a tendência de serem efetuados em moedas locais no Japão e na Alemanha principalmente. Estas evoluções explicam-se em parte pela acentuada instabilidade das taxas de câmbio e pela evolução diferenciada das estruturas produtivas e das produtividades das economias do Centro.12 12 Nós abordamos esta questão em P. Salama: “France: le taux de change et sa manipulation “, em Critiques de l’Économie Politique, no. 29, 1985. Para um estudo aprofundado, ver Dehove: “Le taux de change et sus modeles theoriques”, CEP, no. 29, 1984, e Dehove e Mathis: “Le systérne monétaire international”, IRES Dossiers, 1985. Seria um erro, no entanto, considerar que o papel do dólar poderia tornar-se marginal em um futuro próximo. A supervalorização recente do dólar invalida tal tendência e se traduz por um papel crescente nos mercados financeiros internacionais nos últimos anos.

A instabilidade do dólar não afetou seu papel frente às moedas latino-americanas. A recuperação do dólar nos últimos cinco anos encontrou ressonância no México, na Argentina etc. Não somente a parte dos depósitos em divisas em relação aos depósitos em moeda local cresceu consideravelmente, mas igualmente a dolarização no sentido amplo elevou-se em numerosos mercados no interior desses países. O dólar, os títulos indexados pelo dólar serviram de unidade de compra para numerosos bens duráveis. Ocorreu também que estas compras se efetuassem diretamente em dólar no interior do país. Esta dolarização afeta profundamente a soberania monetária.13 13 Ver nosso artigo “Dettes et dolarisation”, em Problême d’Amérique Latine, no. 77, 1985.

A instabilidade do dólar não o impediu de tornar-se unidade contábil, quando não é instrumento de câmbio e, evidentemente, reserva de valor. Ou seja, a instabilidade das moedas latino-americanas terá sido mais importante que a do dólar, a partir de 1982, ou, mais exatamente, sua fragilidade terá crescido relativamente.

As moedas latino-americanas desvalorizaram-se profundamente até metade de 1984. Até então elas sofreram um processo de subvalorização. Em seguida, as desvalorizações obedeceram ao diferencial de preço.14 14 World Financial Market.

Os diferenciais de taxa de juro, de inflação, as antecipações jogam um papel importante na evolução das paridades. Este papel é, entretanto, difícil de ser medido. O peso destes fatores evolui. Assim, pode-se considerar que nos Estados Unidos uma elevação das taxas de juro, nos anos setenta, era sinal de uma incapacidade de dominar a inflação. Ao contrário, em anos mais recentes, esta mesma alta poderia ser interpretada como o sinal de um possível retraimento da inflação, de um aumento das taxas de juro real e suscitar uma demanda crescente de dólar provocando sua alta.

O desencadeamentos são diferentes na América Latina, como mostra o seguinte esquema:

O diferencial constatado e/ou antecipado dos preços mexicanos, argentinos etc. em relação aos preços norte-americanos constitui um fator chave. Os testes econométricos de Ramirez Rojas, Guillermo Ortiz15 15 Ramirez Rojas, op. cit., e G. Ortiz, “Currency substitution in Mexico: The dollarization problem”, em Journal of Money, Credit and Banking, vol. 15, 1983. o confirmam. As taxas de juro intervêm menos. Os especuladores repartem sua liquidez entre dólar e moeda local, seus créditos em dólar entre diferentes tipos de efetivos com base nas estimativas que eles próprios fazem das taxas de rendimento líquido, isto é, taxas de juros ajustadas pelas variações previstas das taxas de câmbio. Como o diferencial de inflação é muito elevado e tende a crescer, a avaliação que os agentes das taxas de câmbio futuro fazem adquire uma virtude heurística importante. As taxas de juro e sua evolução intervêm menos do que nos Estados Unidos. É também equivocado considerar que as taxas de juro real negativas, sua evolução caótica, que se observou na Argentina, no México tenham desencorajado a poupança e estimulado as fugas de capitais, como escrevem os monetaristas. As fugas de capital são tributárias da política econômica adotada e da possibilidade de converter a moeda local em divisas.

Na segunda metade dos anos setenta, observa-se o desenvolvimento de uma política de sobrevalorização das moedas latino-americanas em relação ao dólar, que dura até o início dos anos oitenta. Esta política tornou-se cada vez menos confiável.

As origens desta política econômica encontram-se no monetarismo (Chile, Argentina) ou não (Brasil, México).16 16 Ver o artigo de P. Arnaud, “Ambiguitês théoriques et incohérences politiques: le monétarisme appliquê à des economies semindustrialisées”, em Critiques de l’Économie Politique, n. 18, 1982.

Na Argentina, por exemplo, a política de revalorização do peso passou o item Taxa de câmbio/salário do índice 185,9 no quarto trimestre de 1976 ao índice 41,5 no quarto trimestre de 1980.17 17 A. Canitrot, “Ordre social et monétarisme en Argentine”, em Problêmes d’Amerique Latine, n. 4692 - 3, 1982, p. 86. Sabe-se que o FMI condena a supervalorização das moedas e taxas de juro baixas. É preciso lembrar que no Chile e na Argentina, a supervalorização tinha um fundamento liberal. Ela deveria permitir uma inserção na economia mundial mais conforme a disponibilidade dos fatores. Ela deveria igualmente servir de instrumento de luta contra a inflação, como veremos mais adiante. A ineficácia dessa política econômica reduziu fortemente sua credibilidade e conduziu a uma substituição de moedas mais importantes tão fácil de pôr em prática que o controle de câmbio foi suprimido.

Vimos quais foram os fundamentos da política de supervalorização no Brasil. Vamos recordá-los sucintamente.18 18 Em “Dettes et dollarisation”, op, cit., e em nossa contribuição ·ao colóquio do GREITD, “Endettement et accentuation de la misere”, em Tiers Monde, n. 99, 1984. Esta política tinha por objetivo incentivar as grandes empresas públicas a fazer empréstimos, maciçamente, no mercado de eurodólares. Em seguida, estas empresas depositavam no Banco Central as divisas obtidas, reservavam-se o direito de utilizar uma parte desse montante em seus projetos de investimento, obtinham, em troca, bônus do Tesouro indexados ao preço do dólar. O Estado se servia destes depósitos em dólar para aliviar a pressão externa, financiar parte do serviço da dívida, aumentar suas reservas.

A política de supervalorização foi frequentemente acompanhada (Argentina, México etc.) da possibilidade de deter as contas em dólar nos bancos locais.19 19 Esta disposição permitiu a Ramirez Rojas medir a substituição de moedas pela relação com a moeda local sobre divisas depositadas no sistema financeiro nacional. Op, cit. No México, por exemplo, os governos discriminaram os depósitos em moeda local a fim de favorecer os depósitos em divisas e os depósitos em pesos - convertidos em dólar - em seu próprio sistema bancário. As taxas de juro reais para os depósitos em parcelas de três meses em moeda estrangeira foram largamente superiores aos efetuados em moeda nacional e ligeiramente mais elevados do que os retidos nos EUA ou em Londres, como mostra o Quadro 4.

Quadro 4:
taxa de juros para os depósitos em parcela de 3 meses

O diferencial das taxas em favor dos depósitos em moeda estrangeira no sistema bancário mexicano freou a “saída” de capitais sem levar em consideração a substituição de moedas. Segundo Ortiz e Solis, a taxa de crescimento dos depósitos nos EUA dos residentes mexicanos foi reduzida em 2,1% durante este período, mas a taxa de crescimento dos depósitos em moeda estrangeira aumentou 3,7%.20 20 Ortiz e Solis: “Substitución de monedas e independencia monetaria: el caso de Mexico”, em Paniagua Ruiz, op, cit., p. 252. Com esse procedimento, o governo diminuiu os efeitos negativos da substituição da moeda, reutilizando os dólares obtidos para financiar a fuga de capitais e para reforçar a crença na estabilidade da moeda, propôs converter os pesos em dólares depositados em contas-dólar.21 21 Por isso pusemos aspas na palavra saída.

O diferencial das taxas de inflação jogou um papel considerável nas antecipações sobre as taxas de câmbio e no comportamento dos especuladores. O diferencial das taxas de juro diminuiu os efeitos negativos das saídas de capitais, mas não freou a substituição das moedas e a dolarização consecutiva da economia.22 22 As taxas de juros locais eram tão pouco competitivas que os não residentes se beneficiavam no exterior da supressão da retenção na fonte, o que elevava as taxas de rendimento real de seus depósitos no exterior.

As desvalorizações maciças, fortemente aconselhadas pelo FMI, dariam efetivamente razão aos especuladores, como mostra o Gráfico 1.

Gráfico 1:
valor acumulado em dólar dos certificados de depósito nos EUA, no Brasil, Argentina e México

CD = Certificado de depósito

Nota: Valor em 1985 de US$ 1 000 depositados em 1980 em cada um desses países, supondo que os juros sejam integralmente reinvestidos.


III.

Política econômica - fuga de capitais - endividamento - parecem constituir uma sequência explicativa pertinente. Os dois primeiros termos são, entretanto, insuficientes para dar conta da evolução do endividamento. Seria preciso introduzir os transtornos que o sistema financeiro internacional conheceu a partir de 1979 e suas consequências sobre o serviço da dívida e o endividamento a partir de um certo patamar da dívida. Não faremos isso aqui. Seria preciso, igualmente, avaliar a influência das estruturas econômicas, dos regimes de acumulação e suas evoluções, sobre o endividamento lembrando-se de que estes últimos não deixam de ter efeitos sobre os comportamentos especulativos. É o que faremos agora, centrando nossa atenção sobre a evolução econômica em três países: o México, a Argentina e o Brasil.

Estes três países representavam 60,7% do conjunto dos PNB da América Latina em 1960. Esta parte elevou-se a 76,5% em 1980. Nesta mesma data a parte das exportações de produtos manufaturados destes três países, em relação ao conjunto dos países latino-americanos, era avaliada em 72,3%.23 23 CEPAL, no. 7, 1981.

A evolução econômica destes três países foi muito diferente. O Produto Interno Bruto cresceu em média 7% ao ano no Brasil contra somente 1,2% na Argentina de 1970 a 1983 (ao preço de 1970). Desde 1976, com as descobertas de novos campos petrolíferos, o México conheceu uma orientação nova e diferente em sua economia.

Estes três países têm traços em comum de 1968 a 1975. Seus regimes de acumulação são muito próximos. O setor de bens de consumo não durável é globalmente letárgico, mas heterogêneo em sua composição, o setor dos bens de consumo durável e de bens de equipamento é dinâmico, a presença de empresas multinacionais é importante, sua expansão é sustentada graças a uma intervenção significativa do Estado no setor de bens intermediários. O dinamismo do conjunto deste regime de acumulação repousa sobre a capacidade política de crescer acentuadamente a taxa de mais-valia e as desigualdades sociais. Por isso pudemos qualificar este regime de acumulação seja como “excludente”, seja como de “terceira demanda” (a das camadas médias).24 24 A caracterização do regime de acumulação foi objeto de numerosos trabalhos. Para uma apresentação sintética e uma tentativa de esgotar o tema graças às contribuições da análise seccional, ver Cartier Bresson e P. Kopp, L’analyse sectionnelle, approche du systême productive en Amérique Latine. Le cas du Brésil, tese, Amiens, 1982. Esta capacidade política foi encontrada no Brasil graças à imposição da ditadura. Na Argentina não aconteceu o mesmo apesar dos sucessivos golpes de Estado militares.

O dinamismo deste regime de acumulação repousa igualmente sobre a capacidade de intensificar a internacionalização da produção no período de 1968 a 1974. A taxa de crescimento anual das importações em volume do conjunto dos países latino-americanos é de 0,4% de 1960 a 1965. Ela se eleva a 10,3% de 1965 a 1974. A evolução das exportações é diferente. Para as mesmas datas ela é de 5,6% e 4,1% em volume. Entretanto, graças a uma sensível melhora das condições de troca, a taxa de crescimento anual em valor é de 20,2% entre 1970 e 1975 contra 1,8% em volume. As importações em valor têm uma taxa de crescimento anual de 24,6% em valor, contra 8,6% em volume, entre estas mesmas datas. No conjunto, as importações crescem então mais rapidamente do que as exportações.

Mas se a América Latina se abre cada vez mais, sua participação no comércio mundial cai ligeiramente: a parte de suas exportações, em relação ao conjunto das exportações mundiais, é de 5,6% em 1965, e em 1973 é de 3,9%. Para as importações os números são 6,2% e 5%. A internacionalização da América Latina, nesta época, é, portanto, muito relativa.

A taxa de crescimento das importações do México, do Brasil e da Argentina é superior à do PIB mas inferior à da formação bruta do capital fixo de 1968 a 1974. Há um esforço muito importante de investimento no México e no Brasil. Ele suscita um inchamento das demandas de importação de bens de equipamento.

No total, o déficit comercial se aprofunda, a vulnerabilidade externa cresce. O déficit foi coberto por um endividamento crescente.25 25 O conjunto dos números vem das estatísticas publicadas pela CEPAL. Nós utilizamos aqui o estudo de André Furtado, ‘’Dinâmica sócio-econômica da América Latina’’, Novos Estudos, n. 14, fev. 1986. Para maiores detalhes (em francês), pode-se ler J. Cartier Bresson, “L’industrialisation bresilienne et la gestion de la contraite économique externe”, Paris, 1985, mimeo, e E. Jahni: “Un bilan comparatif des stratégies d’industrialisation appliqué au Brésil et en Argentine dans les anées 1970”, Paris, 1985, mimeo.

As consequências do primeiro choque petrolífero foram muito importantes. As importações baixaram sensivelmente. Sua taxa de crescimento tornou-se negativa para o conjunto dos três países e só retomou um valor positivo em 1977. As importações estagnaram em 1975, 1976 e 1977 no Brasil em relação ao nível atingido em 1974, ano que apresentara uma duplicação em relação a 1973. O ritmo das exportações não cresceu suficientemente e estas não puderam cobrir a defasagem de 1974. O excedente comercial, muito fraco em 1973 (7 milhões de US$) transformou-se em déficits muito importantes em 1974 (-4,7 milhões), 1975 (-3,5 bilhões) e 1976 (-2,2 bilhões). A retomada do equilíbrio da balança comercial brasileira produziu-se em 1977. Mas foi precário: em 1978 o déficit reapareceu (-1 bilhão), aprofundou-se em 1979 (-2,7 bilhões) e em 1980 (-2,8 bilhões) em consequência de um crescimento mais rápido das importações do que das exportações.26 26 Estes números vêm do Boletim do Banco Central e de Pedro S. Malan e R. Bonelli, “Crise internacional, crise brasileira: perspectivas e opções”, Pensamento Ibero-americano, n. 4, dez., 1983, p. 98.

Pode-se considerar que a partir de 1975 aproximadamente os principais traços que caracterizaram o regime de acumulação se modificam. O dinamismo da acumulação repousa menos que antes no desenvolvimento da produção de bens de consumo durável enquanto a desigualdade na distribuição da renda em favor das camadas médias continua a crescer.27 27 G. Mathias e P. Salama, “Heurs et malheurs des couches moyennes au Brêsil” em Tiers Monde, n. 100, 1985. A intervenção do Estado no setor energético, infraestrutural e na produção de bens intermediários pesa cada vez mais.

À exceção da Argentina e do Chile monetaristas, os países latino-americanos não exportadores de petróleo conhecem uma retomada da substituição das importações e tentam colocar em prática uma política industrial visando promover as exportações.28 28 As exportações crescem no ritmo anual de 7,8% de 1975 a 1981 contra 5,1% de 1965 a 1974 para os países da América Latina não exportadores de petróleo.

A taxa de cobertura da indústria manufatureira brasileira, isto é, a relação entre a produção e as importações, conhece a seguinte progressão: 40,2% (1970), - 61,3% (1973), - 54,2% (1975), - 91% (1978), - 97,7% (1979), - 115,9% (1980), - 179,7% (1981) e 180,6% (1982). A substituição de importação é particularmente forte na metalurgia entre 1975 e 1982 (a taxa de cobertura passa de 14,4% a 115,9%), na indústria da alimentação (105,9% e 165,9%), na química de base (14,2% e 100%), na mecânica (13,5% e 85%), no transporte (57,7% e 33,3%). A substituição das importações é menos importante na Argentina. A dificuldade em enfrentar os problemas ligados à amplitude insuficiente do mercado, a rentabilidade fraca dos setores-chave, as consequências negativas da política monetarista adotada explicam o pouco dinamismo da substituição de importações nesta época. A taxa de cobertura da indústria manufatureira conhece a seguinte evolução: 76,4% (1970), - 55,1% (1975), - 118% (1982). Entre 1975 e 1982, as taxas de cobertura são de 56,6% e 58,4% para o ramo de produtos metálicos, 38,2% e 79% para a química fina, 11,9% e 65,5% para os transportes, 36,60% e 44,26% para a indústria da alimentação, 39,5% e 21,6% para o ramo da mecânica (menos a elétrica), 11% e 28,1% para a química industrial etc.29 29 Jahni, op. cit. Fonte C HELEM-C EPII, pp. 46 e 57.

Desde 1976, enfim, o México conhece uma orientação diferente de sua acumulação. O regime de acumulação se modifica e começa a se diferenciar nitidamente do que vem sendo praticado no Brasil. Investimentos maciços são realizados na química pesada (petroquímica), as importações destinadas à aplicação e ao desenvolvimento desta indústria aumentam consideravelmente e a competitividade do conjunto da indústria manufatureira se deteriora. O país depende cada vez mais do petróleo mundial, tanto a nível do poder de compra de suas exportações quanto de suas receitas fiscais.

1982 constitui uma virada para estes países. A crise financeira até então em gestação torna-se aberta e pesa mais e mais sobre as opções industriais destes países. Os regimes de acumulação mudam. A definição dos novos regimes de acumulação é ainda embrionária. De imediato, a crise financeira conduz a mutações no aparelho industrial; a substituição das importações é imposta, a promoção das exportações é fortemente estimulada. O Brasil e a Argentina chegam a ter saldos positivos em suas balanças comerciais. O Brasil obtém o terceiro saldo positivo mais importante do mundo após o Japão e a Alemanha e continua, ao mesmo tempo, a se endividar. O México obteve um saldo positivo comparável, mas bem mais frágil. Este país não pode tirar benefícios das desvalorizações maciças, sua indústria tornou-se obsoleta e a manutenção deste saldo exigiria uma mudança total na cotação mundial do petróleo.

No total, o período que cobre estes vinte últimos anos é caracterizado por uma sucessão de regimes de acumulação. Em um primeiro momento, eles favoreceram o desenvolvimento de saldos negativos nas balanças comerciais suscitando demandas derivadas de importações cujas taxas de crescimento eram maiores do que as das exportações. Os choques petrolíferos renovaram-se e conduziram, em alguns casos, à opção por políticas industriais que visavam reforçar a substituição das importações e a promoção das exportações.30 30 Pode-se medir o impacto dos choques petrolíferos e financeiros calculando, de um lado, os empréstimos líquidos dos bancos acrescidos do valor das exportações e, de outro lado, os pagamentos de juros aos quais soma-se o valor das importações de petróleo. Subtrai-se o primeiro termo do valor do segundo e se obtêm os seguintes números (em bilhões de dólares): . A redução do “resíduo”, isto é, o que resta uma vez pagos o serviço da dívida e as importações do petróleo, é impressionante. Ela testemunha ao mesmo tempo a amplitude ganha pela transferência líquida de capital destes países para os bancos dos países do Centro e a redução maciça das importações. Esta redução vai se tornar muito mais importante e a necessidade de aumentar as exportações muito mais imperativa que estes países se beneficiarão cada vez menos dos empréstimos como já o apontamos na introdução. Contrariamente ao que escrevemos em outro momento, não se pode dizer que os regimes de acumulação tenham sistematicamente favorecido os déficits da balança comercial e provocado o inchamento da dívida. A passagem de um regime de acumulação caracterizado pelo dinamismo do setor de bens de consumo durável a um regime de acumulação caracterizado por uma importante intervenção do Estado - no setor energético, infraestrutural e nos bens intermediários acompanhou-se por uma substituição de importações e do incentivo às exportações, importantes mas insuficientes para absorver o impacto ocasionado pelos choques petrolíferos em um primeiro momento e, posteriormente, suficientes para liberar um excedente comercial considerável.

A abertura das economias latino-americanas se fez com importantes déficits de 1968 a 1973. Estes déficits foram cobertos por empréstimos no mercado de eurodólares e cresceram logo após esta data e, em seguida, diminuíram.31 31 O déficit comercial foi de 0,2 bilhão em 1977 (houve um ligeiro excedente em 1979: 0,4), 1,6 (1980) e 2 em 1981. Havia sido 5,6 bilhões em 1975. CEPAL, n. 25, abril 1985. O conjunto das estatísticas que seguem vêm da CEPAL. (Como se sabe, eles se transformaram em excedentes consideráveis no início dos anos 80.) O serviço da dívida aumenta consideravelmente. Os empréstimos aumentaram e serviram cada vez mais para financiar o serviço da dívida e a fuga de capitais em alguns países. O pagamento líquido dos juros e dos lucros para o conjunto da América Latina conhece a seguinte evolução: 5,6 bilhões de dólares (1975), 8,2 (1977) e 13,7, enfim, em 1979.32 32 O pagamento dos juros líquidos foi, no Brasil: 0,65 bilhão de dólares (1974), 1,5 (1975), 1,8 (1976), 2,1 (1977), 2,7 (1978) e 4,1 bilhões (1979). Boletim do Banco Central. Em 1979 houve uma modificação importante na política monetária americana que teve como consequência imediata a passagem a taxas de juros reais fortemente positivas. Os encargos da dívida aumentaram então consideravelmente. O pagamento líquido dos juros e lucros conhece a seguinte evolução: 18 bilhões de US$ (1980), 27,7 (1981), 37,6 (1982), 34,5 (1983), 37,3 em 1984. O crescimento da dívida encontra, como causas principais, o pagamento dos juros, a fuga de capitais e o déficit cada vez menor da balança comercial que vai se reduzindo até 1981 e se transforma, como se sabe, em excedentes consideráveis: 9,7 bilhões de US$ (1982), 31,4 (1983) e 37,6 em 1984.

Pode-se tentar uma periodização. Quatro períodos podem ser distinguidos nestes últimos vinte anos. O primeiro é bem clássico: caracteriza-se por um déficit comercial e um apelo aos capitais estrangeiros. O segundo assiste a um inchamento dos encargos da dívida. O terceiro período se caracteriza pela autonomia da dívida. Esta se separa cada vez mais do sistema produtivo e se autoalimenta. O pagamento dos juros ultrapassa as quantias dispensadas para a compra, no exterior, de bens de equipamento. Os empréstimos servem cada vez mais aos financiamentos do serviço da dívida e a fuga de capitais. O quarto período se caracteriza por uma substituição dos empréstimos pelo excedente da balança comercial no financiamento do serviço da dívida e da fuga de capitais. A dívida continua a crescer, mas em um ritmo menos intenso.

Quadro 5:
Periodização

Definimos em outra parte a autonomia da dívida pela função juros líquidos sobre importações de bens de equipamento. Esta função ultrapassa a unidade por volta de 1979 na maioria dos países. Pode-se considerar então que a dívida cresce por seu próprio jogo. Para maiores detalhes ver nosso artigo: “Dettes et dolla­risation”. Problémes d’Amérique Latine. Documentation Française, 1985.


A dolarização, no sentido estrito,33 33 A dolarização no sentido estrito corresponde, recordemo-nos, à substituição das moedas e, pois, à fuga de capitais. Os dólares assim obtidos podem ser investidos no exterior ou no interior do país. A dolarização no sentido amplo define uma situação na qual a moeda nacional perde sua função de unidade contábil para certos mercados de bens duráveis, de equipamento em benefício seja do dólar, seja de um pseudo dólar (título indexado na cotação do dólar). agravou profundamente o peso da dívida no México, na Argentina, na Venezuela, no Uruguai. Vimos, com efeito, que o aumento dos empréstimos no exterior provinha em parte da necessidade de financiar a fuga de capitais. O crescimento considerável da dívida tem, assim, três causas, cuja importância varia segundo o país: os déficits da balança comercial, as fugas de capitais, as políticas econômicas adotadas. À estas três causas internas convêm acrescentar uma causa externa: as modificações ocorridas no funcionamento do sistema financeiro internacional quanto à evolução das taxas de juro real. As três causas não são independentes entre si: a política econômica adotada pode se traduzir por uma fuga de capitais mais ou menos importante, por déficits comerciais substanciais. Estes últimos enfim são dependentes da estrutura econômica do país etc.

Da mesma forma, é difícil fazer uma distinção entre causas internas e causas externas: as modificações ocorridas no funcionamento do sistema financeiro internacional só têm consequências importantes se a dívida atinge um certo patamar. Este patamar tendo sido atingido em 1979, pode-se considerar que estas modificações não fizeram senão acelerar um processo já profundamente enraizado e desenvolvido.

Evoca-se frequentemente a política monetária e cambial seguida para explicar a fuga de capitais e o inchamento consecutivo da dívida. Taxas de juros muito baixas, taxas de câmbio supervalorizadas explicariam esta fuga à exceção das causas estruturais ligadas aos regimes de acumulação e ao lugar que estes países ocupam na divisão internacional do trabalho. Vimos isso anteriormente. No entanto, o que é interessante notar é que em alguns países (Argentina, Chile) esta política foi feita precisamente em nome da ortodoxia. Tratava-se de reencontrar uma especialização internacional optimal perdida em razão das intervenções múltiplas do Estado que consistiam em proteger uma indústria nacional não correspondente às disponibilidades de fatores. A concorrência “salvadora” se realizaria muito mais facilmente se as barreiras alfandegárias fossem relaxadas e se as taxas de câmbio fossem supervalorizadas.

Tratava-se igualmente de reduzir a taxa de inflação. A heterodoxia, se podemos chamá-la assim, consistiu em manipular a taxa de câmbio mais do que a base monetária. Segundo estes economistas, a inflação poderia ser reduzida se as antecipações em relação à alta fossem modificadas. Bastaria que o Governo anunciasse uma desvalorização inferior à que deveria ser calculada a partir de um diferencial de altas dos preços entre o país e os Estados Unidos inferior ao que havia sido, para que se acreditasse que este diferencial reduzido se realizasse. Este efeito de divulgação deveria, assim, reduzir as antecipações em relação à alta e conduzir a uma redução da taxa de inflação.34 34 Compreendeu-se que este monetarismo “pragmático” poderia ser criticado utilizando-se os argumentos da escola das antecipações racionais e que estaria aí toda a ironia (trágica) da história.

A não realização dos objetivos fixados pelo Governo conduziria a uma supervalorização de fato. A desvalorização anunciada e aplicada era, de fato, inferior ao diferencial efetivo das altas de preços. Esta situação conduziu a uma agravação das antecipações em relação à alta.

Se a supervalorização da moeda é acompanhada de um desmantelamento do controle do mercado, da possibilidade de ter contas-dólares, a dolarização no sentido estrito pode se desenvolver. Os especuladores aguardam uma maxidesvalorização e agem em consequência. Ao contrário, se a supervalorização da moeda é acompanhada de uma política de controle do mercado rigorosa, a possibilidade de não ter contas a não ser em pseudo dólares (títulos indexados pela cotação do dólar), como foi o caso do Brasil, ela não conduz necessariamente a uma dolarização no sentido estrito da mesma amplitude, mas a uma dolarização no sentido amplo crescente. Os títulos indexados pela cotação do dólar tornam-se unidades contábeis, no lugar da moeda oficial, em numerosos mercados. A amputação das funções da moeda é real, mas a fuga de capitais não adquire a dimensão que tomou na Argentina, Venezuela etc., e o dólar serve menos de intermediário para as transações.

Nos dois casos, a soberania monetária é afetada. O grau de gravidade não é, entretanto, o mesmo. Em um caso, a dolarização no sentido estrito é importante. Por isso, a dolarização no sentido amplo existe também. No outro caso, a dolarização no sentido amplo é acentuada na falta de um crescimento substancial da dolarização no sentido estrito. As consequências são diferentes. O dólar serve muito pouco de intermediário nas transações neste segundo caso. A origem do crescimento da dívida é diferente. No primeiro caso, a dívida cresce sobretudo por causa das fugas de capitais e do conjunto dos outros fatores citados anteriormente. Estas fugas têm uma virtude heurística menos importante no segundo caso.

IV.

Os planos Austral e Cruzado foram apresentados como heterodoxos. Eles se opunham não apenas às políticas preconizadas pelo FMI, mas também às políticas de austeridade tradicionais adotadas anteriormente a estes Planos. É o que discutiremos rapidamente em um primeiro ponto. A eficácia destes planos está na sua capacidade de resolver duradouramente a pressão financeira, diminuindo acentuadamente o ritmo da inflação sem provocar uma desindustrialização irremediável. A possibilidade de reduzir a dolarização mantendo a inflação em um nível baixo e estimulando o crescimento depende da situação econômica que estes países possuíam às vésperas do anúncio destes Planos. É o que mostraremos em um segundo ponto. Isto nos conduz a discutir a possibilidade de suprimir a indexação interna preservando a indexação externa (A$/US$ e Cz$/US$) e a manutenção do serviço da dívida.

Duas considerações preliminares devem ser feitas. Não trataremos aqui do monetarismo em geral.35 35 Remetemos o leitor ao número 18 de Critique de l’Économie Politique, Paris, Maspero; à resenha editada por E. Neil, Free Market conservation: a critique of theory and practice, Allen and Unwin, 1984, e a Hahn: Monaie et inflation, Ed. Economica, 1984. Não é o objeto de nosso artigo. Enumeraremos os aspectos ortodoxos e heterodoxos destes Planos. Esta questão é tratada mais substancialmente em outros estudos. Esta opção não significa que consideramos esta questão secundária. Atrás dos planos propostos há, frequentemente, projetos diferentes de sociedade.

Segundo Lemgruber, a única heterodoxia do Plano Cruzado - e ainda assim moderada - viria do congelamento dos preços; “quanto ao resto, o programa anti-inflacionário poderia perfeitamente ser considerado como ortodoxo”.36 36 Lemgruber, “Anotações sobre o Plano Cruzado”, in Conjuntura Econômica, abril 1986, vol. 40, n. 2. Não haveria verdadeiramente heterodoxia, segundo este autor, a não ser que o Plano compreendesse uma mudança radical no pagamento da dívida, talvez uma moratória. Esta observação contém vários aspectos que nos parecem pertinentes, sem que sejamos totalmente partidários do conjunto de pontos de vista do autor.

Reduzir o déficit público, as despesas públicas, controlar as empresas públicas, privatizá-las (Argentina, sobretudo), enfraquecer a intervenção do Estado, controlar a massa monetária (Argentina), elevar as tarifas públicas (Argentina), fazer uma desvalorização (Argentina), etc. constituem um conjunto de medidas no mínimo bastante ortodoxas. Considerar que a inflação “inercial” poderia ser eliminada com um simples congelamento dos preços é uma concepção original. Ela tem a vantagem de oferecer um grande consenso aparente, mas permite supor, assim que se aprofunda a questão, que a responsabilidade da inflação estaria ligada à vontade dos assalariados de manter seu poder de compra. A inflação seria, de fato, o resultado de uma inflação “normal” - do tipo da que existe nos países capitalistas desenvolvidos37 37 Ver as declarações de Funaro na Folha de S. Paulo, de 9.3.1986. Segundo Funaro, a inflação estrutural corresponde a uma fase da industrialização que estaria hoje ultrapassada. Numerosas divergências existem sobre a interpretação da inflação. Ver Revista de Economia Política, n. 2, 1985, e os artigos de Bresser-Pereira e Nakano reunidos em Inflação e Recessão, Brasiliense, 1985. - e de uma inflação dita “inercial” porque provém da indexação. Esta concepção é evidentemente contestável. A inflação “inercial” não é um enorme ajuntamento. A supressão da indexação não permite retomar a inflação “normal”. Em outras palavras, o “choque heterodoxo”, mais precisamente o congelamento dos preços, pode ter um efeito inclusive duradouro, sobre a inflação, mas por razões diferentes. Não se trata de uma simples querela de escolas. Todos os mecanismos, inclusive e principalmente a nível da acumulação, são afetados e a operação não poderia ser neutra. Seu sucesso depende de medidas complementares tomadas pelos governos. É, aliás, o que alguns compreenderam, a nível dos sindicatos evidentemente, mas também em outros setores com posições diferentes. Assim, alguns sugerem que se previna os efeitos negativos que poderia ter o Plano sobre a rentabilidade das empresas deixando deteriorar os salários porque os preços relativos existentes às vésperas do dia D não estavam equilibrados, acrescenta-se. Eles serviriam apenas de referência para a manutenção da distribuição da renda.

Os salários reais baixaram em Israel. Um plano análogo foi adotado para eliminar a inflação e reduzir a dolarização da economia.38 38 Ver “Israel’s economy: inflation is town, but quite out”, in The Economist, de 12.7.1986, e os estudos apresentados por P. Arida, Brasil, Argentina, Israel: A inflação zero, Paz e Terra, 1986. Os salários reais baixaram igualmente na Argentina após a instalação do Plano. Eles ainda não baixaram no Brasil e não é garantido que baixem. O Governo parece preferir conter a demanda através de uma poupança obrigatória.39 39 Uma série de medidas visam conter a demanda de bens de consumo duráveis e não duráveis que, já forte em 1985, acelerou-se logo após a divulgação do Plano Cruzado. A remonetarização e, portanto, a descapitalização (os títulos perdem seu atrativo: eles permitem preservar o poder de compra da moeda e são igualmente desindexados com o Plano) são em parte responsáveis pela penúria observada em vários mercados. Esta descapitalização conduz a uma oferta de empréstimos insuficiente. As medidas complementares têm por objetivo dissimular esta situação (de maneira heterodoxa) e encontrar fontes de financiamento para os programas do Governo (notadamente sociais) e estimular o investimento graças à imposição de uma poupança reembolsável. Ver Financial Times, de 24.7.1986.

A insistência com a qual alguns apresentam o plano Cruzado como um plano neutro a nível da distribuição de rendas traduz uma concepção heterodoxa do ajustamento. A heterodoxia iria mais longe, certamente, se eles previssem uma redistribuição da renda como outros propõem. Todavia ela está presente. A neutralidade buscada parece ter vários objetivos: prevenir o temor dos que poderiam supor que o congelamento dos preços possa ocasionar uma diminuição do poder de compra; buscar uma adesão global ao Plano; considerar garantidos os aumentos salariais recentes; confirmar a virada “keynesiana” tomada pelo ministro Funaro após a gestão mais ortodoxa do ministro Dornelles; assegurar que esta é a única via possível hoje e que qualquer outra arriscaria provocar graves perturbações em um momento em que o nível de inflação tornou-se muito perigoso; finalmente e talvez principalmente buscar e reforçar uma legitimidade ameaçada opondo-se - de maneira nacionalista, se for preciso - aos planos de ajustamento propostos pelo FMI.

A dolarização no sentido estrito é apenas uma das causas, mais ou menos importante, do endividamento. As políticas monetárias e cambiais a aceleraram ou a frearam, sem, todavia, diminuir a dolarização em sentido amplo. Seria, então concebível pensar que a supressão da indexação interna possa durar sem que se leve em conta a indexação externa (manutenção das paridades flutuantes) e o pagamento da dívida externa? Em outras palavras, a manutenção da indexação externa e o pagamento da dívida não constituiriam uma grande dificuldade à busca da desindexação e facilitariam a manutenção da dolarização estrita e/ou ampla? O sucesso destes planos de ajustamento depende de sua capacidade de resolver estes problemas. Caso obtenham sucesso, residiria aí a heterodoxia.

Sabemos o que é a dolarização estrita por havermos analisado detalhadamente sua importância, suas causas e suas consequências. Definimos o que era a dolarização em sentido amplo. Desenvolvemos em outro estudo40 40 Desenvolvemos a dolarização sobretudo em Dettes ... , op. cit. os mecanismos de seu desenvolvimento. Seria útil recordarmos aqui sucintamente estes aspectos para trazer alguns elementos de resposta à questão colocada.

A dolarização em sentido amplo se define pelo abandono de uma das funções da moeda, a de unidade contábil, em benefício de uma outra moeda ou de uma pseudo moeda ligada à cotação do dólar. Ela não é, então, o produto de uma substituição de moeda, mas o resultado da decadência de uma das funções da moeda. Ela constitui um excelente fermento para o desenvolvimento de uma dolarização no sentido estrito. A partir de um certo patamar os especuladores podem, com efeito, tentar contornar a lei sobre os câmbios. Desde que haja liberdade de câmbio, as duas dolarizações se autoalimentam.

A dolarização em sentido amplo se manifesta igualmente através do que se convencionou chamar de dolarização de uma parte do balanço das empresas e de uma parte do orçamento do Estado. Ao fazerem empréstimos em dólar assumindo os riscos do câmbio, seu passivo se dolariza parcialmente. Sua dívida é reembolsada em dólar via Banco Central, sendo indexada pela cotação do dólar. A dívida, calculada em moeda local, das empresas, evolui no ritmo das desvalorizações (e das taxas de juro, evidentemente). Se as taxas de desvalorização correspondem às taxas de elevação dos preços - mais exatamente do diferencial de preços - não há agravação da situação financeira das empresas. Mas se a dívida é contraída no momento em que a moeda estava supervalorizada e se ela deve ser reembolsada no momento de subvalorização há agravação da situação financeira.41 41 A evolução em termos reais dos encargos financeiros das empresas públicas no Brasil foi de 145,22% entre 1980 e 1984. A evolução dos investimentos destas empresas foi de - 34,15% e a evolução de suas despesas globais (menos os encargos financeiros) foi de - 15% entre estas mesmas datas. Cf. “Le Plan Cruzado et les finances publiques brésiliennes”, documento publicado pela Agence Financiêre pour le Brésil et le Cone Sud de l’Amerique Latine.

A agravação da situação das empresas pode conduzir a três tipos de comportamento: aumentar os preços e precipitar a inflação; baixar os salários reais; acentuar a necessidade de financiamento das empresas dolarizando desta vez uma parte do ativo, seja pela compra de pseudo dólares (títulos indexados pela cotação do dólar), seja pela compra de dólar, caso isso seja possível. Trata-se, entretanto, de comportamento microeconômico. Em um nível macroeconômico, uma medida de retomada da atividade pela demanda pode ser pensada. Ela pode melhorar a rentabilidade das empresas, diminuir o encargo da dívida pela relação com o número de negócios; o risco de uma aceleração da inflação é, entretanto, grande. É esta política econômica que foi adotada em 1985 pelo Brasil.

A indexação da dívida interna das empresas conduz a uma situação dificilmente superável se são seguidas as diretrizes do FMI. A desvalorização, quando se situa além do que é necessário para compensar o diferencial de inflação, conduz a novas desvalorizações. A queda do poder de compra exerce um efeito deprimente sobre a atividade econômica. A desindustrialização se desenvolve. A superinflação se agrava. Pode-se, provavelmente, encontrar aí uma das razões que conduziram à paralisação, em meados de 84, do processo de subvalorização das moedas no qual havia se engajado o conjunto das economias latino-americanas. Pode-se igualmente pensar que esta foi uma das razões maiores que levaram o Governo Brasileiro a permitir que se instalasse, às vésperas do dia D, uma situação caracterizada por uma diminuição ligeira do diferencial de câmbio sobre o diferencial dos preços e não o corrigir logo em seguida.

Esta indexação tem efeitos análogos no Orçamento do Estado. Se o Governo emite títulos indexados pela cotação do dólar, os encargos da dívida interna são em parte dolarizados. Se a taxa de desvalorização é superior à alta dos preços, se o déficit do orçamento deve igualmente ser reduzido, as outras despesas, além destas, correspondentes aos encargos da dívida interna são reduzidas mais fortemente do que o conjunto das despesas públicas (salvo se as receitas aumentarem em ritmo suficientemente acelerado). Tal situação torna difícil a manutenção do desenvolvimento de uma política social, assim como a manutenção dos investimentos públicos.

Medidas radicais foram tomadas para reduzir o déficit. Elas foram mais eficazes na Argentina, no Brasil do que no México. O déficit do “setor público não financeiro” na Argentina foi consideravelmente reduzido: 10,6% do PIB (1983), 4,8% (1985), graças a uma elevação importante das receitas e a uma diminuição das despesas. A redução do déficit do orçamento no Brasil foi igualmente importante. A apresentação do orçamento tornava difícil a avaliação exata do déficit. Até bem recentemente existia um orçamento fiscal e um orçamento monetário. O primeiro não incluía senão 40%, aproximadamente, dos encargos da dívida interna, ficando o restante ao encargo do segundo orçamento. Os encargos incluídos no orçamento monetário (22,3 bilhões de Cz$) são apenas um pouco superiores ao excedente do orçamento fiscal (20,7), o que corresponde a um saneamento considerável das finanças públicas que pode ser obtido por uma redução dos investimentos públicos e um aumento das receitas. Todavia, a dívida interna, indexada pelos preços e/ou pelo dólar, progrediu fortemente: 12% do PIB (1981), 22,3% (1983) e 29% (1985). Os encargos da dívida interna se elevam a 35,8% do orçamento da União, número que deveria se manter em 1986.42 42 Cf. Agence Financiêre pour les pays du Cone Sud de l’Amérique Latine, “Argentine: situation économique et financiêre au quatriéme trimestre 1985, et pour le Brésil: bilan de l’année 1985 au Brésil”.

A situação agravou-se mais no México. Evidentemente o déficit relacionado ao PIB foi reduzido: 12,4% (1981), _15% (1982), 7,8% (1983), 5% (1984) e7,50Jo (1985). Mas o serviço da dívida interna adquiriu um peso considerável. Se não considerar­mos os encargos financeiros, o orçamento possui excedente desde 1983: 7,4% (1981), 5,9% (1982), depois - 6,3% (1983), - 6,6% (1984) e 5% em 1985. Os juros da dívida foram multiplicados por trinta de 1979 a 1984.43 43 Relatório do Banco do México.

A desindexação deveria romper o mecanismo de agravação dos encargos da dívida das empresas e do Estado. Duas condições são, entretanto, necessárias.

A primeira, mais evidente, concerne à alta dos preços: é preciso que ela seja ·contida duradouramente. Se tal objetivo é atingido, o retorno à indexação interna não é mais necessário. A indexação externa mantém. as paridades, as corrige pelo ritmo lento do diferencial dos preços observado. O efeito da indexação externa é anulado. A dolarização em sentido amplo é profundamente atenuada, as novas moedas (cruzado, austral) retomam sua função de unidade contábil.

Mas a contenção duradoura da alta dos preços não pode ser obtida pelo congelamento dos preços. Ele constitui um obstáculo insuperável assim que os problemas ligados à acumulação e à distribuição da renda não encontrem solução. Na Argentina, já se assiste a uma retomada da alta dos preços. A espiral salários/preços pressiona no sentido de uma indexação renovada. E o ciclo descrito anteriormente reaparece ... Por isso uma segunda condição se faz necessária.

A desindexação não pode desembocar em uma dolarização no sentido amplo e no sentido estrito a não ser que medidas complementares, de caráter estrutural, venham a ser tomadas. O tipo de medidas a tomar depende da situação econômica herdada das ditaduras. Elas podem ir até à moratória do principal da dívida e/ou dos juros, o que acarretaria ipso facto uma desindexação da moeda com o dólar.

O serviço da dívida não se reveste da mesma significação e não possui as mesmas características em uma economia em meio à desindustrialização (Argentina) e em uma economia beneficiando-se de um crescimento vivo (Brasil). Na Argentina, o desconto em relação ao valor acrescido das empresas é da ordem de 1,8% (1980), 4,8% (1981), 8,9% (1982), 8,8% (1983) e 8,1% (1984), o que é considerável. A taxa de poupança das empresas decresce fortemente: 0,8% (1980), - 3,3% (1981), - 1,8% (1983) e - 11,5% (1984). O PIB aumentou ligeiramente em 1983 e em 1984 graças a uma descapitalização importante, um ligeiro aumento do emprego que provocaram um aumento do consumo e da produção. Esta desindustrialização não é nova na Argentina. O desconto em função da dívida somente a agrava. Em 1985, a produção baixou novamente, a alta dos preços acelerou-se novamente no início de 1986.

Não se pode dizer que o agravamento da situação seja hoje irreversível.44 44 A produção de bens de equipamento aumentou fortemente em fins de 1985, os encargos da dívida diminuíram ligeiramente graças à queda das taxas de juros reais, a dolarização em sentido estrito diminuiu: os agentes diminuíram seus depósitos em dólar em favor do austral a fim de beneficiar taxas de juros mais elevadas. Para o conjunto destas estatísticas, ver Agence Financiére pour les pays du Cone Sud de /’Amérique Latine: “Situation économique et financiére de l’ Argentine”. De qualquer maneira, o pagamento da dívida sem anular o crescimento e mantendo a inflação em um ritmo lento parece ser um desafio impossível de manter, tanto que medidas mais heterodoxas do que as definidas no Plano Austral não serão tomadas. A dolarização corre, então, o risco de se desenvolver novamente.

Dominar a inflação, isto é, conquistar a desindexação depende da capacidade de resolver o problema da dívida externa sem provocar uma desindustrialização. Se o crescimento se desenvolve, apesar do pagamento do serviço da dívida, se o crescimento das importações de bens de equipamento necessários a este crescimento não reduz substancialmente o excedente comercial, então torna-se possível que a desindexação conduza a uma dolarização, em sentido estrito e em sentido amplo. Tal possibilidade parece existir hoje no Brasil a menos que seja confirmada, talvez mesmo acentuada, a política de retomada pela demanda praticada em 1985 e que ela seja acompanhada de uma substituição das importações de bens de equipamento. O sucesso passa, então, por uma diminuição das desigualdades, por um desenvolvimento da demanda de bens de consumo. Mas isto não se chama fordismo? E não estaria aí a heterodoxia mais eficaz em relação aos planos ortodoxos do FMI?

Entretanto, a aparição e o desenvolvimento de estrangulamentos do lado da oferta constituem um obstáculo provisório ao processo de expansão do mercado interno e ao pagamento do serviço da dívida, até então realizado com os resultados do crescimento. A insuficiência dos investimentos passados torna rígida a oferta em relação à demanda e pode introduzir uma deterioração do poder de compra. Assim, para a manutenção do poder de compra e a continuidade do crescimento industrial - sem hiperinflação - torna-se necessária a renegociação do pagamento da dívida externa, a fim de atenuar seus efeitos negativos sobre a expansão e tornar possível uma maior elasticidade da oferta.

  • 1
    Banco dos Pagamentos Internacionais - 57º. Relatório, Bâle, 9 de junho de 1986, ver pp. 98, l 09, 142 e segs. Sobre os novos produtos financeiros, ver o artigo de H. de la Bruslerie, “Les marchés financiers internationaux et l’evolution del’activité bancaire”, em H. Bourguinat e J. Mistral, La crise de l’endettment international, Ata II, Ed. Economica, 1986.
  • 2
    Banco Mundial, Debt and Developing World 1984; ver igualmente J. Ramos, “Stabilization and adjustment policies in the Southern Cone 1974-1983”, Revista da CEPAL, n? 25, abril de 1985.
  • 3
    Estes dados superestimam o montante das fugas de capital pois eles incluem os depósitos no estrangeiro das empresas públicas, de um lado. De outro, eles subestimam as fugas. Não levam em consideração os depósitos não identificados e sobretudo não compreendem o conjunto dos efetivos liberados em divisas, depósitos e retenções individuais em divisas que permaneceram no país e que não foram, portanto, efetuados nos bancos estrangeiros.
  • 4
    World Financial Market, abril e maio de 1986. Os capitais em fuga não foram apenas remetidos para os EUA e para os bancos americanos. O Uruguai serviu de exemplo de santuário para os capitais argentinos. O montante dos depósitos efetuados pelos argentinos atingiu, aí, 1 bilhão de dólares.
  • 5
    Jeffrey D. Sachs em um comentário do texto de Carlos Díaz Alejandro: “Latin American debt: I don’t think we are in Kansas anymore”, p. 398, Brocking Papers on Economic Activity, no. 2, 1984.
  • 6
    A fuga de capitais é sobretudo importante em 1983 quando ela retoma o nível atingido em 1981. Diminui pela metade em 1984 e em 1985 e poderia desaparecer em 1986. As estimativas feitas pelo Manufacturer Hanover e pelo Morgan Bank permitem supor que uma ligeira inversão dos fluxos poderia aparecer em 1986. The Economist, jun. 1986.
  • 7
    Sachs, op. cit., p. 397.
  • 8
    C. Díaz Alejandro, op. cit., pp. 346, 347 e 362. O indicador é tão pertinente que a dívida privada não garantida não é conhecida.
  • 9
    R. Paniagua Ruiz: Estado e Capital: O Caso do México. Tese da Universidade de Picardia 1984, p. 287, publicada sob o título: Prolegómenos para una teoría de los limites financieros del Estado; Iztapalapa, UAM, 1986.
  • 10
    A conta capital líquido passou de 4,5 bilhões de dólares em 1979 a 12 bilhões em 1980 para atingir 21,8 bilhões em 1981.
  • 11
    H. Bourguinat: L’économie mondiale à decouvert, Ed. Calman Levy, 1985, pp. 54 a 64, principalmente.
  • 12
    Nós abordamos esta questão em P. Salama: “France: le taux de change et sa manipulation “, em Critiques de l’Économie Politique, no. 29, 1985. Para um estudo aprofundado, ver Dehove: “Le taux de change et sus modeles theoriques”, CEP, no. 29, 1984, e Dehove e Mathis: “Le systérne monétaire international”, IRES Dossiers, 1985.
  • 13
    Ver nosso artigo “Dettes et dolarisation”, em Problême d’Amérique Latine, no. 77, 1985.
  • 14
    World Financial Market.
  • 15
    Ramirez Rojas, op. cit., e G. Ortiz, “Currency substitution in Mexico: The dollarization problem”, em Journal of Money, Credit and Banking, vol. 15, 1983.
  • 16
    Ver o artigo de P. Arnaud, “Ambiguitês théoriques et incohérences politiques: le monétarisme appliquê à des economies semindustrialisées”, em Critiques de l’Économie Politique, n. 18, 1982.
  • 17
    A. Canitrot, “Ordre social et monétarisme en Argentine”, em Problêmes d’Amerique Latine, n. 4692 - 3, 1982, p. 86.
  • 18
    Em “Dettes et dollarisation”, op, cit., e em nossa contribuição ·ao colóquio do GREITD, “Endettement et accentuation de la misere”, em Tiers Monde, n. 99, 1984.
  • 19
    Esta disposição permitiu a Ramirez Rojas medir a substituição de moedas pela relação com a moeda local sobre divisas depositadas no sistema financeiro nacional. Op, cit.
  • 20
    Ortiz e Solis: “Substitución de monedas e independencia monetaria: el caso de Mexico”, em Paniagua Ruiz, op, cit., p. 252.
  • 21
    Por isso pusemos aspas na palavra saída.
  • 22
    As taxas de juros locais eram tão pouco competitivas que os não residentes se beneficiavam no exterior da supressão da retenção na fonte, o que elevava as taxas de rendimento real de seus depósitos no exterior.
  • 23
    CEPAL, no. 7, 1981.
  • 24
    A caracterização do regime de acumulação foi objeto de numerosos trabalhos. Para uma apresentação sintética e uma tentativa de esgotar o tema graças às contribuições da análise seccional, ver Cartier Bresson e P. Kopp, L’analyse sectionnelle, approche du systême productive en Amérique Latine. Le cas du Brésil, tese, Amiens, 1982.
  • 25
    O conjunto dos números vem das estatísticas publicadas pela CEPAL. Nós utilizamos aqui o estudo de André Furtado, ‘’Dinâmica sócio-econômica da América Latina’’, Novos Estudos, n. 14, fev. 1986. Para maiores detalhes (em francês), pode-se ler J. Cartier Bresson, “L’industrialisation bresilienne et la gestion de la contraite économique externe”, Paris, 1985, mimeo, e E. Jahni: “Un bilan comparatif des stratégies d’industrialisation appliqué au Brésil et en Argentine dans les anées 1970”, Paris, 1985, mimeo.
  • 26
    Estes números vêm do Boletim do Banco Central e de Pedro S. Malan e R. Bonelli, “Crise internacional, crise brasileira: perspectivas e opções”, Pensamento Ibero-americano, n. 4, dez., 1983, p. 98.
  • 27
    G. Mathias e P. Salama, “Heurs et malheurs des couches moyennes au Brêsil” em Tiers Monde, n. 100, 1985.
  • 28
    As exportações crescem no ritmo anual de 7,8% de 1975 a 1981 contra 5,1% de 1965 a 1974 para os países da América Latina não exportadores de petróleo.
  • 29
    Jahni, op. cit. Fonte C HELEM-C EPII, pp. 46 e 57.
  • 30
    Pode-se medir o impacto dos choques petrolíferos e financeiros calculando, de um lado, os empréstimos líquidos dos bancos acrescidos do valor das exportações e, de outro lado, os pagamentos de juros aos quais soma-se o valor das importações de petróleo. Subtrai-se o primeiro termo do valor do segundo e se obtêm os seguintes números (em bilhões de dólares):
    .
    A redução do “resíduo”, isto é, o que resta uma vez pagos o serviço da dívida e as importações do petróleo, é impressionante. Ela testemunha ao mesmo tempo a amplitude ganha pela transferência líquida de capital destes países para os bancos dos países do Centro e a redução maciça das importações. Esta redução vai se tornar muito mais importante e a necessidade de aumentar as exportações muito mais imperativa que estes países se beneficiarão cada vez menos dos empréstimos como já o apontamos na introdução.
  • 31
    O déficit comercial foi de 0,2 bilhão em 1977 (houve um ligeiro excedente em 1979: 0,4), 1,6 (1980) e 2 em 1981. Havia sido 5,6 bilhões em 1975. CEPAL, n. 25, abril 1985. O conjunto das estatísticas que seguem vêm da CEPAL.
  • 32
    O pagamento dos juros líquidos foi, no Brasil: 0,65 bilhão de dólares (1974), 1,5 (1975), 1,8 (1976), 2,1 (1977), 2,7 (1978) e 4,1 bilhões (1979). Boletim do Banco Central.
  • 33
    A dolarização no sentido estrito corresponde, recordemo-nos, à substituição das moedas e, pois, à fuga de capitais. Os dólares assim obtidos podem ser investidos no exterior ou no interior do país. A dolarização no sentido amplo define uma situação na qual a moeda nacional perde sua função de unidade contábil para certos mercados de bens duráveis, de equipamento em benefício seja do dólar, seja de um pseudo dólar (título indexado na cotação do dólar).
  • 34
    Compreendeu-se que este monetarismo “pragmático” poderia ser criticado utilizando-se os argumentos da escola das antecipações racionais e que estaria aí toda a ironia (trágica) da história.
  • 35
    Remetemos o leitor ao número 18 de Critique de l’Économie Politique, Paris, Maspero; à resenha editada por E. Neil, Free Market conservation: a critique of theory and practice, Allen and Unwin, 1984, e a Hahn: Monaie et inflation, Ed. Economica, 1984.
  • 36
    Lemgruber, “Anotações sobre o Plano Cruzado”, in Conjuntura Econômica, abril 1986, vol. 40, n. 2.
  • 37
    Ver as declarações de Funaro na Folha de S. Paulo, de 9.3.1986. Segundo Funaro, a inflação estrutural corresponde a uma fase da industrialização que estaria hoje ultrapassada. Numerosas divergências existem sobre a interpretação da inflação. Ver Revista de Economia Política, n. 2, 1985, e os artigos de Bresser-Pereira e Nakano reunidos em Inflação e Recessão, Brasiliense, 1985.
  • 38
    Ver “Israel’s economy: inflation is town, but quite out”, in The Economist, de 12.7.1986, e os estudos apresentados por P. Arida, Brasil, Argentina, Israel: A inflação zero, Paz e Terra, 1986.
  • 39
    Uma série de medidas visam conter a demanda de bens de consumo duráveis e não duráveis que, já forte em 1985, acelerou-se logo após a divulgação do Plano Cruzado. A remonetarização e, portanto, a descapitalização (os títulos perdem seu atrativo: eles permitem preservar o poder de compra da moeda e são igualmente desindexados com o Plano) são em parte responsáveis pela penúria observada em vários mercados. Esta descapitalização conduz a uma oferta de empréstimos insuficiente. As medidas complementares têm por objetivo dissimular esta situação (de maneira heterodoxa) e encontrar fontes de financiamento para os programas do Governo (notadamente sociais) e estimular o investimento graças à imposição de uma poupança reembolsável. Ver Financial Times, de 24.7.1986.
  • 40
    Desenvolvemos a dolarização sobretudo em Dettes ... , op. cit.
  • 41
    A evolução em termos reais dos encargos financeiros das empresas públicas no Brasil foi de 145,22% entre 1980 e 1984. A evolução dos investimentos destas empresas foi de - 34,15% e a evolução de suas despesas globais (menos os encargos financeiros) foi de - 15% entre estas mesmas datas. Cf. “Le Plan Cruzado et les finances publiques brésiliennes”, documento publicado pela Agence Financiêre pour le Brésil et le Cone Sud de l’Amerique Latine.
  • 42
    Cf. Agence Financiêre pour les pays du Cone Sud de l’Amérique Latine, “Argentine: situation économique et financiêre au quatriéme trimestre 1985, et pour le Brésil: bilan de l’année 1985 au Brésil”.
  • 43
    Relatório do Banco do México.
  • 44
    A produção de bens de equipamento aumentou fortemente em fins de 1985, os encargos da dívida diminuíram ligeiramente graças à queda das taxas de juros reais, a dolarização em sentido estrito diminuiu: os agentes diminuíram seus depósitos em dólar em favor do austral a fim de beneficiar taxas de juros mais elevadas. Para o conjunto destas estatísticas, ver Agence Financiére pour les pays du Cone Sud de /’Amérique Latine: “Situation économique et financiére de l’ Argentine”.
  • 45
    JEL Classification: F34; E31; E52.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1987
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