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Keynes e o problema da emissão da moeda como uma dívida para as autoridades monetárias

Keynes and the problem of issuing money as a debt to the monetary authorities

RESUMO

Essa nota visa ilustrar a visão de Keynes sobre como a oferta de dinheiro não gera um fardo para o Estado.

PALAVRAS-CHAVE:
Oferta de moeda; história do pensamento econômico; Keynes

ABSTRACT

This note aims to illustrate Keynes’s view on how the money supply does not generates a burden to the State.

KEYWORDS:
Money supply; history of economic thought; Keynes

I. INTRODUÇÃO

No Brasil é bastante difundida a ideia de que a emissão de moeda acarreta uma dívida para a autoridade monetária imbuída legalmente do poder de emiti-la. Prova disto são as constantes declarações de economistas fazendo a distinção entre a dívida que não paga juros (emissão de cruzados novos) e a dívida que paga juros (moeda indexada, ou seja, títulos públicos).

Apesar de ser difícil identificar a paternidade dessa interpretação, encontramo-la difundida nos manuais de teoria macroeconômica e nas estatísticas financeiras brasileiras.1 1 Basso, Leonardo. “Uma Crítica ao Conceito de Moeda como uma Dívida das Autoridades Monetárias”, mimeo. E volta a ter expressão na obra de Bernard Schmitt.2 2 Schmitt, B. Teoria Unitária da Moeda. São Paulo, Melhoramentos/EDUSP, 1978.

Em trabalho anterior,3 3 Idem nota 1. argumentamos que a produção de papel-moeda pelas autoridades monetárias é produção do equivalente geral, não acarretando nenhuma dívida para a autoridade emitente, mudando, isso sim, a regulação do sistema de produção capitalista quando comparado com o sistema onde o equivalente geral era o ouro, ou qualquer outro material com valor intrínseco.

O objetivo deste trabalho é mostrar que, apesar das ambiguidades que apresentava, Keynes tinha uma concepção de moeda que se opunha à moeda como sendo um título de dívida para o órgão que o emite. O tema torna-se importante porque traz para a discussão uma pergunta fundamental, colocada, ainda que não diretamente, por Keynes: quem faria cumprir um reconhecimento de dívida contra si próprio?

II. O ARGUMENTO DE KEYNES

É no Treatise on Money que as ideias de Keynes a respeito da moeda foram desenvolvidas e apresentam sua forma mais elaborada. O estágio de desenvolvimento do capitalismo experimentado pela Inglaterra, no seu tempo, fez com que afirmasse que o Estado já havia atingido um estágio de desenvolvimento em que a moeda era praticamente uma criação do mesmo.

Isto porque é o Estado que faz cumprir o compromisso da entrega de bens e o pagamento de contratos através dos quais os bens foram adquiridos, inclusive os contratos com reconhecimento de uma dívida.

Aliado a isto, é o Estado que determina o instrumento que vai agir como dinheiro (caso estejamos num sistema de conversibilidade ouro-papel moeda, é o Estado que determina quantos gramas de ouro equivalem a uma unidade mnetária).

Para Keynes a moeda, mais precisamente a ‘’moeda de conta’’ (money of account) possibilitou o surgimento de contratos e o reconhecimento de dívidas oriundas destes contratos e o que ele chama de moeda propriamente dita, o desembolso da qual vai saldar o contrato (e a dívida). Para muitos propósitos, os “reconhecimentos de dívida” são um substituto para o dinheiro quando se trata da liquidação de transações.

Keynes associava estes “reconhecimentos de dívida” como moeda bancária, mas enfatizava4 4 Keynes, John M. A Treatise on Money; in the Collected Writings of John M. Keynes, vol. V, Macmillan/St. Martin’s Press, 1971, p. 5. que eles não eram moeda propriamente dita. Isto em virtude de que a moeda bancária era o reconhecimento de uma dívida privada que podia ser usada lado a lado com a moeda propriamente dita para pagar uma transação. Assim a questão que surge é: o que caracteriza esta moeda propriamente dita?

Para Keynes esta moeda é a moeda estatal que surge quando os reconhecimentos de dívidas privadas passam a ser débitos do próprio Estado e o mesmo pode declará-los como um instrumento aceitável legalmente para saldar uma dívida. A novidade na concepção keynesiana é que quando algum certificado de dívida privada passa a ser adotado pelo Estado como moeda ele muda de caráter e não pode mais ser reconhecido como uma dívida, pois é da essência de um débito poder ser executado (juridicamente) em termos de alguma coisa que não ele próprio. Nas palavras de Keynes:

When, however, what was merely a debt has become money proper, it has changed its character and should no longer be reckoned as a debt, since it is of the essence of a debt to be enforceable in terms of something other than itself. 5 5 Treatise, p. 6.

Existe um problema não esclarecido na análise de Keynes, qual seja, como um título de dívida privada passa a ser reconhecido como dinheiro do Estado e subsequentemente perde seu caráter de dívida. Podemos, entretanto, fazer uma especulação. Na época em que existia uma moeda metálica (ouro, prata) esta era depositada em “bancos” e estes emitiam certificados da dívida prometendo pagar ao portador a quantidade de ouro a que o certificado era equivalente. Estes certificados começaram a circular e passaram a saldar dívidas, ou seja, passaram a ser usados como meio de pagamento, mas sempre na suposição de que os portadores dos mesmos poderiam trocá-los pela verdadeira moeda, a prata e o ouro. Quando o Estado passou a garantir estes reconhecimentos de dívida, passou também a reconhecê-los como moeda.

Para mim é questionável que todo dinheiro estatal tenha surgido como uma transformação de dinheiro privado. Entretanto, o ponto importante a ser discutido aqui é: como pode alguém endividar-se junto a si próprio? Sim, porque os que advogam que o emissor de moeda incorre em uma dívida estão assumindo que o mesmo se endivida junto a si próprio. Usando a análise de Keynes, poderíamos perguntar: quem garante o cumprimento de tal ficção jurídica? Dizemos que isto é uma ficção porque a relação de dívida surge a partir da entrada em cena histórica de duas pessoas (ou entidades): o devedor e o credor. Nesta relação a dois alguém deve para outra pessoa (ou entidade) e o Estado entra em cena como a entidade que vai garantir em última instância que se faça cumprir o contrato de dívida. Advogar que ao emitir moeda o Estado endivida-se junto a si próprio é um absurdo porque não fica constituída juridicamente (legalmente) a figura do devedor que surge da relação com outra pessoa (ou entidade).

Retornando ao exemplo do título que representava uma certa quantidade de ouro, a partir do momento em que o Estado fez com que os mesmos fossem reconhecidos como moeda, adquiriu o privilégio de emiti-los sempre na suposição de que poderiam ser trocados por ouro ou prata.

Quando isto não foi mais possível, novas formas de moeda foram criadas e estas não implicam em nenhum endividamento para o Estado. Obviamente esta análise faz uma separação radical entre moeda e títulos públicos. A questão importante a ser discutida a partir deste estágio é: o que determina o valor desta moeda, o poder de compra desta moeda?

A resposta tradicional é que é a quantidade de bens e serviços que a moeda pode comprar. Isso não está isento de problemas, pois acarreta o círculo vicioso: como podemos definir um poder que compra em termos de preços, se estes, pelo menos de acordo com os monetaristas, são afetados pela quantidade de moeda? Uma resposta alternativa é dada pelos marxistas que pregam como solução para o problema uma relação entre valores e preços por meio da qual é estabelecida uma quantidade de trabalho que a moeda pode comprar.6 6 Basso, Leonardo. “Hilferding e o Problema da Conceituação do Valor da Moeda”. XVI Anais da ANPEC (Associação Nacional de Centros de Pós-Graduação em Economia), Belo Horizonte, dezembro 1988. Ver também Leonardo Basso “Uma Teoria Alternativa para a Determinação da Taxa de Câmbio”, Fundação SEADE.

Isso também não está isento de problemas porque existe todo um circuito de “riqueza velha” fora do sistema de produção capitalista para onde a moeda recém-emitida poderia migrar e não fica claro como é determinado o poder de compra desta moeda circulante entre a “riqueza velha”.

III. COMENTÁRIO CONCLUSIVO

Este trabalho procurou mostrar que Keynes tinha uma concepção de moeda em que sua emissão não acarreta nenhuma dívida para a autoridade emitente. Neste sentido, ele se afasta da tendência predominante nos nossos manuais de economia e se aproxima de Marx, para quem a produção de moeda era a produção do equivalente geral, tendo o poder de validar qualquer mercadoria sem ter necessidade de ser validado. A linha de pensamento de Keynes recoloca a questão do que define o poder de compra dessa moeda e, mais do que isto, sugere um vasto campo de pesquisas para determinar em que condições esta emissão será inflacionária ou não. Para tanto é necessário traçar os diversos caminhos que a moeda pode percorrer no sistema de produção capitalista, bem como nos circuitos que transacionam com a riqueza velha da sociedade.

  • 1
    Basso, Leonardo. “Uma Crítica ao Conceito de Moeda como uma Dívida das Autoridades Monetárias”, mimeo.
  • 2
    Schmitt, B. Teoria Unitária da Moeda. São Paulo, Melhoramentos/EDUSP, 1978.
  • 3
    Idem nota 1.
  • 4
    Keynes, John M. A Treatise on Money; in the Collected Writings of John M. Keynes, vol. V, Macmillan/St. Martin’s Press, 1971, p. 5.
  • 5
    Treatise, p. 6.
  • 6
    Basso, Leonardo. “Hilferding e o Problema da Conceituação do Valor da Moeda”. XVI Anais da ANPEC (Associação Nacional de Centros de Pós-Graduação em Economia), Belo Horizonte, dezembro 1988. Ver também Leonardo Basso “Uma Teoria Alternativa para a Determinação da Taxa de Câmbio”, Fundação SEADE.
  • 7
    JEL Classification: E12; E51.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1991
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