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A indeterminação de Senior* * Este artigo foi traduzido pelo autor e está sendo estendido na pesquisa, em andamento, Aplicabilidade de Teorias Econômicas: a Indeterminação de Senior, financiada pelo PNPE-1991, IPEA.

The indetermination of Senior

RESUMO

Os compromissos e requisitos de trabalho de abstrato, aplicado e arte da economia são avaliados dentro de uma analogia com os campos da matéria inerte e da vida. A economia abstrata é a pura lógica do fenômeno. A economia positiva aplicada pressupõe muitas ciências abstratas distintas. A arte pressupõe economia aplicada e conhecimento direto das especificidades que caracterizam a individualidade tempo-espaço do fenômeno. Essa é uma indeterminação claramente formulada por Senior e Mill; sua conexão com o institucionalismo é discutida. O vicio ricardiano é o hábito de ignorar a indeterminação; sua prevalência na economia convencional é exemplificada e suas causas analisadas.

PALAVRAS-CHAVE:
Metodologia econômica; Senior

ABSTRACT

The commitments and working requirements of abstract, applied, and art of economics are assessed within an analogy with the fields of inert matter and life. Abstract economics is the pure logic of the phenomenon. Applied positive economics presupposes many distinct abstract sciences. Art presupposes applied economics and direct knowledge of the specificities which characterize the time-space individuality of the phenomenon. This is an indetermination clearly formulated by Senior and Mill; its connection with institutionalism is discussed. The Ricardian Vice is the habit of ignoring the Indetermination; its prevalence in mainstream economics is exemplified, and its causes analyzed.

KEYWORDS:
Economic methodology; Senior

I. INTRODUÇÃO

A ciência abstrata, aplicada e sua arte são três esferas distintas do conhecimento, tanto no campo da matéria inerte, quanto no da vida ou da sociedade. Uma analogia entre os três campos atenta para a complementaridade entre as três esferas de abstração e permite uma visão compreensiva e menos conflitante da Economia. Buscam-se melhor caracterização da natureza do trabalho em cada nível de abstração, de seu método ou linguagem, assim como dos comprometimentos, habilidades e limitações de seus praticantes. A natureza evolutiva destas fronteiras do conhecimento é, obviamente, sempre reconhecida.

Na economia abstrata, as teorias se reduzem a puras lógicas do fenômeno, não cabendo então conclusões sobre o que deve ser feito na realidade. É geralmente reconhecido, apesar de nem sempre seguido, que julgamentos de valor estão envolvidos em conclusões normativas, em afirmações sobre o que deve ser feito. Mais fundamentalmente, a realidade se apresenta com tantos elementos não-econômicos, elementos que são omitidos nas teorias abstratas, que outra indeterminação também inviabiliza conclusões normativas, e isto foi claramente exposto por Senior e Mill. Sugiro dar-lhe o nome de indeterminação de Senior.

A arte da economia pressupõe uma ciência aplicada, um nível intermediário e positivo, que coleta raios de luz de outras ciências relevantes. A arte da economia pressupõe também o conhecimento, de preferência pela experiência direta, das especificidades que respondem pela individualidade temporal e espacial do fenômeno. Em geral, os economistas neoclássicos esqueceram Senior e Mill, sendo, portanto, adictos do vício ricardiano. Em geral, os institucionalistas não os esqueceram, mas falham talvez no reconhecimento do valor das teorias abstratas de um lado, e do perigo do vício empiricista do outro.

Vale a pena caracterizar logo a indeterminação e o vício em termos simples e de um exemplo. A teoria neoclássica parte da hipótese de que o trabalho é desprazer, abstraindo tudo o mais. O tédio ou a fome no lazer, a realização no trabalho, a gratificação de estar sendo útil ou de prestar a devida colaboração social, a identificação com o grupo de trabalho ou a comunhão de objetivos, a estruturação do tempo, muito disto, não contemplado na teoria abstrata, é considerado na teoria comportamental. Trata-se de uma teoria aplicada que, no estudo do mesmo fenômeno - a opção trabalho-lazer - incorpora também o que a sociologia, a psicologia etc. têm a dizer. A primeira teoria, que em sua estrutura hipotético-dedutiva nada fica a dever à física newtoniana, reduz-se à lógica econômica do fenômeno. A segunda não. Nesta, como na realidade, trabalho envolve dialeticamente prazer e desprazer. Mais atributos do fenômeno são assim reconhecidos, quer sejam atributos da lógica econômica, sociológica ou de que ciência for.

A indeterminação de Senior estabelece então que a teoria neoclássica não é diretamente aplicável à realidade, trabalho-lazer neste exemplo. Fazê-lo, costumeiramente, é um vício de seus adeptos, o chamado vício ricardiano. Se verdadeira, se não refutada empiricamente, esta teoria não deve ser ignorada, mas é de aplicabilidade apenas indireta, não mais do que iluminando o desenvolvimento de teorias aplicadas, como a teoria comportamental. Esta, se aceitável, só pode ainda ser aplicada quando se conhecem as especificidades com que o fenômeno se apresenta em cada ocasião e lugar, como no Japão do pós-guerra ou na União Soviética stalinista (trabalho como evidência de adesão ao regime), no Brasil do AI-5 ou no “collorido” atual, ou ainda, noutra dimensão, no trabalho-criatividade do artista ou no trabalho-jogo do executivo.

Essas questões são desenvolvidas em quatro seções. A primeira concentra-se na divisão de trabalho no campo da matéria inerte, e discute a habilidade e o comprometimento de seus especialistas nos três níveis de abstração; mantém-se atenção subjacente à economia através de apropriadas citações de grandes economistas. A segunda seção complementa a primeira e considera as limitações da analogia, a saber, os efeitos da natureza não-experimental da economia, e da complexidade ascendente do fenômeno, quando se passa da matéria inerte para a vida e desta para a sociedade. A exposição resulta principalmente da familiaridade, entre 1964 e 1974, com duas instituições. Uma escola integrada no campo da matéria inerte - seis anos como membro do corpo docente (engenheiro mecânico e eletricista) do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) - e outra, também integrada, em Administração e Economia - cinco anos como estudante de pós-graduação em Administração (Mestre em Ciências) e Economia (PhD) da Escola de Pós-Graduação em Administração Industrial (GSIA), Carnegie-Mellon University, Estados Unidos.

A segunda seção prossegue com a incorporação das visões de Senior e Mill, depois de atualizadas pela consideração do crescimento do saber, e da nova constelação de ciências que veio a brilhar nos últimos cento e cinquenta anos. A matéria é usada, na seção três, para uma reapresentação do trabalho de Schumpeter sobre o vício ricardiano. A quarta seção exemplifica o último, pela indicação de fatores que não podem ser ignorados em propostas de regras constitucionais, fatores como a multiplicidade de teorias econômicas, ou os efeitos perversos que as regras exercem sobre o comportamento; no caso específico da regra monetária constitucional, as limitações são ainda exemplificadas a partir da própria perspectiva monetarista em que a proposta se fundamenta. Segue-se uma discussão das causas do vício.

II. CIÊNCIAS ABSTRATAS E APLICADAS

Existe uma divisão substancial de trabalho entre físicos e cientistas da Engenharia. O primeiro é forçado, pela busca de generalidade ascendente, a um processo de crescente abstração, enquanto o segundo é restrito dentro do realismo imposto pela exigência de aplicabilidade. Ambos são teóricos, em oposição ao engenheiro profissional. Os construtos da Física - vácuo, gás perfeito, movimento sem atrito, etc. - tornam-se crescentemente distanciados da realidade na medida em que a teoria progride. Este não é, e não pode ser, o caso das ciências da Engenharia, porque as entidades teóricas precisam estar mais proximamente ligadas às suas contrapartidas reais, e toda espécie de coeficientes de segurança tem que ser desenvolvida para permitir implementação. O fenômeno sob análise é o mesmo, mas é tratado sob diferentes fachos de luz.

A limpidez da divisão de trabalho entre os muitos subcampos de especialização varia com a acumulação de conhecimento, e com o grau de integração entre teorias básicas e aplicadas. É manifesta aqui uma fronteira evolvente e nebulosa, vaga, existindo ainda outros pontos a enfatizar. Primeiro, a falta de uma ciência abstrata exclusiva no campo da matéria inerte - por conveniência, Física está representando aqui todas as ciências da matéria. É óbvio que o campo básico mais importante para o engenheiro químico é a Química, distinta da Física, não obstante a Físico-química. Segundo, não existe tampouco uma teoria exclusiva dentro da própria Física, desde o final do século passado.

Terceiro, o dissenso paradigmático entre cientistas abstratos e aplicados é muito semelhante ao que se observa entre adeptos de teorias abstratas em confrontação revolucionária (Kuhn, 1971, p. 111-59)KUHN, Thomas S. (1971). The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: Univ. of Chicago Press . , sendo talvez mais violento, particularmente nas vituperações mútuas - físicos falam sobre tecnólogos ou físicos aplicados, evitando referências a engenheiros, ou sobre empiricismo em vez de teoria aplicada ou modelo etc. Do outro lado, ouve-se sobre irrealismo, irrelevância, simplismo e que tais. Buchanan (1958, p. 14)BUCHANAN, James M. (1985). Liberty, Market and the State: Political Economy in the 1980s. Washington Square, NY: New York Univ. Press. pode representar abaixo o cientista da Engenharia, se “economia” for substituída por “física”:

Como é praticada nos 1980s, a economia é uma ciência sem propósito ou significado último ... Num sentido muito real, os economistas dos 1980s são analfabetos nos princípios básicos de sua própria disciplina ... Seus interesses residem nas propriedades intelectuais dos modelos com os quais trabalham, e eles parecem conseguir seus goals através da descoberta de provas de proposições que são relevantes apenas em suas ilhas de fantasias ... Eu de fato deploro a perda refletida em tal investimento de capital humano.

Buchanan está aqui atacando os economistas-matemáticos, que são ainda indiretamente chamados de farsantes, eunucos-ideológicos (porque não são normativamente motivados), parasitas (conscientes) da comunidade etc. A distinção entre ciências abstratas e aplicadas não pode, entretanto, ser feita em termos da extensão em que se usa a Matemática. Como Hicks (1980, p. 14)HICKS, John R. (1980). “Revolutions in Economics”. In: Methods and-Appraisal in Economics, ed. by S. J. Latsis. Cambridge: Cambridge Univ. Press. o coloca, “os primeiros cataláticos eram matemáticos fracos, mas pensavam matematicamente”. Hicks está se referindo aos primeiros marginalistas, mas o dictum mantém-se válido no caso da escolha pública ... e observe que a contribuição teórica de Buchanan se encontra no mais alto nível de abstração.

Deve-se acrescentar que a matemática requerida em algumas áreas aplicadas pode ser ainda mais sofisticada que nas abstratas, como testemunham os modelos estocásticos das ciências administrativas. (Ver Clarkson, por exemplo, 1968.)CLARKSON, G. P. E., ed. (1968). Managerial Economics: Selected Readings. Harmondsworth, England: Penguin Books. E estou enfatizando o termo “modelos” porque estes são mutuamente desconexos, e podem até ser mutuamente contraditórios, uma contradição espúria, derivada de suas parcialidades. Caminhando-se de ciências abstratas para aplicadas, as teorias e modelos perdem generalidades na medida em que ganham aplicabilidade, na extensão em que se tornam mais próximos da realidade ou, mais formalmente, em que os construtos se ligam mais diretamente às experiências protocolares (Margenau, 1966, p. 26-31)MARGENAU, Henry (1966). “What is a Theory?” In: The Structure of Economic Science, ed. by S. R. Krupp. Englewood, NY: Prentice-Hall. .

Saber-como é tarefa do engenheiro profissional. Este está interessado no saber-porque até o necessário para o desenvolvimento de produtos e processos, nada mais. Os comprometimentos são com produtos e processos, não com teorias. Friedman (1952, p. 456)FRIEDMAN, Milton (1952). “Comments on Prof. Ruggles’ Article”. In: A Survey of Contemporary Economics, II, ed. by B. F. Haley. Homewood, IL: Irwin. fala pelo engenheiro profissional: “E o único teste relevante de uma hipótese (ou teoria) é a comparação de suas previsões com o que ocorre’’. Isto soa realmente como conversa de economista profissional. Por exemplo, soa como afirmação do economista de unidades estratégicas de grandes corporações, cujo produto é a previsão. Consistentemente, este profissional pode sentir-se livre para pôr de lado as macro teorias quando, como costuma acontecer, procedimentos mecânicos de previsão trabalham tão bem, ou tão mal, quanto os modelos economicamente fundamentados. Um acadêmico nunca o faria.

O físico é exatamente o oposto do engenheiro profissional. O interesse do físico no saber-como estende-se apenas até o ponto em que isto ajuda no desenvolvimento da teoria, nada mais. O comprometimento do físico é com o saber-porque, não com produtos e processos. Seu comprometimento é com o aperfeiçoamento e reconstrução de teorias, nos termos da Navalha de Occam, dos requisitos de Occam sobre forma e estrutura de teorias: consistência lógica, fertilidade lógica, conexão múltipla, simplicidade, elegância etc. A linguagem do físico é a lógica e sua habilidade o esprit geometrique. Debreu fala pelo cientista abstrato (1984, p. 46)DEBREU, Gerard (1984). “Discours des Laureats”. In: Les Prix Nobel en 1983. Stockholm: Nobel Foundation. :

Um cientista sabe que suas motivações são frouxamente relacionadas com as consequências distantes do seu trabalho. O rigor lógico, a generalidade e a simplicidade de suas teorias satisfazem necessidades intelectuais profundas e pessoais, necessidades que são muitas vezes perseguidas pelo que em si representam.

A importância do problema físico - que aspectos da realidade observar - é ditada pelo desenvolvimento da teoria, não pela relevância social (Kuhn, 1971, p. 36, 164)KUHN, Thomas S. (1971). The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: Univ. of Chicago Press . . O que precisa ser enfatizado neste ponto é que o cientista da engenharia, o físico aplicado, escolhe de acordo com a importância social do problema. Este pode ser visto como o intermediário que traduz saber-porque em saber-como, e vice-versa; sua comunidade está dividida no comprometimento. Os mais teoricamente orientados trabalham a partir do saber-porque, enquanto seus colegas mais pragmáticos partem do saber-como, trilhando o sentido inverso. Duvido de que qualquer coisa possa ser dita objetivamente sobre qual é o mais importante; muito desse conflito pode ser atribuído ao dissenso paradigmático interno, ao interesse próprio, à politicagem etc.

A opção de Simon por satisfação, ao invés de maximização, reflete sua posição sobre a indispensabilidade do saber-como, um requisito maior da abordagem do cientista aplicado ou da engenharia (Simon, 1979, p. 289)SIMON, Herbert A. (1979). “Rational Decision Making in Business Organizations”. In: Les Prix Nobel en 1978. Stockholm: Nobel Foundation.:

Mas o ponto importante a respeito da teoria da busca e da satisfação é que ela mostra como a escolha pode ser de fato feita com um montante razoável de cálculo, e usando informação bem incompleta, sem a necessidade de realizar o impossível - de conduzir o processo de otimização.

Kuznets foi um cientista aplicado genuíno em seu comprometimento com o realismo que permite aplicabilidade. Ohlin (1972, p. 299)OHLIM, Bertil (1972). “Speach on the Nobel Laureate”. In: Les Prix Nobel en 1971. Stockholm: Nobel Foundation. discutindo Kuznets:

Obviamente, Kuznets utiliza modelos que apresentam as conexões entre os elementos estratégicos do sistema econômico, mas ele mostra bem pouca simpatia por modelos abstratos e gerais ... Kuznets escolhe e define conceitos que correspondem tão proximamente quanto possível ao que pode ser observado ... Dentro da estrutura desses modelos, presta-se atenção também aos fatores institucionais e não-econômicos - por exemplo, mudanças no crescimento da população, na tecnologia, na estrutura industrial e nas formas de mercado.

Prestar atenção às dimensões estruturais, sociológicas e psicológicas do fenômeno, ponto de honra da abordagem institucionalista, é outro requisito maior para o cientista aplicado. E isto pode ser bem entendido pelo cientista abstrato (Knight, 1960, p. 111)KNIGHT, Frank H. (1960). Intelligence and Democratic Action. Cambridge, MA: Harvard Univ. Press. :

Para dizer agora um pouco mais sobre o irrealismo da teoria econômica pura ... Todas as ciências do homem e da sociedade estão envolvidas quando se pressiona mais e mais a questão [da ação social, escolha pública, decisão política] - particularmente histórica e, possível e até mais especialmente, ética.

A habilidade do cientista aplicado é o esprit de finesse. A linguagem não pode restringir-se a lógica, porque “todas as ciências do homem e da sociedade estão envolvidas” quando se está restrito dentro do realismo imposto pela requerida aplicabilidade. Se dentro de cada ciência, mesmo na Física, as teorias são mutuamente inconsistentes, apesar de internamente consistentes, não se pode esperar ou prescrever consistência lógica na construção interdisciplinar.

A linguagem da ciência aplicada não se restringe à lógica porque as entidades teóricas, os construtos, precisam estar proximamente ligadas às suas contrapartidas reais, e porque “o mundo tem um jeito desconfortável de não permitir colocar em classificações nítidas” (Marche Simon, 1959, p. 1)MARCH, James G. and SIMON, Herbert A. (1959). Organizations. New York: John Wiley & Sons. . A lógica requer classificações nítidas, límpidas, tertium nom datur, o é e não é do princípio da contradição. A linguagem do cientista aplicado é a dialética, no sentido bem restrito do raciocínio que leva em conta a vaguidade com a qual o fenômeno se apresenta, dialética no sentido limitado, que foi desenvolvido na economia por Georgescu-Roegen (1967, p. 17-30). É possível que alguns se surpreendam com o fato de a física quântica também demandar a mesma extensão da lógica, uma “lógica quântica” que teria a clássica como caso particular (Heisenberg, 1963, p. 145-60)HEISENBERG, Werner (1963). Physics and Philosophy. London: George Allen & Unwin. .

Intelectualmente insatisfatória como pode ser julgada, dialética é a maneira de “montar” ou entrelaçar construtos distintos e teorias mútua, mas não-internamente inconsistentes. Engenheiros praticam isto o tempo todo, os profissionais usando as teorias aplicadas desconexas à disposição, teorias desenvolvidas pelos cientistas da engenharia que podem manter um olho, se tanto, na aspiração da unidade da ciência, mas estão preparados para utilizar toda sorte de “coeficientes de segurança” e “aproximações”, a fim de manter o primado do comprometimento com aplicabilidade. Engenheiros profissionais diferem ainda pela indispensável atenção sobre as especificidades da realidade ou do caso em questão, o produto ou processo em que trabalham. Especificidades respondem pela individualidade do caso e, como tais, são obviamente omitidas das teorias aplicadas, para nada dizer das abstratas. O cientista aplicado almeja, digamos, “conhecimento ordenado e testado”, sendo tanto melhor quando se pode colocá-lo dentro do molde occamiano (Kuznets, 1961, p. 119)KUZNETS, Simon (1961). Six Lectures on Economic Growth. New York: Free Press of Glencoe. :

No campo das ciências sociais, em particular, o objetivo maior do conhecimento ordenado [e testado] é enriquecer a experiência direta das gerações atuais com o passado, e abrir o horizonte experimental de cada nação pela experiência das outras.

Tomando-se o simples exemplo do projeto de um avião ou de seu motor, a divisão de trabalho no campo da matéria inerte mostra-se bem clara. É tarefa impensável para o físico, teórico ou experimental: faltar-lhe-ia senso científico, e haveria suspeita de charlatanismo, porque ele não entende da tarefa - e, igualmente importante, ele não tem meios de pretender conhecimento. Obviamente, o físico necessita do saber-como, e este não é encontrável em seu saber-porque. Cientistas da engenharia - professores de aerodinâmica, de máquinas térmicas etc. - poderiam participar, mas como consultores e apenas em projetos que envolvessem maiores sofisticações.

Ninguém questionaria que a tarefa é do engenheiro profissional. Este, por seu lado, trabalha dentro das especificações gerais que lhe foram dadas, não lhe cabendo qualquer questionamento delas: a decisão sobre o tipo de produto não é da sua competência. Como profissional, cabe-lhe, se for o caso, dizer tecnicamente sobre o que não pode ser feito, tanto a partir das conclusões normativas da sua ciência aplicada - que absorvem qualificadamente as teorias abstratas relevantes -, quanto na base da sua experiência profissional e das especificidades de sua firma.

III. A INDETERMINAÇÃO DE SENIOR

Para Física e Engenharia, Biologia e Medicina, Economia e Administração: a analogia mantém-se boa em grande extensão, mas duas limitações maiores precisam ser discutidas. A primeira reside na crescente complexidade ou natureza dialética destes grandes campos de conhecimento. Ao se caminhar da matéria inerte para a vida, e desta para a sociedade, a divisão de trabalho torna-se correspondentemente menos nítida. Em termos comparativos, existem mais subcampos e escolas econômicas no nível aplicado, como desenvolvimento econômico, economia monetária, algo dos trabalhos neo-austríacos, muito do institucionalismo etc.; e existem bem mais economistas do que físicos na vida profissional em oposição à vida acadêmica. Assim, deve-se dizer que a analogia se mantém boa em termos de economia abstrata versus administração e economia aplicada.

A segunda limitação da analogia reside na natureza não-experimental da economia e de outras ciências sociais. Diz-se positivo em referência ao que é, normativo em referência ao que tem que ser(Neville Keynes, 1904, p. 31-36)NEVILLE KEYNES, John (1904). The Scope and Method of Political Economy. London: MacMillan. ou, mais apropriadamente, ao que não pode ser - manter tem que é cair em pura tecnocracia, tecnocracia como versão moderna da teocracia, quando ciência substitui religião em governos antidemocráticos. É possível falar sobre física positiva e normativa, mas ciências positivas e normativas da engenharia faz mais sentido, porque em “normativo” existe claramente a conotação de que se fala da realidade, não do laboratório - uma realidade moldada e estilizada.

Físicos teóricos sentem-se livres para distanciar-se da realidade porque seus colegas experimentais podem construir, e constroem em extensão significativa, realidades estilizadas em experimentos de laboratório: vácuo, gás perfeito etc. Economistas abstratos teóricos não sentem a mesma liberdade porque seus colegas experimentais, assim como econometristas, historiadores econômicos etc., não podem fazer o equivalente, na mesma extensão: criar homem econômico, concorrência perfeita etc. Jogar “para escanteio” a diferença através da indicação de “exceções” da física não resolve. Trata-se de um jogo infantil, mas muito frequente: tira-se proveito do fato de que as classificações “não são nítidas”. É como propor que cinco ou quarenta seja o limite da idade do voto, baseado na premissa de que ninguém pode provar que dezoito é o correto, ou ser mais específico do que um intervalo dialético de, digamos, quinze a vinte e um.

Existem barreiras éticas impedindo a construção de realidades econômicas estilizadas, mas outras impossibilidades são também óbvias. Não há geralmente alternativa à observação da realidade como ela se apresenta, ou se apresentou; e há que se ter em conta ainda a sua natureza mutável, inclusive as mudanças que podem resultar da sua própria observação e do aumento do saber. Logo, a observação cuidadosa e o trabalho empírico tendem a requerer conhecimento envolvendo as demais ciências sociais, um conhecimento que é estruturado nos campos aplicados. A economia aplicada exerce assim uma atração constante, com sua maior “riqueza em realidade” permitindo observações menos distorcidas. Os economistas teóricos abstratos, entretanto, trabalham também com a motivação oposta, que é o aperfeiçoamento - no sentido occamiano - das teorias, qualquer que seja a escola de pensamento, como se viu acima. Isto leva à redução do número de axiomas - construtos básicos mantendo menos e menos elementos da realidade - e ao aumento paralelo nas cadeias dedutivas, ou sequências de teoremas (Margenau, 1966, p. 36)MARGENAU, Henry (1966). “What is a Theory?” In: The Structure of Economic Science, ed. by S. R. Krupp. Englewood, NY: Prentice-Hall. . Caracteriza-se assim uma tensão no trabalho abstrato em economia.

A economia normativa, se entendida como economia abstrata normativa, e se incluída a conotação de que seus praticantes estão aptos a dizer sobre o que não pode ser feito na realidade, tem um sabor de charlatanismo e de falta de senso científico. Quero de fato dizer “sabor” por causa das limitações já discutidas da analogia - em geral, os economistas abstratos sabem mais sobre a realidade do que os físicos. Quando também possuem a “intuição e o amplo conhecimento dos fatos” (Keynes, 1951, p. 158)KEYNES, John M. (1951). Essays in Biography. London: Rupert Hart-Davis. , estão constantemente conscientes de muitas reservas e limitações: se as proposições normativas relevantes, e semelhantemente interpretadas, da sociologia e de outras ciências sociais não conflitam com uma proposição econômica - para não falar das proposições econômicas conflitantes; se eficiência pode ser tomada como fator decisivo na matéria; se omitindo irreversibilidade do tempo, aqui mas não ali, é uma simplificação aceitável (ver Hicks, 1976, p. 140, discutindo Keynes)HICKS, John R. (1976). “Some Questions of Time in Economics”. In: Evolution, Welfare, and Time in Economics: Essays in Honor of Georgescu-Roegen, ed. by A. M. Tang et alii. Lexington, MA: Lexington Books. e outros que tais.

A economia normativa, quando entendida como economia aplicada normativa, transmite o significado usual da expressão, e é de prática mais segura, porque muitas daquelas reservas e qualificações formam parte integral das teorias, estando já dialeticamente incorporadas. Tomemos um testemunho de Hicks (1976, p. 139, 143, 145-46)HICKS, John R. (1976). “Some Questions of Time in Economics”. In: Evolution, Welfare, and Time in Economics: Essays in Honor of Georgescu-Roegen, ed. by A. M. Tang et alii. Lexington, MA: Lexington Books. :

É claramente o princípio dele [de Georgescu-Roegen] ... É um princípio muito simples: a irreversibilidade do tempo.

Os dois progenitores da escola austríaca eram Menger e Bohm-Bawerk ... O que havia em Bohm que tanto amolava Menger? Creio que simplesmente o fato de que em Menger o tempo é unidirecional. A teoria de Menger [os começos de uma teoria] é uma economia no tempo ... [na versão wickselliana de Bohm] tornou-se não mais do que uma teoria de estado estacionário ... fora do tempo.

Também quero dizer que ela [economia do estado estacionário] encorajou os economistas a perderem tempo em construções que são frequentemente de grande complexidade intelectual, mas que estão a tal ponto fora do tempo, e a tal ponto fora da história, que são praticamente fúteis e mesmo enganadoras.

Está claro que a visão dele [L. Lachman] sobre mim é como a visão que Menger tinha de Bohm-Bawerk ... a economia ideal dele não está tão distante da minha; mas eu a vejo como um objetivo posto no céu. Não podemos esperar alcançá-la, mas devemos chegar tão próximos quanto pudermos.

Uma indicação sobre a “economia ideal” pode ser encontrada em outro trabalho, “pela generalização, pela construção de teorias ‘mais gerais’, teorias que põem mais coisas em seus lugares, mesmo que desta forma menos possa ser com elas alcançado” (Hicks, 1980, p. 209)HICKS, John R. (1980). “Revolutions in Economics”. In: Methods and-Appraisal in Economics, ed. by S. J. Latsis. Cambridge: Cambridge Univ. Press. . Está “no céu” certamente; Hicks parece apontar, em última instância, para o sonho da ciência unificada, “a explicação de todos os fenômenos, os da economia tanto quanto os da física e da química, em termos de uma teoria totalmente abrangente, com os construtos logicamente interligados” (Margenau, 1966, p. 32)MARGENAU, Henry (1966). “What is a Theory?” In: The Structure of Economic Science, ed. by S. R. Krupp. Englewood, NY: Prentice-Hall. . Este sonho é, contudo, motivação sutil, desempenhando o seu papel até mesmo para os acadêmicos que o chamam “ilusão” (Heer, 1969, p. 211)HEER, Friedrich (1969). The Medieval World. London: Weidenfeld & Nicolson. , ou “credo da ciência unificada” (Georgescu-Roegen, 1967, p. 61)GEORGESCU-ROEGEN, Nicholas (1967). Analytical Economics. Cambridge, MA: Harvard Univ. Press. . “Na terra”, aqui e agora, encontra-se uma profusão de ciências abstratas, nenhuma delas com teoria única, e uma abundância maior de ciências aplicadas, cada uma delas com construtos dialeticamente entrelaçados.

Por outro lado, não importando a distância que atualmente separa as teorias dinâmicas das evolucionárias - a irreversibilidade do tempo entra aqui -, a esperança é que ela venha a ser coberta no futuro; novamente, a história da ciência não autoriza simples opiniões como “perderem tempo em construções ... “. Mais fortemente, a história da ciência não autoriza generalizações infundadas como a condenação dos economistas-matemáticos por Buchanan, como já visto. É, ou deve crescentemente vir a ser, tarefa dos cientistas econômicos aplicados, assim como já o é dos cientistas da engenharia, a derivação de modelos aplicados, com as consequentes implicações normativas. Estou apenas acatando o fato de que, afinal, Smith estava certo na progressiva divisão de trabalho.

As economias abstrata e aplicada são complementares. Ocorrem, é claro, desbalanceamentos em suas evoluções, problema dificílimo, cuja solução “fora do tempo” e fora do espaço seria insuperavelmente enganadora. “[Construções] praticamente fúteis e mesmo enganadoras ... “: nos termos aqui desenvolvidos, assim o são porque proposições normativas têm sido errôneas ou indevidamente derivadas de construções abstratas. Neste caso, as construções não captam a irreversibilidade do tempo. Senior (1938, p. 3)SENIOR, Nassau Willian (1938). An Outline of the Theory of Political Economy. London: Kimble & Bradford. tem sido esquecido:

Mas as conclusões dele [do Político Economista], não importando a generalidade ou verdade que encerram, não o autorizam a adicionar uma simples sílaba de conselho ... A tarefa do Político Economista é ... estabelecer os princípios gerais cuja ignorância seria fatal na condução dos afazeres práticos; não é, contudo, aconselhável, nem talvez praticável, entender tais princípios como guias exclusivos ou, mesmo, como guias mais importantes ... Decidir em cada caso até quando as conclusões do Político Economista devem gerar ações, pertence à arte de governo, arte para a qual a Economia Política é apenas uma das muitas Ciências subservientes.

É algo a ser dito pela economia, e pela economia abstrata em particular, que seu primeiro mestre na linha hipotético-dedutiva (Schumpeter, 1986, p. 484)SCHUMPETER, Joseph A. (1986). History of Economic Analysis. London: Allen & Unwin. tenha começado seu trabalho pelo estabelecimento de sua principal limitação. Limitação que é nada menos do que uma indeterminação, e que merece ser chamada indeterminação de Senior. O “Político Economista” de Senior é uma expressão que precisa ser atualizada, “economista abstrato” traduzindo aqui a ideia. “Simples sílaba de conselho” também requer atualização, e em “conclusões normativas” adiciona-se uma generalização. A dicotomia de Senior é igualmente mudada para a tricotomia economia abstrata, aplicada e arte da economia. A última está convenientemente representando a arte das ciências sociais, além de servir como caracterização do domínio fenomenológico, valendo a mesma ressalva para “economia aplicada”.

A economia aplicada deve ainda ser adicionalmente caracterizada através de Mill (1877, p. 152): “cada arte pressupõe, não uma ciência, mas ciência em geral; ou, pelo menos, muitas ciências distintas”. Na extensão em que a economia aplicada modela um problema econômico sob fachos de luz das relevantes teorias sociais e, particularmente, das relevantes e distintas teorias econômicas, a economia aplicada caminha longe na redução da indeterminação de Senior. Assim, a economia aplicada é antes, e mais do que tudo, economia positiva, uma ciência positiva intermediária. Mas suas conclusões normativas ainda têm que ser qualificadas. E qualificadas não apenas por causa de julgamentos de valor, o que é óbvio, mas também por causa da natureza do conhecimento científico: pode acontecer que as dimensões mais importantes e dominantes da realidade residam em sua individualidade espaço-temporal, em suas especificidades. Mill (1877, p. 155)MILL, John Stuart (1987). Essays on Some Unsettled Questions of Political Economy. London: Longmans, Green and Co. , de novo:

Ninguém que busque estabelecer proposições para orientação da humanidade pode dispensar, não importando suas realizações científicas, o conhecimento prático sobre as maneiras em que os afazeres do mundo são de fato conduzidos, e uma ampla experiência pessoal com as ideias, sentimentos, e tendências intelectuais e morais de fato existentes em seu país e em sua própria época.

Um entendimento alternativo é ver as proposições normativas mais no domínio de especialização dos economistas profissionais, que são os que ficam diretamente envolvidos com o “conhecimento prático”, os que sabem pela experiência direta - este conhecimento pode ser transmitido, mas o tempo, os custos e o “barulho” da transmissão são muito altos em comparação com o aprendizado da ciência aplicada, e muito mais ainda com o da abstrata. A analogia com os médicos profissionais, os clínicos gerais em particular, fala bem: “não existem doenças, mas pacientes”, isto é, as características pessoais do paciente - especificidades do caso - podem ser mais importantes para o tratamento - conclusões normativas da ciência médica - do que os atributos gerais da doença em questão. A expectativa seria que existisse maior consciência da questão entre economistas, pois a complexidade do fenômeno cresce quando se passa da vida para a sociedade, aumentando sua individualidade ou suas especificidades. Os fatos mostram, entretanto, o oposto, os fatos apontam para o vício ricardiano.

Finalizando, a indeterminação de Senior - que por todas as razões, mais precedência, deveria ser chamada indeterminação de Mill - é atualizada nos seguintes termos: As proposições da economia abstrata, não importando a generalidade ou verdade que encerrem, não autorizam conclusões normativas, mas não podem ser ignoradas. A economia aplicada positiva pressupõe as teorias abstratas da economia, assim como, em relevância variável, outras ciências sociais. Conclusões normativas - sob a forma do que não pode ser feito - são deriváveis das proposições da economia aplicada, mas são ainda qualificáveis pelas especificidades do caso em questão.

IV. O VÍCIO RICARDIANO

O vício ricardiano é justamente o hábito de extrair conclusões normativas da economia abstrata, o hábito de ignorar a indeterminação de Senior. Análises que não levam em consideração elementos cruciais do fenômeno são conduzidos e aplicados como se o fizessem. O vício foi descrito e batizado por Schumpeter (1986, p. 540, 1171)SCHUMPETER, Joseph A. (1986). History of Economic Analysis. London: Allen & Unwin. :

Eles [Senior, Mill e outros] quiseram apenas dizer que as questões de política econômica envolvem sempre tantos elementos não-econômicos, que seu tratamento não deve ser feito na base de considerações puramente econômicas ... poder-se-ia apenas desejar que os economistas daquele (como de qualquer outro) período nunca se esquecessem deste toque de sabedoria - nunca fossem culpados do vício ricardiano.

O vício ricardiano, a saber, o hábito de empilhar uma carga pesada de conclusões práticas sobre uma fundação tênue, que não se lhe iguala, mas que parece, em sua simplicidade, não apenas atrativa, mas também convincente.

Em geral, o toque de sabedoria foi esquecido pelos neoclássicos. A tricotomia de Friedman (1953, p. 3-7)FRIEDMAN, Milton (1953). “The Methodology of Positive Economics”. In: Essays in Positive Economics. Chicago: Univ. of Chicago Press. é economia positiva, economia normativa e arte da economia. Ignora-se aqui a existência de outras ciências sociais! Mill está errado, a arte da economia pressupõe exclusivamente a economia: “As conclusões da economia positiva parecem ser, e são, imediatamente relevantes para problemas normativos importantes, para questões sobre o que deve ser feito e sobre como qualquer objetivo dado pode ser atingido” (ênfase adicionada, ibidem, p. 4). A arte da física pressupõe exclusivamente a física: os engenheiros profissionais podem ignorar as propriedades químicas dos elementos, tomando alumínio, ferro, oxigênio, hidrogênio, plutônio e ouro, como “substitutos perfeitos” ... É a legitimização do vício.

Vício é virtude: a torção-F. Friedman (1953, p. 14)FRIEDMAN, Milton (1953). “The Methodology of Positive Economics”. In: Essays in Positive Economics. Chicago: Univ. of Chicago Press. : “quanto mais significativa uma teoria, tanto mais não-realistas (no sentido de não-acuradas representações da realidade) os seus pressupostos”. Samuelson (1963, p. 233)SAMUELSON, Paul A. (1963). “Comments to Prof. Nagel’s Article”. American Economic Review, LIII: 229-36, May. não esqueceu inteiramente: “a torção-F básica, que está fundamentalmente errada ao admitir que o não-realismo, no sentido de inacuidade factual, mesmo com o caráter de tolerável grau de aproximação, não passa de demérito para uma teoria”. Virtude é vício: “Edward Mason, Fritz Machlup e Milton Friedman colocaram-na [a Teoria Comportamental da Firma] fora do casulo ... “ (Simon, 1979, p. 276-77)SIMON, Herbert A. (1979). “Rational Decision Making in Business Organizations”. In: Les Prix Nobel en 1978. Stockholm: Nobel Foundation.. A maioria dos neoclássicos fala sobre problemas factuais de desemprego baseada em conclusões do esquema trabalho-lazer, da função abstrata de oferta de trabalho; a leitura de apenas um clássico aplicado, Teoria das Organizações(Marche Simon, 1959)MARCH, James G. and SIMON, Herbert A. (1959). Organizations. New York: John Wiley & Sons. , evitaria este vício ricardiano, e mostraria como a economia e outras ciências sociais são “ciências subservientes” (Senior), isto é, como elas informam a construção do esquema contribuições-induzimentos de March e Simon. (Dizer que o esquema trabalho-lazer é um caso-limite dialético do último é transmitir, não-convencional mas apropriadamente, o padrão geral da correspondência entre modelos abstratos e aplicados.)

Os institucionalistas não esqueceram a substância do toque de sabedoria, da indeterminação de Senior. Ao contrário, trata-se talvez da única visão básica compartilhada por todos: “[na melhor das hipóteses, institucionalistas] compartilham da convicção de que a teoria econômica precisa ser reformulada, para levar em consideração as estruturas sociais e legais em que se realizam as transações de mercado” (Simon, 1979, p. 283)SIMON, Herbert A. (1979). “Rational Decision Making in Business Organizations”. In: Les Prix Nobel en 1978. Stockholm: Nobel Foundation.. Em seus continuados questionamentos dos neoclássicos, entretanto, eles geralmente acabam por questionar a validade e utilidade de teorias abstratas e, assim, a complementaridade entre economia abstrata e aplicada. Parece-me, de fato, que os institucionalistas não se veem como economistas aplicados, ou rejeitam tal autoimagem, da mesma forma que os neoclássicos rejeitam a “incriminação” de abstratos. Não estou em condições de asseverar, contudo, até quando os institucionalistas são adictos do reverso do vício ricardiano, o vício empiricista. Como ocorre, Schumpeter (1986, p. 804)SCHUMPETER, Joseph A. (1986). History of Economic Analysis. London: Allen & Unwin. não se esqueceu de registrar ambos:

Em geral, contudo, os economistas responsáveis pelos relatórios que enchem aqueles volumes do Sriften importaram-se pouco com refinamento analítico. Não trabalharam os fatos, e a maioria passou diretamente das impressões sobre o padrão factual para as recomendações, justamente como o faria um não profissional qualquer. Não usaram nem contribuíram para técnicas teóricas ou estatísticas, a despeito das oportunidades óbvias para o fazerem. E o instrumental analítico da economia não se aperfeiçoou, mas chegou a deteriorar-se em suas mãos.

A monumental História da Análise Econômica de Schumpeter, um clássico em sua área, é também um clássico da economia aplicada, economia aplicada no sentido aqui desenvolvido, digamos, a la Mill. Schumpeter não se esqueceu do vício ricardiano em sua própria obra. Abri o clássico repetida e aleatoriamente, não ocorrendo muitas tentativas antes que achasse minha marca numa passagem remarcável (ibidem, p. 988-89):

O resultado essencial da investigação de Barone, como de outras similares, é que existe, para qualquer socialismo centralmente controlado, um sistema de equações que possui um conjunto unicamente determinado de soluções ... isto significa que, enquanto a pura lógica do fenômeno está em questão, o plano socialista faz sentido e não pode ... (ênfase adicionada.) Não nos devemos esquecer de que a teoria pura do socialismo, assim como a teoria pura da economia competitiva, move-se num nível de abstração muito elevado, e prova muito menos do que pensa o leigo (e algumas vezes os teóricos também) para a praticalidade do sistema.

A linguagem de Schumpeter é a dialética, digamos, dialética a la Georgescu-Roegen. Repetindo meu “experimento”, obtive o mesmo sucesso ao encontrar uma justificativa sucinta para sua periodização da história, o período 1870-1914 em particular (ibidem, p. 753). É dialética da melhor espécie. Usando lógica, o economista abstrato estaria perdido com o número de “exceções”, com o número de autores e de trabalhos que não se enquadram em critério algum de periodização; o comprometimento com a lógica significaria então declarar a intratabilidade do problema, ou “omitir” as exceções ... Finalmente, um toque da elegância schumpeteriana. O amadurecimento de um corpo científico significa, geralmente, o crescimento de seu esqueleto teórico, ocorrendo com frequência acréscimos de esferas de abstração cada vez mais altas (Georgescu-Roegen, 1967, p. 3-8GEORGESCU-ROEGEN, Nicholas (1967). Analytical Economics. Cambridge, MA: Harvard Univ. Press. ; Margenau, 1966, p. 26-31MARGENAU, Henry (1966). “What is a Theory?” In: The Structure of Economic Science, ed. by S. R. Krupp. Englewood, NY: Prentice-Hall. ). É interessante observar como isto se reflete ao longo do clássico de Schumpeter: é possível apreciar a finesse nas crescentes reservas e qualificações metodológicas que o autor vai espontaneamente fazendo, na medida em que a abstração analítica cresce ao longo de sua história, começando das teorias rudimentares até alcançar o equilíbrio geral.

V. EXEMPLIFICAÇÃO

O vício ricardiano mais intenso é encontrável hoje na obra dos principais protagonistas da “sedição” da escolha pública. Isto foi mostrado alhures (Silveira, 1990)SILVEIRA, Antonio M. (1990). “The Public Choice Perspective and Knight’s Institutionalist Bent”. Clare Hall, University of Cambridge, mimeo. . Restrinjo-me aqui às campanhas políticas populares em prol de reformas constitucionais nos Estados Unidos, às propostas de regras econômicas, regras que são advogadas como conclusões normativas imediatamente deriváveis da teoria abstrata da escolha pública. Por exemplo, o equilíbrio orçamentário, ou a constância da taxa anual de crescimento da base monetária (observe que a última pressupõe também a economia monetária). March (1978, p. 603)MARCH, James G. (1978). “Bounded Rationality, Ambiguity and Engineering of Choice”. Bell Journal of Economics, 9: 587-608, Autumn. analisa os efeitos da rigidez de medidas de desempenho, quando a ambiguidade é inerente nos objetivos, valores e gostos. Meu primeiro comentário econômico-aplicado requer pouquíssimas adaptações e paráfrases do problema dele, e foi originalmente dirigido contra o papel desestruturador, desempenhado pelo Fundo Monetário Internacional na corrente crise da dívida externa.

A complexidade do fenômeno econômico deve ser enfatizada - a elaboração de Hayek (1975, p. 251-52)HAYEK, Friedrich A. von (1975). “The Pretense of Knowledge” In: Les Prix Nobel en 1974. Stockholm: Nobel Foundation. sobre a complexidade organizada de essência provê um bom contexto. Dada a inerente complexidade, quanto mais regras rígidas de desempenho: a) maior é a tendência de concentrar esforços em maneiras irrelevantes de atendê-las; e b), maior é também o número de maneiras perversas de fazê-lo, desde que os agentes não se importem com aspectos relevantes do fenômeno que não estão contemplados pelas regras. Assim, existe uma troca, uma compensação entre tais efeitos negativos e o proposto aumento de controle sobre os agentes. Este problema de limpidez ótima, como é chamado por March, sugere cuidado no propor regras.

Meu segundo comentário está proximamente relacionado. Quanto mais complexo o fenômeno, maior tende a ser o número de explicações distintas e igualmente plausíveis que possui (Morgenstern, 1963, p. 25)MORGENSTERN, Oskar (1963). On the Accuracy of Economic Observations. Princeton, NJ: Princeton Univ. Press. . Assim, existe uma correlação positiva entre o número de teorias, ou escolas de pensamento, e a complexidade do fenômeno; um exemplo no grande: caminhando da Física (Heisenberg, 1963)HEISENBERG, Werner (1963). Physics and Philosophy. London: George Allen & Unwin. até a Psicologia (Loevinger, 1987)LOEVINGER, Jane (1987). Paradigms of Personality. New York: W. H. Freeman. , e passando pelo meio-a-meio da Economia, cresce progressivamente o número de escolas de pensamento ou teorias conflitantes. Uma apresentação madura das diferenças entre escolas na explicação macroeconômica pode ser vista em Dow (1985)DOW, Sheila C. (1985). Macroeconomic Thought. New York: Basil Blackwell. ; o reverso parece predominar em todas as disciplinas, e não menos na Física. Em vista disto, de que escola devem as regras ser derivadas? Novamente, uma sugestão de cuidado na proposta de regras, particularmente regras constitucionais.

Suponha-se, apenas para fins de exemplificação, que outras ciências sociais são irrelevantes para a proposta de regra monetária (afinal, trata-se de uma área “aplicada” ... ). Suponha-se além que os monetaristas estão corretos, isto é: a base monetária é exógena e a oferta de moeda é determinada pelo multiplicador monetário típico (Silveira, 1974b)SILVEIRA, Antonio M. (1974b). “The Money Supply: The Evidence from the Brazilian Economy”. Kredit und Kapital, 7 (3): 364-78.; a demanda de moeda é estável, a menos de deslocamentos previsíveis em resposta a mudanças financeiras institucionais (Silveira, 1973)SILVEIRA, Antonio M. (1973). “The Demand for Money: The Evidence from the Brazilian Economy”. Journal of Money, Credit and Banking, V: 113-40. . Segue-se uma conclusão positiva: um crescimento anual da base segundo uma taxa constante significaria de fato uma relaxação anual progressiva, uma expansão segundo taxa efetiva crescente se, como vem acontecendo nas últimas décadas, a diversidade de instituições e produtos financeiros cresce. Mesmo nesta realidade estilizada, a regra monetária não pode ser tão simples.

Um exemplo de efeito perverso que se torna bem visível quando o grau de estilização é reduzido. É difícil pensar em modelo econômico mais próximo da realidade (e de uso mais generalizado) do que o multiplicador monetário. A despeito disto, ignora-se a exigência bancária de saldo médio. Pode-se levá-la em conta através da introdução de uma equação comportamental dos bancos, e dos correspondentes saldos monetários extras que são assim mantidos pelo público. Os saldos extras distinguem a oferta monetária efetiva da oferta observada ou medida. Suponha-se a base crescendo pela taxa constante estabelecida na “constituição”; aumentando a exigência de saldo médio, bancos contraem a oferta efetiva de moeda, enquanto a oferta observada expande, e vice-versa (Silveira, 1974)SILVEIRA, Antonio M. (1974). “Saldo Médio e Estoque de Moeda”. Revista Brasileira de Economia, 28, 37-46, abr./jun. . Em outras palavras, a taxa constante faz de banqueiros os controladores de ajustes finos (fine-tune) da constituição! Considere-se agora uma conclusão positiva derivada da genuína economia aplicada (Kuznets, 1972, p. 319)KUZNETS, Simon (1972). “Modern Economic Growth: Findings and Reflections”. In: Les Prix Nobel en 1971. Stockholm: Nobel Foundation. :

O crescimento econômico provoca forçosamente o declínio da posição relativa de um grupo após outro ... mudança que não é facilmente aceita, e contra a qual frequentemente se opõe resistência efetiva, como a história nos ensina. A perturbação contínua da posição relativa preexistente é fértil em conflito - apesar do aumento da renda ou do produto absoluto para todos os grupos. Em alguns casos, estes conflitos explodiram em guerra civil aberta, sendo a guerra civil dos Estados Unidos um exemplo nítido ... o Estado nacional moderno desempenha um papel crucial na resolução pacífica de tais conflitos gerados pelo crescimento ... , [o qual] pode ser descrito como um processo de revolução controlada.

Fiz uma conexão disto à teoria comportamental da firma e, em particular, ao Homem Administrativo de Simon. Discuti também as diferentes intensidades de pressão, sobre as autoridades monetárias, que resultam da rapidez variável na transformação estrutural da economia (Silveira, 1984SILVEIRA, Antonio M. (1984). “Indexação e Ambiência Geral de Negócios”. Ensaio Econômico EPGE/ FGV, 42: 1-124, maio. ; 1987SILVEIRA, Antonio M. (1987). Filosofia e Política Econômica: o Brasil do Autoritarismo. Rio de Janeiro: Instituto de Planejamento Econômico e Social (IPEA/INPES). ). A regra monetária proposta não leva em conta esta conclusão da economia aplicada. A taxa “constitucional” constante é pró-cíclica: mais restritiva quando a transformação estrutural se encontra acelerada, e o consequente conflito redistributivo está mais alto, e vice-versa. A importância da matéria é tal que dispensa outros comentários. As regras propostas estão usualmente fora do tempo, porque fora dele encontram-se as construções positivas que as informam.

Um toque knightiano vem a propósito: devem mais leis ser promulgadas a fim de regular o comportamento “do violador-de-leis do universo” (Knight, 1960, p. 53)KNIGHT, Frank H. (1960). Intelligence and Democratic Action. Cambridge, MA: Harvard Univ. Press. ? Se a erosão de códigos morais está razoavelmente confirmada por observações, e se tal fato é evocado para justificar sua substituição por regras constitucionais, necessária se torna a investigação do grau de substitutibilidade entre ambos. Joan Robinson (1983, p. 11)ROBINSON, Joan (1983). Economic Philosophy. Middlesex, England: Penguin Books. mantém a sobrevivência das espécies como razão última para códigos morais, mas nega a eficiência da substituição, “a honestidade é muito mais barata”.

Foram considerados vários exemplos de questões imediatas que ocorrem a qualquer economista que não é adieto do vício ricardiano. Obviamente, questões aplicadas semelhantes são levantadas por muitos que favorecem regras. Uma questão séria foi colocada por Meltzer (1987, p. 1)MELTZER, Allan H. (1987). “Limits of Short-Run Stabilization Policy”. Economic Inquiry, XXV: 1-14, January. : “A tese que apresentarei é que a previsão dos principais agregados econômicos é tão imprecisa - em média tão errada-, que políticas discricionárias conduzidas a partir de previsões não estabilizam, provavelmente, a economia”. A propósito, Meltzer não pressupõe a teoria da escolha pública, nem sugere o status constitucional para sua mais elaborada versão da regra monetária.

As causas do vício não são especificamente consideradas por Schumpeter; ele apenas indica falta de conhecimento - senso histórico, filosofia e sociologia -, e sugere que a atenção dos economistas foi desviada, do toque de sabedoria para a questão de julgamentos de valor, desde Cairnes, Sidgwick e Weber (Schumpeter, 1986, p. 471-73, 540-41)SCHUMPETER, Joseph A. (1986). History of Economic Analysis. London: Allen & Unwin. . O vício não é discutido por Hayek (1973HAYEK, Friedrich A. von (1973). Law, Legislation and Liberty, I: Rules and Order. Chicago: Univ. of Chicago Press. ; 1975HAYEK, Friedrich A. von (1975). “The Pretense of Knowledge” In: Les Prix Nobel en 1974. Stockholm: Nobel Foundation. ; 1978HAYEK, Friedrich A. von (1978). Law, Legislation and Liberty, II: The Mirage of Social Justice. Chicago: Univ. of Chicago Press. ; 1981HAYEK, Friedrich A. von (1981). Law, Legislation and Liberty, III: The Political Order of a Free People. Chicago: Univ. of Chicago Press . ), mas minha leitura de sua obra leva-me a interpretá-lo como desautorizando toda e qualquer conclusão normativa, todas envolvendo não mais do que “Pretensão de Conhecimento”. Hayek vai longe demais, como fica evidenciado pelas próprias conclusões normativas que ele mesmo deriva de sua teoria evolucionária. Indo em vez disto à raiz do problema, especialização ascendente emerge como primeira causa do vício. A segunda, que pode ser denominada chamamento do dever público, está em Schumpeter (1949, p. 346)SCHUMPETER, Joseph A. (1949). “Science and Ideology”. American Economic Review , XXXIX: 345-59, March. também, mas em sua Conferência Presidencial:

A maioria dos nossos, não contentes com sua tarefa científica, cede ao chamamento do dever público e ao desejo de servir seu país e sua época. Assim fazendo, insere no trabalho seu esquema particular de valores, e todas as suas políticas e politicagens, refletindo sua personalidade moral por inteiro, inclusive suas ambições espirituais.

Juntos, os dois fatores respondem por boa parte do fenômeno, mas há que se lembrar que cientistas não são “eunucos-econômicos”, como o colocaria Buchanan. Os seres humanos são mistos na ação, o interesse próprio tem seu papel mesmo aqui: status, prestígio e renda, assim como recursos para pesquisa - tão necessários para manutenção da força de trabalho requerida para o desenvolvimento do conhecimento, não importando o nível de abstração ou a escola de pensamento. Assim, comportamento interesseiro é a terceira causa.

Uma exemplificação a mais das abordagens abstratas e aplicadas torna-se evidente. “Comportamento misto” pode ser entendido em termos do modelo estrutural de Freud: superego (seguimento de regras, o Homem Sociológico puro está contido aqui), ego (comportamento deliberativo, o Homem Econômico aqui), e id (comportamento espontâneo). Dizer que os seres humanos são mistos na ação é dizer que, na prática, o comportamento envolve as três dimensões da personalidade. Nesta perspectiva, o homem econômico está claramente numa esfera de abstração mais alta do que o “Homem Psicológico”, porque o último possui mais dimensões do que é observável no comportamento humano; o homem econômico é uma versão simplificada do ego freudiano e, como tal, um caso-limite dialético que tende a predominar em domínios fenomenológicos especificáveis, como negócios. Por outro lado, lembrar Freud é chamar atenção sobre determinantes inconscientes do comportamento, e assim a quarta e talvez mais importante causa do vício torna-se evidente, a cegueira científica(Kuhn, 1971, p. 37, 61)KUHN, Thomas S. (1971). The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: Univ. of Chicago Press . .

Permitam-me concluir com outro exemplo da distinção entre tratamentos abstratos e aplicados de um problema, um esboço da versão abstrata correspondente à abordagem aplicada desenvolvida neste trabalho. A matéria pode ser realmente simplificada. A indeterminação de Senior fica restrita à sua primeira parte, “as proposições da economia abstrata, não importando a generalidade ou verdade que encerrem, não autorizam conclusões normativas, mas não podem ser ignoradas”. Os economistas abstratos nada sabem da realidade (uma primeira aproximação, uma classificação límpida, nenhuma vaguidade, nenhuma “conversa fiada” ... ). Os seres humanos são homens econômicos em toda parte; os requisitos de Occam (generalidade, consistência lógica) assim o ditam. Logo, deve-se consistentemente esquecer sobre vício ricardiano, indo direto ao ponto, chamando-o por seu nome, isto é, charlatanismo. O charlatanismo prolifera porque os benefícios são altos, e o custo de ser desmascarado é baixo (baixo porque a complexidade do fenômeno permite muitas formas inteligentes de pretender conhecimento). Sem dúvida, o economista abstrato, por maiores que sejam os antolhos, há de preferir a abordagem aplicada desta matéria. Senior e Mill estavam certamente corretos.

VI. CONCLUSÃO

A arte da economia pressupõe atenção às especificidades que caracterizam a individualidade espaço-temporal do fenômeno; em princípio, ou por definição, especificidades estão fora do escopo de quaisquer teorias abstratas ou aplicadas. A arte da economia pressupõe também uma teoria aplicada, que integra dialeticamente todas as teorias que são relevantes para a compreensão do fenômeno. Teorias aplicadas são ramos positivos do conhecimento, que autorizam conclusões normativas quando qualificadas pelas especificidades com que o fenômeno se apresenta. Teorias abstratas não autorizam conclusões normativas. Esta indeterminação foi denominada indeterminação de Senior.

Esta formulação atualiza Senior e Mill, e é consistente com Schumpeter e Knight. Ela transmite a visão de um padrão geral da divisão de trabalho no aprendizado ou no conhecimento: ciência abstrata, ciência aplicada e arte da ciência são três esferas distintas do conhecimento, não importando se matéria inerte, vida ou sociedade é o campo em questão. Evidentemente, as linhas fronteiriças entre as esferas e os campos evolvem quando o conhecimento cresce, e podem colapsar (ou emergir) aqui ou ali; hoje, uma ciência unificada está “no céu”. Podem ainda existir fenômenos não iluminados por ciência abstrata ou aplicada alguma, e onde o empiricismo mais nu menos puro prevalece. Podem ainda existir fenômenos que são iluminados apenas por ciências aplicadas, porque a esfera de maior abstração não se desenvolveu ainda, ou não deve desenvolver-se por uma razão ou outra. Hoje, casos que tais não parecem existir no campo da economia.

O crescimento do saber significa progressiva divisão de trabalho entre todos os campos e esferas de abstração. A natureza não-experimental da economia significa demandas conflitivas sobre economistas abstratos, prejudica a especialização e, na medida em que esta ocorre, alimenta o dissenso paradigmático entre os especialistas, abstratos ou aplicados. A complexidade crescente do fenômeno, quando se move da matéria inerte para a sociedade, contribui para os mesmos efeitos. Debreu exemplifica o cientista abstrato tão tipicamente quanto Kuznets o aplicado. Schumpeter e Knight movem-se fácil e conscientemente entre os dois níveis, e o primeiro supera as fronteiras das ciências sociais. Estas fronteiras perdem sentido no caso de Simon, mas sua insistência sobre a importância do saber-como mostra predominância da inclinação aplicada.

O institucionalismo ajusta-se bem ao conhecimento de economia aplicada aqui desenvolvido. A indeterminação de Senior parece corresponder à convicção básica mais geralmente mantida pela escola, quando se dá um devido desconto, pela existência do longo debate paradigmático contra os neoclássicos. Asserções mais seguras exigiriam que se levasse em consideração o que os institucionalistas dizem e fazem, enquanto, nesta dimensão, este trabalho restringe-se a algumas indicações gerais. Nos mesmos termos, pode-se afirmar que os economistas abstratos neoclássicos são adictos do vício ricardiano, denominação dada por Schumpeter ao hábito de ignorar a indeterminação de Senior, ao hábito de conduzir e aplicar análises abstratas como se todos os elementos cruciais da realidade estivessem sendo iluminados.

Regras constitucionais propostas sem a consideração da multiplicidade de escolas econômicas, ou da substitutibilidade limitada entre preceitos morais e constitucionais, ou do lado perverso dos efeitos de regras sobre o comportamento, são bons exemplos do vício ricardiano; no caso da regra monetária constitucional, propostas monetaristas que adicionalmente ignorem o nível de transformação estrutural da economia, ou a natureza mutável das instituições financeiras, ou a exigência de saldo médio pelos bancos, são exemplos mais específicos da mesma falta. São apontadas quatro causas do vício: especialização ascendente, chamamento do dever público, comportamento interesseiro e cegueira científica.

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  • *
    Este artigo foi traduzido pelo autor e está sendo estendido na pesquisa, em andamento, Aplicabilidade de Teorias Econômicas: a Indeterminação de Senior, financiada pelo PNPE-1991, IPEA.
  • 1
    Citei a primeira versão do famoso artigo clássico de Friedman (1953)FRIEDMAN, Milton (1953). “The Methodology of Positive Economics”. In: Essays in Positive Economics. Chicago: Univ. of Chicago Press. . Existe alguma gozação aqui, mas existe também a tentativa de transmitir a ideia de que a classificação de um autor como positivista, realista, instrumentalista etc. deve estar vinculada ao grau de abstração de seu trabalho teórico. E isto é uma crítica à maioria dos críticos de Friedman.
  • 2
    Estou muito em débito com meu pai, Dr. José Maria da Silveira Jr. (27/11/1908-02/I0/1988), clínico geral, não só por longas discussões sobre a matéria, mas pelo exemplo diário de sua prática profissional. Ele seguia estritamente este bem conhecido preceito ético da sua vocação.
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    JEL Classification: B41.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1991
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