Acessibilidade / Reportar erro

Moeda endógena e passividade bancária: uma análise crítica da abordagem “horizontalista” e da “teoria do circuito monetário”

Endogenous currency and banking passivity: a critical analysis of the “horizontalist” approach and the “monetary circuit theory”

RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar uma análise crítica das abordagens pós-keynesianas que apoiam a tese de uma endogeneidade extrema da criação de dinheiro. Nem os horizontalistas nem os teóricos do circuito monetário dão atenção especial aos aspectos dual e dialético dos bancos, instituições orientadas para o lucro, responsáveis pela criação de dinheiro e pela intermediação financeira. Devido a esses aspectos, a concorrência bancária é o núcleo da instabilidade financeira e da dinâmica do crédito. Tendo como objetivo principal a competição por lucros, os bancos agem prociclicamente ajudando a ampliar a instabilidade da economia capitalista e a estimular atividades de especulação financeira em vez de investimentos industriais, fonte de riqueza e reprodução material nas economias capitalistas.

PALAVRAS-CHAVE:
Pós-keynesianismo; economia monetária; bancos; emissão monetária; competição bancária

ABSTRACT

The purpose of this article is to present a critical analysis of post-Keynesian approachs that support the thesis of an extreme endogeneity of money creation. Neither horizontalists nor monetary circuit theorists give special attention to the dual and dialectic aspects of banks, profit oriented institutions which are responsible for money creation and for financial intermediation. Because of these aspects, banking competition is the core of financial instability and credit dynamics. Having as their main goal competition for profits, banks act procyclically helping to amplify the instability of the capitalist economy, and to stimulate financial speculation activities instead of industrial investments, which is the source of wealth and material reproduction in capitalist economies.

KEYWORDS:
Post-Keynesianism; monetary economics; banks. monetary emission; bank competition

A análise crítica das vertentes pós-keynesianas que advogam o caráter absolutamente endógeno da criação monetária na economia capitalista moderna é o objeto deste artigo. Na primeira e na segunda seções, apresentamos numa perspectiva crítica, as principais ideias do enfoque “horizontalista” e da teoria do circuito monetário. Procuraremos demonstrar que essas duas correntes compartilham uma visão parcial do comportamento das instituições bancárias e do processo de criação monetária. Na terceira seção, defendemos a ideia de que a capacidade de criação privada da moeda não é ilimitada e que os bancos, enquanto agentes que têm como objetivo o lucro, são ao mesmo tempo uma força dinâmica e desestabilizadora na economia capitalista. A distinção dessa dupla dimensão do sistema bancário é essencial para a compreensão da instabilidade financeira e da dinâmica cíclica da acumulação capitalista. Ao final, apresentamos um breve resumo à guisa de considerações finais.

1. O APPROACH “HORIZONTALISTA” DA OFERTA DE MOEDA

De acordo com os teóricos da vertente pós-keynesiana chamada “horizontalista”, cujos principais expoentes são Kaldor (1982KALDOR, Nicholas (1982) The scourge of Monetarism. Oxford University Press, Oxford. e 1985KALDOR, Nicholas (1985) “How monetarism failed.” Challange, May-June, pp. 12-21.) e Moore (1989MOORE, Basil (1989) “A simple model of bank intermediation”, Journal of Post Keynesian Economics, vol. XII, nº 1, pp. 10-28, Fall., 1988MOORE, Basil (1988) Horizontalists and Verticalists: the macroeconomics of credit money. Cambridge: Cambridge University Press., 1985MOORE, Basil (1985) “Wages, bank lending and endogeneity of credit money”. In: JARSUUC, Marc (org.), Money and macro policy. Hingham: Kluwer Academic Publisher, pp. 1-28., 1983MOORE, Basil (1983) Unpacking the post Keynesian black box: banking lending and the money supply”, Journal of Post Keynesian Economics, summer.), a curva de oferta de moeda é horizontal no espaço definido pelos eixos da taxa de juros e da quantidade de moeda. Isto porque os bancos, ao criarem ativos em resposta à demanda do público por crédito, geram necessariamente passivos monetários, cuja oferta possui uma elasticidade infinita a uma dada taxa de juros. A taxa de juros primária, variável exógena do modelo, é fixada pelo Banco Central que acomoda passivamente a demanda de reserva dos bancos. Para esses autores, o caráter endógeno da oferta de moeda é o epicentro da diferenciação da corrente pós-keynesiana vis-à-vis à teoria monetária convencional. Esta sustenta que a curva de oferta de moeda é vertical, dado que o Banco Central fixa de modo exógeno a quantidade de moeda.1 1 Alguns autores pós-keynesianos contestam a visão de que o caráter endógeno ou exógeno da oferta monetária seja o critério relevante na definição de ortodoxia ou de heterodoxia nos estudos de economia monetária e de macroeconomia em geral. Como destaca, corretamente, Carvalho (1993: 118): “a criação de moeda é uma questão amplamente institucional, no sentido de que deve ser discutida na suposição de instituições, públicas e privadas, específicas, não tendo a crucialidade teórica que Kaldor e Moore lhe atribuem”.

A oferta de crédito pelos bancos seria igualmente uma resposta passiva à demanda do público, como afirma Moore “os bancos estão no negócio de venda de crédito. Do mesmo modo que qualquer outra firma, o volume de bens e serviços que eles podem vender depende da demanda por seus produtos. [...] No mundo real, empréstimos criam depósitos. Entretanto, mudanças nos créditos bancários são efetuadas por iniciativa dos tomadores e não dos bancos. Esses não esperam por excesso de reserva antes de conceder novos empréstimos ao público, nem esperam que a oferta de moeda aumente devido uma injeção de reservas pelo Banco Central. As reservas são sempre obtidas sob demanda, a um dado preço. A oferta de moeda é endógena, pois é, igualmente, impelida pelo crédito e determinada pela demanda (Moore, 1988MOORE, Basil (1988) Horizontalists and Verticalists: the macroeconomics of credit money. Cambridge: Cambridge University Press.: 11, grifos no original)”.

Embora esse autor não ignore as exigências feitas pelos bancos aos seus clientes para conceder crédito sob distintas formas, entre as quais, o fornecimento de colateral, reciprocidade, limites de crédito por tomadores individuais etc., essas restrições desempenham um papel completamente irrelevante em suas formulações.

A existência de linhas de crédito não utilizadas pelos clientes ofereceria a confirmação de que a demanda é, em geral, inferior ao volume de crédito que os bancos estão dispostos a conceder.

Segundo a interpretação “horizontalista”, os Bancos Centrais não são capazes de resistir às pressões dos bancos para a criação de reservas em um contexto de forte expansão do crédito em resposta à demanda do público. Se as reservas bancárias são insuficientes, os Bancos Centrais devem sempre fornecer a liquidez exigida pelos bancos. Como o estoque de moeda, as reservas bancárias e a base monetária variam de forma endógena em resposta às modificações da demanda de moeda e de crédito, os Bancos Centrais não têm nenhum poder para impedir a expansão do crédito, exceto pela imposição de limites quantitativos diretos. As autoridades monetárias estão habilitadas, simplesmente, a fixar a taxa de juros de seus empréstimos de liquidez. Elevando o preço da oferta de reserva, os Bancos Centrais induzem a elevação do nível das taxas de curto prazo, afetando a taxa de crescimento da oferta de moeda, dado que a elevação dos juros inibe a demanda de novos créditos: “Mas, uma vez que os bancos tenham concedido crédito, e criado depósitos nesse processo, o Banco Central não tem nenhuma escolha, devendo tornar disponíveis as reservas demandadas à um dado preço” (Moore, 1986: 21).

Esse comportamento acomodatício do Banco Central preconizado pelos “horizontalistas” é fortemente criticado por Carvalho (1993CARVALHO, Fernando Cardin (1993) “Sobre a endogenia da moeda: réplica ao professor Nogueira da Costa”, Revista de Economia Política, vol. 13, nº 3, jul-set, pp. 114-21., pp.117), para quem”[...) não é razoável supor que qualquer aperto de liquidez seja visto como uma ameaça à estabilidade do sistema. [...] a experiência histórica mostra haver uma sensível elasticidade do sistema bancário que permite a bancos e intermediários financeiros se acomodar a graus diferentes de pressão de liquidez da parte do Banco Central. Note-se que, se este não pode intervir sobre as reservas disponíveis também não pode fazê-lo sobre a taxa de juros. Como se sabe, as variações das taxas de juros são ameaças muito mais importantes para as instituições bancárias e financeiras que a simples escassez de recursos líquidos. A aceitação da tese de que ao Banco Central é vedada qualquer pressão sobre o ‘equilíbrio’ daquelas instituições implica necessariamente considerar também que se abra mão de mudanças nas taxas de juros. Na verdade, o próprio argumento que sustenta a ideia de reservas livremente disponíveis é a necessidade de evitar flutuações na taxa de juros. Em suma, no modelo horizontalista desaparece a política monetária, e não apenas a política dita monetarista.”

A institucionalidade monetária e financeira evolui simultaneamente ao desenvolvimento das práticas e estratégias bancárias, como foi o caso da emergência do liability management ou gestão ativa dos passivos bancários.2 2 No contexto da evolução institucional do sistema financeiro norte-americano, o surgimento do liability management está associado à criação, na segunda metade da década de 50, do mercado de fundos federais - no qual os bancos trocam grandes volumes de recursos que representam excedentes das reservas obrigatórias mantidas junto ao Banco da Reserva Federal (ver Minsky, 1982) e o desenvolvimento nos anos 60 de novos instrumentos financeiros, como os certificados de depósito, os commercial papers, os diversos tipos de acordos de recompra de títulos de curto prazo (repurchase agreement), a captação de recursos no Euromercado (cf. Minsky, 1984: 158). Esses desenvolvimentos liberaram os bancos da necessidade de conservar uma reserva secundária como proteção contra uma escassez imprevista de liquidez. Essa nova prática afetou a capacidade de o Banco Central influenciar a expansão do crédito através da taxa de juros. Como resultado da gestão ativa das obrigações, os bancos individuais definem a taxa de crescimento desejada de seus ativos e, em seguida, ajustam seus compromissos para satisfazer suas necessidades de fundos. Nesse contexto em que os bancos passaram a competir por recursos adicionais pela oferta de um amplo leque de taxas de juros, o Banco Central continua fixando a taxa de juros primária de curto prazo, embora não tenha mais influência sobre o nível relativo das taxas bancárias em comparação com as taxas dos instrumentos financeiros não­bancários. A influência do liability management e da gestão correlativa da liquidez praticada pelos grandes clientes dos bancos romperam os vínculos que conectavam no passado o volume de reservas bancárias (base monetária), o volume de depósito à vista (a moeda) e o nível de empréstimos bancários.

Em trabalhos mais recentes, Moore incorporou ao seu modelo a gestão ativa dos passivos bancários para reforçar o argumento de que os bancos acomodam inteiramente a demanda do público por crédito. Pela gestão ativa de seus passivos, um banco individual procura se assegurar do refluxo dos depósitos que criou ao efetuar empréstimos. Contudo, se tal iniciativa não funcionar, os Bancos Centrais continuam prontos para fornecer as reservas necessárias.

Esse autor ressalta a importância do liability management como um expediente que revolucionou a atividade bancária, mas esse desenvolvimento é incompreensível no quadro teórico “horizontalista”, no qual as reservas bancárias estão disponíveis em quantidades ilimitadas um determinado preço (a taxa de juros). Nessa perspectiva, é difícil entender porque os bancos, que contam com uma curva de oferta de moeda horizontal, procuram ativamente novas fontes de recursos. A inclusão de novas práticas financeiras nesse modelo analítico permanece, assim, problemática.

Na análise “horizontalista”, em particular nos trabalhos de Moore, o poder de influência dos bancos na dinâmica econômica capitalista não merece destaque. Ao contrário, os bancos desempenham um papel claramente passivo diante das demandas dos clientes. Se tal interpretação pode estar correta para um banco individual no curto prazo e num contexto específico, isto não significa que os bancos se comportam de maneira passiva todo o tempo. As decisões estratégicas de médio e longo prazos dos bancos têm efeitos consideráveis para a economia em seu conjunto (cf. Goodhart, 1989GOODHART, Charles (1989) “Has Moore become too horizontal?”, Journal of Post Keynesian Economics, fall, vol. 12, nº 1, pp. 29-34.: 30). Por um lado, essas instituições são agentes econômicos que estão submetidos à lógica implacável da valorização da riqueza num mundo de incerteza e irreversibilidade. Por outro lado, ocupam um lugar central no processo de criação monetária na economia capitalista moderna, em que a moeda de crédito é o principal meio de liquidação dos contratos econômicos.

Em geral, as estratégias dos bancos no que se refere aos empréstimos e à captação de recursos evoluem em novas direções com o desenvolvimento do sistema financeiro e com as subsequentes modificações das relações entre essas instituições, o Banco Central e as instituições financeiras não-bancárias. Se, em um contexto institucional específico e historicamente determinado, os bancos respondem passivamente à demanda do público, isso não significa que agem desse modo sempre e em qualquer lugar. Para obter e ampliar seus lucros, os bancos ensinam aos clientes como utilizar seus serviços, incitando a demanda de crédito.

A abordagem “horizontalista” tampouco leva em consideração o fato de que os bancos possuem preferências pela liquidez que refletem suas expectativas em relação ao futuro. Assim, em busca de valorização do seu capital, os bancos administram ativamente os dois lados do balanço e utilizam também expedientes como as transações não-registradas (off-balance-sheet). Como o intento dos bancos em se manter mais ou menos líquidos depende de suas expectativas e antecipações sobre as condições dos negócios ao longo do ciclo econômico, essas instituições se comportam de um modo que afeta a dinâmica da acumulação capitalista, como veremos na terceira seção deste artigo. De igual modo, os bancos podem financiar a especulação com títulos representativos da riqueza velha, privilegiando a circulação financeira em detrimento da circulação industrial, dado que o crédito bancário é criado tanto para financiar as aquisições de ativos financeiros, como os novos bens de investimento ou ativos de capital.

Assim, como destaca Carvalho (1992aCARVALHO, Fernando Cardin (1992a) “Moeda, produção e acumulação: uma perspectiva pós keynesiana”. In: SILVA, Maria Luiza F. (org.). Moedas e produção, teorias comparadas. Brasília D.F.: Ed. Universidade de Brasília, pp. 163-91.: 113) “a visão horizontalista, a endogeneidade extrema, não somente falha em conceber adequadamente os bancos como também ignora a existência da circulação financeira. A moeda é vista como criada exclusivamente para a compra de bens, como se o financiamento do capital de giro fosse não apenas a principal função dos bancos, mas atualmente a única”. Adicionalmente, como adverte Rousseas (1985ROUSSEAS, Stephen (1986a) The post Keynesian monetary economics. London: Macmillan.: 59-60) “por mais endógena que a oferta de moeda possa ser, tal fato não significa que as necessidades do comércio sejam acomodadas facilmente e de modo equânime ou que não existam custos em termos da distorção na distribuição do fluxo do crédito”. Na economia capitalista, nem a moeda nem as escolhas de portfólio dos bancos e dos demais agentes econômicos são neutras em seus efeitos sobre a acumulação do capital e sobre a dinâmica econômica no curto e longo prazo.

Essas críticas são igualmente válidas para a teoria do circuito monetário, na qual os bancos são concebidos como os agentes responsáveis pela criação de moeda através da criação de crédito, exclusivamente, em resposta às decisões de produção corrente e de investimento produtivo das empresas. Essa teoria adota a noção de moeda endógena em uma visão extrema que, embora colocada em termos distintos que aqueles dos teóricos “horizontalistas”, conduz também a uma interpretação limitada do papel dos bancos na economia capitalista moderna, como veremos na próxima seção

2. A TEORIA DO CIRCUITO MONETÁRIO

A teoria do circuito monetário reúne diferentes modelos heterogêneos, cuja análise detalhada foge aos objetivos desta seção. Pretendemos somente recuperar as idéias-chave comuns a todos os teóricos dessa corrente, que são: a existência de uma hierarquia dos agentes no circuito monetário, o financiamento em duas etapas da produção, a noção de moeda de crédito endógena e a existência de leis puramente macroeconômicas como a identidade entre poupança e o investimento (cf. Lavoie, 1987LAVOIE, Mark (1987) “Monnaie et production: une synthese de la théorie du circuit”, Economies et Sociétés, nº 9, pp. 65-101.).3 3 Não é uma tarefa fácil identificar as ideias fundamentais dos teóricos do circuito monetário de produção. Além da heterogeneidade, as formulações de certos autores se modificaram ao longo do tempo.

De acordo com essa teoria, três diferentes grupos de agentes participam do circuito econômico em uma economia monetária da produção. Esses três grupos - as empresas, os bancos e as famílias - não designam um conjunto de pessoas jurídicas ou físicas, mas ao contrário, representam as funções econômicas de base numa economia capitalista. Como sublinha Poulon (1982POULON, Frédéric (1982) Macroéconomie approfondie: équilibre, déséquilibre et circuit. Paris: Edition Cujas.), não há agregação possível entre as empresas e os bancos, agentes econômicos que executam funções específicas e diferentes.

As empresas são os agentes responsáveis pela reprodução material da sociedade. Todas as riquezas são criadas pelas decisões de produção e de investimento das empresas. Como o tempo não é vazio nem neutro, as decisões das empresas são a postas em relação ao futuro, incerto e imprevisível. O processo produtivo é posto em marcha pelas expectativas e pelos prognósticos das empresas. O grupo dos bancos fornece o crédito inicial necessário à produção e ao investimento. Os bancos formam juntamente com o Banco Central um sistema institucional homogêneo e coerente, tendo como função assumir, em nome da sociedade, as apostas realizadas pelas empresas em relação o futuro (cf. Parguez, 1984PARGUEZ, Alan (1984) “La dynamique de la monnaie”. Economies et Sociétés. (Série Monnaie et Production, nº 1).: 97). As famílias desempenham um duplo papel. De um lado, fornecem a mão-de-obra necessária à produção, de outro lado, através da utilização de suas rendas, confirmam ou não as expectativas das empresas. Às diferentes funções dos agentes econômicos correspondem diferentes poderes. Assim, as empresas tomam as decisões relativas no nível da produção e, por consequência, do emprego e dos salários, enquanto os bancos têm o poder de fixar as taxas de juros e as condições de exigibilidade dos créditos avançados. Dado que a distribuição dos créditos se baseia na taxa de rendimento esperado dos diferentes projetos, são os bancos que, em última instância, decidem os projetos de produção e de investimento que serão executados. As famílias, por sua vez, não têm nenhuma influência direta sobre o nível da atividade econômica.

No circuito monetário, a hierarquia dos agentes econômicos é a das funções, sendo indicada pelo sentido da circulação dos fluxos monetários, que se dirigem dos bancos para as empresas e, na sequência, destas para as famílias (cf. Poulon, 1982POULON, Frédéric (1982) Macroéconomie approfondie: équilibre, déséquilibre et circuit. Paris: Edition Cujas.). As etapas do circuito monetário de produção sem crise são resumidamente as seguintes:

  1. Os bancos decidem financiar os projetos das empresas de produção, seja de bens de consumo, seja de bens de investimento (financiamento inicial). O crédito é criado ex-nihilo, nenhuma oferta de poupança é admitida na origem do circuito.

  2. As empresas tomam decisões relativas ao nível de produção e emprego. Na sequência, os empregados (as famílias) decidem a alocação de seus rendimentos. O dinheiro em circulação representa dívidas das empresas em relação aos bancos (empréstimo inicial) e haveres dos assalariados junto ao sistema bancário.

  3. Quando as famílias gastam seus salários na compra de bens e serviços ou na aquisição de títulos emitidos pelas empresas, a moeda retorna às empresas e estas podem reembolsar os bancos (financiamento final da produção e do investimento). Desse modo, a moeda inicialmente criada é destruída (ou anulada). O circuito se fecha com a acumulação de uma dívida financeira das empresas junto às famílias.

  4. Se as famílias decidem conservar uma parte de suas poupanças sob a forma de depósito bancário, ou seja, de saldos monetários, as empresas não podem reembolsar integralmente os empréstimos iniciais. Neste caso, as empresas solicitam aos bancos uma renovação dos créditos. Se os bancos recusarem, as empresas não têm outra saída a não ser venda de direitos de propriedade sobre o patrimônio para reembolsar seus débitos.

  5. O circuito se fecha com a destruição da moeda. Ocorre uma nova criação de moeda quando os bancos concedem novos créditos às empresas para financiar um novo ciclo de produção. Contudo, como o processo de produção é contínuo, novos ciclos são iniciados a cada momento. Assim, o estoque de moeda existente depende da quantidade de moeda que é ordinariamente criada e destruída.

De acordo com Lavoie (1984LAVOIE, Mark (1984) “Un modele post-keynésien d’économie monétaire fondé sur la théorie du circuit”, Economies et Sociétés (série Monnaie et Production, nº 1), pp. 231-258, avril.) e Graziani (1990aGRAZIANI, Augusto (1990a) “La théorie du circuit monétaire”, Economies et Sociétés. (Série Monnaie et Produccion, nº 7), pp. 23-42, juin.), as empresas estão permanentemente endividadas, dado que vários ciclos monetários se sobrepõem e coexistem no tempo. Em consequência, há sempre uma parcela da moeda de crédito que nunca é destruída, sendo continuamente renovada. No entanto, a análise desses teóricos não explora as implicações dessa ideia.

Em um circuito sem crise, as despesas de produção corrente são inteiramente absorvidas. Quanto às despesas de investimento, uma parte do financiamento final virá dos lucros retidos pelas empresas, uma outra parte é obtida na captação direta dos recursos das famílias através da venda de ações e títulos de dívida. O resíduo é fornecido pelos empréstimos de médio e longo prazos concedidos pelos bancos que, atuando como intermediários financeiros, realizam a transferência da poupança financeira das famílias, conservada sob a forma de depósitos bancários, aos tomadores finais. Os teóricos do circuito consideram os diferentes fluxos monetários no agregado para concluir que ocorrerá uma igualização dos débitos e créditos individuais que permitirá anular os contratos individuais de empréstimos. Neste contexto analítico, não existe possibilidade de ocorrência de crise bancária.

Na teoria do circuito, a moeda é integrada à economia no momento da produção, assim que a empresa obtém crédito bancário para pagar as famílias. A moeda nasce do financiamento da produção e do investimento pelo crédito bancário. A moeda de crédito é endógena por definição, na medida em que resulta da criação de um fluxo de despesas e receitas originado das decisões de produção e de investimento das empresas. Longe de ser arbitrária, a criação monetária responde às demandas das empresas, levando em consideração os critérios de rentabilidade fixados pelas instituições financeiras (cf. Lavoie, 1987LAVOIE, Mark (1987) “Monnaie et production: une synthese de la théorie du circuit”, Economies et Sociétés, nº 9, pp. 65-101.).

O papel reservado ao Banco Central é de agir como um terceiro agente nas relações entre os bancos individuais. Para efetuar os pagamentos recíprocos, os bancos devem possuir, em reserva, a moeda emitida pelo Banco Central ou obtê-la através de um crédito stand-by junto a esse último, porque um verdadeiro pagamento monetário exige sempre a utilização de um reconhecimento espontâneo de dívida emitida por um terceiro agente. O fato de que os bancos individuais devam honrar os seus saldos interbancários não nulos com uma moeda emitida exclusivamente pelo Banco Central não interfere no caráter endógeno da moeda de crédito, criada pelos bancos em resposta às decisões efetuadas pelas empresas.

De acordo com essa teoria, o Banco Central não tem nenhum poder de limitar a quantidade de moeda de crédito criada pelo sistema bancário pela exigência de reservas obrigatórias. A moeda acumulada sob a forma de depósitos bancários, sobre os quais os bancos devem constituir as reservas, correspondente, na realidade, aos empréstimos já concedidos, os quais não podem ser recuperados antes do prazo de vencimento sob pena de arruinar o sistema produtivo. Como destaca Lavoie (1984LAVOIE, Mark (1984) “Un modele post-keynésien d’économie monétaire fondé sur la théorie du circuit”, Economies et Sociétés (série Monnaie et Production, nº 1), pp. 231-258, avril.), “o Banco Central não pode também se furtar a fornecer aos bancos os bilhetes emitidos por ele ou pelo governo, se as famílias decidem conservar uma parte de seus saldos monetários sob a forma de papel-moeda. Pois, se as famílias não puderem obter dos seus bancos o volume de numerário exigido, ocorreria uma crise de confiança generalizada, conduzindo a ruína completa do sistema bancário”. Se não consegue limitar a atividade bancária através dos requerimentos de reserva, o Banco Central pode, no entanto, controlar ou influenciar as taxas de juros, em particular, a taxa de desconto. Isto é, o Banco Central não pode negar-se a fornecer aos bancos todo o volume de reservas que necessitam, mas sempre é capaz de lhes fixar o preço. Como os “horizontalistas”, os teóricos do circuito exageram nas implicações da noção de moeda endógena.

Outra ideia-chave dessa corrente diz respeito à igualação do investimento a poupança no final do circuito, embora nenhuma noção de equilíbrio seja associada a essa igualdade. Essa identidade macroeconômica é válida e verdadeira mesmo que as empresas não obtenham sucesso em suas apostas em relação ao futuro. Não existe, de acordo com essa interpretação, nenhuma contradição entre a igualdade obrigatória de I e de S e a anterioridade lógica do investimento, dado que a poupança só aparece uma vez que o investimento é realizado. Assim, “a poupança não pode jamais preexistir ou limitar o investimento” (Parguez, 1986PARGUEZ, Alan (1986) “Au coeur du circuit ou quelques réponses aux énigmes du circuit”. Economies et Sociétés. (série Monnaie et Production, nº 3), pp. 23-39, aout/septembre.: 28). No que se refere ao investimento inicial, seja da produção corrente, seja do investimento, o fluxo de crédito é criado ex-nihilo pelos bancos, sem que exista um processo compensatório da oferta e da demanda de recursos já existentes.

Assim, é pela criação do crédito ex-nihilo que os bancos concedem financiamento inicial às empresas, enquanto participam do financiamento final apenas como intermediários financeiros, emprestando às empresas as somas depositadas pelas famílias: “No final do circuito, os bancos são exclusivamente intermediários financeiros, que transformam os depósitos bancários das famílias em empréstimos consolidados às empresas” (Lavoie, 1984LAVOIE, Mark (1984) “Un modele post-keynésien d’économie monétaire fondé sur la théorie du circuit”, Economies et Sociétés (série Monnaie et Production, nº 1), pp. 231-258, avril.: 242-3). Essa transformação do empréstimo monetário inicial em empréstimo financeiro pressupõe, de acordo com a teoria do circuito, a divisão contábil dos bancos em dois departamentos. O departamento monetário (ou de emissão) registra a criação e destruição correntes da moeda. O departamento financeiro (ou de intermediação) assume automaticamente o saldo das operações do departamento monetário. Segundo Schmitt (1975SCHMITT, Bernard (1975) Théorie unitaire de la monnaie nationale et internationale. Albeuve: Editions Castella.: 43-5), essa transformação dos ativos monetários em financeiros é efetiva e não um “mero jogo de escritura”. Os bancos são, ao mesmo tempo, devedores e credores da moeda emitida pelos seus departamentos monetários, mas são separadamente credores e devedores em seus departamentos financeiros. Isto porque o débito do departamento financeiro nasce da poupança das famílias, enquanto os créditos desse departamento significam a transmissão dessa poupança aos beneficiários iniciais da moeda criada (as empresas). De modo que, em última instância, os créditos dos departamentos financeiros dos bancos (empréstimos financeiros às empresas) pertencem aos depositantes (ou seja, às famílias).

Na formulação do circuito monetário, o vínculo importante que existe entre criação monetária e intermediação financeira é obscurecido. Ademais, essa separação mecânica está em evidente contradição com a ideia sustentada por essa corrente de que os depósitos das famílias junto ao sistema bancário torna-se a chave, no fluxo circular, do aumento da oferta monetária (cf. Guttmann, 1994GUTTMANN, Robert (1994) How credit money shapes the Economy: the United States in a global system. New York: M.E. Sharpe, Armok.). Em um sistema bancário de reservas fracionadas, a poupança financeira mantida sob a forma de depósitos bancários se transforma em novos créditos e, portanto, em criação monetária. Por consequência, essas duas importantes funções executadas pelos bancos estão estreitamente ligadas. Aliás, os bancos são os únicos agentes econômicos capazes de executar conjuntamente essas duas atividades e é isso que os torna especiais e distintos das demais instituições financeiras. Ademais, a função bancária na economia capitalista moderna não se resume à criação ativa e passiva de depósitos (no sentido de Keynes no Tratado da Moeda). Os bancos executam múltiplas atividades que incluem, entre outros, a gestão dos pagamentos, a subscrição e comercialização de ações e de títulos de dívida emitidos pelas empresas ou por instituições financeiras.

Na concepção teórica do circuito, não existem outras instituições financeiras que os bancos. Adicionalmente, atribui-se ao mercado financeiro um papel totalmente passivo e secundário. Essa é uma das principais deficiências dessa teoria que não consegue explicar a dinâmica do sistema de crédito na economia capitalista, ignorando alguns de seus aspectos-chave, como o fenômeno da especulação, a securitização dos mercados de crédito e a tensão entre o capital financeiro, sob a forma tradicional de crédito, e o capital fictício. Na economia capitalista, em que a riqueza pode ser representada por títulos denominados em moeda, os mercados financeiros são instituições cruciais, pois são o local de comercialização de títulos representativos da riqueza, ou sob a forma de direitos de propriedade - suportes de direitos sobre a riqueza existente-, ou sob a forma de diretos de crédito, isto é, aplicações financeiras que representam direitos sobre a produção da riqueza nova. Nesses mercados, as instituições financeiras não-bancárias atuam ao lado dos bancos, integrando uma vasta e complexa rede. Os bancos e todos os outros tipos de instituições financeiras são, enquanto intermediários entre os agentes líquidos e os investidores, os vínculos entre a circulação financeira e a circulação industrial. Todavia, os bancos são as únicas instituições que combinam a criação dos meios de pagamento e a gestão privada dos ativos financeiros.

Para a teoria do circuito monetário, a criação de moeda de crédito deriva exclusivamente das decisões de produção corrente ou de investimento. Por consequência, o crowding-out dos créditos às atividades produtivas não é um fenômeno possível nas formulações do circuito. Na realidade, corno o crédito bancário é utilizado tanto para financiar a aquisição de ativos de capital como de ativos financeiros, a disponibilidade de crédito para o financiamento das atividades produtivas pode ser condicionada pela existência de melhores oportunidades para a valorização do capital nos mercados financeiros ou nos mercados de ativos reais não-reprodutíveis. A expansão do crédito nos mercados especulativos pode desencorajar os planos de investimento produtivo e/ou a disponibilidade de crédito para lhes financiar.

Corno mostrou Keynes (1930KEYNES, John M. (1930) Treatise on Money, London: Macmillan, Royal Economic Society, (The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. V & VI), 1971.), as atividades dos bancos afetam o nível dos investimentos e do crescimento econômico de duas maneiras. Por um lado, os bancos influenciam a dinâmica da circulação financeira e, por consequência, influenciam as avaliações dos rendimentos associados aos investimentos produtivos. Por outro lado, os bancos controlam o montante de crédito pela quantidade concedida aos empresários. Assim, como salienta Chick (1992CHICK, Victoria (1992) On money, method and Keynes: selected essays. London: Se. Martin Press.: 208) “um mercado financeiro dominado pela especulação pode exibir taxas de juros mais adequada à psicologia de massa do que à rentabilidade de longo prazo da produção e do gasto. Isso alimenta as transações com instrumentos financeiros existentes mais do que direciona fundos para o investimento”.

Do mesmo modo, as formas sob as quais a poupança financeira das famílias é mantida não são neutras para a dinâmica econômica. Mesmo não dependendo do fluxo de poupança corrente, o investimento produtivo pode ser afetado pela forma de conservação da poupança. O processo de criação da riqueza nova na esfera da circulação industrial pode ser dificultado se a poupança financeira é utilizada para financiar as transações especulativas. Como destaca Ferreira (1995FERREIRA, Carlos K. L. (1995) O financiamento da indústria e infraestrutura no Brasil: crédito de longo prazo e mercado de capitais. Tese de Doutorado, Instituto de Economia, UNICAMP, mimeo.: 16), “o volume e a composição dos ativos financeiros não podem ser considerados sem importância para o processo de investimento”.

Como a visão “horizontalista”, a abordagem do circuito monetário de produção malogra na elaboração de um quadro teórico da dinâmica capitalista, na qual os bancos desempenham um papel ativo pró-cíclico. Essas instituições com fins lucrativos atuam sob um a incerteza em relação ao futuro igual ou ainda mais radical do que aquela que afeta os demais agentes econômicos (cf. Carvalho, 1993CARVALHO, Fernando Cardin (1993) “Sobre a endogenia da moeda: réplica ao professor Nogueira da Costa”, Revista de Economia Política, vol. 13, nº 3, jul-set, pp. 114-21.: 119). Como veremos a seguir, na economia capitalista moderna, dadas as complexas relações interbancárias e interfinanceiras, o insucesso de estratégias de ação definidas por um banco individual, em um contexto de incerteza, pode-se transformar em uma ameaça de crise sistêmica, com graves repercussões para a atividade econômica.

3. MOEDA, CONCORRÊNCIA BANCÁRIA, DINÂMICA DO CRÉDITO E INSTABILIDADE FINANCEIRA NUMA PERSPECTIVA HETERODOXA

A economia capitalista moderna é uma economia monetária de produção dotada de uma institucionalidade monetária e financeira complexa. Neste tipo de economia, a moeda que está na base de todos os contratos econômicos relevantes e das transações de bens e serviços é criada pelos bancos, agentes privados com fins lucrativos. A criação de moeda está estreitamente relacionada à criação de crédito, mas moeda e crédito não se confundem, dado que esta nasce em contrapartida de uma forma específica de crédito que é o empréstimo bancário. “O fato de que agentes econômicos privados possam criar moeda indica que há um componente endógeno na criação monetária da economia moderna”, como ressalta Carvalho (1992bCARVALHO, Fernando Cardin (1992b) Mr Keynes and the Post Keynesians: principles of a macroeconomics for a monetary production economy. Aldershot: Edward Elgar.: 184). Todavia, a capacidade de criação privada da moeda não é ilimitada.

O papel do Banco Central no controle da moeda de crédito

A moeda de crédito nasce como uma moeda privada, cuja validação social é fornecida pelo Estado através do Banco Central, que garante a conversão das moedas privadas em moeda central. É a existência de um Banco Central que, agindo como banco dos bancos e emprestador em última instância, permite aos ativos emitidos por essas instituições privadas serem um substituto perfeito da moeda legal. Isto é, a moeda de curso forçado, obrigatoriamente aceita como meio de pagamento definitivo dos contratos e das transações econômicas. Isso significa que os bancos privados só podem criar moeda na medida em que a autoridade monetária forneça a garantia de convertibilidade dos saldos não nulos em moeda legal. Agestão estatal da moeda de crédito na economia capitalista moderna “comporta a ação de um Banco Central emissor de uma moeda que lhe é própria, em um sistema bancário hierarquizado e organizado, no qual as partes se articulam segundo regras fixadas pelo Estado” (Brunhoff, 1981BRUNHOFF, Suzanne de (1981) Etat et capital: recherches sur la politique économique. Paris: Maspero.: 31).

Concedendo crédito, os bancos compram contratos de dívida emitidos pelas empresas que fazem uma aposta sobre a rentabilidade futura de suas riquezas atuais. Em contrapartida, os bancos emitem um reconhecimento de dívida contra eles mesmo, que são os depósitos abertos em nome dos devedores (depósitos ativos no sentido utilizado por Keynes no Tratado da Moeda). Esses depósitos são os meios de pagamento que os agentes econômicos utilizam na compra de bens e serviços. Os depósitos que constituem a moeda bancária são denominados em uma única unidade de conta, que é a moeda legal. Porém, na prática é como se cada banco emitisse a sua própria moeda. A convertibilidade das diferentes moedas bancárias privadas se efetua exclusivamente pela mediação da moeda legal emitida pelo Banco Central, conservada como reserva pelos bancos. Os bancos utilizam suas reservas em moeda legal para compensar os saldos não nulos das operações interbancárias, originadas nas transações efetuados por credores de diferentes bancos. Se um banco apresenta deficiência de reserva, ele deve obter empréstimo junto ao Banco Central ou captar fundos junto aos outros bancos no mercado interbancário.

Com o intuito de sustentar as necessidades de moeda da economia, o Banco Central permite, de um lado, que dívidas privadas, como os depósitos bancários, possam se transformar em meios de pagamento, fornecendo a garantia de uma conversibilidade à vista e ao par na moeda legal. Essa emissão de moeda central para a conversão das moedas bancárias representa uma validação das expectativas dos agentes econômicos privados. Se bem que, como corretamente assinala Brunhoff (1981BRUNHOFF, Suzanne de (1981) Etat et capital: recherches sur la politique économique. Paris: Maspero.: 38), essa validação das posições em moeda privada pelo Banco Central representa uma pseudo-validação social, pois a garantia de convertibilidade que o Banco Central oferece à moeda bancária não constitui, em si mesma, nem uma garantia de venda da produção corrente, nem uma confirmação da valorização esperada dos ativos, que se encontra na origem das decisões empresariais de produzir e/ou investir.

Porém, de outro lado, o Banco Central deve, imperativamente, evitar que o estoque de moeda da economia varie de modo arbitrário, pois uma variabilidade intensa pode ameaçar a confiança dos agentes na moeda, conduzindo à sua destruição. Como alertava Keynes (1930KEYNES, John M. (1930) Treatise on Money, London: Macmillan, Royal Economic Society, (The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. V & VI), 1971.: vol. 2, p. 201) no Tratado da Moeda: “A primeira necessidade de um Banco Central, com a responsabilidade de administrar o sistema monetário em seu conjunto, é garantir um controle inquestionável sobre o volume total da moeda bancária criada por seus bancos-membros”.

O Banco Central exerce sua responsabilidade de preservar a qualidade da moeda, controlando a quantidade e o preço da moeda legal que fornece aos bancos. Todavia, esse controle não é fácil. Sempre há fortes tensões entre os objetivos da autoridade monetária no sentido de preservar a estabilidade do sistema bancário e os objetivos dos bancos de obter continuamente os maiores lucros possíveis. Como os bancos procuram conciliar a rentabilidade com a liquidez dos seus investimentos financeiros, os objetivos do Banco Central podem ser contrariados pelas estratégias adotadas pelos bancos na administração de seus ativos e passivos.

Em certas circunstâncias, os propósitos do Banco Central de flexibilizar as condições de liquidez da economia podem ser contrariadas pela ação dos bancos, que utilizam as reservas adicionais obtidas para financiar transações puramente financeiras que não têm nenhum efeito positivo sobre a renda monetária.4 4 Este tipo de comportamento foi observado no Brasil, recentemente, em um fenômeno que ficou conhecido como “empoçamento da liquidez”. Em outros momentos, o controle do Banco Central sobre os ativos monetários pode estimular o desenvolvimento de novos instrumentos financeiros, que substituem, ao menos parcialmente, os ativos sob restrição. Deste modo, a demanda não satisfeita por moeda é desviada para as quase-moedas criadas pelos agentes privados. Contudo, como essas quase-moedas não possuem as mesmas garantias dos ativos monetários plenamente líquidos, sua criação tende a gerar importantes fatores de instabilidade nos mercados financeiros.

A capacidade dos bancos e de outras instituições financeiras de criar novos instrumentos financeiros para satisfazer a demanda de liquidez é um aspecto essencial da dinâmica econômica (cf. Minsky, 1982MINSKY, Hyman (1982) Can ‘It’ happen again? essays on instability and finance. Armonk: M. E. Sharpe.: 175). Todavia, se de um lado, ao satisfazer a demanda de liquidez pela criação de novos instrumentos, o sistema financeiro reforça a confiança do público nos ativos monetários, de outro lado, a expansão excessiva do sistema pode reduzir a confiança na moeda enquanto reserva de riqueza. Pois, na economia capitalista, além de meio de pagamento e unidade de conta, a moeda é uma forma de conservação de riqueza, porque os agentes econômicos confiam na estabilidade do seu poder de compra ao longo do tempo. A existência de incerteza em relação aos valores futuros dos ativos alternativos torna necessário um ativo líquido que funcione como reserva de riqueza. Este ativo é a moeda. Há uma relação auto-referencial entre a moeda enquanto poder de compra e a existência de contratos denominados e honrados em moeda. Os agentes aceitam os contratos denominados em moeda porque esperam que o meio de pagamento dos contratos conserve um valor de compra estável. Porém, é a utilização generalizada desses contratos de liquidação futura que contribuem para estabilidade do poder de compra da moeda (cf. Davidson, 1978DAVIDSON, Paul (1978) Money and real world. London: Macmillan.). A confiança dos agentes na capacidade da moeda em transferir o poder de compra no tempo torna-se, assim, o elemento central para a determinação do valor da moeda.

Enquanto forma de conservação da riqueza, a moeda torna-se um ativo alternativo a outras formas de acumulação da riqueza. Todavia, a moeda não é um simples ativo entre outros, pois em relação a todas as formas de conservação da riqueza, a moeda possui a superioridade de poder comprar um bem qualquer em uma data indeterminada, tornando possível a transferência de uma posse imediata sobre os recursos para um futuro distante e indefinido.

Enquanto parte integrante de um sistema institucional articulado, centralizado e organizado em torno de um Banco Central, os bancos são os únicos agentes que combinam o monitoramento dos meios de pagamentos e a gestão do capital de empréstimo ou do capital-dinheiro portador de juros, servindo de elo entre a circulação industrial e financeira. Um regime monetário estável possui a qualidade de um “bem público”5 5 Sobre o caráter de “bem público” da moeda, ver Aglietta (1988) e Guttmann (1996). pois o valor estável da moeda e sua livre circulação são importantes para a sociedade. Existe, contudo, uma contradição insuperável entre os objetivos do Banco Central em garantir a estabilidade do sistema monetário e de crédito e os objetivos dos bancos, agentes econômicos com fins lucrativos.

Concorrência bancária

Na economia capitalista moderna, os bancos não são nem máquinas criadoras de moeda que funcionam passivamente em resposta à demanda dos agentes econômicos, nem simples intermediários financeiros entre os devedores e os credores finais. Ao contrário, são instituições empresariais submetidas à lógica de valorização do capital e, por consequência, à lógica da concorrência como todos os outros tipos de empresas capitalistas. A subordinação dos bancos à lógica de valorização do capital ou da riqueza significa, de um lado, que essas instituições não respondem passivamente às preferências dos demais agentes e, de outro, que estão em concorrência entre elas e com outras instituições financeiras para a obtenção do poder de mercado e de maiores lucros nos diferentes mercados financeiros, em âmbito doméstico ou internacional.

Mas os bancos não são empresas exatamente como as outras. De fato, são os únicos agentes econômicos que, conjuntamente, criam moeda e servem de vínculo entre a circulação industrial e financeira. Eles são também empresas especiais por diversas outras razões. Em primeiro lugar, o métier bancário é instável por excelência e a origem da instabilidade provém da própria natureza da atividade bancária. Como ressalta Minsky (1986MINSKY, Hyman (1986) Stabilizing an unstable economy. New Haven: Yale University Press.: 249-50) os bancos são mercadores de dívida, especializados no financiamento de curto prazo das empresas, dos governos e das famílias. Para obter e ampliar seus ganhos, fazem o comércio das dívidas, transformando os prazos de vencimento, assumindo riscos e incentivando seus clientes a utilizarem os seus serviços.

Em segundo lugar, não existem limitações físicas, tais como, custos tangíveis e limites de capacidade, que os impeçam de oferecer seu “produto” principal, a moeda e o crédito. Por essa razão, os bancos têm a tendência a conceder mais crédito do que seria prudente fazê-lo nos momentos de expansão da economia, subestimando os riscos. Os Bancos Centrais enfrentam dificuldades crescentes em controlar a concessão excessiva de crédito, sobretudo, após o desenvolvimento da gestão ativa dos passivos (liability management) com a criação de novos instrumentos e práticas financeiras.

Na criação de novos instrumentos financeiros reside uma terceira diferença importante em relação à indústria. Os bancos não incorrem em despesas de grande magnitude para o desenvolvimento de novos instrumentos, que podem ser rapidamente oferecidos ao público. Não existe registro de patente para os novos ativos financeiros, o que faz com o que os demais concorrentes possam também rapidamente imitar o banco inovador. Assim, os ganhos decorrentes da inovação são mais temporários, porém servem como estímulo à busca contínua de novos produtos e serviços.

A natureza dos lucros bancários e industriais também difere. Como Marx (1894MARX, Karl (1894) O capital, livro III. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.: cap. 21) demonstrou, os juros que os bancos recebem contra os créditos concedidos são apenas um rendimento financeiro extraído do lucro bruto geral, engendrado no processo de acumulação industrial. Como o setor bancário tem o poder de determinar as condições de liquidez da economia, ele regula a taxa de juros. Por essa razão, como ressalta Panico (1988PANICO, Carlo (1988) Interest and profit in the theories of value and distribution. Basingstoke: Macmillan Press.) não existe “limites naturais” para a taxa de juros. Deste modo, os bancos podem facilitar ou dificultar as condições de funcionamento do processo produtivo que demanda recursos financeiros. Os bancos e seus clientes (as empresas industriais e comerciais) mantêm uma relação especial de conflito e de interdependência. Todavia, o lucro dos bancos não deriva somente do diferencial de juros das suas atividades tradicionais de empréstimo e captação de recursos. Essas instituições oferecem diversos serviços pelos quais recebem comissões e honorários. Além, é claro, dos ganhos de capital de natureza essencialmente especulativa.

A natureza assincrônica dos créditos e débitos que é característica da atividade bancária torna os bancos vulneráveis a uma súbita contração da liquidez. Com efeito, essas instituições trabalham com coeficientes capital/ativos bastante baixos e com taxas de endividamento muito elevadas, em comparação com as empresas industriais. Deste modo, dificuldades momentâneas de liquidez em um banco particular podem se transformar rapidamente em problema de solvência conduzindo à falência da instituição. Os bancos são, segundo a terminologia de Minsky (1986MINSKY, Hyman (1986) Stabilizing an unstable economy. New Haven: Yale University Press.), agentes que funcionam com uma estrutura financeira tipicamente especulativa, dado que necessitam ser continuamente refinanciados, seja pelo aumento dos depósitos criados de forma passiva (na acepção de Keynes no Tratado da Moeda), seja pelo mercado interbancário, seja junto ao Banco Central.

Na busca incessante da valorização da riqueza, os bancos tomam decisões e adotam estratégias cujos resultados incertos podem resultar em falência. O problema é que, dado o lugar que ocupam na economia como criadores dos meios de pagamentos, a falência de um banco individual pode comprometer a estabilidade do sistema monetário e financeiro em seu conjunto. Através do sistema de pagamentos, a crise financeira pode se generalizar, afetando outros setores da economia.

Dinâmica do crédito e instabilidade financeira

O comportamento dos bancos na busca de lucro está na base das flutuações cíclicas da economia capitalista e é a principal fonte de instabilidade financeira, como destaca Guttmann (1996GUTTMANN, Robert (1996) “Les mutations du capital financier”. In: CHESNAIS, François (coord.), La mondialisation financiére: genese, coût et enjeux. Paris: Syros, chap. 3, pp. 59-96.: 62) “os bancos são confrontados à arbitragem entre rentabilidade e segurança, a qual eles têm a tendência de responder de maneira pro-cíclica. Um excesso de otimismo nos períodos de boom conduz à expansão exagerada do crédito, provocando, na reversão, em resultado do pânico, reduções drásticas do crédito e períodos prolongados de prudência”.

Ao longo dos períodos de expectativas otimistas, os bancos pressionados pela concorrência concedem crédito sem exigir garantias seguras, enquanto os devedores pagam seus débitos pela emissão de novas dívidas. Então, a expansão do endividamento se faz com riscos subestimados. Porém, na busca incessante de valorização, um banco que adote um comportamento mais prudente vis-à-vis aos seus rivais arrisca-se seriamente a perder fatias do mercado, como salienta Goodhart (1988GOODHART, Charles (1988) Money, information and uncertainty. London: MacMillan.: 47), “pressões competitivas podem levar os bancos a manter ou expandir suas fatias de mercado durante períodos ‘normais’ (isto é, sem crise). Entretanto, durante tais períodos de negócios normais, os bancos mais conservadores podem perder espaço. Como o público é mal-informado ou incapaz de discernir se o crescimento vagaroso foi devido à políticas conservadoras ou falta de esforços gerenciais, não existe garantia que os bancos mais conservadores possam recuperar, nos momentos ruins ou de pânico, a fatia de mercado que perderam nos bons tempos”.

Em um contexto de euforia, a dinâmica financeira ganha autonomia em relação ao crescimento. “É essa autonomia que conduz à fragilidade financeira, dado que introduz um viés entre os resultados financeiros otimistas e as condições reais da acumulação de capital” (Aglietta, 1995AGLIETTA, Michel (1995) Macroéconomie financiére. Paris: La Découverte.: 61). A fragilidade crescente não é percebida pelos agentes econômicos, permanecendo dissimulada até que ocorram modificações imprevistas nas condições macroeconômicas. Diante deste novo contexto, os agentes endividados buscam a liquidez através da venda de ativos, enquanto os bancos diminuem a oferta de crédito face à elevação os riscos.

Logo que os preços dos ativos entram em queda, as dúvidas sobre a solvabilidade dos estoques das dívidas passadas podem levar os bancos a evitar a concessão de novos créditos. Os bancos como intermediários interpõem suas garantias entre os depositantes (credores finais) e os devedores. Mas, a garantia bancária só é boa se o valor monetário dos ativos reais que o devedor oferece como colateral da operação de crédito corresponde ao montante de recursos avançados pelos bancos. Por essa razão, uma diminuição acentuada do valor monetário dos ativos representa uma ameaça à solidez da estrutura financeira da economia em seu conjunto. “Quanto maior a fragilidade dos bancos, mais acentuada e severa será a recessão. Esses dois aspectos se reforçam mutuamente em uma causalidade circular, em que nenhum deles é exógeno” (Aglietta, 1995AGLIETTA, Michel (1995) Macroéconomie financiére. Paris: La Découverte.: 68).

Esses movimentos de liquidação de ativos e de contração dos créditos resultam na queda dos preços dos ativos, na redução dos lucros, da produção corrente e do emprego. Como mostra Minsky (1986MINSKY, Hyman (1986) Stabilizing an unstable economy. New Haven: Yale University Press.: caps. 2 e 3) não existe nenhum mecanismo automático que garanta a reversão do processo deflacionista. Somente as ações do Banco Central e do governo podem impedir o agravamento da deflação e a transformação da recessão em depressão.

Os ajustamentos dos bancos face à deterioração dos seus balanços associada a reversão das condições macroeconômicas pode igualmente ter efeitos devastadores para a economia em seu conjunto, dado que os bancos estão no centro do sistema de pagamento e de crédito. Como destaca Aglietta (1995AGLIETTA, Michel (1995) Macroéconomie financiére. Paris: La Découverte.: 59), os bancos fornecem liquidez para toda a economia e, por consequência, o racionamento do crédito bancário afeta a totalidade dos mercados financeiros, dado que nenhum desses mercados podem funcionar como substitutos do crédito bancário no contexto de uma crise de liquidez.

Em resumo, os bancos desempenham um papel central para a emergência de estruturas financeiras frágeis e para o aprofundamento da instabilidade financeira. Após emprestar excessivamente na fase de expansão da economia, os bancos procuram reduzir suas exposições aos riscos de maneira tão abrupta em situação de fragilidade financeira crescente, que ameaçam, sem se dar conta, sua própria solidez, dado que tal atitude pode conduzir a falência de seus devedores. Tal comportamento míope dos bancos foi apontado por Keynes (1931KEYNES, John M. (1931) “The consequences to the banks of the collapse of money value”. In: KEYNES, J. M., Essays in Persuasion. London: Macmillan. Royal Economic Society, (The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. IX), 1973., CW: vol. IX, p. 156) em um dos seus artigos sobre a crise de 1929. E os bancos se comportaram como míopes face ao desastre várias vezes nas últimas décadas, como comprovam os episódios da crise da dívida dos países em desenvolvimento no início dos anos 80 e o financiamento das transações imobiliárias no final dos anos 80.

Para limitar a instabilidade inerente ao sistema bancário, as autoridades procuram impor regras de prudência para o funcionamento dos bancos, que se aplicam sobre a composição e qualidade do crédito e sobre os níveis de endividamento, entre outros. No entanto, com as inovações financeiras, os bancos tentam evitar todo e qualquer controle. Os novos instrumentos e procedimentos contribuem para ampliar a complexidade das estruturas financeiras e das relações entre os devedores e os credores. O resultado é o aumento da instabilidade da economia.

Os limites da regulamentação bancária

O poder de criação monetária que os bancos possuem na economia moderna está fundado, como já mencionado, em uma organização institucional particular que é o vasto sistema de pagamento hierarquizado e organizado em torno de um Banco Central, responsável pela emissão do meio de pagamento último. Os bancos por estarem no centro desse sistema, possuem um acesso especial à moeda central. Mas, por essa mesma razão, são submetidos ao controle estatal.

A regulamentação específica da atividade bancária diz respeito à autonomia relativa de o sistema bancário criar moeda e modificar as condições gerais da liquidez da economia e, também, às atividades das instituições individuais, cujos problemas relacionados à sua instabilidade intrínseca podem afetar e ameaçar a segurança e a estabilidade do sistema em seu conjunto. Definindo o campo de ação, as regras e as normas de conduta que devem ser respeitadas por todas as instituições, o Banco Central procura circunscrever o espaço da concorrência bancária. Contudo, tal iniciativa se choca com a lógica de acumulação dos bancos e provoca reações.

Nesse contexto, o principal desafio dos organismos de regulamentação é assegurar que a busca contínua de lucros pelos bancos individuais seja efetuada em condições adequadas, isto é, sem ameaçar a estabilidade do sistema bancário em seu conjunto, tanto em nível doméstico como internacional. Pela supervisão e fiscalização estrita das normas e de regras continuamente aprimoradas, as autoridades de regulamentação devem procurar prevenir a ocorrência de práticas perigosas de alguns bancos que, impulsionados pela lógica concorrencial, têm a tendência de assumir riscos excessivos. Todavia, como destaca Minsky (1986MINSKY, Hyman (1986) Stabilizing an unstable economy. New Haven: Yale University Press.: 250), esse é um jogo perdido, pois os banqueiros têm muito mais a ganhar do que os burocratas do Banco Central.

A atividade bancária é, desse modo, marcada por uma tensão permanente entre os objetivos de estabilidade do sistema e a procura de novas fontes de lucros pelos bancos individuais. Os bancos sempre buscam escapar dos limites fixados pelas autoridades de regulamentação, sobretudo se esses os impedem de aproveitar e aumentar as oportunidades de lucro. O sucesso em livrar-se dos limites regulatórios vai estar condicionado pelo ambiente institucional e jurídico no qual atuam. Esse ambiente condiciona também as formas assumidas pela concorrência bancária que se inscreve nos limites fixados pela regulamentação, cujo objetivo é preservar a convenção monetária e a solidez do sistema bancário. É possível, contudo, que a dinâmica concorrencial contribua para a incoerência crescente do regime monetário e financeiro em vigor, provocando sua modificação.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo procurou mostrar que tanto a visão “horizontalista” como a abordagem do circuito monetário falham na elaboração de um quadro teórico da dinâmica da acumulação capitalista, ao desconsiderarem o papel dialético desempenhado pelos bancos. Impulsionados pela lógica concorrencial, essas instituições definem suas estratégias de ação procurando conciliar rentabilidade e preferência pela liquidez em suas escolhas em relação às fontes de recursos ou de aplicações. Tais escolhas possuem efeitos distintos sobre a circulação industrial e sobre a circulação financeira, influenciando ativamente a dinâmica de acumulação capitalista.

As estratégias bancárias são construídas a partir de expectativas que podem ou não se confirmar, de modo que sempre existe a possibilidade de um banco individual vir a sofrer pesadas perdas em virtude de escolhas equivocadas. Se essas perdas ameaçam a solidez desse banco, o sistema bancário em seu conjunto pode sofrer as consequências, dado que as relações interbancárias são complexas e emaranhadas.

As estratégias de valorização adotadas pelos bancos podem igualmente favorecer as atividades especulativas dos agentes econômicos, afetando os investimentos. A possibilidade de ocorrência de crowding-out do crédito destinado às atividades produtivas é maior no contexto de booms especulativos quando, de maneira crescente, os bancos (e as outras instituições financeiras que participam da pirâmide do crédito) financiam os especuladores. Mas, a contração do crédito que se segue à explosão das bolhas especulativas afeta igualmente especuladores e empresários (no sentido de Keynes, 1936KEYNES, John M. (1936) The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmillan. Royal Economic Society, (The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. VII), 1973.), pois os bancos procurar investir seus fundos diretamente em ativos líquidos e seguros, como os títulos públicos (cf. Dow, 1993DOW, Sheila (1993) Money and the economic process. Aldershot: Edward Elgar.: 49).

A possibilidade de evicção do crédito destinado ao financiamento é ainda maior no contexto das economias nacionais estreitamente interligadas, em virtude dos movimentos de capital e do progresso das telecomunicações. Esses desenvolvimentos permitem investimentos financeiros em tempo real sobre os principais mercados, que se tornaram mundiais, contribuindo assim para os movimentos especulativos.

Em resumo, a partir de estratégias concorrenciais definidas em relação a um futuro incerto, a ação dos bancos tem um forte impacto sobre a atividade econômica. Os bancos, como todos os outros agentes, possuem preferência pela liquidez e expectativas em relação ao futuro, que norteiam as estratégias que traçam em sua busca incessante de valorização. Neste sentido, administram ativamente os dois lados do balanço e utilizam igualmente de expedientes, como as transações fora do balanço. Como o propósito dos bancos em se manter líquido depende de suas considerações otimistas ou pessimistas sobre o estado dos negócios ao longo do ciclo econômico, é possível que, em certas circunstâncias, decidam racionar o crédito, refreando o crescimento econômico ou mesmo conduzindo à regressão da produção e dos investimentos. De igual modo, podem privilegiar o financiamento da circulação financeira, financiando os agentes especuladores ou suas próprias atividades especulativas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • AGLIETTA, Michel (1995) Macroéconomie financiére. Paris: La Découverte.
  • AGLIETTA, Michel (1988) “L’ambivalence de l’argent.” Revue Française d’Economie, pp. 87-133, été.
  • BRUNHOFF, Suzanne de (1981) Etat et capital: recherches sur la politique économique. Paris: Maspero.
  • CARVALHO, Fernando Cardin (1993) “Sobre a endogenia da moeda: réplica ao professor Nogueira da Costa”, Revista de Economia Política, vol. 13, nº 3, jul-set, pp. 114-21.
  • CARVALHO, Fernando Cardin (1992a) “Moeda, produção e acumulação: uma perspectiva pós keynesiana”. In: SILVA, Maria Luiza F. (org.). Moedas e produção, teorias comparadas. Brasília D.F.: Ed. Universidade de Brasília, pp. 163-91.
  • CARVALHO, Fernando Cardin (1992b) Mr Keynes and the Post Keynesians: principles of a macroeconomics for a monetary production economy. Aldershot: Edward Elgar.
  • CHICK, Victoria (1992) On money, method and Keynes: selected essays. London: Se. Martin Press.
  • DAVIDSON, Paul (1978) Money and real world. London: Macmillan.
  • DOW, Sheila (1993) Money and the economic process. Aldershot: Edward Elgar.
  • DOW, Sheila (1986) “Speculation and the monetary circuit with particular attention to the Euro-currency Market”, Economies et Sociétés. (série Monnaie et Production, nº 3), pp. 95-109, Aout/Septembre.
  • FERREIRA, Carlos K. L. (1995) O financiamento da indústria e infraestrutura no Brasil: crédito de longo prazo e mercado de capitais. Tese de Doutorado, Instituto de Economia, UNICAMP, mimeo.
  • GOODHART, Charles (1989) “Has Moore become too horizontal?”, Journal of Post Keynesian Economics, fall, vol. 12, nº 1, pp. 29-34.
  • GOODHART, Charles (1988) Money, information and uncertainty. London: MacMillan.
  • GRAZIANI, Augusto (1991) “La théorie keynésienne de la monnaie et le financement de l’économie.” Économie Appliquée, tome XLIV, nº 1, pp. 25-41.
  • GRAZIANI, Augusto (1990a) “La théorie du circuit monétaire”, Economies et Sociétés. (Série Monnaie et Produccion, nº 7), pp. 23-42, juin.
  • GRAZIANI, Augusto (1990b) “La théorie du circuit et la théorie macroéconomique de la banque”, Economies et Sociétés (série Monnaie et Production, nº 6), pp. 51-62, février.
  • GRAZIANI, Augusto (1987) “Keynes’ finance motive”, Economies et Sociétés. nº 9, pp. 23-42.
  • GUTTMANN, Robert (1996) “Les mutations du capital financier”. In: CHESNAIS, François (coord.), La mondialisation financiére: genese, coût et enjeux. Paris: Syros, chap. 3, pp. 59-96.
  • GUTTMANN, Robert (1994) How credit money shapes the Economy: the United States in a global system. New York: M.E. Sharpe, Armok.
  • KALDOR, Nicholas (1985) “How monetarism failed.” Challange, May-June, pp. 12-21.
  • KALDOR, Nicholas (1982) The scourge of Monetarism. Oxford University Press, Oxford.
  • KEYNES, John M. (1936) The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmillan. Royal Economic Society, (The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. VII), 1973.
  • KEYNES, John M. (1931) “The consequences to the banks of the collapse of money value”. In: KEYNES, J. M., Essays in Persuasion. London: Macmillan. Royal Economic Society, (The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. IX), 1973.
  • KEYNES, John M. (1930) Treatise on Money, London: Macmillan, Royal Economic Society, (The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. V & VI), 1971.
  • LAVOIE, Mark (1987) “Monnaie et production: une synthese de la théorie du circuit”, Economies et Sociétés, nº 9, pp. 65-101.
  • LAVOIE, Mark (1985) “Credit and money: the dynamic circuit, overdraft economics, and post keynesians economics.” In: Jarsulic, Marc (org.), Money and macro policy. Hingham: Kluwer Academic Publisher, pp. 63-84.
  • LAVOIE, Mark (1984) “Un modele post-keynésien d’économie monétaire fondé sur la théorie du circuit”, Economies et Sociétés (série Monnaie et Production, nº 1), pp. 231-258, avril.
  • MARX, Karl (1894) O capital, livro III. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.
  • MINSKY, Hyman (1986) Stabilizing an unstable economy. New Haven: Yale University Press.
  • MINSKY, Hyman (1984) “Financial innovation and financial instability: observations and theory”. In Financial innovations: their impact on monetary policy and financial markets. Boston: Kluwer-Mighoff, Thce Federal Reserve Bank of St. Louis, pp. 21-41.
  • MINSKY, Hyman (1982) Can ‘It’ happen again? essays on instability and finance. Armonk: M. E. Sharpe.
  • MOORE, Basil (1989) “A simple model of bank intermediation”, Journal of Post Keynesian Economics, vol. XII, nº 1, pp. 10-28, Fall.
  • MOORE, Basil (1988) Horizontalists and Verticalists: the macroeconomics of credit money. Cambridge: Cambridge University Press.
  • MOORE, Basil (1985) “Wages, bank lending and endogeneity of credit money”. In: JARSUUC, Marc (org.), Money and macro policy. Hingham: Kluwer Academic Publisher, pp. 1-28.
  • MOORE, Basil (1983) Unpacking the post Keynesian black box: banking lending and the money supply”, Journal of Post Keynesian Economics, summer.
  • PANICO, Carlo (1988) Interest and profit in the theories of value and distribution. Basingstoke: Macmillan Press.
  • PARGUEZ, Alan (1986) “Au coeur du circuit ou quelques réponses aux énigmes du circuit”. Economies et Sociétés. (série Monnaie et Production, nº 3), pp. 23-39, aout/septembre.
  • PARGUEZ, Alan (1984) “La dynamique de la monnaie”. Economies et Sociétés. (Série Monnaie et Production, nº 1).
  • POULON, Frédéric (1982) Macroéconomie approfondie: équilibre, déséquilibre et circuit. Paris: Edition Cujas.
  • ROUSSEAS, Stephen (1986a) The post Keynesian monetary economics. London: Macmillan.
  • ROUSSEAS, Stephen (1986b) “The finance motive, Keynes, and the post keynesians”, Economies et Sociétés (série Monnaie et Production, nº 3), pp. 188-201, aout/septembre.
  • SCHMITT, Bernard (1975) Théorie unitaire de la monnaie nationale et internationale. Albeuve: Editions Castella.
  • 1
    Alguns autores pós-keynesianos contestam a visão de que o caráter endógeno ou exógeno da oferta monetária seja o critério relevante na definição de ortodoxia ou de heterodoxia nos estudos de economia monetária e de macroeconomia em geral. Como destaca, corretamente, Carvalho (1993CARVALHO, Fernando Cardin (1993) “Sobre a endogenia da moeda: réplica ao professor Nogueira da Costa”, Revista de Economia Política, vol. 13, nº 3, jul-set, pp. 114-21.: 118): “a criação de moeda é uma questão amplamente institucional, no sentido de que deve ser discutida na suposição de instituições, públicas e privadas, específicas, não tendo a crucialidade teórica que Kaldor e Moore lhe atribuem”.
  • 2
    No contexto da evolução institucional do sistema financeiro norte-americano, o surgimento do liability management está associado à criação, na segunda metade da década de 50, do mercado de fundos federais - no qual os bancos trocam grandes volumes de recursos que representam excedentes das reservas obrigatórias mantidas junto ao Banco da Reserva Federal (ver Minsky, 1982MINSKY, Hyman (1982) Can ‘It’ happen again? essays on instability and finance. Armonk: M. E. Sharpe.) e o desenvolvimento nos anos 60 de novos instrumentos financeiros, como os certificados de depósito, os commercial papers, os diversos tipos de acordos de recompra de títulos de curto prazo (repurchase agreement), a captação de recursos no Euromercado (cf. Minsky, 1984MINSKY, Hyman (1984) “Financial innovation and financial instability: observations and theory”. In Financial innovations: their impact on monetary policy and financial markets. Boston: Kluwer-Mighoff, Thce Federal Reserve Bank of St. Louis, pp. 21-41.: 158). Esses desenvolvimentos liberaram os bancos da necessidade de conservar uma reserva secundária como proteção contra uma escassez imprevista de liquidez.
  • 3
    Não é uma tarefa fácil identificar as ideias fundamentais dos teóricos do circuito monetário de produção. Além da heterogeneidade, as formulações de certos autores se modificaram ao longo do tempo.
  • 4
    Este tipo de comportamento foi observado no Brasil, recentemente, em um fenômeno que ficou conhecido como “empoçamento da liquidez”.
  • 5
    Sobre o caráter de “bem público” da moeda, ver Aglietta (1988AGLIETTA, Michel (1988) “L’ambivalence de l’argent.” Revue Française d’Economie, pp. 87-133, été.) e Guttmann (1996GUTTMANN, Robert (1996) “Les mutations du capital financier”. In: CHESNAIS, François (coord.), La mondialisation financiére: genese, coût et enjeux. Paris: Syros, chap. 3, pp. 59-96.).
  • 7
    JEL Classification: E44; E51; G21; E12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1999
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br