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Industrialização na América Latina: da “caixa negra” à “caixa postal vazia”* 1 SUZIGAN, Wilson. Indústria brasileira: origem e desenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, 1986.

Industrialization in Latin America: from the “black box” to the “empty mailbox”

RESUMO

Neste artigo, o autor oferece uma estratégia de desenvolvimento alternativa à de substituição de importações, orientada pelo estado, liderada pelo estado, mas também à “nova ortodoxia da década de 1980” - a abordagem neoliberal. Essa alternativa é baseada na experiência dos países europeus e particularmente dos tigres asiáticos, que ele chama de GEICs (países em industrialização com crescimento com equidade). Esses países foram capazes de se desenvolver combinando altas taxas de crescimento com uma distribuição razoável de renda. Essa “caixa postal” é nula na América Latina. Se construirmos uma matriz de duas entradas, tendo nas linhas a taxa de crescimento (baixa ou alta) e nos dois pontos o grau de patrimônio líquido (ruim ou razoável), e traçarmos os países latino-americanos nessa matriz, a caixa “alta taxa de crescimento razoável do patrimônio” será anulada. Se a América Latina conseguir preencher essa caixa, as economias aumentarão, o progresso técnico será acelerado e o crescimento será retomado.

PALAVRAS-CHAVE:
Desenvolvimento econômico; industrialização; industrialização na América Latina

ABSTRACT

In this paper the author offers an alternative development strategy to the previous import substitution inner oriented, state led one, but also to the “new orthodoxy of the 1980’s”- the neoliberal approach. This alternative is based on the experience of European countries and particularly of the Asian Tigers, that he calls GEICs (Growth with Equity Industrializing Countries). These countries were able to develop combining high rates of growth with a reasonable distribution of income. This “mail box” is void in Latin America. If we build a two entry matrix having in the lines the growth rate (low or high) and in the colons the degree of equity (bad or reasonable), and we plot the Latin American countries in this matrix, the box “high rate of growth-reasonable degree of equity” will be void. If Latin America is able to fill this box, savings will increase, technical progress will be accelerated, growth will be resumed.

KEYWORDS:
Economic development; industrialization; industrialization of Latin America

Ao refletir sobre o desenvolvimento da América Latina, questiona-se frequentemente a validade da região como categoria analítica. Dada a diversidade de situações e processos de formação nos diversos Estados nacionais, poder-se-ia supor que a única tipologia satisfatória seria aquela que incluísse um número de casos igual ao número de países. Entretanto, como não se dispõe de uma teoria de desenvolvimento que explique satisfatoriamente as transformações globais que experimentam a economia e a sociedade, persistiram numerosas interrogações inclusive quando se analisa cada um dos casos nacionais em separado.

Com efeito, depois de dois séculos de abundantes e rigorosos estudos sobre as origens e consequências da Revolução Industrial na Inglaterra, persiste a polêmica a respeito desse tema e do posterior declínio da posição relativa desse país no plano internacional. As interpretações sobre a notável industrialização tardia do Japão são numerosas, mas não convergem para uma explicação comum, como tampouco há explicações satisfatórias para o caso da Argentina, que em 1913 e até o final dos anos 50 tinha uma renda per capita superior à da França e quase o dobro da italiana, enquanto na atualidade essa renda representa uma quinta parte da francesa e pouco mais de um terço da da Itália. Da mesma forma, o Brasil é o país da região cuja industrialização recebeu maior atenção dos círculos acadêmicos, tanto dentro do país e da região como no estrangeiro. Não obstante, persistem quatro interpretações diferentes a respeito das origens e dos processos que desencadearam sua industrialização a partir de uma base agrícola-exportadora: i) a teoria dos choques adversos; ii) a da industrialização comandada pela expansão das exportações primárias; iii) a interpretação baseada no desenvolvimento do capitalismo no Brasil; e iv) a teoria que destaca o papel que coube ao setor público na promoção industrial.1 1 SUZIGAN, Wilson. Indústria brasileira: origem e desenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, 1986.

Em que pese a precariedade da base teórica, os governos se vêm obrigados a atuar e, além disso, estão expostos às modas intelectuais que invadem regularmente as ciências sociais. Ante essa contradição há um expediente útil que, embora não constitua uma solução, permite atenuar algumas de suas consequências mais desfavoráveis: reconhecer as realidades internas e internacionais persistentes, ainda que não haja para elas interpretações coerentes.

Segundo a experiência acumulada sobre o desenvolvimento econômico em distintas latitudes, parece que um dos traços marcantes desse processo seria a combinação de aprendizagem, tomando como modelos as sociedades mais avançadas, e de inovação econômica e social nos países menos avançados, que lhes permite incorporar as inovações com relação a suas próprias carências e potencialidades. Isso explica- fato fundamental amplamente reconhecido-que as vias de transformação variam quanto ao conteúdo, ao itinerário e às instituições.2 2 PREBISH, Raúl. “Problemas teóricos y prácticos dei crecimiento económico”, Estúdio Económico de América Latina /949. Nova York, Cepal, 1951. Publicação das Nações Unidas, no.de venda: 1951.11.G. l. No processo de industrialização, eixo vital do desenvolvimento econômico por seu aporte ao progresso técnico e à elevação da produtividade, a combinação de aprendizagem e inovação adquire maior importância. Uma das características do processo de industrialização da América Latina até agora foi precisamente a assimetria entre um elevado componente de imitação (fase prévia da aprendizagem) e um componente marginal de inovação econômico-social. Em um trabalho anterior,3 3 FAJNZYLBER, Femando. lndustríalitación trunca. México, D.F., Editorial Nueva Imagen, 1983 (reeditado em Buenos Aires, Grupo Editor Latino-Americano, 1985). mostrei a necessidade de os países latino-americanos modificarem o padrão de industrialização, eixo em torno do qual se articulou a estrutura produtiva dos últimos decênios. Neste estudo, tentarei aprofundar tanto a descrição do padrão que é preciso modificar como os objetivos, requisitos e orientações de política necessários para isso.

Descreverei inicialmente o processo de industrialização da América Latina em termos de sua contribuição aos objetivos do crescimento econômico e da equidade, identificando as características comuns aos diversos países e as particularidades nacionais que formam a heterogeneidade regional. Resumirei, dessa forma, os traços que caracterizam a crise industrial dos anos 80.

Em seguida, abordarei o que parece característico do padrão de industrialização e desenvolvimento da América Latina: sua escassa capacidade de absorver e incorporar criativamente o progresso técnico em consonância tanto com as carências como com as potencialidades regionais; descreverei também os vínculos entre o progresso técnico, o setor industrial e a contribuição da macroeconomia. Por último, farei uma resenha das transformações tecnológicas internacionais e suas implicações para a América Latina.

Sobre essa base proporei um esquema analítico para examinar essa relação - que serve de fio condutor a este trabalho - entre o padrão de industrialização e desenvolvimento e a consecução dos objetivos de crescimento econômico e equidade.

Prosseguindo, contrastarei o esquema analítico com a realidade dos três países industriais avançados (Estados Unidos, Japão e Alemanha) que plasmam e determinam em grande medida o padrão de consumo, produção, comunicações, transporte e energia imperante no plano internacional.

Depois concentrarei minha atenção na Europa, distinguindo duas sub-regiões: a formada pelos grandes países ocidentais, com os quais a América teve importantes relações históricas, muitas das quais persistem na atualidade, sobretudo na parte sul da América Latina; e os pequenos países nórdicos, com os quais se observa uma relação interessante, baseada na disponibilidade de recursos naturais, em uma industrialização especializada orientada para o mercado internacional e em um sólido sistema democrático representativo.

Mais adiante voltarei minha atenção para a América Latina, dessa vez para compará-la com outros países de industrialização recente cujo desempenho industrial parece mais avançado. Compararei a situação de seus três maiores países - Argentina, Brasil e México - com Coréia do Sul, Espanha e Iugoslávia. Para terminar, farei algumas reflexões sobre os ensinamentos que derivam desse estudo comparativo para definir com maior precisão as orientações que deveriam orientar as transformações internas requeridas para enfrentar o desafio da América Latina: aproximar-se da caixa postal até agora vazia onde o crescimento econômico converge para a equidade.

1. ESPECIFICIDADE DA INDUSTRIALIZAÇÃO LATINO-AMERICANA

Nesta seção resumirei as hipóteses que se propõem no trabalho a respeito da especificidade da industrialização latino-americana. Procurarei evidenciar as vinculações entre o complexo processo de mudança econômica e social, suas manifestações no âmbito da transformação produtiva, da inserção internacional, da liderança empresarial e da síndrome especificamente latino-americana do “fichário vazio”, que consiste em que nenhum país da região logrou simultaneamente crescimento e equidade.

Diversos estudos efetuados em nível internacional, assim como a experiência da América Latina, permitem afirmar a hipótese de que existiria uma relação nítida entre a transformação estrutural da agricultura e a melhoria da distribuição da renda e, como se indica mais adiante, de que esta última exerce um papel importante na configuração do sistema produtivo e, por conseguinte, na capacidade de absorção e geração de progresso técnico.

A equidade e aquilo que representa em termos de articulação social, a igualdade do nível médio de renda, tendem a configurar um padrão de consumo relativamente mais austero que o prevalecente em situações de aguda concentração de renda, na medida em que inibe os setores de maiores rendas de reproduzir em grau caricatural um padrão de consumo proveniente das sociedades mais avançadas.

Adicionalmente ao fato de que um padrão de consumo mais austero libera recursos para o investimento, poder-se-ia adiantar a hipótese (de verificação empírica muito difícil) de que existiria uma certa relação entre o grau de exuberância do “padrão de consumo” e o nível da relação capital-produto; este último seria mais baixo naquelas sociedades cujo padrão de consumo seria mais austero, medido este por uma menor proporção de consumo durável, menor uso de energia e menor uso de divisas.

Nesses países, a relação capital-produto tenderia a ser mais baixa que naqueles em que se procura a reprodução do padrão de consumo de referência, caracterizado por uma elevada densidade de consumo de bens duráveis e de energia e por uma infraestrutura física de comunicações e de transportes capaz de sustentá-lo, surgida e concebida em uma realidade com baixa densidade de população, abundância de capital e grande extensão territorial (EUA).

O crescimento permite incorporar novas gerações de equipamentos e de produtos, contribui por essa via para elevar a produtividade e, por conseguinte, para reforçar a competitividade internacional. A ampliação inicial do mercado interno, pela via da massificação do consumo de bens simples que se sofisticam à medida que aumenta a produtividade, constitui a base insubstituível da aprendizagem industrial-tecnológica, condição necessária para a crescente inserção internacional. Esse “círculo virtuoso” entre crescimento e competitividade, no qual se costuma com frequência omitir os requisitos de equidade, austeridade e aprendizagem tecnológica, constitui um dos eixos centrais das experiências bem-sucedidas de “industrialização”.

Na América Latina - precisamente devido às insuficiências nos âmbitos da equidade e da austeridade e ao caráter “frívolo” do protecionismo -, o crescimento e a competitividade exibiram um comportamento espasmódico que não corresponde ao caráter cíclico que apresenta o crescimento nas sociedades industrializadas. Neste último caso, trata-se de variações em torno de uma tendência ascendente de incorporação de progresso técnico, enquanto na América Latina o que se evidencia periodicamente são as consequências da fragilidade de alguns dos aspectos já mencionados, necessários para o funcionamento do denominado “círculo virtuoso”. A expressão sintética desta análise é o “congelamento” da distância entre o nível da produtividade na América Latina e os países líderes.

Um sistema industrial competitivo internacionalmente, em um contexto social em que se superou o umbral mínimo da equidade (transformação agrária), o aumento da equidade poderá ser favorecido ao menos pelas seguintes vias: distribuição relativamente mais ampla da propriedade, associada à criação de pequenas e médias empresas; crescimento mais rápido do emprego, associado ao dinamismo do mercado internacional; elevação da produtividade e das remunerações; difusão do sistema educativo em uma base social mais ampla e integrada, como requisito imprescindível para sustentar a competitividade internacional; e, finalmente, difusão da lógica industrial, tanto por vias formais quanto informais, perante o conjunto da sociedade, que se tornará mais receptiva a absorver progresso técnico, fator que, por sua vez, favorecerá a elevação da produtividade e, nessa medida, a difusão dos frutos do progresso técnico de forma mais equitativa com relação ao conjunto da sociedade.

Esses resultados, entretanto, não se verificam necessariamente naqueles casos em que a competitividade é alcançada através da combinação de uma renda (rent) geográfica ou de recursos naturais e a expensas das remunerações dos trabalhadores, e onde, adicionalmente, os recursos gerados na fase inicial, em lugar de canalizados para a incorporação de progresso técnico via investimento, se deslocam para o consumo ou para o exterior. Trata-se, nesse caso, de uma “competitividade espúria e efêmera” que não deve se confundir, nem teórica nem historicamente, com aquela anteriormente descrita. Existem numerosas experiências na América Latina de auges exportadores espasmódicos onde as rendas geradas, que poderiam servir para consolidar a expansão via investimento produtivo, foram dilapidadas em consumo suntuário e/ou no exterior.

A equidade favoreceria, portanto, o crescimento, diretamente pela via da indução de um padrão de consumo compatível com uma taxa mais alta e mais eficiente de investimento; e, indiretamente, na medida em que cria um clima social compatível com o esforço de “construção do futuro”, que exige necessariamente legitimidade por parte da elite e do sistema, para favorecer a. disposição do conjunto da sociedade de empreender ações e tomar decisões condizentes com o objetivo de crescimento.

O crescimento, por sua vez, tende a flexibilizar o funcionamento social e, nessa medida, permitir que os eventuais atrasos em matéria de distribuição sejam mais facilmente suportáveis que naquelas situações em que predomina a estagnação. Isso não significa que o crescimento per se conduza à equidade, tema sistematicamente rejeitado na experiência latino-americana e de outras regiões, e sim que, existindo um processo de crescimento com um padrão industrial competitivo, o atraso da equidade não se traduz necessariamente em conflitos sociais, na medida em que existe uma percepção de que a situação futura será mais favorável que a situação atual.

A competitividade do setor industrial, que enfrenta uma demanda mais dinâmica que o resto dos setores produtivos, contribui positivamente para o crescimento. A experiência mostra que o comércio internacional de manufaturas se expande em um ritmo mais elevado que o comércio mundial e que essa diferença aumenta para aqueles setores com maior conteúdo de inovação tecnológica, os quais, nas últimas quatro décadas, se localizaram na indústria metalmecânica e na química.

A nível mais desagregado, os setores líderes em nível do comércio internacional e do progresso técnico vão se modificando e, por conseguinte, a capacidade dos países de inserir-se solidamente nos mercados internacionais está fortemente condicionada por sua capacidade e possibilidade de acompanhar as tendências tecnológicas internacionais. Nesse sentido, a diferença entre a América Latina e os GEICs4 4 Growth with equity industrializing countries (Países em industrialização com crescimento com equidade). asiáticos é esclarecedora.

Na medida em que se desenvolve essa aptidão, o efeito de retroalimentação sobre o crescimento, via modificação dos preços relativos, elevação da produtividade e ampliação do mercado interno, se acentua. Quando se afirma que a competitividade reforça o crescimento, é preciso agregara fato fundamental de que essa relação adquire maior vigência quando a produtividade se manifesta em setores com maior conteúdo tecnológico e, como se discute mais adiante, quando as empresas e a infraestrutura tecnológica de apoio formam parte do acervo do país em questão. Esta é outra das diferenças assinaladas entre a América Latina e os GEICs: o menor ritmo de mudança estrutural na produção industrial e nas exportações verificado na América Latina.

A afirmação anterior não exclui a contribuição potencial dos setores de escasso conteúdo técnico ou daqueles que se originam em empresas estrangeiras, mas enfatiza a relevância da relação entre setores produtivos, empresas e tipos de mercado, de forma que se torna fundamental aprofundar essa relação para avançar na compreensão do processo de inovação tecnológica. O fato de que a macroeconomia convencional ignore essa vinculação (setores, empresas, mercados), porque não é relevante para o objetivo de sua análise, inibe sua capacidade de “capturar” o núcleo central da dinâmica do progresso técnico. Assim, é importante destacar o fato de o esforço de inovação e desenvolvimento tecnológico não se distribuir homogeneamente no conjunto da atividade produtiva. Verifica-se que esse esforço se concentra principalmente no setor manufatureiro, que, não obstante representar entre um terço e um quarto do produto interno bruto, na maioria dos países industrializados absorve uma proporção superior, na maior parte dos casos, aos 90 por cento dos recursos destinados ao propósito de pesquisa e desenvolvimento; ou seja, o setor manufatureiro apresenta uma densidade de esforço e conteúdo tecnológico que equivale a três ou quatro vezes a densidade média da atividade econômica.

No interior do setor manufatureiro existem determinados setores nos quais se concentra o esforço tecnológico: verifica-se que o setor químico, junto ao setor que, em termos genéricos, se denomina engineering products e que corresponde à metal-mecânica, que agrupa os bens de capital e os equipamentos de transporte mais os eletrodomésticos principalmente, recebem não menos de 80 por cento do esforço de pesquisa e desenvolvimento, em circunstâncias nas quais seu peso na atividade manufatureira total é inferior a 40 por cento.

Em consequência, nesses setores de engineering products e indústria química, a “densidade tecnológica” duplica aquela que caracteriza o conjunto do setor manufatureiro e equivale a não menos de seis vezes a do conjunto da atividade produtiva. Esses setores particularmente intensivos em progresso técnico apresentam pelo menos três características adicionais importantes. Em primeiro lugar, trata-se de setores que experimentaram o maior crescimento no pós-guerra, em diversos países com variados níveis de desenvolvimento. Além disso, são aqueles que apresentam o maior dinamismo no comércio internacional, ou seja, tais setores intensivos em progresso técnico absorvem uma proporção crescente do produto industrial e do comércio internacional. Finalmente, são aqueles em que o processo de internacionalização da produção foi mais dinâmico. O menor conteúdo tecnológico verificado na produção industrial e nas exportações da América Latina, em comparação com os GEICs, ilustra esse fenômeno.

Naquelas sociedades em que predomina uma base generosa de recursos naturais, costumam originar-se situações de elevada concentração da propriedade tanto no setor privado quanto no setor público e, por conseguinte, tende a gerar-se uma liderança que se sustenta no usufruto das rendas associadas a esses recursos naturais, podendo se configurar sociedades estamentárias e estados patrimonialistas.

Aceitando a existência de um certo mimetismo no interior da sociedade, ou seja, de uma difusão e reprodução dos valores que emanam da liderança para o conjunto da sociedade, poder-se-ia afirmar que, naquelas sociedades em que predomina essa liderança, tal percepção do mundo pode tender a penetrar e difundir-se em variadas esferas do setor público, do setor privado e das demais instituições distintas que participam de seu funcionamento (partidos políticos, forças armadas, associações e sindicatos, agrupamentos profissionais, a burocracia). A expressão prática dessa difusão de valores rentistas (paroquialisrno, curto-prazisrno, aversão ao risco e à inovação tecnológica, predomínio do usufruto pessoal da função desempenhada, em prejuízo dos papéis institucionais) em variados níveis e comportamentos escapa ao âmbito deste trabalho, mas constitui um tema que merece pesquisa adicional, particularmente no caso da América Latina, onde pareceria possível afirmar que essa situação tem uma relevância maior que a que lhe foi atribuída. O processo de urbanização, industrialização e mudança institucional conduziu, talvez, a subestimar o que se poderia denominar uma mentalidade rentista latente.

A disponibilidade da base empresarial nacional será, sem dúvida, um fator determinante na possibilidade de construir um sistema industrial internacionalmente competitivo. Para o objetivo de abastecer o mercado interno, este não é um requisito central e, de fato, a liderança dos setores mais dinâmicos pode deslocar-se para as empresas internacionais, cujo comportamento se adaptará sem dificuldade a essas condições de mercado. Entretanto, para penetrar nos mercados internacionais - o que requer absorver o progresso técnico e inovar de modo a poder manter-se solidamente inserido pela única via não sujeita à erosão, aquela que consiste em agregar valor intelectual aos recursos naturais ou à mão-de-obra não-qualificada disponível -, a existência de uma base empresarial nacional, incluídas várias possibilidades e modalidades de vinculação com o investimento estrangeiro, será determinante. Nesse sentido a experiência dos GEICs e dos países nórdicos é iluminadora.

É ilusório ignorar a existência de um padrão de consumo de referência que conquista o “imaginário coletivo” dos países, incluídas as zonas rurais (há diversas experiências nacionais que o confirmam, inclusive algumas de tamanho continental). O reconhecimento dessa realidade não implica abdicar da necessidade de tentar compatibilizar o ritmo de absorção dessa “modernidade”, expressa no acesso a bens e serviços, com as necessidades internas de crescimento e de integração econômica e social.

As diferenças entre os países não se situam tanto no fato de que alguns optem por esse padrão de consumo e outros por um diferente, que aparentemente não existe, mas antes no ritmo e nas modalidades com que esse padrão de referência, que parece único e dominante, é internalizado a cada momento na sociedade. No caso da América Latina, essa reprodução foi realizada sem considerar minimamente as necessidades internas de integração econômica e social e a criação de condições para uma sólida inserção internacional. A assimétrica inserção internacional da América Latina constitui uma ilustração gráfica desse fenômeno.

2. A INADIÁVEL TRANSFORMAÇÃO PRODUTIVA

Do exposto anteriormente pode-se concluir que a superação da síndrome da “caixa postal vazia” requer algo mais que garantir os equilíbrios, sem dúvida muito importantes, macroeconômicos. Na América Latina, é inadiável uma transformação produtiva que permita elevar a produtividade da mão-de-obra, sustentar a competitividade internacional “autêntica” apoiada na incorporação de progresso técnico, fortalecer e ampliar a base empresarial latino-americana, elevar maciçamente o nível de qualificação da mão-de-obra e obter o estabelecimento de relações de cooperação construtiva entre o governo, o setor empresarial e o trabalhador, baseadas em acordos estratégicos que deem permanência às políticas econômicas.

A reflexão sobre a transformação produtiva pressupõe como requisito haver controlado previamente os processos inflacionários e as situações de acentuado desequilíbrio fiscal. Parece, todavia, que a natureza do processo de ajuste através do qual se atingem esses objetivos não é irrelevante para a evolução posterior do setor produtivo. Se o processo de ajuste questiona a existência dos agentes produtivos que deveriam protagonizar a reestruturação industrial (empresas de maior conteúdo tecnológico, institutos de pesquisa, êxodo de profissionais e de mão-de-obra qualificada, desmantelamento de empresas de engenharia e de departamentos de engenharia de grandes empresas públicas ou privadas), sua falta fará com que os prazos e custos econômicos sejam maiores. Nas reflexões que se seguem, supõe-se que se efetuou um ajuste que compatibiliza níveis razoáveis de estabilidade e disciplina fiscal, com a existência, possivelmente debilitada, dos protagonistas da reestruturação industrial.

O Estado necessário para impulsionar essa transformação produtiva é diferente daquele que favoreceu a industrialização precedente.

As tarefas básicas que desempenhou o Estado na fase precedente da industrialização foram: criar infraestrutura física de apoio para uma industrialização orientada basicamente para o mercado interno, transferindo recursos para o setor privado, sob diversas modalidades, especialmente para os setores de consumo não-durável e durável, e estabelecendo empresas públicas em alguns setores de insumos de uso difundido. Os recursos em divisas provinham basicamente das exportações de recursos naturais e do crédito externo. A formação dos principais grupos industriais nacionais foi induzida através de uma proteção elevada e indiscriminada e da demanda associada ao investimento e ao consumo público. Daí emerge a reconhecida complementaridade entre investimento público e privado. Estabeleceu-se uma base educacional que priorizou as profissões universitárias das quais provém a elite governamental e privada em prejuízo da qualificação maciça da mão-de-obra e da formação de quadros intermediários. Criaram-se instituições de desenvolvimento e de apoio tecnológico nas áreas de energia, obras públicas e agricultura. Iniciou-se a prospecção sistemática dos recursos naturais, prevalecendo, não obstante, uma separação institucional e operacional entre estes e a atividade manufatureira. As relações entre o governo e o setor empresarial podiam caracterizar-se como de cumplicidade tática, acompanhada de desconfiança recíproca e pouca transparência. As relações entre o setor empresarial e o trabalhista foram marcadas pela assimetria e pela confrontação, que se resolvia em termos relativamente mais favoráveis para a força de trabalho nos setores mais intensivos de capital e de organização sindical. Estes últimos coincidem com as grandes empresas privadas que recebiam o grosso das transferências financeiras dos organismos públicos de desenvolvimento e com as empresas estatais. As filiais das empresas transnacionais, com visível liderança do setor automotivo, apresentaram um comportamento coerente com o contexto de incentivos em que atuavam, orientando sua produção preferentemente para o mercado interno.

Os resultados insuficientes da industrialização latino-americana que se evidenciaram nos anos 70, unidos à ascensão do pensamento ortodoxo, conduziram a um questionamento generalizado a respeito do papel da industrialização e da função de liderança desempenhada pelo setor público. A proposta de reestruturação industrial, cujos traços principais se esboçam em seguida, inclui sugestões a respeito das modificações que deveria sofrer o padrão prevalecente na fase precedente. A adoção dessas “correções” conduz a um esquema que difere substancialmente da proposta industrial implícita na “ortodoxia dos anos 80”, cuja aplicação se vincula ao serviço da dívida latino-americana.

As notórias e reconhecidas especificidades nacionais dos países da América Latina inibem a formulação de propostas simples e homogêneas para o conjunto da região. Entretanto, é possível identificar, em um determinado nível de abstração, um conjunto de orientações estratégicas institucionais e políticas que definem o perfil da inadiável reestruturação industrial, marcando além disso o contraste, tanto com a fase precedente como com a “ortodoxia dos anos 80”.

A realidade dos casos nacionais é sem dúvida mais complexa que a caracterização estilizada que se poderia apresentar para a América Latina; não só se combinam elementos da industrialização precedente com esforços de reestruturação industrial e experimentos ortodoxos em áreas específicas, mas também se examina um processo de aprendizagem e avaliação da factibilidade das diversas modificações propostas. A isso se agrega o fato de que tais propostas se inserem em realidades marcadas por “interesses” e “paixões” em que se amplifica ou neutraliza o alcance das recomendações.

O sentido geral da transformação produtiva proposta é o seguinte: i) transitar da “renda perecível” dos recursos naturais para a “renda não-perecível” da incorporação do progresso técnico ao setor produtivo; ii) deslocar a prioridade do conjunto do setor manufatureiro para os subsetores específicos que contribuem para incorporar e difundir o progresso técnico para o conjunto do setor produtivo; iii) favorecer a inserção internacional sobre a base do impulso à elevação da produtividade e da competitividade em setores específicos; iv) introduzir modificações em instituições e políticas públicas com o objetivo de induzir no setor privado comportamentos coerentes com os critérios anteriores; v) promover um contexto institucional favorável à colaboração estratégica entre governo-empresariado e setor trabalhista.

A promoção industrial em um mercado protegido pode chegar a ser compatível com organismos públicos passivos, enquanto o fortalecimento da competitividade internacional requer instituições públicas dotadas de iniciativa e capacidade convocatória para articular os diversos agentes produtivos, educativos, de pesquisa, financiamento e comercialização. Na fase anterior, estimulava-se o investimento independentemente de sua competitividade internacional, tema que agora requer óbvia centralidade. Os requisitos institucionais associados à administração de um esquema de proteção elevada, indiscriminada e permanente são obviamente menores e qualitativamente diferentes dos que colocam um esquema setorial e temporalmente seletivo, orientado para induzir a aprendizagem tecnológica e a competitividade internacional.

A indústria precedente tinha escassos vínculos com os setores de recursos naturais e requeria apoio limitado dos serviços especializados vinculados à gestão empresarial, e suas necessidades em matéria de atualização de recursos humanos eram antes retóricas. Nesses três planos a situação muda radicalmente. A cooperação entre empresas com os organismos públicos especializados converte-se agora em requisito de sobrevivência, o que pressupõe comunicação permanente e confiança recíproca, ingredientes ausentes na fase anterior. As ineficiências na fábrica ou na infraestrutura de transportes, comunicações e comercialização se transferiam anteriormente aos consumidores cativos. A superação dessas ineficiências converte-se agora em imperativo compartido. As relações sistematicamente conflitivas entre o setor empresarial e o trabalhista eram incompatíveis com a elevação da produtividade e a inserção internacional sólida, mas podiam se sustentar em mercados cativos, traduzindo-se em elevação de preços, descontinuidades na oferta e diminuição da qualidade. Em síntese, a inovação requerida do Estado e de sua vinculação com o setor empresarial e trabalhista transcende a esfera pontual e necessariamente casuística da privatização das empresas públicas.

A inserção internacional da América Latina baseou-se principalmente na renda associada aos recursos naturais, e a expansão industrial nutriu-se da renda associada ao amparo de uma proteção indiscriminada e prolongada. As duas fontes de crescimento, obviamente vinculadas entre si, erodiram-se, e a reestruturação industrial deveria permitir transitar para a única fonte de renda não-perecível, aquela que se baseia na inovação aplicada ao processamento dos recursos naturais, para as manufaturas não baseadas em recursos naturais e para os serviços intensivos em tecnologia.

A experiência internacional ensina inequivocamente a lição do pluralismo institucional: observam-se as mais variadas configurações de agentes econômicos nas economias de mercado. As economias bem-sucedidas em termos de crescimento e equidade compartilham um traço básico: incorporação de progresso técnico e elevação da produtividade. Em consequência, as prescrições institucionais rígidas a respeito do papel do Estado, das empresas públicas e do setor privado são necessariamente frágeis, e, em troca, as omissões quanto à incorporação de progresso técnico são graves.

  • 1
    SUZIGAN, Wilson. Indústria brasileira: origem e desenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, 1986.
  • 2
    PREBISH, Raúl. “Problemas teóricos y prácticos dei crecimiento económico”, Estúdio Económico de América Latina /949. Nova York, Cepal, 1951. Publicação das Nações Unidas, no.de venda: 1951.11.G. l.
  • 3
    FAJNZYLBER, Femando. lndustríalitación trunca. México, D.F., Editorial Nueva Imagen, 1983 (reeditado em Buenos Aires, Grupo Editor Latino-Americano, 1985).
  • 4
    Growth with equity industrializing countries (Países em industrialização com crescimento com equidade).
  • 5
    JEL Classification: O25; L52.
  • *
    Tradução de Luiz Carlos Bresser-Pereira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1992
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