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A transformação da dívida externa em títulos de longo prazo* * Trabalho baseado em informações disponíveis até 21.10.1987. O autor agradece o auxílio de Arno Meyer, Eliane Aleixo Lustosa, Teresa Mardel Correia e Paulo Antonio de Castro na elaboração das simulações apresentadas neste trabalho.

The transformation of external debt into long-term bonds

RESUMO

Este artigo apresenta uma discussão sobre a proposta de securitização da dívida externa no contexto da economia brasileira. Depois de analisar muitas questões envolvidas, o trabalho apresenta uma proposta específica de conversão da dívida externa em títulos com vencimento de longo prazo e taxa de juros pré-fixada. Essa proposta deve reduzir a transferência externa de recursos reais e diminuir o estoque da dívida externa e diminuir também a vulnerabilidade da economia brasileira a um aumento da taxa de juros. O artigo apresenta também uma simulação do Balanço de Pagamentos Brasileiro e principais variáveis macroeconômicas para o período 1988/92 para avaliação da proposta.

PALAVRAS-CHAVE:
Dívida externa; fluxo de capitais; crise da dívida; securitização

ABSTRACT

This paper offers a discussion of the proposal of securitization of external debt in the context of Brazilian economy. After analyzing many questions involved, the paper presents a specific proposal of conversion of external debt into bonds with Iong term maturity and fixed interest rate. This proposal should reduce the external transfer of real resources and ecrease the outstanding of external debt and diminish the vulnerability of Brazilian economy to an increase in the interest rate as well. The paper presents also a simulation of Brazilian Balance of Payments and key macroeconomics variables for the period 1988/92 in order to evaluate the proposal.

KEYWORDS:
External debt; capital flow; debt crisis; securities

Após a moratória decretada em fevereiro de 1987, o governo brasileiro manifestou, em várias ocasiões, a intenção de buscar uma solução de longo prazo para o problema da dívida externa. De acordo com diversos pronunciamentos do ministro da Fazenda Bresser-Pereira e declarações do próprio presidente da República, esta solução de longo prazo passaria pela transformação da dívida em títulos, com apropriação parcial do deságio praticado no mercado secundário de créditos internacionais.

Se o objetivo for este, é indispensável não alimentar certo tipo de ilusão. A experiência dos últimos cinco anos indica que a solução do problema da dívida externa brasileira depende fundamentalmente da iniciativa do Brasil. Embora a ideia de que o país devedor deva apropriar-se de uma parte do deságio represente apenas a tentativa de adaptar os métodos de reestruturação da dívida a uma realidade já reconhecida pelo mercado financeiro internacional, não existe, pelo menos no curto prazo, qualquer chance de que a proposta brasileira possa ser implementada por iniciativa dos credores. Não cabe esperar que o comitê dos bancos comerciais aceite negociar nessas bases. Também não se deve contar com a iniciativa dos governos dos países credores ou com a possibilidade de que esquemas desse tipo venham a ser implementados, neste momento; com garantia do Banco Mundial ou de outra instituição multilateral.

Isso não significa que a proposta brasileira é inviável. Significa apenas que o Brasil terá de assumir o comando do processo de reestruturação da sua dívida externa, aproveitando a oportunidade que a moratória oferece de enfrentar de maneira realista um dos aspectos cruciais da crise econômica dos anos 80.

Em nenhum momento, desde 1982, a situação internacional se mostrou tão favorável quanto a atual para uma abordagem efetiva do problema da dívida. O esgotamento dos esquemas convencionais de negociação é uma realidade percebida de forma cada vez mais nítida. Nos últimos cinco anos, a questão da dívida tem sido enfrentada por meio de acordos de fôlego curto, nos quais os países devedores se comprometiam a executar programas de “ajustamento”, sob supervisão do FMI, obtendo em contrapartida reescalonamento do principal e quantias limitadas de “dinheiro novo” para financiar uma parte dos pagamentos de juros. Os resultados desta abordagem convencional foram predominantemente negativos, sobretudo para os países devedores, que se viram obrigados a arcar com a maior parte dos custos decorrentes da crise internacional de endividamento.

Passados cinco anos desde a decretação da moratória mexicana, em agosto de 1982, quase nenhum dos países que integravam a extensa relação de devedores “problemáticos” em 1982-1983 conseguiu superar a crise. Os programas de “ajustamento” supervisionados pelo FMI não alcançaram resultados satisfatórios em nenhum caso. As maciças transferências de recursos ao exterior sancionadas pelo esquema convencional de negociação conduziram a maior parte dos países devedores a uma crise marcada por recessão, redução das taxas de investimento e da capacidade de importar, aceleração do processo inflacionário e aprofundamento dos problemas financeiros do setor público.1 1 Maria Silvia Bastos Marques e Paulo Nogueira Batista Jr., “Protecionismo dos Países Industrializados e Dívida Externa Latino-Americana” in Revista de Administração de Empresas, abr.-jun. 87, vol. 27, n.º 2, pp. 41-46. O esforço de “ajustamento” dos países devedores, embora realizado em condições internacionais adversas, conduziu a gigantescos superávits comerciais. Apesar disso, esses países não conseguiram recuperar acesso ao mercado voluntário de crédito. Para completar o quadro, a dívida continuou crescendo, não só em termos absolutos, mas também quando comparada ao valor das exportações.2 2 A dívida externa total da América Latina e do Caribe aumentou de US$ 328,0 bilhões em fins de 1982 para US$ 386,2 bilhões em fins de 1986, passando de 3,8 para 5 vezes o valor das exportações de bens da região. Comissão Econômica para América Latina e Caribe - CEPAL, “America Latina y el Caribe: Acontecimientos Recientes en la Evolucion de su Economia”, Nova Iorque, ago, 87, pp. 6 e 38, mimeo.

Mesmo do ponto de vista dos países credores, não há muitos motivos para aplaudir os resultados alcançados nos últimos cinco anos. A redução da capacidade de importar, especialmente da América Latina, prejudica o nível de exportações e emprego nos países industrializados e dificulta a redução do enorme déficit comercial dos EUA. Os únicos beneficiados talvez tenham sido os bancos comerciais, particularmente os grandes bancos internacionais dos EUA e de alguns outros países desenvolvidos, que puderam reduzir substancialmente a sua exposure relativa em relação a devedores “problemáticos” ao longo dos últimos anos. Mas a situação está longe de ser confortável para esses bancos, que continuam vulneráveis ao problema da dívida e sofrem acentuada desvalorização de suas ações e do valor de mercado das suas carteiras de empréstimos.

Na verdade, a abordagem convencional patrocinada pelos credores só teria tido chance de sucesso·se fosse correta a premissa na qual parecia inicialmente se basear: a suposição de que a crise financeira deflagrada pela moratória mexicana seria episódio de curta duração, um problema de liquidez, passível de superação em questão de dois ou três anos. Mas esta estratégia é claramente incompatível com o tratamento realista de uma crise que se arrasta desde 1982, sem qualquer perspectiva de solução pela via convencional.

A moratória brasileira, decretada por decisão unilateral e prazo indeterminado, consolidou a percepção de que a dívida externa de um grande número de países em desenvolvimento se tornou efetivamente incobrável. Como se sabe, esta percepção se reflete nos deságios praticados no mercado secundário, na desvalorização das ações dos bancos comerciais e na própria decisão, tomada por muitos bancos, de acelerar a formação de reservas contra devedores duvidosos. Tudo isto traduz, evidentemente, o entendimento do mercado de ·que a dívida não poderá ser paga; mais ainda: o reconhecimento de que os países devedores não estão dispostos a continuar sacrificando seus objetivos internos de expansão e estabilização econômica em prol do pagamento da dívida externa.

OS INSTRUMENTOS DE NEGOCIAÇÃO

E neste contexto que se situa a proposta de transformação da dívida externa em títulos de longo prazo. Cabe inicialmente examinar os instrumentos de que dispõe o governo brasileiro para viabilizar uma proposta desse tipo. O principal é, sem dúvida, a suspensão dos pagamentos de juros. O segundo, uma eventual flexibilização das regras referentes à conversão da dívida em capital de risco. Vejamos como estes instrumentos poderão ser acionados.

Em determinado dia, o Brasil anuncia aos credores externos a sua disposição de levantar a moratória e autorizar a flexibilização das regras de conversão da dívida em capital de risco. Ao fazê-lo, atende a duas das principais reivindicações dos bancos estrangeiros. No entanto, estas duas medidas ficam condicionadas à novação da dívida, isto é, à transformação prévia da dívida externa atualmente existente (dívida velha) em títulos (dívida nova). Na passagem da dívida velha para a dívida nova, o Brasil se apropria de uma parte do deságio praticado no mercado secundário. Isto pode ser feito por meio de: 1) um desconto em relação ao valor de face da dívida velha; 2) taxas de juros inferiores às de mercado para a dívida nova; 3) uma combinação das duas alternativas anteriores.

Os bancos dispostos a aderir à iniciativa brasileira têm o benefício de passar a receber, em divisas, juros sobre a dívida nova. Paralelamente, o governo concede a esses bancos a vantagem adicional de permitir a conversão da dívida nova em investimentos diretos, flexibilizando as regras atualmente existentes de forma a possibilitar conversões com cessão de crédito. Os bancos intransigentes, que insistirem em desconsiderar a necessidade de ajustar o estoque da dívida e/ou os fluxos de juros à capacidade de pagamento do devedor, continuam na situação atual, isto é, sem receber juros e sem poder ceder seus créditos para fins de conversão em capital de risco.3 3 A flexibilização das regras de conversão facilitaria a redução da exposure dos bancos em relação ao Brasil e tenderia a aumentar o valor de mercado das carteiras de empréstimos. Além disso, diversos bancos, especialmente os de maior porte, têm-se dedicado com proveito à intermediação de operações de conversão de diversos tipos. Abre-se, desse modo, a possibilidade de utilizar a conversão como fator de reforço da posição brasileira no processo de transformação da dívida em títulos. No entanto, uma eventual flexibilização das regras de conversão teria de vir acompanhada de mecanismos de controle e de salvaguardas que permitissem fazer face aos problemas potencialmente associados à conversão da dívida em capital de risco. A esse respeito ver, por exemplo, “A Conversão da Dívida Externa em Investimento”, Confederação Nacional da Indústria, Relatório do Grupo de Trabalho sobre a Conversão da Dívida Externa em Investimento, Rio de Janeiro, ago. 87, mimeo.

A implicação é evidente. Se o governo brasileiro pretende, de fato, implementar a proposta de transformação da dívida em títulos, é preciso que preserve os instrumentos de que dispõe. Daí ser indispensável não retomar prematuramente os pagamentos de juros e não precipitar a regulamentação da conversão da dívida em investimento.

LINHAS GERAIS DO NOVO ESQUEMA DE REESTRUTURAÇÃO

A essência do novo esquema de reestruturação é simples e repete o que foi feito diversas vezes na história das relações financeiras internacionais, inclusive pelo Brasil em 1943.4 4 Ver, por exemplo, Annibal Villanova Villela e Wilson Suzigan, Política do Governo e Crescimento da Economia Brasileira, 1889-1945, Série Monográfica do IPEA, n.º 10, Rio de Janeiro, IPEA/INPES, 1975, pp. 325 a 328. O governo brasileiro oferece aos credores da dívida passível de reestruturação um leque de opções, envolvendo sempre a transformação, com deságio e/ou redução da taxa de juros, da dívida velha em títulos de longo prazo negociáveis no mercado secundário e conversíveis em investimentos diretos no Brasil. Dessa forma, o Brasil, ao sair da moratória, garante uma redução imediata do estoque da dívida e/ou ajusta o fluxo futuro de juros à capacidade de pagamento do país. No mesmo instante, inicia a formação de um fundo de amortização de modo a garantir a capacidade de pagar integralmente a dívida nova no prazo estabelecido.

A dívida nova apresenta, portanto, três vantagens em relação à dívida velha: 1) rende juros; 2) pode ser objeto de transferência a terceiros para fins de conversão em capital de risco; 3) tem o seu pagamento garantido pela formação de um fundo de amortização que o Brasil se compromete a constituir com recursos próprios.

Qual a melhor maneira de operacionalizar este novo esquema? A ideia admite um sem-número de variações. Uma possibilidade seria fixar de antemão as condições financeiras para a dívida nova, autorizar a novação de toda a dívida considerada reestruturável e fixar um prazo para a adesão. Mas a melhor alternativa talvez seja fazer a novação da dívida de forma gradual, testando aos poucos a reação do mercado à iniciativa brasileira. Isto porque o Brasil teria que garantir o pagamento integral dos juros da dívida nova sem ser forçado a uma transferência excessiva de recursos reais e sem ameaçar o nível das reservas cambiais, o que recomenda uma saída gradual da moratória. A novação da dívida teria que ser feita em parcelas, com o Brasil racionando a oferta de títulos que estaria disposto a emitir a cada trimestre ou semestre.

Para fixar as taxas de juros e os deságios dos diferentes tipos de bônus, talvez seja preferível recorrer a mecanismos de leilão do que fixar as condições de modo rígido. No dia 31.12.1987, por exemplo, o Brasil divulga a disposição de iniciar a novação para 20% da dívida velha reestruturável, declara a disposição de aceitar adesões até 31.3.1988 e fixa um deságio mínimo (ou redução equivalente da taxa de juros) para a conversão da dívida velha nos novos títulos de longo prazo. Evidentemente, a preferência no acesso à novação seria dada aos credores que oferecessem as melhores condições de juros e/ou deságio; no caso de propostas iguais, a preferência seria da oferta mais antiga. No trimestre seguinte, o mecanismo se repetiria, sem que o Brasil tenha dado qualquer garantia de manter as condições mínimas de juros e deságio exigidas no primeiro trimestre. O ideal seria beneficiar, em alguma medida, os bancos que aderissem ao primeiro leilão, apertando gradativamente as condições mínimas exigidas a cada trimestre.

Qualquer que seja o detalhamento do esquema, o objetivo básico terá de ser aproveitar a oportunidade criada pela moratória brasileira e pelo esgotamento dos esquemas convencionais de negociação para resolver em bases duradouras o problema da dívida externa.

UMA PROPOSTA DE TRANSFORMAÇÃO DA DÍVIDA EM T1TULOS

O ponto de partida da proposta brasileira deve ser a realidade reconhecida pelo próprio mercado, isto é, a percepção generalizada de que a dívida “não vale cem centavos por dólar”. No caso da dívida brasileira, por exemplo, o deságio praticado no mercado secundário alcançou quase 60% do valor de face em meados de setembro de 1987.5 5 Dados fornecidos pela Merrill Lynch e pela Shearson Lehman Brothers e reproduzidos na Gazeta Mercantil, 23.9.1987, p. 15.

Como foi indicado acima, o processo de reestruturação da dívida começa por iniciativa do Brasil, que oferece a seus credores externos a possibilidade de converter seus créditos atuais em títulos de longo prazo. Ao tomar essa iniciativa, o Brasil cria uma situação em que cada banco passa a se defrontar com três possibilidades de atuação: 1) continuar retendo os créditos correspondentes à dívida velha, na expectativa de que o governo brasileiro não consiga sustentar a posição assumida; 2) vender os seus créditos no mercado secundário; 3) aderir à iniciativa brasileira.

A decisão de cada banco dependerá de um conjunto heterogêneo de variáveis, entre as quais se destacam as seguintes: 1) a extensão do apoio político interno aos responsáveis pela negociação; 2) as condições financeiras oferecidas pela proposta brasileira (deságio, taxa de juros, prazo, etc.); 3) o efeito da iniciativa brasileira sobre o valor de mercado da dívida velha; 4) a exposure relativa do banco vis à vis do Brasil (montante de empréstimos ao Brasil em comparação com a base de capital próprio e reservas); 5) tamanho da carteira de empréstimos do banco em comparação com a dimensão do mercado secundário; 6) o tratamento que venha a ser dado à transformação da dívida em títulos pelas autoridades tributárias e de supervisão bancária do país sede do banco.

Neste contexto, não é difícil perceber como os negociadores brasileiros terão de se comportar para maximizar as chances de sucesso da nova iniciativa. É preciso, antes de mais nada, resistir às pressões que procuram levar o governo brasileiro a abrir mão dos seus instrumentos de negociação e deixar claro que não haverá pagamento de juros sobre a dívida velha nem flexibilização das regras de conversão deste tipo de dívida em investimento. Cabe também afastar propostas de negociação que envolvam acertos provisórios ou esquemas convencionais centrados na concessão de “dinheiro novo” para financiamento parcial dos juros. Recomenda-se, além disso, dirigir a nova proposta ao conjunto dos bancos credores, não permitindo que o chamado comitê de assessoramento bancário, controlado por bancos que resistem a inovações, continue a desempenhar a função de interlocutor principal na negociação. Torna-se necessário, finalmente, mobilizar apoio político para os negociadores brasileiros, no exterior e sobretudo dentro do próprio país.

Mas a viabilidade da iniciativa brasileira também depende, evidentemente, das condições financeiras estabelecidas. Essas condições não podem, por um lado, distanciar-se da realidade de mercado. Isto significa que o valor presente dos fluxos de pagamentos previstos para a dívida nova, já considerado um prêmio de risco, deve em princípio superar o valor de mercado da dívida velha. Por outro lado, as condições da dívida nova devem ser compatíveis com a capacidade de pagamento do país e atender a alguns objetivos fundamentais.

A nova proposta de reestruturação da dívida precisa, em primeiro lugar, garantir a indispensável redução da transferência de recursos reais para o exterior ao longo dos próximos anos. Ao mesmo tempo, é necessário reduzir o grau de endividamento externo da economia brasileira, de modo a permitir a plena normalização das relações financeiras do país no longo prazo. Além disso, a proposta deve conduzir a uma diminuição da hoje excessiva vulnerabilidade da economia brasileira a aumentos das taxas de juros internacionais.

Com o objetivo de contribuir para a discussão da proposta de transformação da dívida em títulos, foram realizadas diversas simulações para as contas externas e os principais agregados macroeconômicos. Estas simulações resultaram na formulação de uma proposta específica de transformação da dívida em títulos de longo prazo, cujas características básicas estão registradas na Tabela 1-A.6 6 A proposta de reestruturação da dívida externa apresentada nesta seção baseia-se, em grande medida, em ideias discutidas por Roberto Fonseca e Paulo Lira em trabalhos recentes. Ver Roberto Giannetti da Fonseca, “A Saída da Incômoda Moratória”, in Folha de São Paulo, 6.8.1987, Caderno de Economia; Paulo H. Pereira Lira, “Estratégias para a Negociação da Dívida Externa - Uma Proposta Não-Convencional”, mimeo., jun. 87. A proposta de Paulo Lira se fundamenta, entretanto, na proposição de que a dívida externa pode ser paga com juros de mercado, sem qualquer abatimento. A dívida afetada pela proposta equivale a quase 70% da dívida externa brasileira e corresponde, essencialmente, aos componentes da dívida que vêm sendo submetidos a reescalonamento nos últimos anos. A taxa de juros e o deságio foram fixados de forma a tornar a proposta atraente em comparação com a alternativa que continuariam a ter os bancos menores de simplesmente vender a dívida velha do mercado secundário. Os depósitos no fundo de amortização foram calculados de modo a tornar possível a liquidação integral da dívida nova no vigésimo ano.7 7 Como sugere Roberto Fonseca, este fundo de amortização poderia ser depositado junto ao Banco Mundial, que estaria assim apoiando a iniciativa brasileira sem necessariamente ter que garantir os títulos emitidos pelo Brasil. Roberto Giannetti da Fonseca, op. cit.

Tabela 1-A
A transformação da divida externa em titulos de longo prazo: condições básicas

Observe-se que a implementação da proposta em etapas significa estabelecer uma fase de transição (1988-1989) em que se combinaria a transformação da dívida em títulos com a capitalização dos juros da dívida velha. Desse modo, o Brasil sairia gradualmente da moratória, evitando que as despesas previstas no novo esquema (os pagamentos de juros e as despesas com a formação do fundo de amortização) ameacem o nível de reservas ou venham a exigir superávits comerciais excessivos nos próximos dois anos.

Simulações baseadas nas identidades de balanço de pagamento e das contas nacionais permitem avaliar algumas das principais implicações da proposta de transformação da dívida em títulos. O esquema utilizado para simular a proposta pode ser explicado em poucas palavras. O ponto de partida é a projeção dos pagamentos associados à gradual transformação da dívida em títulos. Como se verifica na Tabela 1-B, os pagamentos de juros sobre a dívida nova aumentam de pouco mais de US$ 1 bilhão em 1988 para cerca de US$ 3,4 bilhões por ano a partir de 1990. Acrescentando os depósitos semestrais no fundo de amortização, chega-se a um pagamento total da ordem de US$ 4 bilhões por ano de 1990 em diante.

Às despesas com os juros da dívida nova somam-se a capitalização dos juros referentes à dívida velha em 1988-1989 (Tabela 1-B) e os pagamentos de juros sobre a dívida externa não afetada pela proposta.8 8 A dívida não afetada inclui a dívida de curto prazo e dívidas de médio e longo prazos com instituições multilaterais, com credores privados não bancários e dívidas contraídas com agências governamentais após 31.3.1983. Para maiores detalhes sobre as hipóteses utilizadas na simulação ver Paulo Nogueira Batista Jr., “A Transformação da Dívida Externa em Títulos de Longo Prazo”, FGV/IBRE/CEMEI, out. 87, mimeo. Deduzidas as receitas de juros, obtém-se uma conta líquida de juros de US$ 7,3 bilhões em média no período de 1988-1992. As remessas líquidas de lucros e os demais rendimentos do capital estrangeiro, projetados com base na sua evolução recente, alcançam, em média, US$ 2,1 bilhões por ano nesse período. A transferência bruta de recursos financeiros sob a forma de juros, lucros e outros serviços de fatores chega, portanto, a US$ 9,4 bilhões por ano em média (Tabela 1-C).

A Tabela 1-D apresenta as projeções referentes ao movimento de capitais. Em 1988-1989, a principal fonte de recursos novos é a capitalização dos juros devidos aos bancos comerciais estrangeiros e ao Clube de Paris. No que diz respeito ao BIRD e ao BID, a suposição é de que o desembolso bruto de empréstimos será suficiente para cobrir os juros e as amortizações devidos pelo Brasil a esses organismos no período 1988-1992. Admite-se também que não haverá empréstimos novos dos bancos comerciais, das agências governamentais e do FMI. As demais contas são projetadas, na maior parte das vezes, com base na sua evolução recente ou nó esquema de amortização da dívida divulgado pelo Banco Central.9 9 Banco Central do Brasil, Brasil-Programa Econômico, vol. 15, jun. 87, pp. 104-105.

Condições básicas:

  1. Dívida afetada: total da dívida registrada em 30.12.1987 com bancos comerciais estran­geiros CUS$ 64,681 milhões) e dívida em 30.12.1987 com agências governamentais, contratada. até 31.3.1983 CUS$ 13,267 milhões);

  2. Deságio de 20%;

  3. Taxa de juros fixa de 5% a.a.;

  4. Fundo de amortização: depósito inicial de US$ 250 milhões e depósitos semestrais equivalentes a 0,5% da dívida nova nos cinco primeiros anos;

  5. Pagamento da dívida nova após vinte anos Cbullet);

  6. Período de juros: semestral;

  7. Novação da dívida em cinco tranches: US$ 18,000 milhões em 31.1.1987, USS 18,000 milhões em 30.6.1988, USS 18,000 milhões em 31.12.1988, USS 18,000 milhões em 30.6.1989, USS 18,322 milhões em 31.12.1989;

  8. Capitalização integral dos juros até a conversão em dívida nova;

  9. Parcela da dívida nova convertida em investimento direto: USS 1,500 milhões por ano;

  10. LIBOR de 8,5% a.a.

Tabela 1-B
Projeção dos juros capitalizados e das despesas referentes à divida nova (US$ milhões)

Combinando as informações registradas nas Tabelas 1-B a 1-D, obtém-se então a transferência líquida de recursos financeiros, definida como a diferença entre a renda líquida enviada ao exterior (sob a forma de juros, lucros, dividendos e outros serviços de fatores) e a entrada líquida de capital. Como se verifica na Tabela 1-C, a transferência líquida de recursos financeiros alcança, em média, US$ 7,7 bilhões nos próximos cinco anos, contra uma média anual de US$ 9,8 bilhões em 1986-1987.

TABELA 1-C
TRANSFERÊNCIA DE RECURSOS REAIS E FINANCEIROS AO EXTERIOR E VARIAÇÃO DAS RESERVAS INTERNACIONAIS (US$ bilhões)

A transferência de recursos reais depende, por sua vez, da transferência de recursos financeiros, do aumento desejado das reservas internacionais e das despesas relacionadas à constituição do fundo de amortização. No período 1988-1992, a transferência requerida de recursos reais situa-se em US$ 9,0 bilhões por ano, em média, o que reflete a transferência financeira de US$ 7,7 bilhões e uma despesa anual de US$ 1,3 bilhão relacionada à formação de reservas e do fundo de amortização. Admitindo-se um déficit da ordem de US$ 1,3 bilhão com serviços não-fatores, o superávit comercial requerido chega a US$ 10,3 bilhões em média (Tabela 1-C).10 10 Se as exportações crescem a partir de 1988 à taxa anual de 8,7% prevista pelo governo (ver Ministério da Fazenda, Plano de Controle Macroeconômico, jul. 87, p. 100), o superávit comercial requerido é compatível com uma expansão do valor das importações à taxa média de 13,5% a.a. no período 1988-1992.

Tabela 1-D
Entrada liquida de capital

A Tabela 1-E apresenta projeções para os principais agregados macroeconômicos no período 1988-1992. A sustentação de taxas de crescimento da ordem de 6% a 7% a.a. exige evidentemente acentuada recuperação do investimento agregado. Partindo-se das taxas de crescimento projetadas no Plano de Controle Macroeconômico11 11 Ministério da Fazenda, op. cit., p. 29. e de uma razão incremental capital-produto de 3,3 em média, obtém-se uma taxa requerida de investimento semelhante à alcançada no final dos anos 70. O esforço de investimento projetado implica uma elevação de 4 pontos percentuais na taxa de investimento entre 1987 e 1991.

Combinando estas metas de crescimento e investimento com a transferência requerida de recursos reais, chega-se à taxa de poupança interna exigida da economia. O esforço interno de poupança deve ser suficiente para financiar uma taxa média de investimento de 22,3% e uma transferência real de recursos de 2,3% em média no período 1988-1992. A taxa marginal de poupança, definida como a relação percentual entre o aumento da poupança interna e o aumento do produto, alcança quase 33% em média (Tabela 1-E). Não obstante, o consumo per capita cresce, em média, 3,9% a.a. em termos reais.12 12 Admitiu-se uma taxa de crescimento populacional de 2% a.a. no período 1988-1992.

TABELA 1-E
PRODUTO INTERNO BRUTO, INVESTIMENTO AGREGADO, POUPANÇA INTERNA E TRANSFERÊNCIA DE RECURSOS REAIS PARA O EXTERIOR (medidos a preços correntes)

Ao contrário dos esquemas de reestruturação centrados na capitalização ou no financiamento parcial dos juros, a proposta de transformação da dívida em títulos reduz não apenas a transferência de recursos ao exterior, mas também o grau de endividamento externo do país. Como se verifica na Tabela 1-F, a dívida externa bruta diminui para US$ 97 bilhões em 1992. A dívida externa líquida passa de US$ 106 bilhões em 1986 para US$ 83 bilhões em 1992, e diminui mais de 1/3 em termos reais. Além disso, todos os principais indicadores relativos acusam melhoria expressiva.

TABELA 1-F
DÍVIDA EXTERNA, RESERVAS E INDICADORES RELATIVOS DO SETOR EXTERNO (US$ bilhões)

Desse ponto de vista, é interessante comparar a proposta de transformação da dívida em títulos com a proposta convencional de financiamento parcial dos juros. Para permitir tal comparação, as simulações foram alteradas em função das hipóteses arroladas na Tabela 2-A, mantendo-se as demais suposições utilizadas na simulação da proposta de transformação da dívida em títulos. Como se verifica na Tabela 2-B, o financiamento parcial de 50% dos juros devidos permite reduzir a transferência média de recursos para 2,5% do PIB nos próximos cinco anos. No entanto, a dívida externa aumenta ao longo desse período e a melhoria dos indicadores relativos de endividamento é relativamente modesta (Tabela 2-D). Além disso, a economia continua extremamente vulnerável à flutuação das taxas de juros internacionais. Com um aumento da LIBOR para 12%, por exemplo, a transferência requerida no esquema convencional sobe para 3,1 % do PIB em 1988-1992 e a dívida líquida alcança US$ 120 bilhões em 1992.

TABELA 2-A
FINANCIAMENTO PARCIAL DOS JUROS (US$ bilhões)
TABELA 2-B
PRODUTO INTERNO BRUTO, INVESTIMENTO AGREGADO, POUPANÇA INTERNA E TRANSFERÊNCIA DE RECURSOS REAIS PARA O EXTERIOR (medidos a preços correntes)
TABELA 2-C
TRANSFERÊNCIA DE RECURSOS REAIS E FINANCEIROS AO EXTERIOR E VARIAÇÃO DAS RESERVAS INTERNACIONAIS (US$ bilhões)
TABELA 2-D
DÍVIDA EXTERNA, RESERVAS E INDICADORES RELATIVOS DO SETOR EXTERNO (US$ bilhões)

Em suma, a proposta de transformação da dívida em títulos de longo prazo com juros fixos atende a alguns objetivos fundamentais e oferece a perspectiva de uma solução duradoura para o problema da dívida. Primeiro, porque reduz a transferência de recursos ao exterior, abrindo espaço para o crescimento do investimento agregado e das importações. Segundo, porque reduz o grau de endividamento externo do país. Terceiro, porque permite diminuir a vulnerabilidade financeira externa da economia.

Isto não significa, evidentemente, que a implementação de uma proposta deste tipo eximiria o governo brasileiro da necessidade de implementar um rigoroso programa de ajustamento interno. A redução da transferência de recursos ao exterior deve ter como contrapartida uma forte elevação da taxa de investimento. O financiamento do investimento requerido para garantir a sustentação de taxas adequadas exige, além disso, acentuada elevação da taxa de poupança interna, o que significa, nas circunstâncias atuais, aumentar a taxa de poupança privada e sobretudo a contribuição do setor público à formação de poupança. Finalmente, será preciso manter uma política cambial e de comércio exterior compatível com o crescimento contínuo das exportações e das importações

Seja qual for a forma específica de reestruturação da dívida que se decida adotar, o importante é não desperdiçar a oportunidade de negociação criada pela moratória e pela convicção generalizada de que os métodos tradicionais de reescalonamento fracassaram. Prevalece agora, até mesmo nos países credores, a percepção de que o problema da dívida requer soluções inovadoras. Cabe ao governo brasileiro agir de forma a transformar esta percepção em um acordo abrangente, capaz de criar as condições para o crescimento sustentado da economia brasileira.

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    Trabalho baseado em informações disponíveis até 21.10.1987. O autor agradece o auxílio de Arno Meyer, Eliane Aleixo Lustosa, Teresa Mardel Correia e Paulo Antonio de Castro na elaboração das simulações apresentadas neste trabalho.
  • 1
    Maria Silvia Bastos Marques e Paulo Nogueira Batista Jr., “Protecionismo dos Países Industrializados e Dívida Externa Latino-Americana” in Revista de Administração de Empresas, abr.-jun. 87, vol. 27, n.º 2, pp. 41-46.
  • 2
    A dívida externa total da América Latina e do Caribe aumentou de US$ 328,0 bilhões em fins de 1982 para US$ 386,2 bilhões em fins de 1986, passando de 3,8 para 5 vezes o valor das exportações de bens da região. Comissão Econômica para América Latina e Caribe - CEPAL, “America Latina y el Caribe: Acontecimientos Recientes en la Evolucion de su Economia”, Nova Iorque, ago, 87, pp. 6 e 38, mimeo.
  • 3
    A flexibilização das regras de conversão facilitaria a redução da exposure dos bancos em relação ao Brasil e tenderia a aumentar o valor de mercado das carteiras de empréstimos. Além disso, diversos bancos, especialmente os de maior porte, têm-se dedicado com proveito à intermediação de operações de conversão de diversos tipos. Abre-se, desse modo, a possibilidade de utilizar a conversão como fator de reforço da posição brasileira no processo de transformação da dívida em títulos. No entanto, uma eventual flexibilização das regras de conversão teria de vir acompanhada de mecanismos de controle e de salvaguardas que permitissem fazer face aos problemas potencialmente associados à conversão da dívida em capital de risco. A esse respeito ver, por exemplo, “A Conversão da Dívida Externa em Investimento”, Confederação Nacional da Indústria, Relatório do Grupo de Trabalho sobre a Conversão da Dívida Externa em Investimento, Rio de Janeiro, ago. 87, mimeo.
  • 4
    Ver, por exemplo, Annibal Villanova Villela e Wilson Suzigan, Política do Governo e Crescimento da Economia Brasileira, 1889-1945, Série Monográfica do IPEA, n.º 10, Rio de Janeiro, IPEA/INPES, 1975, pp. 325 a 328.
  • 5
    Dados fornecidos pela Merrill Lynch e pela Shearson Lehman Brothers e reproduzidos na Gazeta Mercantil, 23.9.1987, p. 15.
  • 6
    A proposta de reestruturação da dívida externa apresentada nesta seção baseia-se, em grande medida, em ideias discutidas por Roberto Fonseca e Paulo Lira em trabalhos recentes. Ver Roberto Giannetti da Fonseca, “A Saída da Incômoda Moratória”, in Folha de São Paulo, 6.8.1987, Caderno de Economia; Paulo H. Pereira Lira, “Estratégias para a Negociação da Dívida Externa - Uma Proposta Não-Convencional”, mimeo., jun. 87. A proposta de Paulo Lira se fundamenta, entretanto, na proposição de que a dívida externa pode ser paga com juros de mercado, sem qualquer abatimento.
  • 7
    Como sugere Roberto Fonseca, este fundo de amortização poderia ser depositado junto ao Banco Mundial, que estaria assim apoiando a iniciativa brasileira sem necessariamente ter que garantir os títulos emitidos pelo Brasil. Roberto Giannetti da Fonseca, op. cit.
  • 8
    A dívida não afetada inclui a dívida de curto prazo e dívidas de médio e longo prazos com instituições multilaterais, com credores privados não bancários e dívidas contraídas com agências governamentais após 31.3.1983. Para maiores detalhes sobre as hipóteses utilizadas na simulação ver Paulo Nogueira Batista Jr., “A Transformação da Dívida Externa em Títulos de Longo Prazo”, FGV/IBRE/CEMEI, out. 87, mimeo.
  • 9
    Banco Central do Brasil, Brasil-Programa Econômico, vol. 15, jun. 87, pp. 104-105.
  • 10
    Se as exportações crescem a partir de 1988 à taxa anual de 8,7% prevista pelo governo (ver Ministério da Fazenda, Plano de Controle Macroeconômico, jul. 87, p. 100), o superávit comercial requerido é compatível com uma expansão do valor das importações à taxa média de 13,5% a.a. no período 1988-1992.
  • 11
    Ministério da Fazenda, op. cit., p. 29.
  • 12
    Admitiu-se uma taxa de crescimento populacional de 2% a.a. no período 1988-1992.
  • 14
    JEL Classification: H63; F34.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1988
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