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Aníbal Pinto: um economista latino-americano

Aníbal Pinto: a Latin American economist

RESUMO

A obra de Aníbal Pinto está nas origens da escola estruturalista e da crítica, desde o final dos anos 40, ao paradigma dominante no mundo acadêmico dos países desenvolvidos. A crítica estava inicialmente centrada na rejeição à ideia de que, terminada a reconstrução europeia, o comércio multilateral e a livre convertibilidade de todas as moedas garantiriam ritmos de prosperidade semelhantes entre todos os países integrantes desse sistema, pobres e ricos. Um corolário natural da rejeição a essa tese estava na ideia-força da industrialização, com suas exigências de protecionismo seletivo; desenvolvimento da infraestrutura; produção, inclusive estatal, de insumos básicos; programação e financiamento dos grandes investimentos. Tais preocupações marcaram os primeiros anos da CEPAL e o começo da obra de Aníbal Pinto, um dos mais criativos, profícuos e influentes estruturalistas latino-americanos.

PALAVRAS-CHAVE:
História do pensamento econômico; Aníbal Pinto

ABSTRACT

Aníbal Pinto’s work is at the origin of the structuralist school and of criticism, since the late 1940s, to the dominant paradigm in the academic world of developed countries. The criticism was initially centered on the rejection of the idea that, after European reconstruction ended, multilateral trade and the free convertibility of all currencies would guarantee similar rates of prosperity among all the countries that make up this system, poor and rich. A natural corollary of the rejection of this thesis was the strong idea of industrialization, with its demands for selective protectionism; infrastructure development; production, including state-owned, of basic inputs; programming and financing of large investments. Such concerns marked the early years of ECLAC and the beginning of the work of Aníbal Pinto, one of the most creative, fruitful and influential Latin American structuralists.

KEYWORDS:
History of economic thought; Aníbal Pinto

A homenagem que a Universidade de Campinas presta ao professor Aníbal Pinto tem duplo significado. Foi reconhecida, de maneira formal, a importância da obra intelectual de Aníbal Pinto, ao mesmo tempo que se expressa a gratidão da UNICAMP pela sua contribuição na formação dos quadros do Instituto de Economia. Muitos foram alunos e/ou trabalharam diretamente com o professor Aníbal. Todos o fizeram durante sua fase de formação como economistas, desfrutando da transmissão do conhecimento, da mente aberta, da inquietação e da infinita generosidade intelectual do mestre.

A obra de Aníbal Pinto está nas origens da escola estruturalista e da crítica, desde o final dos anos 40, ao paradigma dominante no mundo acadêmico dos países desenvolvidos. A crítica estava inicialmente centrada na rejeição à ideia de que, terminada a reconstrução europeia, o comércio multilateral e a livre convertibilidade de todas as moedas garantiria ritmos de prosperidade semelhantes entre todos os países integrantes desse sistema, pobres e ricos.

Um corolário natural da rejeição a essa tese estava na ideia-força da industrialização, com suas exigências de protecionismo seletivo; desenvolvimento da infraestrutura; produção, inclusive estatal, de insumos básicos; programação e financiamento dos grandes investimentos. Tais preocupações marcaram os primeiros anos da CEPAL e o começo da obra de Aníbal Pinto, um dos mais criativos, profícuos e influentes estruturalistas latino-americanos.

Foi sua a primeira análise crítica sistematizada da doutrina do FMI para os países da América Latina, enfeixada num pequeno livro, publicado em 1960: Nem Estabilidade, nem Desenvolvimento: a Política do Fundo Monetário. Um título sugestivo do espírito militante do autor, retomando a boa tradição da economia política: mente intelectualmente aberta, ao lado da capacidade para formular proposições de políticas e de mobilizar a opinião pública pela sua implementação.

Nesse e noutros escritos da época, Aníbal Pinto já evidenciava os pontos mais vulneráveis da visão ortodoxa, tais como: a) a suposição de economias homogêneas e integradas; b) o descaso em relação aos custos da transição de uma situação econômica determinada a outra desejada, capazes de produzir resultados bem diferentes dos previstos; c) a desconsideração do potencial de poupança e investimento envolvido no desemprego e na ociosidade de recursos, típicos das economias subdesenvolvidas; d) o aprisionamento nos marcos de análises estático-comparativas e essencialmente microeconômicas; e) a ideia de que as vantagens comparativas são total e livremente definidas pelo mercado e não, como diz Ffrench-Davis, seletiva, embora parcialmente adquiríveis; f) mais amplamente, a tendência a considerar que saber econômico oferece respostas semelhantes para as mesmas questões, independentemente do momento histórico, das condições econômicas, sociais e políticas de cada país.

Aníbal Pinto esteve à vontade na apreciação crítica da ortodoxia, pois sempre se debruçou na análise histórica, deu importância à análise comparada de processos de desenvolvimento e foi capaz, como nenhum outro economista na América Latina, de tratar apropriadamente da interação do desenvolvimento econômico com a política e a sociedade.

Assim, no campo da história econômica, o professor Aníbal produzira um pequeno clássico em seu país: Chile: um Caso de Desarrollo Frustrado, cobrindo um século da história chilena. Nesse ensaio, Aníbal Pinto ressaltou suas reservas diante das prescrições ortodoxas:

“O desenvolvimento chileno ocorreu durante cerca de um século nas condições mais favoráveis a que tivessem sido cumpridas as expectativas do credo clássico e liberal.. O comércio exterior foi instável mas dinâmico; não houve interferências governamentais mais importantes nos mecanismos das forças naturais de mercado; a paz e a ordem primaram quase invariavelmente; a renda foi distribuída com desigualdade suficiente para criar amplas possibilidades de poupança nos grupos mais aquinhoados; houve uma corrente importante e sustentada de capitais e créditos estrangeiros’’. Não obstante, o desenvolvimento não tomou corpo, pelo menos no sentido básico de um aumento geral da produtividade do sistema e uma diversificação apropriada de suas fontes produtivas.”1 1 Op. cit., pp. 10/11.

Esse livro foi complementado por outro, escrito em parte no Brasil, quando nosso mestre chefiava o escritório da CEPAL no Rio: Chile: una Economia Difícil, onde avançou na análise dos problemas que envolveram a fase de industrialização baseada na substituição de importações - a tendência aos desequilíbrios externo e fiscal, a inflação e a regressividade na distribuição da renda.

Foram de Aníbal Pinto alguns dos artigos pioneiros sobre a inflação, a partir de um prisma estruturalista, e sobre as características e determinantes da distribuição pessoal da renda no processo de desenvolvimento. Foi quem, sem dúvida, chegou mais longe, já nos anos 50, na identificação não tautológica do papel das disputas sociais recorrentes e irresolvidas na explicação do processo inflacionário.

Sua análise da distribuição de renda inspirou-se num dos seus mais criativos ensaios: “A Concentração do Progresso Técnico e de seus Frutos no Desenvolvimento Latino-americano”, de 1964, e complementado por “Natureza e Implicações da Heterogeneidade Estrutural”, de 1969.

Naquele primeiro ensaio, Aníbal Pinto transportou e sofisticou para a economia nacional a análise de Prebisch e Rosenstein-Rodan sobre a repartição dos frutos do progresso técnico em escala internacional. Enfatizou não apenas sua dimensão regional, mas também setorial e social, apontando a tendência à desigualdade e à concentração inerentes ao estilo de desenvolvimento dominante na América Latina. Evitou a perspectiva dualista-funcionalista, que teve versões à direita e à esquerda, mostrando ao mesmo tempo a necessidade do conceito de heterogeneidade estrutural, como reflexo das desigualdades de produtividade e na modernização não apenas entre campo e cidade, ou entre regiões pobres e regiões desenvolvidas, mas intrasetoriais, intrarregionais e no interior das cidades e do campo. Evitou, como disse, uma perspectiva dualista-funcionalista, abrindo caminho, paralelamente, para a formulação de políticas de desenvolvimento com menor desigualdade, que estão a hectômetros das práticas populistas que têm envolvido as políticas sociais e regionais de redução (ou não redução, eu diria) dessas desigualdades.

A crítica e a impaciência intelectual de Aníbal Pinto com relação ao pensamento conservador poderiam ter tido como base a ironia de Keynes quando dizia que sabedoria mundial conservadora ensina que é melhor para a reputação falhar de modo convencional do que ser bem-sucedido de forma não convencional.

Mas Don Aníbal não é um heterodoxo somente em relação à ortodoxia conservadora. Sempre se manteve alerta contra a ideia de algum “FMI de esquerda”, como disse certa vez. Foi crítico implacável das análises finalistas e catastrofistas, que engoliam o caráter contraditório e aberto do processo de desenvolvimento e substituíam, como tantos o fazem até hoje, a análise pela síntese. Este era o caso, por exemplo, das teses sobre “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, popularíssimas entre meados dos anos 60 e meados dos anos 70.

A esse respeito, nada sintetizaria melhor a visão de nosso mestre como, novamente, as palavras de Keynes, no começo dos anos 30:

“Eu prevejo que os dois erros opostos do pessimismo, que hoje fazem tanto barulho no mundo, serão ambos desmentidos no nosso próprio tempo: o pessimismo dos revolucionários, que pensam que as coisas estão tão mal que só a mudança violenta pode salvar-nos, e o pessimismo dos reacionários, que consideram o equilíbrio de nossa vida econômico-social tão precário que não podemos correr o risco de fazer nenhum experimento”.2 2 “Economic Possibilities for our Grandchildren”, em Essays in Persuasion, Norton, pp. 359/60.

Utilizando seus recursos não só de economista, mas de agudo analista social e político, Aníbal Pinto escreveu, em meados dos anos 60, ensaios criativos: “O Modelo Político Latino-americano” e “Crítica ao Modelo Político-Econômico da Esquerda Oficial”3 3 Incluídos no livro: Política y Desarrollo, Santiago, Editorial Universitária, 1968. , termo que cunhou, além de uma análise até hoje atual das condições que levaram ao golpe de 1964, no Brasil.

Como disse em um desses artigos:

“Tem sido fácil criticar a alienação do pensamento econômico tradicional e conservador da América Latina. No entanto, os esforços feitos nessa direção não deveriam excluir uma interrogação sobre o papel das correntes avançadas ou de esquerda”.4 4 Op. cit ., p. 165.

Sempre se perceberá nesses escritos, como em muitos outros do professor Aníbal, um forte equilíbrio entre a crítica aguda, a objetividade e a perspectiva construtiva.

Ouso afirmar que o melhor ensaio de Aníbal na ultrapassagem da economia para a sociologia e a política seja o seu “Desarrollo y Relaciones Sociales en Chile”, também um pequeno clássico escrito originalmente no começo dos anos 60 e atualizado em fins dessa década. Esse ensaio deve ser lido conjuntamente com outro: “Estructura Social e Implicaciones Políticas”.5 5 ‘Ambos foram incluídos no livro do autor: Tres Ensayos sobre Chile y América Latina. Buenos Aires, Ediciones Solar, 1971. Ambos respondem à ênfase a respeito do que Aníbal Pinto chamou de dissociação que caracteriza o processo chileno entre

“(...) um relativo avanço na organização social e suas formas institucionais e as mudanças em sua estrutura econômica, dissociação que tende a aguçar-se nos dois últimos decênios”.6 6 ‘Op. cit., p. 67.

“Tal contradição foi vislumbrada por Encina no começo do século, mas não há dúvida de que com o tempo veio se agravando e talvez se aproxime de um ponto de ruptura. O desequilíbrio terá que romper-se ou com uma ampliação da capacidade produtiva e o progresso na distribuição do produto social, ou por um ataque franco contra as condições de vida democrática que, em essência, são incompatíveis com uma economia estagnada.”7 7 Chile: um Caso de Desarrollo Frustrado, p. 11.

Isto foi publicado em 1958, quinze anos antes da ruptura do processo democrático chileno. Por outro lado, como disse Aníbal Pinto, a hipótese da dissociação

“(...) é útil para examinar outras experiências latino-americanas, onde parece ressaltar o fenômeno inverso, ou seja, de mudanças relativamente rápidas e profundas de base produtiva e um atraso transparente na adequação correspondente das condições sociais e políticas.”8 8 “Tres Ensayos... , p. 67.

O engajamento intelectual de Aníbal Pinto em relação a outros países da América Latina e seu fascínio pela análise comparada do processo de desenvolvimento levaram-no a motivar e orientar dois estudos fundamentais para a compreensão do desenvolvimento brasileiro no pós-guerra e até o começo dos anos 60: “Auge e Declínio do Processo de Substituição de Importações no Brasil”, de Maria da Conceição Tavares (1965) e “Quinze Anos de Política Econômica no Brasil”, de Carlos Lessa (1965), sem mencionar tantos outros ensaios sobre o Brasil que ele inspirou, revisou na forma e no conteúdo, como foi ocaso do “Além da Estagnação: uma Discussão sobre o Estilo de Desenvolvimento Recente do Brasil” (1970), de minha autoria e de Conceição Tavares.

É impossível, em face da limitação do tempo e do espaço, bem como do tamanho e da influência da obra de Aníbal Pinto, prosseguir apontando suas contribuições que, aliás, repito, além da criatividade, revelam um estilo claro, limpo e acessível, virtude que sempre trouxe prazer aos seus discípulos e amigos e inveja a adversários do establishment acadêmico.

Assim, Aníbal Pinto escreveu muitas e muitas páginas para estudos da CEPAL, que não registram o nome do autor. Orientou pesquisas nessa instituição e no Instituto de Economia da Universidade do Chile. Redigiu numerosos editoriais para a Revista Panorama Econômico, que fundou e refundou. Fez artigos importantes sobre financiamento no desenvolvimento, evolução das relações centro-periferia e, mais amplamente, sobre economia internacional e a inflação nos anos 70.

Ainda na segunda metade dos anos 60, realizou análises pioneiras sobre o padrão do crescimento “prematuramente” liderado pela produção e consumo de bens cujo valor e essencialidade contrastavam com a renda por habitante relativamente baixa nos países latino-americanos. Nesse mesmo período, organizou e comentou um excelente volume sobre El Pensamiento de la Cepal, obra de consulta indispensável para os estudiosos do desenvolvimento econômico. Em outros artigos, soube situar com objetividade a importância da contribuição da CEPAL, obtusamente negada à esquerda e à direita. Voltou, no final do decênio seguinte, à história econômica chilena e às análises políticas (sobre o regime militar de seu país).

Lembro, ainda, dos seus artigos sobre política fiscal e previdenciária dos anos 50 e começo dos anos 60. São disciplinas, aliás, consideradas maçantes pelos economistas e cujo interesse foi despertado em mim por Aníbal Pinto. Durante a elaboração da nova Constituição brasileira reli um artigo de Don Aníbal diagnosticando e propondo linhas de reforma sobre a previdência chilena, escrito há um quarto de século. Reli com fascínio e espanto, pela sua agudeza e por ser tão atual, evidenciando até mesmo os aspectos de obsolescência e iniquidade que viriam a ser reforçados na nova Constituição brasileira, com um sistema previdenciário voltado, no que é viável, essencialmente para a classe média. Lembro, ainda, das numerosíssimas cartas que sempre gostou de escrever às redações de revistas e jornais, por vezes sob pseudônimo (dada sua condição de funcionário da ONU) dando vazão à vocação de polemista e à indignação contra dogmatismos.

Estive exilado no Chile de 1965 a 1974 e convivi com Don Aníbal durante todos esses anos. Com ele e graças a ele comecei a estudar Economia e a trabalhar em docência e pesquisa, tendo sido seu ajudante, assistente e substituto no curso sobre desenvolvimento da América Latina do Programa de Estudos Econômicos para Graduados Latino-americanos (Escolatina) da Universidade do Chile.

Dou o testemunho, e aqui falo em nome de outros que com ele conviveram, de sua generosidade intelectual. De sua impaciência diante do saber (ou da ignorância) convencional, diante do corporativismo exacerbado e das intolerâncias de qualquer lado do espectro acadêmico ou político.

Don Aníbal gastava horas de seu dia expondo ideias, ouvindo e discutindo com quem lhe estava próximo. Quando cheguei a Santiago, com 23 anos, eu tinha as imensas certezas ensejadas pela idade e a militância política e estudantil intensa. A vida no exílio e o notável ambiente intelectual do Chile durante a segunda metade dos anos 60, abalou-as consideravelmente e foi decisiva a convivência com Don Aníbal para que eu passasse a ter certezas apenas a respeito das dúvidas, como disse Hirschman a propósito de sua chegada à Itália, com idade semelhante, no final dos anos 30. Conviver com Don Aníbal, sempre representou, como disse uma vez Fernando Henrique Cardoso, o incitamento contínuo à inteligência. Eu acrescentaria, à valorização da inteligência, da inquietação e do inconformismo intelectual.

Aníbal Pinto nunca deixou de reconhecer méritos em quem era objeto de seus reparos intelectuais, de ponderar os argumentos contrários e extrair deles o que tivessem de certo ou pelo menos de alerta. Nunca, rigorosamente nunca, o ouvi fazer ataques pessoais a alguém. Nunca o ouvi dissertar a respeito de temas para os quais não se considerava preparado, nem desqualificar com adjetivos ou com retórica argumentos alheios. Tem seu lado de bom aristocrata - sua personalidade fina e gentil - mas jamais escondeu ou inibiu, para seus amigos, seu afeto cálido e sua solidariedade. É um grande mestre.

  • 1
    Op. cit., pp. 10/11.
  • 2
    “Economic Possibilities for our Grandchildren”, em Essays in Persuasion, Norton, pp. 359/60.
  • 3
    Incluídos no livro: Política y Desarrollo, Santiago, Editorial Universitária, 1968.
  • 4
    Op. cit ., p. 165.
  • 5
    ‘Ambos foram incluídos no livro do autor: Tres Ensayos sobre Chile y América Latina. Buenos Aires, Ediciones Solar, 1971.
  • 6
    ‘Op. cit., p. 67.
  • 7
    Chile: um Caso de Desarrollo Frustrado, p. 11.
  • 8
    “Tres Ensayos... , p. 67.
  • 9
    JEL Classification: B31; B22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1991
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