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A composição financeira do déficit público

Financial composition of the public deficit

RESUMO

A partir dessa hipótese, este artigo critica a teoria convencional sobre déficit público e apresenta um modelo alternativo de análise macroeconômica dos efeitos do déficit público enfatizando sua composição interna entre juros e gastos reais.

PALAVRAS-CHAVE:
Déficit público; juros da dívida

ABSTRACT

Starting from this hypothesis this paper criticizes the conventional theory about the public deficit and presents an alternative model of macroeconomic analysis of the effects of the public deficit emphasizing its internal composition between interests and real expenditures.

KEYWORDS:
Public debt; debt interest

Um aumento do déficit público terá um maior ou menor impacto sobre a demanda agregada dependendo da sua origem real ou financeira. Um aumento dos juros pagos pelo setor público terá um efeito muito diverso no plano macroeconômico do que um aumento das compras de bens e serviços por parte do governo.

A partir desta hipótese básica, este artigo visa fazer uma crítica à teoria convencional sobre o déficit público adotada nos livros-textos de economia, e apresentar um modelo alternativo de análise macroeconômica dos efeitos da magnitude do déficit público focalizando a sua composição interna entre juros e gastos reais.

Dividimos este artigo em seis seções. Na primeira, fazemos uma breve apresentação da teoria convencional ou neoclássica do déficit público. Na segunda, é feita uma referência à crítica keynesiana, admitida a convivência de déficit público e desemprego. Na terceira, introduzimos a distinção entre a parcela financeira e a não-financeira do déficit público e adiantamos a hipótese geral do artigo: o impacto da política fiscal sobre a demanda agregada depende da composição financeira/não-financeira do déficit público. Na quarta, formalizamos essa hipótese em termos de um modelo, que permite avaliar ao nível de política econômica o trade-off entre a magnitude, composição e financiamento do déficit público. Na quinta, o modelo é ilustrado com o que ocorreu no Brasil no período de 1984 a 1986. Finalmente, na sexta, procede-se à abertura do modelo para o exterior e procura-se analisar brevemente, primeiro, as consequências de um aumento do déficit público causado por elevação de juros internacionais e, segundo, a mudança necessária de padrão de financiamento desse déficit, com o aumento explosivo da dívida interna, quando o país obtém um superávit em sua balança comercial que dispensa e mesmo inviabiliza a obtenção de empréstimos internacionais adicionais. Novamente o caso brasileiro é usado como ilustração.

1.

Em uma economia aberta e com governo, o equilíbrio macroeconômico, definido como uma situação em que a oferta agregada é igual à demanda agregada, pode ser representado por:

Y s = Y d (1)

ou

Y s = C + I + G + X - Z (2)

ou

T - G = I - S + X - Z (3)

onde Ys é a oferta agregada, yd a demanda agregada, C o consumo privado, I o investimento (efetivo) privado, S a poupança privada, X as exportações, Z as importações de mercadorias e serviços, inclusive juros remetidos ao exterior, T a receita operacional do setor público excluídos os empréstimos, e G os gastos governamentais, inclusive juros da dívida interna e das empresas estatais.

A equação (1) declara simplesmente que, em equilíbrio, a oferta agregada é igual à demanda agregada. A equação (2) decompõe a demanda agregada em uma parcela correspondente à demanda interna (C+I+G), convencionalmente chamada de absorção e em outra referente ao saldo em conta corrente da balança de pagamentos. Segundo os livros-textos de economia, a história que esta equação nos pretende contar é que, se o país estiver absorvendo mais recursos do que produz, estará, então, incorrendo em déficit externo. Inversamente, se gastar menos do que produz, haverá superávit externo.

A equação (3) permite uma outra perspectiva da equação (2), destacando o orçamento do setor público. Esta equação mostra que, se o governo apresentar um déficit orçamentário, haverá, em contrapartida, um déficit externo ou um excesso de poupança privada sobre investimento privado.

A razão para repetirmos todo esse formalismo já bastante discutido na literatura econômica convencional é destacar um ponto amplamente aceito, mas frequentemente ignorado. Todas essas expressões são ou deveriam ser meras identidades desprovidas de qualquer conteúdo comportamental. Como identidades, elas expressam relações entre o setor privado, o setor público e o setor externo, que são verdades por definição e não hipóteses sobre o comportamento coletivo dos agentes econômicos dentro desses setores. Em uma economia fechada, por exemplo, a equação (3) mostra apenas que um déficit governamental tem como contrapartida um excesso de poupança sobre investimentos no setor privado. Esta simples relação não permite, no entanto, sustentar que os agentes econômicos privados, através de seu esforço de poupança e investimento, neutralizam completamente as mudanças no déficit fiscal. Dessa forma, embora as equações acima destaquem a existência de relações macroeconômicas importantes, elas não podem ser por demais enfatizadas.

A visão neoclássica em suas versões mais extremadas constantemente exagera a importância dessa relação entre déficit governamental e decisões de poupança e investimento no setor privado. A versão inicial que constitui a base para uma “teoria de déficit público” centra-se nas formas de financiamento do déficit e na faixa de emprego em que opera a economia. O argumento é exposto de forma simplificada a seguir.

Um acréscimo nos gastos do governo aumenta a demanda efetiva. Mas, partindo-se de um orçamento equilibrado, um aumento de gastos do governo irá gerar um déficit a ser financiado por emissão de moeda ou pela colocação de títulos junto ao público.

Consideremos, primeiramente, o caso em que o déficit é financiado por títulos. No mercado de bens, o aumento do estoque de títulos deverá gerar um aumento adicional na demanda efetiva se o efeito riqueza sobre a função consumo é levado em consideração. (No diagrama convencional IS desloca-se para a direita.) No mercado monetário, o aumento no estoque de títulos em poder do público irá resultar numa expansão da demanda por moeda, já que se assume ser esta positivamente associada ao efeito riqueza. Como o estoque de moeda não muda, o excesso de demanda por moeda implicará maiores taxas de juros, a qualquer nível de renda, para que o equilíbrio no mercado monetário seja novamente alcançado. Ao longo do tempo isto significa que LM gradualmente se move para a esquerda, reduzindo o nível de equilíbrio da renda. Se a elasticidade-riqueza da demanda por moeda for alta, pode-se argumentar que o deslocamento da curva LM será de tal magnitude que o efeito inicial dos gastos do governo sobre a renda de equilíbrio ficará neutralizado pela geração de um excesso de poupança sobre o investimento no setor privado. Em síntese, o déficit governamental, se financiado por títulos, terá seu impacto sobre a demanda agregada neutralizado por um aumento da taxa de juros e a consequente redução dos investimentos privados.

Uma dinâmica um pouco diferente, mas com os mesmos resultados finais, será desencadeada se o déficit for financiado pela emissão de moeda. No mercado de bens, os deslocamentos serão os mesmos descritos acima. No mercado monetário, supõe-se que a elasticidade-riqueza da demanda por moeda é menor do que a unidade. Neste caso, a demanda por moeda deverá aumentar, porém, menos que proporcionalmente ao aumento na oferta de moeda que será necessário para financiar o déficit. Isto significa uma redução na taxa de juros de equilíbrio para qualquer nível de renda provocando, assim, uma expansão na demanda efetiva. Supondo-se que a economia esteja operando na faixa do pleno emprego, esse aumento da demanda efetiva desencadeará um processo de aceleração inflacionária, que acabará reduzindo a oferta real de moeda. Dessa forma, o equilíbrio macroeconômico será restabelecido através de um aumento das taxas de juros que reduzem o investimento privado, de tal forma a neutralizar o impacto inicial do aumento do déficit público.

Uma versão desta teoria mais atual, mas não menos extremada, é conhecida como Teorema da Equivalência Ricardo-Barro (1974Barro, R., (1974) “Are Government Bonds Net Wealth?”, Journal of Political Economy.). O argumento que se sustenta na hipótese das expectativas racionais mantém o sabor das conclusões anteriores. Se os agentes econômicos são racionais, eles percebem que um aumento do déficit público financiado por títulos deve implicar um aumento futuro de impostos para cobrir tanto o pagamento dos juros como também o principal. Nessas circunstâncias, eles deverão antecipar-se a tal diferimento de imposto aumentando o esforço presente de poupança na medida necessária para comprar novos títulos. Em outras palavras, o setor privado considera a compra de títulos públicos como um simples diferimento no pagamento de impostos, e não como um aumento real de riqueza. Mesmo que o diferimento se estenda a gerações futuras, os títulos públicos não serão percebidos como aumento de riqueza, já que os agentes econômicos racionais consideram o valor presente dos impostos descontado pela taxa de juros dos títulos públicos. A implicação deste raciocínio é óbvia. Se o aumento no estoque de títulos não é percebido pelo setor privado como um aumento de riqueza, o consumo agregado e, consequentemente, a demanda agregada permanecem inalterados. O déficit governamental absorve a poupança privada de tal forma que a propensão média a poupar não é afetada pela política fiscal. Em síntese, as expectativas racionais dos agentes econômicos neutralizam qualquer efeito macroeconômico do déficit governamental financiado por títulos públicos.

2.

Essas teorias de déficit público merecem qualificações. Retomemos o argumento inicial de que o déficit público, se financiado através da colocação de títulos junto ao setor privado, teria seu impacto neutralizado pelo aumento da taxa de juros provocado pela expansão da demanda por moeda. Não resta dúvida de que uma elevação da taxa de juros funciona como estímulo para os agentes econômicos aumentarem seu estoque de títulos públicos, deslocando, assim, a poupança disponível no setor privado para financiar o déficit governamental. No entanto, nada leva a crer que a taxa de juros aumentará o suficiente para reduzir os investimentos privados na mesma proporção do aumento do déficit público. Este argumento só se sustenta mediante a suposição de que o aumento do estoque de títulos em poder do público provoca uma expansão da demanda por moeda. A fragilidade dessa hipótese é óbvia. Afinal, como assinala Tobin, “o aumento da taxa de juros induz os indivíduos a segurar mais riqueza na forma de títulos, mas por que eles deveriam também demandar mais moeda?” (1985Tobin, J., “Budget Deficits, Federal Debt, and Inflation”, in Toward a Restructuring of Federal Budgeting, 1985., p. 138). Em outras palavras, as razões pelas quais a demanda por moeda se expande rapidamente quando a taxa de juros cresce e a renda mantém-se inalterada não são óbvias, nem certamente triviais.

Se abandonarmos a hipótese de pleno emprego, o argumento de que o aumento do déficit público, se financiado por emissão monetária, esgota-se em um processo inflacionário, perde também a consistência teórica. Se a economia estiver operando com capacidade ociosa devido a uma insuficiência de demanda efetiva, o aumento do déficit público não terá como contraparte a redução do investimento privado, mas corresponderá através do mecanismo multiplicador keynesiano a um aumento da renda e da poupança. Nesses termos, o déficit público não implicará crowding-out, já que o crescimento da poupança atenuará a elevação da taxa de juros. Não repercutirá, também, em pressões inflacionárias de demanda, já que existe espaço para aumento da produção e do emprego.

Esta mesma linha de raciocínio permite, também, questionar o argumento sobre déficit público associado à hipótese das expectativas racionais. Se a economia estiver operando abaixo da faixa de plena capacidade, o reemprego dos fatores de produção, através do mecanismo do multiplicador keynesiano, deverá também aumentar não apenas a renda presente, mas também o fluxo de renda esperada dos agentes econômicos. O valor presente do fluxo de renda aumenta, portanto, mesmo se os indivíduos esperam ter, eventualmente, de cobrir o aumento do déficit público através de um crescimento no pagamento futuro dos impostos. Dessa forma, o aumento do déficit público deve estimular o consumo corrente e, consequentemente, o aumento da renda e da poupança, se a economia estiver operando com capacidade ociosa. Com o aumento da poupança, o financiamento do déficit não implicará o crowding-out do investimento privado, mesmo que o comportamento dos agentes econômicos seja consistente com a hipótese das expectativas racionais.

3.

Em uma economia operando com capacidade ociosa e taxa de inflação estável ou inercial, o crowding-out dos investimentos privados está menos associado às expectativas racionais dos agentes econômicos e mais à interação entre a composição e a forma de financiamento do déficit público. O argumento requer a separação do déficit público real em uma parcela não-financeira referente à diferença entre a receita e os gastos em custeio, subsídios e investimentos e em uma parcela financeira referente exclusivamente ao pagamento dos serviços da dívida pública contraída no passado.

A teoria econômica convencional concentra-se sobre o inquestionável impacto do déficit não-financeiro na demanda agregada. Como ensinam os livros-textos, um aumento nos gastos públicos de custeio, investimentos ou subsídios cria, necessariamente, um excesso de demanda por bens e serviços, estimulando a expansão da produção e do emprego. Mesmo no caso em que o aumento do déficit público é financiado por títulos, a própria reativação da economia permitirá um aumento da massa de salários e dos lucros no setor privado. Este acréscimo na renda dos trabalhadores e das empresas significará um aumento não apenas no consumo, mas também nos impostos pagos e na poupança financeira disponível para a compra de títulos públicos e empréstimos ao governo. Dessa forma, torna-se possível o restabelecimento do equilíbrio macroeconômico sem o crowding-out total dos investimentos privados.

Se, no entanto, o déficit tem natureza eminentemente financeira, ou seja, está associado ao pagamento dos serviços da dívida pública, o caráter expansionista da política fiscal perde a nitidez. O pagamento de juros pelo setor público não representa uma despesa corrente, não significa que o governo esteja comprando bens e serviços adicionais. A despesa real foi realizada por ocasião do financiamento inicial. O pagamento de juros transforma-se em uma transferência de renda sem efeito direto sobre a demanda. Neste caso, a expansão da demanda agregada, associada ao déficit público, fica restrita ao efeito sobre o consumo e investimento do recebimento de juros pelos agentes privados detentores da dívida pública. É, no entanto, pouco provável que os gastos com consumo sejam substancialmente alterados em face de flutuações de renda decorrentes do fluxo de serviços da dívida pública. Uma justificativa teórica para esta suposição é que as decisões sobre o consumo estão menos associadas à renda corrente do que à expectativa de renda (salarial) permanente e ao estoque de riqueza. Com relação aos investimentos, é conveniente lembrar que, particularmente no Brasil, os principais detentores da dívida pública não são pequenos aplicadores individuais, mas sim grandes empresas. No caso de pequenos aplicadores, é até possível que o recebimento de juros quando incorporado à expectativa de renda permanente acabe estimulando o consumo. Já no caso das grandes empresas, um aumento dos juros deve alterar seus portfolios através de um aumento das aplicações em títulos públicos e de uma diminuição da parcela do capital físico. A despoupança financeira do governo deve, assim, estar associada a uma redução no nível de atividade e investimento no setor privado e, consequentemente, a uma contração e não expansão da demanda agregada.

Os argumentos acima justificam a hipótese básica que fundamenta a análise apresentada a seguir: o impacto da política fiscal sobre a demanda agregada depende da composição (financeira/não-financeira) do déficit público. Nessas circunstâncias, considere uma situação inicial em que tanto as contas do setor privado como o orçamento do governo estejam em equilíbrio. Assuma que um aumento da taxa de juros eleve o pagamento dos serviços sobre o estoque de uma dívida pública contraída no passado. O resultado será um desequilíbrio no orçamento do governo, mediante o aparecimento de um déficit de natureza eminentemente financeira. Como a economia é fechada, ou seja, não existe a possibilidade de obtenção de recursos externos, o setor público é forçado a voltar-se para o mercado doméstico de crédito para cobrir sua necessidade adicional de financiamento. Isso tende a pressionar a taxa de juros acima da taxa de retorno do capital físico para estimular as empresas a desviar a aplicação do fluxo de serviços da dívida, da produção para os ativos financeiros (títulos públicos). Dessa forma, o aumento do déficit público terá como contraparte um acréscimo do passivo financeiro do governo junto ao setor privado, que inibe o caráter aparentemente expansionista da política fiscal.

A recente experiência brasileira de ajustamento ilustra o argumento. Entre 1982 e 1984, a política consistiu em uma redução dos gastos públicos e um aumento da receita tributária de tal ordem que o déficit não-financeiro foi praticamente zerado em 1984. Apesar disso, o déficit financeiro não cedia porque o serviço da dívida aumentava com a elevação das taxas de juros, que promovia a alavancagem dos recursos privados para o setor público. Dessa forma, a necessidade de rolagem de uma dívida interna que atingia 20% do PIB aumentava o fluxo de serviços pagos pelo governo, alimentando o déficit financeiro e inibindo a recuperação da atividade privada.

Nessas· condições, em uma economia em recessão, reduzir o déficit público se torna uma tarefa contraditória. De um lado, é necessário aumentar a despesa pública de custeio e investimento para estimular a economia deprimida. De outro, é preciso reduzir o déficit não-financeiro para atenuar o crowding-out, ou seja, para lograr uma redução da taxa de juros que viabilize a retomada dos investimentos privados.

Este era o dilema que a economia brasileira enfrentava no final de 1984 e que tornava atraente uma política monetária mais frouxa do que a que vinha sendo praticada pelo governo. A queda das taxas de juros através de uma monetização do déficit permite uma redução dos encargos financeiros, que abre espaço para um aumento simultâneo no investimento privado e nos gastos públicos. Essa é, no entanto, uma estratégia de risco. Uma mudança na composição interna do déficit, associada a uma alteração no mix de financiamento, pode tornar a política fiscal inusitadamente expansionista. Esse tipo de interação que se apresenta ao nível de política econômica entre a magnitude, composição e financiamento do déficit público pode ser melhor discutido com auxílio de um modelo simples, apresentado a seguir.

4.

O modelo retém a estrutura teórica convencional com mercado de bens e mercado monetário, mas é elaborado de forma a destacar as interações entre déficit público e demanda agregada. Os instrumentos de política econômica são o déficit público e sua forma de financiamento. Quanto ao primeiro, o governo determina não apenas sua magnitude como também sua composição interna, que é definida pelo parâmetro

α = F N + F (1)

onde N é a parcela não-financeira do déficit público e F é a parcela referente aos encargos financeiros.

O déficit público, D, é integralmente financiado por moeda e/ou títulos, de tal forma que em um determinado período

D = Δ M + Δ B (2)

onde ∆M é o acréscimo no estoque de moeda e ∆B é o acréscimo no estoque de títulos, ou seja, da dívida pública em poder do setor privado.

O mix de financiamento do déficit público entre moeda e títulos, que é um indicador da direção da política monetária, é dado por

δ = Δ B Δ B + Δ M (3)

A taxa de juros real (r) que prevalece no mercado de crédito é determinada pela magnitude de déficit público e pela renda real (Y).

r = δ D + β Y (4)

O impacto do déficit sobre a taxa de juros será mediado pelo mix de financiamento (δ) escolhido pelo governo. Um aumento em δ, que significa um aumento da fração do déficit coberta por títulos, deve provocar uma elevação da taxa de juros e vice-versa. Por outro lado, um aumento da renda real eleva a taxa de juros e uma queda a reduz.

A renda real é determinada pela magnitude do déficit público e pela taxa de juros real

Y = 1 α D - θ (5)

O impacto do déficit público sobre a renda será mediado pela composição interna do déficit (α). Mantém-se aqui a hipótese de que um aumento em a, ou seja, na parcela financeira do déficit, tende a reduzir o impacto expansionista da política fiscal. A relação entre a renda e a taxa de juros é inversa.

O processo de determinação do equilíbrio do sistema é apresentado na Figura 1. No quadrante inferior direito é traçada a reta dd (equação (5) para um dado valor de r), cuja inclinação α0 corresponde a uma determinada composição do déficit público. No quadrante inferior esquerdo, tem-se uma reta de 45° que serve como referência para transcrever qualquer magnitude do déficit público do eixo vertical para o eixo horizontal. No quadrante superior esquerdo é traçada a reta tt (equação (4) para um dado valor de Y), cuja inclinação δ0 corresponde a um determinado mix de financiamento do déficit.

Figura 01

Dada a composição do déficit, α0, e o mix de financiamento, δ0, para diferentes magnitudes do déficit, obtêm-se diferentes pares de equilíbrio da renda e da taxa de juros que compõe a linha AA no quadrante superior direito. Dessa forma, a linha AA mostra a trajetória de equilíbrio da renda real e da taxa de juros (mercado de bens e mercado monetário) decorrente de mudanças no déficit público, mantidos a composição (α0) e o mix de financiamento δ0, constantes.

O modelo descrito permite examinar ao nível de política econômica o trade-off entre magnitude, composição e financiamento do déficit público no processo de ajustamento econômico. Considere, por um momento, que o déficit público é mantido inalterado em D0. Existe, então, uma taxa de juros r0 compatível com o nível de renda Y0 (reta AA). Para que esta taxa de juros r0 seja alcançada, o governo deverá definir sua política monetária (δ), de forma consistente com a composição do déficit público (α0). Uma redução na parcela do déficit referente aos encargos financeiros (α01) tende a ampliar o impacto da política fiscal na renda real, a menos que seja compensado por uma política monetária mais firme (δ01). Se isso não ocorrer, a trajetória de equilíbrio desloca-se para baixo da reta AA, indicando que uma redução dos encargos financeiros faz com que déficits fiscais de igual magnitude estejam associados a maiores níveis de renda real e menores taxas de juros no equilíbrio. Alternativamente, uma mudança no mix de financiamento do déficit através de um aumento proporcional na colocação de títulos (δ01), se não for acompanhada por uma alteração compensatória na composição do déficit, deve deslocar a trajetória de equilíbrio para cima de AA.

É, no entanto, necessário considerar-se que mudanças no mix de financiamento (δ) estão intrinsecamente ligadas à composição do déficit (α). Uma política monetária mais firme, por exemplo, está associada a uma elevação das taxas de juros e, consequentemente, a um aumento dos encargos financeiros da dívida. Dessa forma, quando se altera o mix de financiamento através de uma maior colocação de títulos (δ10), acaba-se promovendo um aumento proporcional da parcela financeira (F) do déficit. Se o governo decide, então, aumentar também seus gastos não financeiros (N), de tal forma que a composição do déficit (a) mantém-se inalterada, é possível ter-se uma situação aparentemente contraditória. A economia pode apresentar uma trajetória na qual um rápido crescimento econômico está associado a altas taxas de juros.

5.

Este foi o cenário apresentado pela economia brasileira no início do ano passado. Particularmente a partir de março de 1985, o governo afrouxou a política fiscal, ao mesmo tempo que apertava a política monetária. O déficit fiscal, pressionado pelo congelamento das tarifas e pelo aumento dos gastos de custeio, salta de 2,7% em 1984 para 4,3% em 1985, voltando, assim, a contribuir para o crescimento acelerado da demanda agregada. O consequente aumento da taxa de retorno do capital físico estimulava as empresas que eram poupadoras líquidas a desmobilizarem parcialmente suas aplicações financeiras para financiar o capital de giro. Essa redução na disponibilidade de recursos para a rolagem da dívida era acentuada por uma política monetária apertada. Como as aplicações financeiras e o capital físico são substitutos no portfolio das empresas, as colocações adicionais de títulos causavam um excesso de oferta desses ativos e, por isso, uma queda de seus preços, o que implicava um aumento da taxa de retorno requerida para sustentar o ritmo da acumulação de capital. O aumento já alcançado na taxa de retorno viabilizava, no entanto, a elevação da taxa de juros sem prejuízo para o crescimento da produção. Dessa forma, o setor privado se beneficiava duplamente, ou seja, tanto pelo aumento da taxa de retorno como pelo aumento da taxa de juros, já que continuava sendo o grande detentor da dívida pública. Essa dupla vantagem permite a compatibilização temporária de uma rápida expansão industrial com taxas de juros ascendentes.

Nessas circunstâncias, não raramente torna-se atraente adotar uma política monetária mais frouxa, que permita uma redução do fluxo de serviços da dívida. Como dissemos anteriormente, essa é, no entanto, uma estratégia discutível, já que para ser eficiente a redução nos encargos financeiros deve ser integralmente refletida em uma contração do déficit público. A razão é simples: se o déficit público permanece constante, mas altera-se a sua composição através de uma redução dos encargos financeiros (α01), a política fiscal, embora à primeira vista aparente ser neutra, será, na verdade, fortemente expansionista. Essa situação ilustra o que vem ocorrendo atualmente no Brasil.

Entre 1985 e 1986, o déficit público (NFSP) foi mantido praticamente constante, em torno de 4,0% do PIB. A partir de setembro de 1985, e mais particularmente após o Plano Cruzado, a monetização do déficit público permitiu uma substancial redução nos encargos financeiros associados à dívida pública. Essa redução foi, no entanto, compensada por um aumento nos gastos públicos, o que significou uma substancial alteração na composição interna do déficit. Dessa forma, embora a magnitude do déficit tenha permanecido praticamente constante, a combinação de uma mudança tanto na composição (α01) como no mix de financiamento (δ01) tornou a política econômica fortemente expansionista. No curto prazo, enquanto a economia tem capacidade ociosa, esta estratégia pode ser sustentada. Esgotada a capacidade instalada, a manutenção do déficit deve refletir-se em uma redução do superávit externo ou do dispêndio privado. Se a restrição externa é para ser preservada, será necessário reduzir o déficit público através de um corte nos gastos não-financeiros. Ou, alternativamente, deve-se alterar o mix de financiamento (δ01), retornando a uma política monetária apertada que eleve a taxa de juros para comprimir o dispêndio na proporção necessária para neutralizar o impacto da mudança inicial na composição do déficit sobre a demanda agregada.

6.

Essas interações entre déficit público e demanda agregada, embora ganhem uma maior complexidade, não se alteram substancialmente quando a parcela financeira do déficit decorre do pagamento dos serviços da dívida externa. Considere uma economia aberta em uma situação inicial de equilíbrio interno e externo. Assuma que uma elevação da taxa de juros aumente o pagamento dos serviços referentes a uma dívida pública externa contraída no passado. O resultado será um desequilíbrio em conta corrente, que terá como contraparte o aparecimento de um déficit nas contas do setor público.

Do ponto de vista de um período analítico, a simples emergência desse desequilíbrio orçamentário será descaracterizada de qualquer impacto imediato sobre a demanda agregada. Por um lado, o déficit será essencialmente contábil, não representando, portanto, qualquer pressão adicional sobre a demanda de bens e serviços. Por outro, não deve implicar crowding out do setor privado, já que não existe a possibilidade de o setor público voltar-se para o mercado doméstico de crédito para cobrir suas necessidades adicionais de recursos financeiros. Isso porque, do ponto de vista do fluxo de pagamento externo, tais recursos só poderão ser efetivamente obtidos através de novos empréstimos junto aos credores internacionais, ou pela utilização de reservas cambiais.

O restabelecimento do equilíbrio macroeconômico deverá, no entanto, atender à restrição externa, assim como à restrição orçamentária interna. Isso equivale dizer que na ausência de financiamentos externos adicionais (“dinheiro novo”), mantidas as reservas cambiais, o pagamento de juros externos envolve tanto a necessidade da geração de um superávit comercial como também a alocação entre setor público e setor privado do esforço adicional de poupança necessário para financiar as transferências de recursos ao exterior.

Segue que o pagamento dos serviços da dívida externa não pressupõe necessariamente o equilíbrio orçamentário do setor público. É possível compatibilizar-se a existência de déficit público com equilíbrio (ou mesmo superávit) em transações correntes, desde que haja excesso de poupança no setor privado. Do lado externo, esse excesso de poupança privada corresponderá ao superávit comercial necessário ao pagamento dos juros externos de responsabilidade do setor privado, como também dos juros referentes à dívida externa do setor público. Do lado interno, esse excesso de poupança privada terá como contrapartida um desequilíbrio orçamentário do setor público, que se concretiza através de um aumento da parcela financeira do déficit.

No momento em que o país logra obter um superávit comercial torna-se, assim, possível ao setor público trocar o pagamento dos serviços da dívida externa por um déficit financeiro passível de financiamento no mercado doméstico de crédito. Neste contexto, não há muita originalidade em antever-se a conclusão: o aumento do déficit público associado ao pagamento dos juros externos cobertos por um aumento do superávit comercial terá como contraparte um acréscimo do passivo financeiro do governo junto ao setor privado, que inibe o caráter aparentemente expansionista da política fiscal.

No Brasil, durante os anos de 1984 e 1985, ocorreu um processo muito semelhante ao que estamos descrevendo. Não ocorreu um aumento do déficit público associado ao pagamento de juros externos, mas ficou claro que uma parte considerável desse déficit era causada pelo pagamento de juros. Por outro lado, o país obteve, afinal, um superávit comercial que o dispensou da obtenção de novos empréstimos e lhe permitiu mesmo um certo aumento das reservas internacionais. O déficit público, por sua vez, cresceu, provocando a expansão de demanda já analisada. A partir do momento, entretanto, em que esse déficit já não podia ser mais financiado por novos empréstimos internacionais, a dívida pública interna passou a crescer de forma preocupante. Só com a edição do Plano Cruzado, que permitiu a monetização da economia, foi possível interromper esse crescimento explosivo da dívida pública interna, o qual, à medida que a economia, no segundo semestre de 1986, se aproximava da faixa de pleno emprego, ameaçava provocar, afinal, o crowding out dos investimentos privados.

Cabe, finalmente, observar que, da mesma forma que no modelo fechado o déficit público decorrente de despesas financeiras não significa pressão sobre a demanda agregada, no modelo aberto o déficit em conta corrente derivado do pagamento de juros não significa, ao contrário do que pretende a teoria convencional do déficit público, que “o país esteja gastando mais do que produz” e que a demanda agregada seja excessiva. Como o pagamento de juros não significa despesa corrente em bens e serviços reais, é perfeitamente possível - como, aliás, ocorreu no Brasil até 1984 - que o déficit em conta corrente e o déficit público sejam compatíveis com desemprego e capacidade ociosa. A existência do déficit em conta corrente decorrente de juros pagos ao exterior significa apenas que os financiamentos anteriormente conseguidos não resultaram (ainda) em aumento de exportações ou em substituição de importações geradoras de um superávit comercial que permitisse o pagamento do serviço da dívida.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

  • Barro, R., (1974) “Are Government Bonds Net Wealth?”, Journal of Political Economy.
  • Tobin, J., “Budget Deficits, Federal Debt, and Inflation”, in Toward a Restructuring of Federal Budgeting, 1985.
  • 1
    JEL Classification: H62; H68.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1987
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