Open-access A economia política da violência e da morte

The political economy of violence and death

La economía política de la violencia y la muerte

Resumo

O artigo a seguir busca elucidar o conceito de “economia-política da violência e da morte”, que propomos como uma definição possível de fascismo. Trabalhamos com este conceito pela primeira vez no livro A Vingança dos Capatazes. O bolsonarismo como Fascismo (Guéron, 2022). Pretendemos mostrar como a filosofia política de Felix Guattari, sobretudo depois do seu encontro com Gilles Deleuze, foi decisiva para chegarmos a este conceito, isto é, para definirmos isso que compreendemos como um fluxo de violência e morte típico da máquina social capitalista. Violência e Morte que circula de forma imanente, tanto como forma-mercadoria -- como uma forma hiper eficaz de produção de mais valia e lucro, quanto como uma intensa, e atraente economia libidinal.

Palavras-chave Economia-política; Violência e morte; Fascismo; Desejo; Capitalismo.

Abstract

The following article seeks to elucidate the concept of “political economy of violence and death”, which we propose as a possible definition of fascism. We worked with this concept for the first time in the book The Revenge of the Foremen. Bolsonarism as fascism (Guéron, 2022). We intend to show how the political philosophy of Felix Guattari, especially after his meeting with Gilles Deleuze, was decisive for us to arrive at this concept, that is, for us to define what we understand as a flow of violence and death typical of the capitalist social machine; violence and death that immanently circulates, both as a commodity form -- as an effective form of surplus value and profit production, and as an intense and attractive libidinal economy.

Keywords: Political economy; Violence and death; Fascism; Desire; Capitalism.

Resumen

El siguiente artículo busca dilucidar el concepto de “economía política de la violencia y la muerte”, que proponemos como posible definición del fascismo. Trabajamos con este concepto por primera vez en el libro La venganza de los capataces. El bolsonarismo como fascismo (Guéron, 2022). Pretendemos mostrar cómo la filosofía política de Félix Guattari, especialmente después de su encuentro con Gilles Deleuze, fue decisiva para que llegáramos a este concepto, es decir, a definir lo que entendemos como un flujo de violencia y muerte propio de la maquina social capitalista; violencia y muerte que circulan inmanentemente, tanto como una forma de mercancía, como una forma hipereficaz de producir plusvalía y ganancia, y como una economía libidinal intensa y atractiva.

Palabras clave Economía política; Violencia y muerte; Fascismo; Deseo; Capitalismo.

Introdução

Este texto pretende investigar mais a fundo um conceito por nós proposto em um livro no qual articulamos bolsonarismo e fascismo (Guéron, 2022). O conceito vem a ser “economia-política da violência e da morte”, que é o modo como definimos o fascismo a partir da forma como compreendemos a relação entre capitalismo e fascismo. O objetivo deste artigo, no entanto, é chegar até ao conceito propriamente dito, revelando sobretudo como o pensamento de Guattari e Deleuze nos ajudou a formulá-lo. E, embora acreditemos que a definição de economia-política da violência e da morte já cumpre um percurso importante para a definição de fascismo, posto que sinteticamente é assim que o designamos, um debate mais analítico sobre o conceito de fascismo, articulado com as definições e as manifestações históricas deste fenômeno, ficará para uma próxima oportunidade.

Buscamos, portanto, ganhar um distanciamento de um conceito que apareceu em uma reflexão escrita no calor dos acontecimentos, quando fomos impelidos pelas circunstâncias a colocar o nosso trabalho de pesquisador em filosofia em função da compreensão do fenômeno do bolsonarismo1. É nesse relativo distanciamento que se tornou para nós mais evidente o modo como o pensamento de Guattari, a sua atuação clínica e política, e especialmente o que ele construiu a partir de seu encontro com Deleuze, foi decisivo para a chegarmos ao conceito de economia-política da violência e da morte. Este não é, pois, um texto para esclarecer com detalhes o pensamento de Guattari e Deleuze sobre o fascismo, ainda que acreditemos que o leitor encontrará aqui caminhos e referências neste sentido. Finalmente, escolhemos, de maneira um pouco incomum, se referir aos dois autores na ordem inversa na qual comumente eles são mencionados juntos, ou seja, colocando Guattari em primeiro lugar. Não se trata de considerar Guattari “mais importante”, e sim de ressaltar o que ele traz no encontro com Deleuze; um encontro que define, segundo este último, a sua “passagem para a política” (Deleuze, 2008, p. 210).

Assim, a primeira coisa a ser examinada deverá ser o que, em Guattari e Deleuze, nos permitiu ao mesmo tempo aprofundar e ampliar a compreensão de “economia-política”, para, a partir deste movimento, detectar a existência, na formação social capitalista, de um tipo de economia-política que é a da “violência e da morte”. Não estamos dizendo que toda a economia-política na máquina capitalista tem esta característica, mas que é inevitável que um fluxo neste sentido se forme no coração desta máquina, podendo ter diferentes gradações de intensidade e adquirir mais ou menos organicidade, dependendo das contingências.

Nosso primeiro movimento será o de examinar como podemos falar em “economia-política” para além do campo de conhecimento que surge como expressão do próprio surgimento do capitalismo e que foi duramente criticado por Marx, mesmo que ele tenha se apropriado e redefinido alguns dos conceitos da “economia-política clássica”: o “liberalismo econômico” que tem Adam Smith e David Ricardo como referências. Essa crítica de Marx é também, acreditamos, uma demanda pela elaboração de uma “outra economia-política” a partir do modo como ele se empenha em desmistificar o liberalismo em sua gênese, mostrando, entre outros aspectos, como este mistifica o próprio Capital como uma suposta origem de toda a produção. Aqui, no entanto, não se trata apenas buscar uma crítica a esse campo do conhecimento, mas sobretudo de entender a economia-política, uma vez concebida de outra forma, como o modo mesmo de funcionamento das máquinas sociais.

I - A ampliação da definição de economia-política

Dois aspectos da filosofia política de Guattari e Deleuze foram decisivos na ampliação da definição de economia-política que propomos. O primeiro está relacionado à hipótese etnológica na maneira como é apresentada no Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia. Quando falamos em hipótese etnológica, estamos nos referindo ao modo como eles compreendem e descrevem a gênese do que chamam de socius, ou de máquina social. As formações sociais teriam a sua gênese, segundo Deleuze e Guattari, em um processo de “codificação dos fluxos do desejo”. Codificar o desejo seria assim o “próprio do socius” (Deleuze; Guattari, 2010, p. 185). É intimamente relacionado a esta hipótese, que Guattari e Deleuze afirmam a existência uma economia no início, libidinal e desejante, e que esta não é menos, por isso, uma economia-política (idem, 2010, p. 504). Trata-se de uma afirmação que de certa forma evoca Freud2, mas que é desenvolvida com críticas a alguns dos principais fundamentos da psicanálise.

O segundo aspecto, profundamente relacionado ao primeiro, volta a ter o desejo como um fator central e surge exatamente no coração da crítica que Guattari e Deleuze dirigem à psicanálise. Estamos falando da afirmação, feita por ambos, de que o desejo remete diretamente ao socius e que funciona colado a máquina social (idem, 2010, p. 36). Esta afirmação surge para se opor à existência de uma estrutura psíquica a priori, que funcionaria como uma instância intermediária entre o desejo e a máquina social, rechaçando a particularidade desta estrutura segundo Freud, isto é, o triângulo familiar edipiano papai-mamãe-eu. Para os dois autores, o desejo funciona, então, sem nenhuma estrutura intermediária entre ele é o socius; ao contrário disso, ele operaria de maneira imanente à operação da própria máquina social, ainda que esta operação se distinga de acordo com os diferentes tipos de formações sociais.

I.1 - A oposição a Édipo

É exatamente o aspecto político chave que está nesta última afirmação que ajuda a dar amplitude à afirmação da existência de uma economia libidinal no início afirmada pelos dois autores. A oposição a Édipo como uma oposição à suposta existência de uma estrutura a priori do desejo é, segundo eles, uma oposição à estrutura familiar típica da formação social capitalista.

Neste ponto, a relação que Guattari e Deleuze desenvolvem com Marx começa a aparecer como decisiva para a compreensão de “economia-política” que propomos. Sabemos que Guattari é frequentemente um crítico agudo de certos aspectos do marxismo e das organizações que a partir dele se edificaram. Atuando em muitas destas organizações, ele sempre procurou colocar as questões políticas do ponto de vista do desejo, compreendendo o funcionamento deste a partir de uma intensidade dada - e não a partir de uma falta que lhe seria constitutiva - engendrando esta concepção naquilo que em Marx aparece como “produção”. Nesse sentido, a operação de expropriação, acumulação e produção de mais-valia descritas por Marx em sua crítica ao capitalismo era, para Guattari, uma operação expropriação e acumulo libidinal, ou seja, a produção de mais-valia que caracteriza o capital agiria fundamentalmente sobre o desejo.

É evidente, no entanto, que Guattari, pela sua militância anticapitalista, tem desde sempre um importante componente marxista. Esta sua forte e singular interseção com Marx será aprofundada no seu encontro com Deleuze para construir a crítica que os dois autores fazem à psicanálise, ainda que esta crítica já viesse sendo aprofundada por Guattari antes deste encontro, através de sua militância no campo da saúde mental3. Os dois autores se colocam, então, absolutamente de acordo com Marx quando este afirma que a grande virada feita por Adam Smith e David Ricardo - e, portanto, pela economia-política -- se deu graças a descoberta da essência da riqueza na atividade de produzir: uma descoberta que se manifestou na criação do conceito de trabalho abstrato. Os economistas-políticos ingleses são, pois, pioneiros por terem deixado de considerar a origem objetiva da riqueza, como se fazia até então, e terem afirmado a origem subjetiva desta. Quer dizer, a riqueza não era mais considerada como algo próprio dos bens e dos objetos, como quando se avalia a riqueza de um determinado Estado a partir dos bens que ele tem estocado.

Foi um imenso progresso quando Adam Smith rejeitou toda determinação da atividade criadora de riqueza e considerou tão somente o trabalho: nem o trabalho manufatureiro, nem o trabalho comercial, nem a agricultura, mas todas as atividades sem distinção... a universalidade abstrata da atividade criadora de riqueza. (Marx apudDeleuze; Guattari, 2010, p. 243).

Marx nos mostra, pois, que o conceito de trabalho abstrato não se refere a esta ou aquela atividade produtiva determinada, mas sim à atividade de produzir em geral. Já Guattari e Deleuze afirmam que a descoberta do trabalho abstrato pelos economistas-políticos ingleses equivaleria a descoberta da libido pela psicanálise (Deleuze; Guattari, 2010, p. 398), exatamente porque o conceito de trabalhos abstrato designaria uma atividade de produção em geral como origem de todas as riquezas.

Os dois autores franceses nos mostram, no entanto, que Freud, a exemplo dos economistas-políticos ingleses, também está questionando uma determinada concepção de gênese objetiva da produção quando se opõe à compreensão que a psiquiatria tinha das causas de certas patologias psíquicas. Como sabemos, antes da psicanálise, a origem destas estava sempre em um fator físico, corporal. Quando Freud determina, no entanto, o inconsciente como a origem de determinados comportamentos e mesmo de determinados sintomas relacionados à certas patologias - notadamente a histeria-- ele afirma a origem libidinal e desejante destas. É nesta operação que Deleuze e Guattari destacam que Freud está rechaçando as origens supostamente objetivas das doenças psíquicas - corporais, físicas --, ou pelo menos algumas delas, vendo-as como uma produção que se dá no sujeito. É por isso que os dois autores franceses afirmam que se poderia dizer sobre Freud algo semelhante daquilo que Marx disse sobre os economistas-políticos ingleses, isto é, que este teria descoberto a atividade de produção em geral, o que no austríaco é explicitamente nomeada como libido, e na economia-política, trabalho-abstrato.

Mas Guattari e Deleuze dizem ainda que economia-política e psicanálise sofreram, em suas respectivas concepções, do mesmo problema: da mesma limitação. Eles concordam mais uma vez com Marx quando este diz que a economia-política frustrou logo em seguida o seu importante achado quando, depois de ter afirmado o trabalho abstrato como sinônimo de produção em geral, remeteu toda a produção à propriedade privada - e, portanto, ao Capital - e não mais ao trabalho propriamente dito.

A economia política parte do trabalho considerado como a verdadeira alma da produção, e no entanto ela não dá nada ao trabalho e tudo à propriedade privada (Marx, 1972, p. 88).

O mesmo movimento teria acontecido na psicanálise quando, após afirmar o desejo -- a libido - como força produtiva, amarrou este à estrutura psíquica determinada pelo triângulo edipiano - papai, mamãe, eu --- próprio de uma formação familiar típica do capitalismo: a estrutura da família burguesa propriamente dita. Essa posição assumida conjuntamente pelos autores traz fortemente consigo as práticas, a atuação política e profissional, e consequentemente o pensamento construído por Guattari antes de encontrar Deleuze. É interessante observar como ela opera, em relação à psicanálise, uma espécie de inversão do pensamento de Freud, mas também de Lacan, que pode ser comparada à inversão que Marx propõe em relação a Hegel (Sauvagnargues, 2008). Nessa inversão, a força de Édipo não é de forma alguma ignorada, mas desbancada de um lugar a priori, supostamente constituinte de uma igualmente suposta estrutura psíquica estruturadora do desejo e anterior a relação deste com o socius. Édipo deixa de ser causa e passa a ser consequência, isto é, contingente historicamente a uma determinada máquina social: a capitalista.

Nesse sentido, a afirmação da existência de uma “economia no início, libidinal e desejante” se liberta de suas amarras familistas e psiquistas, vindas da psicanálise, e se torna uma característica constituidora do próprio socius: O desejo é liberado do triângulo edipiano para ser encontrado ali onde ele de fato se efetiva, funciona: junto à máquina social, circulando nela e com ela. É aí que a libido está investida como força produtiva, onde ela se realiza sem que haja qualquer intermediário: “Há tão somente o desejo e o social e nada mais” (Deleuze; Guattari, 2010, p. 36).

Neste movimento, Guattari e Deleuze nos ajudam a ampliar de forma decisiva o conceito de economia-política e a sua compreensão. Afirmamos, então, que os dois autores franceses fazem de um modo muito singular a “crítica da economia-política” que Marx reivindicara em sua obra. Eles esboçam, no entanto, uma concepção desta que é bastante distinta, em muitos aspectos, da demandada pelo filósofo alemão; ainda que, por outro lado, com um forte conteúdo anticapitalista e com a presença notável de pontos chaves da crítica à economia-política inglesa - liberal, capitalista-feita por Marx.

I.2 - A hipótese etnológica

Se fizermos, porém, um levantamento de onde vem esta economia “no início” de Guattari e Deleuze, ainda que a expressão remeta a Freud, vamos chegar à relação que os dois autores estabelecem com o segundo ensaio da Genealogia da Moral de Nietzsche, intitulado Culpa, má consciência e coisas afins (Nietzsche, 2004, p. 47), dando ao filósofo alemão o curioso status de etnólogo. A partir da leitura que fazem deste texto, os dois franceses constroem uma oposição à hipótese predominante na antropologia, notadamente em Levi-Strauss, que compreendia o surgimento das formações sociais a partir da necessidade de troca: o socius fundamentalmente como um meio de troca e circulação de bens. Nietzsche, por sua vez, compreende o surgimento das relações sociais entre os homens a partir de uma relação credor-devedor (idem, p. 53), isto é, a partir de uma dívida. Essa dívida determinaria o surgimento dos laços sociais através da criação de uma memória que seria inscrita no corpo dos seres humanos através das palavras que, por sua vez, surgiriam de um processo de adiamento e interiorização dos instintos. Assim, o surgimento das formações sociais se caracterizaria pela criação daquilo que Nietzsche chamou de uma “memória de palavras”, estando intimamente relacionado ao surgimento da própria linguagem e, mais especificamente, da rede de significantes. É neste processo de inscrição - de criação da memória de palavras, que encontramos algo como uma economia-política em Nietzsche. Esta tem a sua gênese em uma espécie de técnica de criação da memória - “mnemotécnica” (idem, p. 52) - através de castigos que são infringidos aos corpos a partir de equivalências do tipo dano = dor (idem, p. 53): a economia “no início” propriamente dita. Eis o próprio método da inscrição, onde a palavra é inscrita no corpo como lei.

O que Nietzsche chamou de instinto seria, para Guattari e Deleuze, uma intensidade dada, constituinte dos próprios corpos e da matéria em geral, que seria assim articulada à própria libido4. Esta matéria intensa é descrita inicialmente pelos dois autores, naquilo que eles chamam de “primeira síntese do desejo”- a síntese conectiva (Deleuze; Guattari, 2010, p. 18) -- como uma máquina binária de corte e fluxo, equivalendo ao que Freud definiu como processo primário5. Mas seria na segunda síntese do desejo, que esta energia se reverteria no significante, uma vez que se transformaria antes em uma energia de inscrição, num processo que, marcando os corpos, constituiria o que vimos ser acima uma “memória de palavras” e, com ela, uma máquina social. O que se determinaria aí seria a função social a ser exercida por cada indivíduo e/ou grupo social, determinando, a partir da inscrição de uma dívida, as relações sociais a serem estabelecidas. Esta intensidade dada - uma matéria intensiva -- é também entendida por Guattari e Deleuze como fluxo: fluxo de desejo, libido, ou seja, o que a inscrição determina e direciona é exatamente o fluxo desejante. Eis aqui, assim, a hipótese etnológica que os dois autores criam a partir da leitura que fazem de Nietzsche e que pode ser resumida na expressão “codificar os fluxos do desejo”: “o negócio do socius”6. O código inscrito é a memória-palavra-dívida, e a troca social não estaria no início, visto que só poderá acontecer, ou não, nas condições que a dívida estabelecer.

O significante como energia de inscrição é resultado do próprio corte no fluxo do desejo que institui o socius: a máquina social. Ele é a intensidade adiada ou, como diria Lacan, o desejo guardado no tempo7. Mas a sua origem é esta intensidade mesma, que aqui é revertida em uma energia de inscrição. Isso significa que o corte que codifica os corpos - a codificação dos fluxos do desejo, nada tem a ver com algum tipo de grau zero, tal como um estado de repouso absoluto pré-existente; ao contrário, trata-se de uma intensidade que vem de fora do corpo que será por ela inscrito - o corte da segunda síntese, ainda que este corpo só exista porque a matéria intensa também o constitui. E se o corte-inscrição parece operar como uma força de morte - como contra-produção ou improdução - é numa relação entre corpos - entre intensidades -- onde há poder e sujeição no movimento mesmo em que a energia intensa se reverte em energia de inscrição, com toda a violência que aí é infringida para que os fluxos sejam retidos, limitados ou deixados passar em uma orientação determinada. Dito de outra forma: a violência da inscrição pode até se expressar numa experiência de um “grau zero”, mas este não existe enquanto um dado do real - não há “pulsão de morte” em si mesma para Guattari e Deleuze --, e sim uma intensidade que corta os corpos, se inscreve neles, e cria o socius, posto que introduz um elemento de “contra-produção” ou “improdução” - um elemento de morte --na máquina desejante, transformando-a em máquina social.

Eis a economia-política libidinal, desejante “no início”: uma economia-política imanente aos corpos, de ordem afetiva, disciplinando o desejo num regime de equivalências de dores e prazeres, castigos e compensações: codificando-o na palavra-lei.

II - A singularidade da máquina social capitalista.

A descrição acima nos interessa em dois aspectos. O primeiro é a amplitude que ganha aqui a concepção de “economia-política”. Quer dizer, a partir da hipótese antropológica de Guattari e Deleuze acreditamos que podemos chamar de economia-política o modo mesmo de ser de toda e qualquer formação social. Dito de outro modo: os processos de codificação social são sempre, de certa forma, os processos de constituição de uma determinada economia-política. E aqui o que a economia-política tem de libidinal é inseparável da função que ela tem de atribuir valor para determinar os critérios de equivalência das relações sociais: das relações de troca entre seres humanos e bens, intermediadas por dinheiro, ou não. Essa amplitude do sentido de economia-política, que estamos propondo, estabelece também que toda política é necessariamente uma economia-política8.

O segundo aspecto que nos interessa na hipótese antropológica de Guattari e Deleuze é o que mostra a máquina social se constituindo a partir de uma introdução de um elemento de improdução - uma força de morte - no coração da produção intensa da máquina desejante. Este elemento de contraprodução - de morte - vai nos interessar na forma singular como opera e circula no socius capitalista.

Assim, se vimos que os dois autores franceses definem o processo de constituição de um socius - de uma máquina social - como um processo de codificação dos fluxos do desejo, no que se refere especificamente à máquina social capitalista - que também chamam de “máquina capitalista civilizada” - eles vêm uma importante diferença. Para Guattari e Deleuze o capitalismo seria a única formação social que dependeria da descodificação dos fluxos do desejo para existir. Desses fluxos de descodificação dependeria o movimento de expansão infinita do capital e a produção incessante de dinheiro-capital.

O próprio capitalismo teria se formado da conjunção de dois fluxos de descodificação: fluxo de trabalho desterritorializado e desqualificado e fluxo de dinheiro-capital descodificado. Esta conjunção é, na verdade, o modo como Guattari e Deleuze descrevem o processo que Marx descreveu como “acumulação primitiva”. Os dois autores franceses, porém, sob a influência do pensador egípcio Samir Amin (Deleuze; Guattari, 2010, p.308), afirmam que a acumulação primitiva não é apenas o processo que Marx descreveu na origem histórica do capitalismo, mas também um processo que segue sendo imprescindível para que este continue funcionando e se expandindo, isto é, o capitalismo está sempre a engendrar novos processos de acumulação primitiva. Assim, os fluxos de descodificação do desejo não param de acontecer, de maneiras variadas, e grande parte deles continua sendo conjugada ao capital. Quer dizer, o capitalismo precisa de um processo para existir que, para todas as máquinas sociais que lhe são anteriores, era ameaçador, exatamente porque este se caracteriza por uma descodificação - uma destruição de códigos, enquanto a codificação do desejo caracterizaria estas formações sociais. Mas o que garante que os fluxos de descodificação não destruam o socius capitalista?

Guattari e Deleuze afirmam então que o capitalismo desenvolve um conjunto de axiomas ajustáveis - uma axiomática - que são a chave para a “conjunção” dos fluxos de descodificação do desejo ao Capital. Do ponto de vista desta máquina social, estes fluxos precisam ser não apenas produtivos, mas também precisam ser conjugados ao capital: apropriados, capturados - acumulados -- por este. Essa operação se dá graças a todo um conjunto de axiomas que garante a conversão de toda produção em dinheiro, posto que esta só deve existir com esta função, sendo um problema para a estabilidade do capital ultrapassar, escapar ou transbordar a esta finalidade. De um modo geral a função da axiomática é converter toda a produção a quantidades abstratas em forma de moeda, isto é, transformar toda a produção em forma-mercadoria.

Por isso o mais evidente conjunto de axiomas criados pelo capitalismo diz respeito às moedas, às regras de convertibilidade entre elas e aos índices que regulam os fluxos financeiros. Mas a operação de redução a quantidades abstratas em forma de moeda, que na prática é uma redução de toda produção à forma-mercadoria, implica também numa produção intensa de palavras de ordem, de enunciados e clichês que são também parte importante dos axiomas ajustáveis do Capital. E aqui é preciso destacar que uma das funções principais da axiomática é ser “ajustável”. O capital pode negar durante décadas direitos aos trabalhadores, para finalmente conferi-los, ampliar mercados e obter grandes lucros; ou perseguir determinada forma de manifestação artística, refazer suas contas e transformá-la em fonte de lucro da indústria cultural. Ou pode ainda dizer que não há dinheiro para investimentos sociais e, diante de uma epidemia, fazer um amplo programa de distribuição de recursos à população. Todos estes são exemplos de ajustes e variações da axiomática. Nesse sentido, o que, na produção desejante - no fluxo descodificado -- ameaça a máquina capitalista é precisamente aquilo que não é axiomatizável, isto é, a atividade produtiva, criadora, que resiste, ou ultrapassa, a conversão e redução à moeda, a palavras de ordem e clichês: a potência do não numerável, heterogênese (Guattari, 2006, p. 69) que transborda a axiomatização capitalista e ameaça a produção de mais-valia e lucro.

II. 1 - A produção imanente

Aqui chegamos a um ponto do pensamento político de Guattari e Deleuze que foi decisivo para a nossa compreensão do fascismo como economia-política da violência e da morte, qual seja, o modo como eles descrevem o que chamam de “produção imanente”, que seria uma característica singular da máquina social capitalista em comparação às anteriores. O capitalismo seria a única máquina social onde a contra-produção - a improdução - é produzida no coração mesmo da sua máquina produtiva. Dito de outra forma, no socius capitalista, violência e morte são produzidas no coração da produção e, mais do que isso, alimentam e intensificam o funcionamento da máquina produtiva. A distinção aqui é clara: produção e contra-produção não são “imanentes” nas outras máquinas sócias, porque nelas a contra-produção age sobre o sistema produtivo vindo desde fora dele.

Vimos que a contra-produção é uma condição para a constituição das máquinas sociais. Como corte que inscreve, e assim limita a intensidade dos corpos, ela opera codificando os fluxos do desejo - em uma “repartição de intensidades” (Deleuze; Guattari, 2010, p.247) que bloqueia uns fluxos e deixam passar outros. Mas esta contra-produção é infringida aos corpos de fora para dentro, como nos rituais que marcam fisicamente, ou como nos castigos que interiorizam a palavra como código social. É também como uma força exterior que a contra-produção age nas sociedades despóticas - sociedades com Estado -- anteriores ao capitalismo. O próprio Estado é o agente desta contra-produção através de uma operação de sobrecodificação, que não estingue as codificações anteriores, mas as sujeita e administra. O Estado é nesse sentido a força de morte que opera um corte de tal ordem na máquina social que faz toda a produção se referir a ele, isto é, ao déspota como o herdeiro de uma linhagem supostamente divina, origem de toda a vida. A sobrecodificação operada pelo Estado é, pois, uma extração dos fluxos que ele assim estoca, acumula. É desde esta violência acumulada que ele se atira sobre a produção, como uma força exterior, tal como acontece quando a guarda do Estado chega para cobrar impostos junto aos camponeses: tomar uma parte da produção destes.

É interessante observar que o elemento de “monopólio da violência” do Estado Despótico, que no limite é o monopólio do direito de matar, segue sendo decisivo para o Estado que opera no socius capitalista. O capitalismo guarda sempre a possibilidade de recorrer, e frequentemente recorre, a essa violência de Estado, essa ação de morte que cai sobre o socius. Mas a questão é que a dinâmica de fluxos intensos desta máquina social, que também são fluxos descodificados, como que arrasta as estruturas e instituições de Estado que são encarregadas de aplicar esta violência, e toda uma economia tende a surgir a partir destas. O que deveria ser típico do modo como o Estado corta a máquina social e a sobrecodifica - como ele se inscreve nos corpos - vira imediatamente forma-mercadoria e passa a incrementar o processo de produção de dinheiro, mais-valia e lucro. Não estamos falando apenas do fato de que estas instituições mobilizam uma produção industrial considerável, uma vez que necessitam de armas, equipamentos em geral e toda sorte de bens. Estamos falando, antes, de como os elementos chaves da economia-política afetiva -- da economia-política libidinal produzida pelas instituições de repressão e segurança -- começam a circular como mercadoria sem deixar de ser menos, por isso, uma circulação de ordem libidinal que funciona como uma produção de poder.

Falemos, em primeiro lugar, de uma economia que se forma aí no sentido mais clássico do termo, a partir de afetos que são produzidos pelas instituições de força do Estado para marcar o corpo social, como o medo e o ódio. Acrescentemos a estes, por exemplo, o racismo como uma produção do Estado, o que, mobiliza também os afetos de medo e ódio citados. Consideremos ainda afetos como o machismo fruto das estruturas patriarcais, seja do próprio Estado, seja de algumas estruturas de produção econômica, seja da família propriamente dita. Aqui alguém poderia se perguntar porque não estamos nos referindo a estes fenômenos como “ideologia”, responderíamos que é exatamente porque eles operam como inscrição social, incidindo imediatamente sobre os corpos e o desejo: constituindo-se como uma modulação do desejo propriamente dita. Antes de se referir a uma “ilusão” ou a um “engano” que obscureceria as consciências, constatamos a ação de algo que produz uma impotência sobre os corpos.

Observemos, então, que toda esta lista que aqui fizemos de afetos, quais sejam, medo, ódio, mas também aqueles afetos que mobilizariam estes outros, como racismo, patriarcalismo, homofobia e assim por diante, se tornam imediatamente, na máquina social capitalista, mercadorias e passam a circular socialmente enquanto tal. Um organismo policial do Estado, por exemplo, passa a intensificar a produção desses afetos-mercadoria, deslocando, ou misturando, a sua função política - de órgão de repressão- para uma função econômica, até se constituir em uma empresa econômica propriamente dita. É verdade também que sempre houve um ponto de interseção entre entes privados de segurança e estatais.9 Mas mesmo como corpo de segurança privado este não é menos arrastado pela dinâmica de circulação intensa, e de produção de mercadoria típico da máquina social capitalista. Assim, tanto ser policial, ou ser capataz, se converte em um modo de vida, quanto o medo e o ódio precisam ter a sua produção intensificada para que estes corpos de segurança sigam sendo “necessários”, isto é, “desejados” socialmente, num movimento que pode ser comparado ao das indústrias que buscam tornar-se tanto mais “necessários”, ou desejáveis, quanto possível as mercadorias que produzem. Além disso, estes afetos são consumidos como um estilo de vida, quase como uma subjetividade-mercadoria, como nos programas policiais vespertinos recorrentes na TV. De fato, para usar um vocabulário típico do liberalismo, o que se constitui aí é algo como um “mercado”, onde se produz tanto uma mercadoria para um consumidor quanto um consumidor para uma mercadoria, como Marx viu nos Grundrisse. As instituições de repressão e segurança produzem, pois, algo como uma “subjetividade policial”, ou ainda uma “subjetividade capataz” que, uma vez arrastada pela dinâmica de circulação e produção intensa da máquina capitalista, se constitui como uma economia. Nesse movimento, quase sempre empresas propriamente ditas se constituem, como foi o caso da criação de empresas privadas de segurança que tinham como proprietários policiais e militares que participaram dos órgãos de repressão da ditadura.10 Evidentemente, a força econômica que vai ganhando expressão aí, também vai se tornando uma nova força política. E assim frequentemente acontece até uma inversão na relação entre o Estado e as suas instituições encarregadas da repressão, posto que, se estas existiriam para implantar políticas de Estado, podem chegar a impor políticas ao próprio Estado.

E ainda que esta pareça uma descrição de uma economia-política no sentido mais, digamos, tradicional do termo, esta não é menos uma economia-política libidinal, afetiva. Estamos diante de uma outra variação da imanência, ou da “produção imanente” que seria típica do socius capitalista segundo Guattari e Deleuze. Se esta é formulada pelos autores a partir da observação que na máquina capitalista a contra-produção é gerada no coração mesmo do sistema produtivo, nós propomos a partir desta formulação um desdobramento que tem a ver com uma imanência entre o que tradicionalmente se compreendeu por “economia-política” e economia-política no sentido libidinal e afetivo. Trata-se de algo que vivemos na cotidianidade mesmo da máquina capitalista. Assim, é também o desejo que está sendo posto em circulação quando compramos ou vendemos, por exemplo, um aparelho celular ou uma roupa, ainda que a princípio tende-se, limitadamente, a ver a valoração desta operação apenas por meio da moeda. Por outro lado, quando afetos típicos das instituições de repressão e vigilância são postos em circulação, como o ódio e o medo, para além - ou para aquém, do fator de intimidação dos corpos que estes afetos são, eles circulam também como forma-mercadoria. É nesse contexto que a economia-política da violência e da morte tanto é libidinal quanto constitui um PIB, constituindo com isso, evidentemente, uma nova organicidade que é também uma nova força política: o sentido de “economia-política” de forma ampla.

II. 2 - A intensidade que resta.

Mas se a violência e a morte produzidas no coração da máquina produtiva capitalista tendem a virar mercadoria, é preciso destacar que a violência, e especialmente a morte - que, no limite, é o que a circulação da violência traz consigo -- não são uma mercadoria qualquer. Vimos no início deste texto que a morte, para Guattari e Deleuze, se caracteriza por ser da ordem de uma intensidade. Se existe um corte de contra-produção - um elemento de improdução - que é decisivo para a constituição das formações sociais, este acontece como uma força intensa que é infringida - castiga, corta, se inscreve, codifica - sobre outra força intensa: outro corpo, ou outros corpos. Quando se diz, no entanto, que a morte vira mercadoria, se está dizendo que ela passa pelo processo de axiomatização típica da máquina capitalista, sendo reduzida a quantidades abstratas em forma de moeda. A princípio, esse processo parece ser muito bem-sucedido, porque a morte quando começa a circular socialmente se constitui em uma magnífica forma-mercadoria. Nos parece, no entanto, que a axiomatização não consegue ter a capacidade de esvaziar a intensidade do fluxo de morte como acontece com os outros fluxos produtivos sobre os quais ela opera, esvaziando a intensidade desejante em quantidades abstratas. Diferente dos outros fluxos, o fluxo de morte, mesmo axiomatizado, parece deixar um imenso resto de intensidade em circulação: o que não se deixou axiomatizar.

E aqui levantamos a hipótese de que o que deixa a morte atraente, na máquina social capitalista, é que ela talvez se afigure como a experiência possível de intensidade em meio a uma formação social onde quase tudo sofre um esvaziamento de suas qualidades em quantidades abstratas: em moeda, grupos estatísticos, clichês e algoritmos. Há, no entanto, uma outra intensidade que resta, que não é a que escapa à axiomatização, e sim aquela que é experimentada já como fluxo axiomatizado. Estamos nos referindo à experiência de um fluxo ao mesmo tempo intenso, e esvaziado em suas dimensões desejantes: a intensidade da produção capitalista ela mesma. Mas esse fluxo atravessa, marca, opera enfim como uma violência sobre os corpos das imensas multidões as quais não resta outra alternativa a não ser dispor toda a sua vida à violência exaustiva - física e psíquica - dessa produção desqualificada incessante.

Notemos que estamos falando aqui de duas intensidades distintas. Uma intensidade é a do fluxo de morte que escapa à axiomatização e circula com toda a sua violência pela máquina social, e a outra é a da produção desqualificada incessante, o produzir para produzir que caracteriza a produção de mercadorias para produzir dinheiro-capital. Propomos, então, uma expressão que não está em Guattari e Deleuze: “intensidade desqualificada”. Ela nos interessa sobretudo porque expressa a violência sofrida pelos corpos na máquina social capitalista. É muito importante ressaltar isso, porque quando Guattari e Deleuze dizem que a máquina social capitalista só raramente codifica os corpos, eles não estão dizendo que ela não atua sobre os corpos. Nesse ponto propomos mesmo uma inflexão no pensamento dos dois, posto que se o código é a própria inscrição, então a inscrição não seria decisiva na máquina social capitalista. Mas eles mesmos dão a pista que há uma inscrição de outro tipo, embora não usem esse vocabulário. Talvez seja o caso de nos perguntarmos se a palavra “inscrição” é a mais adequada mas, sem dúvida, existe no socius capitalista algo que marca profundamente os corpos e que está intimamente relacionado, inclusive, à produção de adoecimentos psíquicos. Talvez seja o caso de sugerir uma expressão como “inscrição desqualificada”, ainda que esta soe algo paradoxal. Mas justamente, este paradoxo é o da produção desqualificada, ou da intensidade esvaziada de desejo que sugerimos há pouco.

Em todo o caso, a relação entre estas duas intensidades é decisiva para compreendermos o que chamamos de economia-política da violência e da morte: a intensidade da morte que escapou à axiomatização capitalista e segue a circular intensa, e a intensidade desqualificada que violenta os corpos e mentes como produção incessante esvaziada de desejo. Nesta relação, será oferecido para os indivíduos em sofrimento no coração da máquina produtiva -- além de toda violência que pode vir do Estado -- uma compensação, uma glória, um intenso prazer libidinal que a máquina de guerra fascista, como máquina de morte, traz. Não estamos negligenciando a violência de Estado no capitalismo, que pode ser evocada, e frequentemente é, até no seu modo “despótico”. Mas é importante ressaltar os efeitos afetivos, isto é, os efeitos da ordem de uma economia-política libidinal, desta violência que é imanente à máquina produtiva capitalista: trabalhar e (sobre) viver neste socius.

É nesse sentido que a morte é a intensidade que resta em uma vida completamente esvaziada da experiência qualitativa da produção. Ela é a última força social capaz de atrair o desejo para o seu limite. Pode ser que ela já opere assim até para os que estejam numa posição de poder e não sintam a rotina da produção capitalista como um sofrimento violento, mas impotente o suficiente tal como pode ser a vida em função da forma-mercadoria: da produção desqualificada. Mas há uma imensa multidão que experimenta esta rotina como dor e sofrimento, no dia a dia da produção incessante da máquina capitalista. Aqui estão os que sobreviveram e construíram minimamente uma estrutura de vida, “apesar de tudo”: os disciplinados em meio à miséria, os que sofreram para “servir ao bem” em meio à violência; aqueles que se sentem ameaçados nas rígidas estruturas que suaram para manter.

São estes que, atraídos pela intensidade da máquina de morte, se deslocam da culpa para o ressentimento, da posição de endividados para a posição de cobradores e juízes. Mas o que ele de fato eles cobram? Cobram por todos os seus sacrifícios, por tudo o que teriam passado para se fazer “por si mesmo”. É aqui, inclusive, que surge o que chamamos de “ódio ao semelhante”, que julga e culpabiliza os que não foram competentes o suficiente, “produtivos” o suficiente, que devem ser punidos e, no limite, eliminados.

Considerações finais

Nossas considerações finais começam por anunciar algo como um por fazer que resta das questões colocadas nesse texto, e que surge do que chamamos, nos parágrafos anteriores, de relação entre duas intensidades. Esta relação, no modo como produz um indivíduo ressentido que cobra do seu semelhante mais produção no sentido capitalista do termo, ou simplesmente o condena e o persegue por não ser “competente” e “produtivo”, anuncia um ponto a ser aprofundado na economia-política da violência e da morte que, embora já o tenhamos tratado no capítulo três do nosso livro (Guéron, 2022, p. 49) demanda ainda alguma investigação. Estamos nos referindo ao modo como, no âmbito desta economia-política ao mesmo tempo social e libidinal, se mobiliza também o próprio neoliberalismo que é, por isso, muito mais do que uma ideologia, uma vez que circula no regime afetivo da economia-política fascista. Estamos falando, pois, de uma articulação entre neoliberalismo e fascismo.

Por ora, podemos apenas adiantar que opera aí o que identificamos como uma das variações do que Deleuze e Guattari chamaram de produção imanente, característica chave do capitalismo. Nos referimos, neste caso, a uma imanência, pelo menos parcial, entre Estado e produção econômica, ou pelo menos uma zona de indiscernibilidade entre ambos, inclusive entre suas instituições e entes. Acreditamos ser pertinente articular esta ao modo como Foucault percebeu a economia-política liberal operando uma submissão do Estado a uma “verdade” do mercado (Foucault, 2004, p. 33). Nesta lógica, o Estado deveria se organizar e se gerir em função do mercado - na prática o Capital - buscando a sua saúde financeira, o seu “superávit” para não se endividar e, consequentemente, não causar prejuízos ao bom funcionamento da economia. É aqui que surge este indivíduo que supostamente não teria sido competente o suficiente, produtivo o suficiente - num certo sentido racional e civilizado o suficiente -- e que, portanto, causaria prejuízos ao Estado e consequentemente a economia. A descrição de Foucault desta operação do liberalismo nos ajuda a encontrar uma articulação entre as formas de mistificação do Estado e de mistificação do Capital, que ajuda a forjar uma palavra de ordem tipicamente fascista que foi largamente evocada pelo bolsonarismo, especialmente durante a epidemia: “A Economia é a Pátria!” (Guéron, 2022). É nesse momento que se instituí uma espécie de guerra pela economia, onde todos aqueles que causariam prejuízos ao Estado, e portanto também, segunda a lógica neoliberal, à economia, deveriam ser combatidos como inimigos da pátria. Nesse caso, o conceito de neoliberalismo se sobrepõe ao de liberalismo, porque traz consigo uma subjetividade capitalista inscrita no corpo dos indivíduos e disseminada socialmente. É nessa guerra pela economia que acontece o que Guattari e Deleuze observaram como um movimento de onde todo o desejo é despejado na morte do outro, em uma experiência intensa cujo limite é a morte de si mesmo: “apostar a morte do outro contra a sua” (Deleuze; Guattari, 2004, p.113). Nesse momento, a destruição a até a morte de certos grupos sociais não produtivos, ou inimigo dos que produzem (no sentido capitalista de “produção”) deixa de ser simplesmente naturalizada e pode a ser até glorificada. Enfim, eis aí uma questão importante a ser desenvolvida.

De resto, esperamos que tenha ficado claro, para o leitor que chegou até aqui, que enfrentar a “economia-da-violência e da morte” e desmontá-la como regime afetivo, é o que de prático precisamos fazer para, no mínimo, enfraquecer o fascismo. Nesse sentido, como nos ensinou Guattari, abordar as questões políticas a partir do desejo, e pensar uma ação a partir desta abordagem, talvez seja também uma operação de opor uma economia-política à outra. Quer dizer, uma economia-política da criação e da vida em oposição a da violência e da morte. É nesse sentido que a nossa mobilização política, ainda segundo Guattari, deve ser sempre uma mobilização micropolítica.

  • 1
    O movimento compreendido como “bolsonarismo” se solidificou a partir da candidatura de Jair Messias Bolsonaro e da sua chegada à presidência da República Federativa do Brasil em 2018. A partir daí, este movimento se caracterizou pela defesa de Bolsonaro como candidato, da sua atuação como presidente e, finalmente, da sua tentativa fracassada de reeleição, a qual se seguiu um movimento de rejeição aos resultados das urnas, a defesa de uma intervenção militar e mesmo uma tentativa de golpe de Estado. O bolsonarismo reuniu em torno do nome de seu líder uma série de movimentos de extrema direita, mas sobretudo fez convergir para si uma intensidade de fluxos variados que circulavam e se disseminavam na sociedade, com forte atuação nas redes sociais, espalhando massivamente, por exemplo, as chamadas fake news, mas, sobretudo, constituindo um determinado regime afetivo bastante violento que ganhou nova organicidade e força com a chegada de Bolsonaro à presidência e se mantém forte depois de sua saída.
  • 2
    Textos como O Eu e o ID (Freud, 2011, p.55) ou O Problema Econômico do Masoquismo (idem, p.166) são exemplos de onde Freud fala de relações econômicas primordiais que envolvem, respectivamente, o Eu e o Super-eu, a libido e a pulsão de morte.
  • 3
    Sobre as críticas a Marx e Freud, vejamos este trecho de Revolução Molecular: “Quando o que está em questão é o marxismo e o freudismo, pensa-se num certo tipo de tratamento dos textos de Freud e dos textos de Marx. O freudismo, considerado de um certo ângulo, deveria ser definido como reacionário em todas as suas tomadas de posição sociais, em todas as suas análises concernentes à relação entre indivíduo e família, enquanto o marxismo, por sua vez, seria por demais insuficiente quanto a determinação das questões relativas ao desejo” (Guattari, 1985, p. 25).
  • 4
    Deleuze e Guattari articulam aqui um « fluxo material contínuo » -- a intensidade dada, portanto --, ao conceito grego de hylê (Deleuze; Guattari, 2010, p. 54) em geral traduzido por « matéria », em uma identificação entre matéria e libido.
  • 5
    Guattari articula o que Freud chama de processo primário com uma produção a nível molecular, intensa (Guattari, 1989, p. 34).
  • 6
    « C’est l’affaire du socius » (Deleuze; Guattari, 1972, p. 163) como está na versão original, ainda que a tradução brasileira não use a palavra « negócio », preferindo « o próprio socius » (Deleuze; Guattari, 2010, p. 185), achamos interessante destacar esta expressão.
  • 7
    “O sujeito aliena o seu desejo num signo, numa promessa, numa antecipação, em algo que comporte, como tal, uma perda possível” (Lacan, 2016, p. 116).
  • 8
    Alguns autores identificaram a origem da política com o Estado. Hannah Arendt, por exemplo, assinalou que a tradução do “zoon politikon” de Aristóteles por “animal socialis” teria gerado um mal-entendido e uma confusão entre o social e o político, à qual ela se opõe (Arendt, 2005, p. 32-33). Para Deleuze e Guattari, no entanto, o surgimento do socius está sim identificado ao surgimento da política.
  • 9
    Não por acaso, no Brasil os grandes latifundiários foram chamados de “coronéis”, isto é, ganharam oficialmente do Estado, em 1831, a denominação de comandantes de uma instituição militar que, na prática, abrigava o seu corpo de jagunços, capatazes e etc: a “Guarda Nacional”. Esta instituição foi extinta apenas em 1922, mas em muitas regiões do Brasil estes grandes proprietários seguiram sendo chamados dessa forma por algumas décadas.
  • 10
    No filme Pastor Claudio (Formaggini, 2017) o ex-policial Claudio Guerra, hoje pastor, que trabalhou nos órgãos de repressão da ditadura, conta a sua trajetória como encarregado de exterminar e destruir os corpos de militantes de oposição. Financiado por empresários, Guerra seguiu prestando serviços criminosos para um usineiro no Norte Fluminense e, finalmente, se tornou chefe de um grupo de extermínio com sala dentro do próprio palácio de governo, no Estado do Espírito Santo.

Referências

  • ARENDT, Hannah. A Condição Humana Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 32-33
  • DELEUZE, Gilles. Conversações São Paulo: Editora 23, 2008
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia 1 São Paulo: Editora 34, 2010.
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. L’Anti-Edipe. Capitalisme et Eschizophéenie Paris: Edition de Minuit: 1972.
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. “1933 - Micropolítica e Segmentaridade”, in: Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia 2 São Paulo: Editora 34, 2004.
  • FOUCAULT , Michel. Naissance de la biopolitique Paris: Gallimard Seuil, 2004
  • FREUD, Sigmund. O Eu e o Id, “Autobiografia” e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • GUATTARI, Felix. Cartographies Schizoanalytiques Paris: Editions Galilée, 1989.
  • GUATTARI, Felix. Caosmose. Um novo paradigma estético São Paulo, Editora 34, 2006.
  • GUATTARI, Felix. Revolução Molecular São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
  • GUÉRON, Rodrigo. A Vingança dos Capatazes. Bolsonarismo como fascismo Rio de Janeiro: Nau Editora, 2022.
  • LACAN, Jacques. Seminário 6. O desejo e a sua interpretação Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
  • LAZZARATO. Maurízio. La Fabrique de l’homme endetté Paris: Éditions Amsterdam, 2011.
  • MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.
  • MARX, Karl. Ouvres Economie II Paris: Gallimard, 1972.
  • SAUVAGNARGUES, Anne. “Un cavalier schizoanalytique sur le plateau du jeu d’échecs politique.” Multitudes, Paris, n. 34, 2008.

Filme:

  • Pastor Claudio Direção de Beth Formaggini. 4ventos, 2017 (documentário, 75 min.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2023
  • Aceito
    03 Maio 2024
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