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Práticas de autoatenção relativas à alimentação de crianças do meio rural

Prácticas de autoatención relacionadas a la alimentación de niños del medio rural

RESUMO

Objetivo

descrever as práticas de autoatenção relacionadas à alimentação de crianças do meio rural e suas interações com os modelos de atenção à saúde.

Métodos

estudo qualitativo, descritivo, realizado em comunidades rurais do interior do Rio Grande do Sul, Brasil, com sete famílias, totalizando dez mulheres. Na produção dos dados utilizaram-se a observação e entrevistas abertas. Analisaram-se os dados por meio da análise temática de Leininger.

Resultados

“O leite materno é bom, mas não basta” e “Minha família influenciou nas minhas decisões: eu consegui amamentar” são os temas emergentes no estudo. Dos temas emerge a necessidade de compreensão dos significados simbólicos dessas práticas para a produção de saúde das crianças, mediante ações culturalmente congruentes e eficazes.

Conclusões

O aleitamento materno misto destaca-se dentre as práticas de autoatenção relativas à alimentação da criança do meio rural. Essas práticas transitam entre os conhecimentos do Modelo Médico Hegemônico e dos familiares e comunidade.

Aleitamento materno; Cultura; Enfermagem; População rural

RESUMEN

Objetivo

describir las prácticas de autoatención relacionadas a la alimentación de niños del medio rural y sus interacciones con los modelos de atención a la salud.

Métodos

estudio cualitativo, del tipo descriptivo, realizado en comunidades rurales del interior del estado del Rio Grande do Sul, Brasil, con siete familias, totalizando diez mujeres. Se utilizó la observación y encuestas abiertas. Los datos fueron analizados por medio del método del análisis temático de Leininger.

Resultados

“La leche materna es buena, pero no suficiente” y “mi familia influenció en mis decisiones: yo conseguí amamantar” son los temas de este estudio. De los temas emerge la necesidad de comprensión de los significados simbólicos de esas prácticas para la producción de salud de los niños mediante acciones culturalmente congruentes y eficaces.

Conclusiones

La lactancia materna mixta se destaca entre las prácticas relacionadas a la alimentación de los niños del medio rural. Estas prácticas transitan entre los conocimientos del Modelo Medico Hegemónico y de los familiares y comunidad.

Lactancia materna; Cultura; Enfermería; Población rural

ABSTRACT

Objective

describe the self-care practices related to children nutrition in rural areas and its interactions with models of health care.

Methods

qualitative study, descriptive, developed in rural communities of Rio Grande do Sul State, Brazil, with seven families, and an amount of ten women. For data production, we used observation and open interviews. We analyzed data according to Leininger’s thematic analysis.

Results

“Human milk is good, but it is not enough” and “my family have influenced my decisions: I could breastfeed” are the main themes in the study. From them, we notice the necessity of comprehending the symbolical meanings of these practices for children’s health production with culturally congruent and effective actions.

Conclusions

Mixed breastfeeding seems to be the most important self-care practice related to children nutrition in the analyzed rural areas. These practices are among the knowledge of the Hegemonic Medical Model for health education and practice and knowledge learned from the family and community.

Breastfeeding; Culture; Nursing; Rural population

INTRODUÇÃO

Este estudo tem como tema a alimentação de crianças lactentes e na primeira infância residentes no meio rural, por isso usa-se neste artigo a expressão criança englobando lactentes (crianças menores de um ano de idade) e na primeira infância (um a três anos de idade)(11. World Health Organization; United National Children’s Fund; International Baby Food Action Network Brasil. Estratégia global para a alimentação de lactentes e crianças de primeira infância. 2005 [citado 2014 set 14]. Disponível em: http://www.ibfan.org.br/documentos/ibfan/doc-286.pdf.
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).

Os benefícios do aleitamento materno (AM) à criança, à mãe, à família e à sociedade ancoram-se em evidências científicas(22. American Academy of Pediatric (US). Breastfeeding and the use of human milk. Pediatrics. 2012 Mar;129(3):e827-41.). Por isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que os lactentes sejam amamentados exclusivamente durante os primeiros seis meses de vida. Depois disso, em razão das necessidades nutricionais, indica-se a inclusão gradativa de alimentos com a manutenção do AM até, pelo menos, os dois anos de idade(11. World Health Organization; United National Children’s Fund; International Baby Food Action Network Brasil. Estratégia global para a alimentação de lactentes e crianças de primeira infância. 2005 [citado 2014 set 14]. Disponível em: http://www.ibfan.org.br/documentos/ibfan/doc-286.pdf.
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).

Ademais, destaca-se que o ato de alimentar uma criança é influenciado por fatores multidimensionais: biológicos, sociais, culturais. Sob o ponto de vista social, alguns elementos são favoráveis ao AM, dentre os quais apoio familiar, em especial da avó da criança, condições adequadas no ambiente de trabalho e experiência prévia positiva de amamentação da própria mulher e/ou de outras mulheres da família(33. Gross FM, Van der Sand ICP, Girardon-Perlini NMO, Cabral FB. Influência das avós na alimentação de lactentes: o que dizem suas filhas e noras. Acta Paul Enferm. 2011;24(4):534-40.). Por outro lado, maternidade precoce, baixo grau de instrução materno e necessidade de trabalhar fora de casa são fatores que contribuem para o desmame precoce(44. Damião JJ. Influência da escolaridade e do trabalho maternos no aleitamento materno exclusivo. Rev Bras Epidemiol. 2008 [citado 2016 mar 03];11(3):442-52. Disponível em: http://www.scielosp.org/pdf/rbepid/v11n3/10.pdf.
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).

Estudo, que compara a alimentação de lactentes de capitais brasileiras, revela distintas práticas conforme a região analisada. Na região sul prevalece o consumo de chás mornos em crianças de até seis meses, o que é associado ao clima frio. No nordeste e no sudeste predomina o consumo de sucos e de sucedâneos do leite materno. O consumo de sucos associa-se ao clima quente e abundância de frutos tropicais no nordeste. No sudeste, a introdução de sucos e de outros leites associa-se ao poder aquisitivo das famílias(55. Saldiva SRDM, Venancio SI, Gouveia AGC, Castro ALS, Escuder MML, Giugliani ERJ. Influência regional no consumo precoce de alimentos diferentes do leite materno em menores de seis meses residentes nas capitais brasileiras e Distrito Federal. Cad Saúde Pública. 2011 nov;27(11):2253-62.).

O contexto familiar medeia as decisões sobre a alimentação de uma criança, visto que cada mulher, sua família e comunidade têm valores, conhecimentos e práticas singulares, carregados de simbolismo que os orienta acerca desta temática. Estudo internacional informa que os comportamentos relativos à amamentação exclusiva são moldados por influências culturais, sociais e religiosas, sendo instituídos às mulheres pela família, rede social próxima e comunidade religiosa(66. Demirtas B, Ergocmen B, Taskin L. Breastfeeding experiences of Turkish women. J Clin Nurs. 2012 Apr [cited 2016 Mar 03];21(7-8):1109–18. Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1365-2702.2011.03848.x/epdf?r3_referer=wol&tracking_action=preview_click&show_checkout=1&purchase_referrer=onlinelibrary.wiley.com&purchase_site_license=LICENSE_DENIED.
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).

Nessa lógica, a compreensão dessa complexidade passa, dentre outras possibilidades, pela perspectiva cultural, salientando-se que a cultura é aqui entendida como uma rede de símbolos, cujos significados orientam as decisões das pessoas e seus grupos sociais acerca das diferentes questões que tecem a vida, dentre elas as relacionadas com a alimentação das crianças. Símbolo é “qualquer objeto, ato, conhecimento, qualidade ou relação que serve de vínculo a uma concepção – a concepção é o ‘significado’ do símbolo”(7:67). Assim, compreende-se que os conhecimentos das populações e de especialistas, dentre os quais estão os profissionais ligados ao Modelo Médico Hegemônico, compõem a cultura e, por isso, pode ser definida como um “modelo de” e “modelo para(77. Geertz C. Uma descrição densa. In: Geertz C. A interpretação das culturas. 13. reimpr. Rio de Janeiro: LTC; 2008. p. 3-21.) a produção de práticas de autoatenção de alimentação de uma criança.

Práticas de autoatenção são significados e práticas usados, em nível individual e/ou do grupo social, a fim de enfrentar os processos que afetam a saúde, sejam em termos reais ou imaginários, sem a intervenção direta e intencional dos especialistas, mesmo quando esses podem ser a referência para essas atividades(88. Menéndez EL. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Ciênc Saúde Coletiva. 2003;8(1):185-207.).

Para além desse conjunto de concepções que justifica o interesse de um grupo de enfermeiras na produção de estudo cujo objeto são as práticas de autoatenção relativas à alimentação de crianças residentes em meio rural, ressalta-se que o contexto rural, no qual se dá a inserção profissional das autoras desta publicação, difere do meio urbano. Essa distinção associa-se à escassez e dificuldades de acesso aos serviços no meio rural, inclusive os de saúde, à rede social de apoio à nutriz mais reduzida, em razão do distanciamento geográfico entre as famílias, ao tipo de vínculo entre a nutriz e os membros dessa rede e a fatores socioculturais que justificam as decisões relativas à alimentação de uma criança(99. Shimizu HE, Pamela X, Sanchez MN. Representações sociais do SUS: um sistema permeado pela dificuldade de acesso à atenção integral. Tempus – Actas Saúde Coletiva. 2012;6(3):295-306.-1010. Marques ES, Cotta RMM, Botelho MIV, Franceschini SCC, Araújo RMA, Lopes LL. Rede social: desvendando a teia de relações interpessoais da nutriz. Physis. 2010;20(1):261-81.).

Destaca-se ainda que, em busca realizada na Biblioteca Virtual de Saúde, centrada na alimentação de lactentes residentes em meio rural, que acessou artigos originais, disponíveis online, publicados de 2004 a 2013, voltados à realidade latino-americana (cenário principal de estudo do autor dos modelos de autoatenção, referencial teórico adotado nesta investigação), obteve-se oito publicações. Constatou-se ausência de investigações voltadas exclusivamente ao Rio Grande do Sul, inexistência de pesquisas com abordagem cultural, especialmente utilizando-se do referencial teórico da autoatenção(88. Menéndez EL. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Ciênc Saúde Coletiva. 2003;8(1):185-207.).

Diante da problemática apresentada e do interesse das autoras aqui explicitados, o objetivo deste estudo é “descrever as práticas de autoatenção relacionadas à alimentação de crianças do meio rural e suas interações com os modelos de atenção à saúde”.

Frente a esse objetivo, optou-se por referencial teórico cuja centralidade está nas práticas de autoatenção(88. Menéndez EL. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Ciênc Saúde Coletiva. 2003;8(1):185-207.,1111. Entrevista: Eduardo Luis Menéndez Spina. Trab Educ Saúde. 2012 jul-out;10(2):335-45.). Neste referencial, considerando-se a existência na América Latina de conjuntos sociais estratificados e/ou diferenciados através de suas condições de trabalho, econômicas, étnicas, religiosas, sabe-se que os sujeitos e seus grupos utilizam algumas formas de atenção para o enfrentamento de seus padeceres, sendo comum a interação entre duas ou mais. Esse processo resulta da iniciativa de um desses modos de atenção, a exemplo do setor biomédico quando associa as suas alternativas terapêuticas os grupos de autoajuda, e pode ser, também, resultado do próprio sujeito e/ou seu grupo social quando busca mais de uma alternativa aos seus padecimentos, o que caracteriza as práticas de autoatenção(88. Menéndez EL. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Ciênc Saúde Coletiva. 2003;8(1):185-207.).

METODOLOGIA

Este estudo é de abordagem qualitativa, do tipo descritivo(1212. Polit DF, Beck CT. Fundamentos de pesquisa em enfermagem: avaliação de evidências para a prática da enfermagem. 7. ed. Porto Alegre: Artmed; 2011.) e, em razão do referencial teórico adotado, tem perspectiva cultural, aproximando-se de um estudo etnográfico(1313. Leininger M, McFarland M. Culture and diversity: a worldwide nursing theory. 2. ed. Boston (US): Jones and Bartlett Publishers; 2006.). O cenário geral trata-se pequeno município do Noroeste do estado do RS, em que 57,1% dos habitantes residem no meio rural. Destes, 321 são crianças entre zero e quatro anos(1414. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico 2010: resultados da amostra – características da população [Internet]. 2015 [citado 2015 out 20]. Disponível em: http://cod.ibge.gov.br/cr10.
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). O cenário focalizado constitui-se de duas comunidades rurais – Linha Aparecida e Linha Boqueirão (nomes fictícios).

No deslocamento, a pé, de um domicílio para outro, percorrendo estradas de ‘chão batido’, observou-se que o cenário é constituído de propriedades que vão desde fazendas, com uma sede que se destaca em quantidades medianas de terras e que produzem erva-mate, trigo e outros produtos agrícolas, até domicílios com casas, tanto de madeira quanto de alvenaria. Destas, algumas têm vários animais e outras apenas uma vaca e algumas galinhas.

A Linha Aparecida localiza-se a aproximadamente três quilômetros da cidade, o que facilita para que a maioria dos homens trabalhe no meio urbano. Algumas mulheres também trabalham na cidade, mas a maioria permanece em casa, envolvida com a rotina rural, que demanda cuidados com os filhos e marido, preparo das refeições (que são feitas no fogão à lenha e se iniciam logo pela manhã), trato dos animais, ordenha das vacas, cultivo de alimentos na horta e realização dos demais afazeres da casa.

A Linha Boqueirão localiza-se cerca de 12 quilômetros da cidade, porém assemelha-se muito com a Linha Aparecida, com a ressalva de acesso mais difícil à sede do município e de a maioria das pessoas trabalhar na própria localidade. Quanto à organização de saúde, a Linha Aparecida conta com estrutura física e humana de uma Estratégia de Saúde da Família (ESF) e a Linha Boqueirão, embora não tenha a estrutura física, conta com uma equipe de ESF rural que, a cada quinze dias, atende a comunidade em uma sala na escola local.

Ambas as comunidades contam com uma vila, que têm escola, igrejas, estabelecimento comercial do tipo “minimercado” e um aglomerado de domicílios em que residem idosos aposentados e trabalhadores do meio urbano. As famílias, residentes em locais em que não é possível visualizar a moradia vizinha, têm sua renda proveniente da agropecuária. Apesar dessa distância, todas se conhecem e comumente se visitam. É comum também um dos filhos casados morar em terreno contíguo ao do seu pai, o que facilita o envolvimento da avó nos cuidados dos netos.

Os critérios de inclusão dos participantes neste estudo foram: mulheres maiores de 18 anos com filho(s) entre um mês e três anos completos de idade e que residissem em uma das duas comunidades rurais elencadas para o estudo. Em razão de uma maior clareza acerca do cenário do estudo permitida pelas observações, optou-se por incluir, além das mães, as avós que cuidam de crianças cujas mães trabalham fora do lar. A escolha por famílias com criança entre zero e três anos de idade ancorou-se na hipótese de que as informantes teriam facilidade de descrever as práticas de autoatenção adotadas no processo de alimentação das crianças, por, possivelmente, reterem na memória as vivências sobre a temática. Assim, o estudo contou com sete famílias, num total de dez informantes-chave, as quais foram assim definidas no processo de coleta dos dados e não a priori(1313. Leininger M, McFarland M. Culture and diversity: a worldwide nursing theory. 2. ed. Boston (US): Jones and Bartlett Publishers; 2006.). Informantes-chave são pessoas que desejam participar do estudo e dominam o tema investigado(1515. Leininger M, McFarland MR. Transcultural nursing: concepts, theories, research and practice. 3rd ed. New York: McGraw-Hill; 2002.). Como critérios de exclusão, mulheres com capacidade cognitiva comprometida.

O primeiro contato com as famílias para convidá-las a participar do estudo deu-se após os visitadores do Programa Primeira Infância Melhor (PIM) terem levantado o interesse daquelas que se adequavam aos critérios de inclusão. Esse contato deu-se no domicílio, na companhia do visitador do PIM, quando foram explicitados os objetivos e a metodologia do estudo e verificada a possibilidade de novas visitas para início da coleta de dados.

Na coleta dos dados (de maio a agosto de 2015), utilizaram-se as técnicas de observação não participante e de entrevista. Visando conhecer mais profundamente as comunidades e o cotidiano das famílias, a pesquisadora procurou alternar os dias da semana de convivência com famílias, bem como os turnos, privilegiando-se o horário do almoço e dos lanches da manhã e tarde. Cada família foi visitada, no mínimo, quatro vezes, por três a quatro horas, totalizando cerca de 100 horas em campo. As observações tiveram a finalidade de articular o contexto cultural ao objeto de estudo, visto que as representações nem sempre correspondem à vivência, o que indica a necessidade da observação(1111. Entrevista: Eduardo Luis Menéndez Spina. Trab Educ Saúde. 2012 jul-out;10(2):335-45.). Observaram-se as atividades gerais desenvolvidas pelos componentes da família, atentando para as práticas de alimentação das crianças. Na última visita, realizou-se entrevista buscando-se dados gerais de perfil sociodemográfico e do cotidiano do sujeito. Em seguida, focou-se na seguinte questão: “Conte-me como você tem alimentado seu filho pequeno desde que ele nasceu até hoje?”

No processo analítico, as observações registradas em diário de campo e as entrevistas, gravadas em áudio e transcritas também para o diário, foram submetidas à análise temática proposta por Leininger: 1) coleta e descrição dos dados brutos em que foram registradas as informações oriundas das técnicas de coleta de dados, procurando preliminarmente, identificar, a partir dos construtos internos da cultura do grupo e do referencial teórico adotado, os símbolos e os significados contextuais relacionados ao domínio do estudo; 2) identificação de descritores e componentes, a partir de similaridades e diferenças entre as informações obtidas e seus significados; 3) análise contextual e de padrões recorrentes, quando foram examinados os dados em busca de ideias saturadas e padrões recorrentes de significados, similares ou diferentes, centrando-se em expressões, formas estruturais ou explanações relacionadas ao domínio da investigação, validando seus dados com os informantes; 4) identificação de temas relevantes, o que corresponde à fase mais elevada da análise(1313. Leininger M, McFarland M. Culture and diversity: a worldwide nursing theory. 2. ed. Boston (US): Jones and Bartlett Publishers; 2006.).

A validação dos resultados se deu pela confirmabilidade, no encontro da pesquisadora com as informantes por, no mínimo, quatro vezes. Isto ocorreu a fim de reafirmar o que ouviu, viu ou experimentou em relação aos fenômenos em estudo(1313. Leininger M, McFarland M. Culture and diversity: a worldwide nursing theory. 2. ed. Boston (US): Jones and Bartlett Publishers; 2006.), conferindo as interpretações operadas nesse intercurso, o que correspondeu a “micro-validações”. Além disso, o relatório final de pesquisa foi lido por três informantes, buscando-se a validação final dos achados.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Parecer 1.060.826, emitido pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria/RS e o processo de coleta de dados e guarda das informações obedeceu a Resolução 466/2012(1616. Ministério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União [da] República Federativa do Brasil. 2013 jun 13;150(112 Seção 1):59-62.). Todas as informantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Com a finalidade de preservar o anonimato das informantes, essas são identificadas no texto da seguinte forma: F1 (Família) – mãe 1 – Davi, 2 anos e 4 meses. Instituições e nomes de pessoas foram substituídos por codinomes, preservando apenas a idade da criança, o que pareceu necessário em razão das particularidades na alimentação de cada faixa etária.

RESULTADOS

Das sete famílias deste estudo, três residem na Linha Aparecida e quatro na Linha Boqueirão. Oito informantes são mães e duas avós. Destaca-se que uma das mães, codificada nesta seção como mãe/avó 05 e com 36 anos, desempenha papel de mãe e de avó, cuidando, ao mesmo tempo, de seu filho e do neto enquanto sua filha trabalha fora do lar.

Quanto à faixa etária, as mães, à época do estudo, tinham em média 28 anos, já as avós 56 anos (excluindo-se a mãe/avó, contabilizada entre as mães). Referente à escolaridade, quatro têm ensino fundamental incompleto, dentre as quais as avós, uma tem ensino fundamental completo, uma o ensino médio incompleto, três o médio completo e uma o superior completo. Quanto ao estado civil das mães, três são casadas, quatro mantém união estável e uma é solteira e vive com os pais; as avós são casadas. A prole das mães varia entre um a cinco filhos, com uma média de dois filhos por mulher. Referente ao trabalho, duas mães trabalham fora do lar – uma no meio urbano e outra no rural; as demais participantes envolvem-se com a rotina de trabalhos na propriedade rural. Das sete famílias, quatro se envolvem com produção de leite, sendo que duas comercializam o produto e duas produzem para o consumo doméstico. As demais têm fácil acesso ao produto acessando familiares e/ou vizinhos. Das mães, duas já não amamentavam seus filhos durante a coleta dos dados, sendo que o desmame deu-se aos sete meses e um ano e meio, respectivamente. Seis tinham crianças que estavam sendo amamentadas ao peito, três delas menores de dois anos e três maiores.

No processo de análise, a partir dos descritores selecionados por semelhança de significado e de sentido, seis padrões culturais deram origem a dois temas, aqui apresentados:

Tema 1: O leite materno é bom, mas não basta!

O aleitamento materno misto (AMM) tão logo ao nascer ou em qualquer época antes do sexto mês de vida é o foco deste tema, que emerge de quatro padrões culturais sintetizadores dos motivos que modulam essa prática: “Eu tinha pouco leite”; “Meu leite não desceu por causa da anestesia da cesariana”; “Eu não tinha bico no seio” e “Meu nenê era pequeninho, fraquinho, tinha problema de saúde”.

As informantes identificam o leite materno como o alimento mais adequado para uma criança, por simbolizar saúde na medida em que previne doenças, por constituir-se em símbolo que se associa à economia financeira e também pela praticidade representada pela inexistência de preocupações com preparo, transporte e manutenção do leite, o que facilita momentos de lazer e, também, por proteger os pais do rigor das noites de inverno.

O leite do peito previne bastante doença, é mais saudável para criança (F 05 – mãe 06 – Arthur 11 meses).

Dizem que o leite do peito é mais saudável (F 04 – mãe 04 – Lucas – 2 anos e 10 meses).

É bom porque a gente não gasta (hehe). Imagine se tivesse que comprar o XXX [leite em pó específico para lactentes] que os médicos receitam. Uns 50 reais a lata. Graças a Deus eu nunca precisei: ‘dá onde ia tirar isso’? O leite do peito é até mais barato (F 05 – mãe/avó 05 – Larissa 3 anos e 2 meses).

Até facilita não ter que ficar carregando leite, carregando mamadeira, essas coisas. Quando saímos ele mama só no peito (F 03 – mãe 03 – Cauã 1 ano e 1 mês).

Enquanto eu tiver leite vou continuar amamentando, principalmente agora no inverno, porque é mais prático. A gente não se resfria!” (F 05 – Mãe/avó 05 – Larissa 3 anos e 2 meses).

Esse reconhecimento assenta-se também em uma interpretação que transcende as questões nutricionais, quando interpretam que, por meio da prática da amamentação, atendem as necessidades afetivas da criança, como foi observado na cena do estudo.

Esse choro é porque tá com sono. ‘Vem aqui com a mãe!’ [A criança deitou-se ao colo da informante, mamou um pouco ao peito e foi brincar. Logo voltou a mamar, tão pouco como da primeira vez]. Antes de ele comer outros alimentos ele mamava bem mais no peito. Agora, às vezes, é só para dormir (F 03 – Mãe 03 – Cauã 1 ano e 1 mês).

A amamentação é carinho. Uma troca. Você viu, ele chorou e veio mamar, não era fome, era pelo carinho! Mamar no peito é mais que alimentar, é pra quando ele se sente em apuros ou alguma coisa não dá certo. Você viu que ele tentou abrir aquela porta e não conseguiu, daí ele veio e queria teta. É uma segurança, um carinho (F07 – mãe 08 – Miguel 2 anos e 7 meses).

Ao mesmo tempo em que atende as necessidades afetivas, a concretude da vida impõe que cuidados à dimensão física da criança também sejam empreendidos. Nesta perspectiva, a prática do aleitamento materno toma o sentido de facilitar cuidados que, muitas vezes, são rechaçados pela criança, como foi observado quando uma delas deitou-se no colo da mãe e na sonolência da mamada a informante aproveitou para cortar suas unhas:

Só assim para cortar as unhas dela! (F 05 – Mãe/avó 05 – Larissa 3 anos e 2 meses).

A identificação dos atributos do leite materno e de benefícios do ato de aleitar constitui-se em símbolo, cujos significados guiam a decisão pelo aleitamento materno como opção primeira de alimentação de uma criança. Contudo, isso não é suficiente para a decisão em prol do aleitamento materno exclusivo, o que concorre para que o AMM, desde antes do sexto mês de vida, seja uma prática de autoatenção predominante entre as famílias estudadas, o que se estende para além dos dois anos de idade.

Contribui também para essa prática a interpretação de que produzem pouco leite e de que a criança tem dificuldades de sugar a mama. A produção insuficiente de leite é interpretada como uma particularidade da natureza de algumas mulheres, decorrente de características familiares, ou é associada a uma vivência circunstancial. A constatação dessa insuficiência dá-se na medida em que a criança não se sacia com a mamada ao peito, o que é validado pela família e também pelos profissionais da saúde.

É melhor o leite materno! Mas acabei dando para ela leite do peito, XXX e de caixinha, porque meu leite não é suficiente. Ela mama e fica chorando. Então, o doutor disse para dar o XXX, porque eu não tenho leite suficiente (F6 – Mãe 07 – Milena 2 meses).

Eu tive dificuldade para amamentar meus filhos. Dos quatro, consegui amamentar só um no peito. Eu não tinha leite suficiente, meus seios secavam (F6 – avó 03 – Milena 2 meses).

Quando ele estava com dois meses, eu voltei a estudar. Enquanto eu estava na escola, ele ficava com o pai dele, que dava XXX para ele. No fim das aulas ele mamou leite de caixinha e depois continuei com o peito. Eu não produzia leite suficiente, então não tinha como deixar o meu leite para ele. Acabei dando os dois (F3 – Mãe 03 – Cauã – 1 ano e 1 mês).

A produção láctea insuficiente é associada também à anestesia usada na cesariana, o que, quase sempre, é contornado pela oferta de complemento à criança e pelo uso de medicação pela mãe.

Meu leite não desceu por causa da anestesia [...]. No hospital deram XXX. Em casa tomei o remédio do doutor e meu leite desceu (F6 – mãe 07 – Milena 2 meses).

Quando ele nasceu eu não tinha leite, por causa da anestesia. No hospital deram XXX na seringa ou no copinho (F4 – Mãe 04 – Lucas – 2 anos e 10 meses).

Em um caso isolado, o formato do mamilo foi associado à dificuldade de amamentação logo após o nascimento.

Eu não tinha bico no seio e as enfermeiras sofreram muito para ele mamar no peito. No hospital ele não mamou. Por isso que eu dei o XXX, que eles deram no hospital (F3 – mãe 3 – Cauã – 1 ano e 1 mês).

Em especial as crianças com intercorrências ou algum adoecimento perinatal simbolizam um ser muito frágil e sem forças para sugar no peito, o que também orienta a prática do AMM.

Ele tinha dificuldades de mamar por causa dos problemas que teve quando nasceu. Ficou na incubadora, com sonda para se alimentar e no oxigênio. Chegou em casa ainda pequeninho, fraquinho, não tinha força para sugar (F3 – mãe 3 – Cauã 1 ano e 1 mês).

Ele não queria a teta porque nasceu pequeninho. Também tinha refluxo (gastroesofágico). Eu tinha que cuidar o que oferecia (F4 – mãe 04 – Lucas 2 anos e 10 meses).

Vê-se aqui a complexidade do modelo da autoatenção, visto que a tessitura das suas práticas dá-se no entrelaçamento de diversos símbolos – valores atribuídos ao leite e ao aleitamento materno, bem como as vivências pessoais e de outras mulheres, inclusive na interface com o Modelo Médico Hegemônico –, que informam os modelos explanatórios que justificam o predomínio do aleitamento materno misto na alimentação de crianças.

Tema 2: Minha família influenciou nas minhas decisões: eu consegui amamentar

O segundo tema emerge de dois padrões culturais: “Minha família me deu apoio e eu consegui amamentar; Minha família achava que, além do peito, o nenê precisava de outros líquidos também”.

Dos descritores, interpreta-se que, para algumas informantes, os fenômenos reprodutivos, no que se inclui o aleitamento materno, fazem parte da natureza feminina, que as moldou para parir e amamentar. Porém, o ato de aleitar ao peito articula-se também à cultura, visto que uma das informantes procura, na sua argumentação, ancorar suas decisões e práticas nos saberes do Modelo Médico Hegemônico e não só em conhecimentos populares/familiares. Nesse exercício cognitivo ela articula dois modelos culturais de atenção à saúde, produzindo um modelo explanatório que orienta suas práticas de autoatenção relativas à alimentação de uma criança.

Para ela foi fácil mamar, porque nasceu em casa, por assim dizer. Quando eu estava embarcando no carro tive o bebê e acabamos indo para o hospital, porque não tinha parteira aqui. Quando chegamos lá, eles ajeitaram ela que já começou a mamar, do mesmo jeito que foi com as outras. Até os cinco meses era só o peito, não dava nem água, porque os médicos falam que nessa idade é para dar só o peito, a não ser que não tenha leite. Mas graças a Deus, as minhas sempre foi só no peito (F5 – mãe /avó 05 – Larissa 3 anos e 2 meses).

Cabe ressaltar que, mesmo nas famílias em que as crianças tiveram boa aceitação do leite materno, e até foram amamentadas exclusivamente por certo tempo, a tendência pelo AMM, com a oferta de água, sucos, chás e outros leites, também predominou.

Até os seis meses era direto o leite do peito, nós podíamos intercalar com o XXX, mas ele não aceitava, se ele sentisse que era outro leite ele jogava fora, era só o leite do peito mesmo (F7 – mãe 08 – Miguel 2 anos e 7 meses).

Mamou no peito, sim [...]. Até dava uma água, um suco ou uma coisinha assim, mas ele deixava de comer... ele queria mais o peito do que essas coisas. Então, foi depois dos seis meses que começamos a dar as coisas para ele comer (F2 – mãe 2 – Nicolas 1 ano e 8 meses).

Todas as informantes afirmaram ofertar chás com a finalidade de acalmar a criança, aliviar cólicas, desconfortos gerados por gases intestinais e, principalmente, para tratar gripes e resfriados durante o inverno. Para algumas, essa é uma prática esporádica, que ocorre na vigência de desconfortos ou adoecimento da criança.

O Davi, quando ele nasceu, mamava no peito. De vez em quando, escondidamente, eu dava um chazinho... hehe, não era regra assim, mas eu dava... (F1 – mãe 1 – Davi 2 anos e 4 meses).

Ás vezes, quando estão gripadinhos a gente faz um chazinho, mas não é sempre (F5 – mãe 05 – Larissa 3 anos e 2 meses e avó 03 – Arthur 11 meses).

As mães que, diante de dificuldades, receberam, além do suporte de especialistas do Modelo Médico Hegemônico, o apoio familiar e/ou da rede social investiram no aleitamento materno com resultado exitoso. Em uma das famílias, o esposo foi fundamental no enfrentamento dos desafios representados pelo início da amamentação, estimulando a esposa a acreditar no seu potencial de nutriz.

Eu estava dando XXX para ele e daí minha mana colocou o Lucas no peito dela, porque ela tinha o bico maior que o meu, e ele sugou, mesmo sem leite. Daí em diante, eu deixava ele com bastante fome e, então, eu colocava ele no meu peito e daí ele mamava. Então, eu tentei, tentei, até que eu consegui colocar ele na teta. Agora ele não quer soltar! Quando ele tinha uns quatro meses eu comecei a dar papa para ele (F4 – mãe 04 – Lucas 2 anos e 10 meses).

Então, quando ele tinha uns 10 dias, ele estava chorando muito e, então, o Daniel (Pai) me disse que era para experimentar colocar o nenê no seio de novo. Que eu ia conseguir. E foi isso que fiz. Coloquei e ele mamou” (F3 – mãe 3 – Cauã 1 ano e 1 mês).

Este tema sinaliza para a necessária interação dos profissionais de saúde, dentre os quais o enfermeiro, com a família e a rede social mais próxima da mãe, visto que os significados que regem os valores familiares e sociais são orientadores dos rumos dados à alimentação da criança.

DISCUSSÃO

Entendendo a cultura como uma rede símbolos e significados que orientam as decisões dos sujeitos e seus grupos sociais(77. Geertz C. Uma descrição densa. In: Geertz C. A interpretação das culturas. 13. reimpr. Rio de Janeiro: LTC; 2008. p. 3-21.) e, neste caso, das famílias do meio rural em relação à alimentação da criança, interpreta-se que a opção pelo AMM, desde antes do sexto mês de vida e ultrapassando dois anos, representa, no cenário em estudo, uma prática de autoatenção. Refere-se, portanto, a práticas manejadas pelas mães e suas unidades familiares na promoção de uma alimentação saudável da criança, dentre as quais algumas são propostas pelos especialistas do Modelo Médico Hegemônico(88. Menéndez EL. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Ciênc Saúde Coletiva. 2003;8(1):185-207.).

No campo da intencionalidade das práticas de autoatenção, adotadas pelas famílias na alimentação das crianças, percebe-se que elas se operam tanto no sentido amplo como no restrito. No primeiro caso, referem-se a significados e práticas para a garantia da reprodução biossocial em nível dos microgrupos, especialmente o doméstico, operadas a partir dos objetivos e das normas estabelecidos na própria cultura. No sentido restrito, objetivam especificamente o enfrentamento de enfermidades/padecimentos(88. Menéndez EL. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Ciênc Saúde Coletiva. 2003;8(1):185-207.).

O sentido amplo do AMM é representado pelas questões financeiras, pela sua praticidade e devido ao afeto propiciado pelo aleitamento materno, o que orienta as famílias rumo a essa prática. Amamentar ao peito se constitui numa opção relevante para a reprodução biossocial desse grupo, uma vez que a maioria das famílias estudadas pertence a segmentos socioeconômicos menos privilegiados, cujo costume de frequentar estabelecimentos que comercializam sucedâneos do leite materno não é habitual, uma vez que a maior parte dos alimentos consumidos pelas famílias é produzida na propriedade rural. Sendo assim, o leite materno representa uma alternativa a essas famílias por ser considerado de boa qualidade, que está sempre disponível e sem custos adicionais. Inclusive dispensa gastos com mamadeiras, bicos e gás de cozinha, além de outros decorrentes de doenças, que são mais comuns em crianças não amamentadas(1717. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: aleitamento materno e alimentação complementar. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2015.).

Por outro lado, as famílias preocupadas como o crescimento e o desenvolvimento das crianças e, em consequência, com o processo saúde/enfermidade/atenção-prevenção, decidem que o AMM deve se prolongar por tempo que vai ao encontro das recomendações da OMS(11. World Health Organization; United National Children’s Fund; International Baby Food Action Network Brasil. Estratégia global para a alimentação de lactentes e crianças de primeira infância. 2005 [citado 2014 set 14]. Disponível em: http://www.ibfan.org.br/documentos/ibfan/doc-286.pdf.
http://www.ibfan.org.br/documentos/ibfan...
). Nessa lógica, o AMM toma o sentido estrito das práticas de autoatenção, pois ao atribuir determinado valor ao leite materno e ao próprio aleitamento, as famílias decidem pela amamentação ao peito para prevenção de agravos e promoção da saúde. Ressalta-se que a prevenção é parte estrutural da autoatenção, uma vez que cabe às sociedades e aos indivíduos produzirem concepções e usarem atividades que os protejam de aspectos que consideram ameaçadores ao grupo.

Assim, nos sentidos amplo e restrito e no seu caráter de atenção-prevenção, as práticas de autoatenção aqui apreendidas, tal qual estudo australiano desenvolvido em meio rural, têm o significado de “eu estou fazendo o melhor para...”(1818. Helps C, Barclay L. Aboriginal women in rural Australia: a small study of infant feeding behavior. Women Birth. 2015 [cited 2016 Oct 12];28(2):129-36. Available from: http://www.womenandbirth.org/article/S1871-5192(14)00127-9/pdf.
http://www.womenandbirth.org/article/S18...
), o que parece ancorar-se na concepção Geertziana de cultura, entendida como “modelos de e modelos para(77. Geertz C. Uma descrição densa. In: Geertz C. A interpretação das culturas. 13. reimpr. Rio de Janeiro: LTC; 2008. p. 3-21.).

Os dados indicam, também, que essa prática se autonomiza porque, mesmo interpretando que o leite materno faz bem à saúde da criança, entendem que não basta por si só, necessitando ser complementado. Desse modo, em função das condições sociais, da singularidade de cada mãe e de suas famílias e das representações simbólicas relativas ao AM, à criança e aos alimentos produzidos no meio rural, a alimentação das crianças torna-se relativamente autônoma(88. Menéndez EL. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Ciênc Saúde Coletiva. 2003;8(1):185-207.). As famílias optam pela inclusão de outros líquidos à alimentação das crianças, abandonam por conta própria a prescrição de fórmulas lácteas e optam pelo leite de origem animal produzido em propriedade rural própria ou de vizinhos. Percebe-se que o AMM, antes e após o sexto mês de vida da criança, é um padrão nessa cultura.

Além disso, o entendimento sobre os modelos explanatórios que apoiam as decisões relativas à alimentação das crianças é importante na promoção do diálogo entre diferentes culturas – neste caso, da família e do Modelo Médico Hegemônico -, visto que a tessitura desses modelos não se restringe aos saberes obtidos na convivência com seus especialistas. A apreensão dos significados e dos sentidos produtores de modelos explanatórios auxilia na interpretação sobre o modo como as práticas de autoatenção são articuladas, cabendo a ressalva de que são fruto de uma dinâmica transacional em que há interação de saberes e fazeres de distintos sujeitos e espaços de atenção à saúde, que operam como seus referentes(88. Menéndez EL. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Ciênc Saúde Coletiva. 2003;8(1):185-207.).

Percebe-se, então, que a alimentação das crianças não é uma prática de autoatenção “pura”, porque ela, além de ter sentido amplo e restrito, se alinha a mais de um segmento de atenção à saúde, uma vez que as informantes transitam entre o Modelo Médico Hegemônico e os conhecimentos da própria família e comunidade. Nesse movimento transacional vai se produzindo o Modelo da Autoatenção – núcleo articulador das diferentes formas de atenção à saúde que essas mulheres e suas famílias utilizam no enfrentamento de situações que afetam ou podem afetar sua saúde e de suas crianças, de forma real ou imaginária, sem a necessária interferência, direta e intencional, de especialistas do Modelo Médico Hegemônico, mesmo que esses sejam, por vezes, uma referência(88. Menéndez EL. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Ciênc Saúde Coletiva. 2003;8(1):185-207.,1111. Entrevista: Eduardo Luis Menéndez Spina. Trab Educ Saúde. 2012 jul-out;10(2):335-45.).

A compreensão dessa autonomização, de ambos os sentidos impressos no AMM e dos modelos explanatórios que guiam as decisões das mães e suas famílias em relação à alimentação das crianças, é basilar para superação de antigos modelos de atenção à saúde, a exemplo do Modelo Médico Hegemônico. Os profissionais do campo da saúde, dentre eles os enfermeiros, subsidiados por essa compressão, poderão desenvolver ações fundamentadas em modelos que se ancorem nas necessidades de cada mulher e família, sua história pregressa e seus anseios momentâneos, respeitando e compartilhando conhecimentos em atitude de corresponsabilidade e em verdadeiro diálogo intercultural(1919. Oliveira CS, Iocca FA, Carrijo MLR, Garcia RATM. Breastfeeding and complications that contribute to early weaning. Rev Gaúcha Enferm. 2015;36(spe):16-23. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v36nspe/en_0102-6933-rgenf-36-spe-0016.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v36nspe/e...
-2020. Gilbert J. Reflecting on intercultural dialogue in nursing. Texto Contexto Enferm. 2006;15(1):131-6.).

Percebe-se, assim, a importância do domínio e do uso de aportes teórico-conceituais, também na perspectiva cultural, destacando-se o conceito de acomodação/negociação do cuidado(1515. Leininger M, McFarland MR. Transcultural nursing: concepts, theories, research and practice. 3rd ed. New York: McGraw-Hill; 2002.) e a noção de diálogo intercultural(2020. Gilbert J. Reflecting on intercultural dialogue in nursing. Texto Contexto Enferm. 2006;15(1):131-6.). Esse conceito se refere a ações e decisões para assistir, dar suporte, facilitar às pessoas de uma determinada cultura a adaptar-se ou negociar com provedores de saúde profissionais(1515. Leininger M, McFarland MR. Transcultural nursing: concepts, theories, research and practice. 3rd ed. New York: McGraw-Hill; 2002.). O diálogo intercultural permite o estabelecimento de relações significativas e respeitosas com culturas diferentes que a do profissional, que passa a entender o comportamento e o pensamento do outro a partir das perspectivas pessoais e culturais deste outro. Nessa interação são necessários o entendimento dos elementos sociais, políticos, econômicos e simbólicos que envolvem o processo saúde/enfermidade/atenção-prevenção e, neste caso, da alimentação das crianças, bem como o conhecimento das questões de poder e dominação envolvidas nas interações humanas, inclusive na própria comunicação intercultural(2020. Gilbert J. Reflecting on intercultural dialogue in nursing. Texto Contexto Enferm. 2006;15(1):131-6.). Desde essa perspectiva, a compreensão clara acerca dos capitais de protagonismo das mães e famílias rurais na atenção à saúde de suas crianças é fundamental para ações eficazes e culturalmente congruentes.

Na lógica do diálogo intercultural e da acomodação do cuidado parece que, no estabelecimento de uma relação pautada pelo respeito, protagonismo e autonomia, o profissional poderá tornar-se um aliado da família, contribuindo para a promoção da saúde do núcleo familiar. Para isso, ressalta-se que, na busca de uma solução pragmática para seus padecimentos, são as atividades realizadas pelos próprios sujeitos e grupos sociais que geram a maioria das articulações entre as diversas formas de atenção, superando frequentemente a suposta ou real diferença ou incompatibilidade existentes entre as mesmas(88. Menéndez EL. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Ciênc Saúde Coletiva. 2003;8(1):185-207.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A alimentação das crianças no meio rural estudado representa uma forma de promoção da saúde e de enfrentamento de processos de adoecimento, a exemplo do que ocorre em outros cenários rurais e urbanos. A semelhança com o meio urbano relaciona-se, dentre outros motivos, com a imprecisão das fronteiras, identificada na medida em que informantes deste estudo inserem-se em atividades profissionais e buscam serviços neste espaço.

Ao alimentar uma criança, associam-se conhecimentos de diferentes modelos de atenção – Médico Hegemônico e familiar/popular, articulados pelo Modelo de Autoatenção. Nessa articulação, os benefícios do AM são reconhecidos e, na opção por essa prática, a família mostra-se como importante fonte de incentivo e apoio, contribuindo para minimizar as dificuldades enfrentadas pela nutriz, o que reflete positivamente na saúde da criança.

Pensando-se nas contribuições deste estudo no campo da atenção à saúde da criança, entende-se que seus resultados informam a relevância de espaço na formação acadêmica para conteúdos relativos aos elementos culturais do cuidado, em simetria com os demais. Essa formação permitirá, em tese, que o profissional efetue dobras sobre os saberes da cultura que guia a atenção à saúde da criança e se aproxime do contexto cultural das famílias, contribuindo na promoção do crescimento e desenvolvimento saudável das crianças com reflexos nas demais fases da vida, visto que a alimentação influencia na qualidade e condições de saúde até a velhice, em razão de fatores não só nutricionais, mas também simbólicos.

O tempo de permanência da pesquisadora no campo pode representar uma das limitações deste estudo, contudo seus resultados são representativos do grupo e do contexto estudado. Entretanto, assinala-se que este estudo, na área da pesquisa, acrescenta produção de conhecimento na perspectiva cultural e suas interfaces na atenção à saúde da criança, sinalizando um profícuo campo de investigação para a enfermagem. A despeito das contribuições na perspectiva cultural, indica-se o desenvolvimento de investigações no cenário rural sob outras abordagens, em razão da multidimensionalidade da temática estudada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2016
  • Aceito
    06 Fev 2017
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