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ENTRE FATOS DIVERSOS: LITERATURA E TRABALHO NAS CARTAS DE PAULO BARRETO E DE LIMA BARRETO1 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo.

AMONG MISCELLANEOUS FACTS: LITERATURE AND WORK IN THE LETTERS OF PAULO BARRETO AND LIMA BARRETO

Resumo

Este artigo pretende refletir, a partir das cartas de Lima Barreto e de Paulo Barreto, como se opera a relação entre a literatura e o mundo do trabalho, nas primeiras décadas do século XX. Por meio da heterogeneidade das epístolas, se busca entender como o processo da criação ficcional, no contexto de sua produção e circulação, se realiza na tensão entre a arte e o mercado. Balizada na história cultural e na escrita íntima, este estudo procura igualmente mostrar como a correspondência se torna um instrumento necessário para o artista construir uma imagem de si, bem como uma ferramenta mediadora para fazer negócios e para a publicização dos textos literários. Assim, se intenta contribuir para o aprofundamento da obra desses dois escritores, expondo a complexidade do processo histórico de produção e divulgação de seus livros.

Palavras-chave
Cartas; literatura; trabalho; comércio; história

Abstract

This article intends to reflect, based on the letters of Lima Barreto and Paulo Barreto, on how the relationship between literature and the world of work operates in the first decades of the 20th century. From the heterogeneity of the epistles, we seek to understand how the process of fictional creation, within the context of its production and circulation, takes place in the tension between art and the market. Based on cultural history and intimate writing, this study also seeks to show how correspondence becomes a necessary instrument for the artist to build an image of himself, as well as a mediating tool for doing business and publicizing literary texts. Thus, it intends to contribute to the deepening of the work of these two writers, exposing the complexity of the historical process of production and dissemination of their books.

Keywords
Letters; literature; work; commerce; history

Considerações iniciais: no labirinto da carta

A correspondência é a cartola mágica do missivista, visto que, de dentro dela, um mundo plural e íntimo pode ser revelado. Tudo pertence ao espaço da carta, desde os assuntos sérios até os capítulos de uma história frívola: notas biográficas, anedotas, fofocas, testemunhos, tratos do cotidiano, amores secretos e não tão secretos assim, escambos financeiros, projetos literários, memórias, temas políticos e reflexões filosóficas, confissões e angústias pessoais. Ela pode também vir acompanhada de cheiros (os bilhetes perfumados), pequenos acessórios (brincos, pingentes e anéis) e manuscritos (livros, ensaios, crônicas e artigos) que comunicam lembranças, promessas, trocas intelectuais e interesses comerciais.

Gênero literário infenso à fronteira, a carta é texto híbrido, incerto, possuindo uma forma flexível, que trafega entre outros modelos vagos: diários, autobiografias, memórias. É por essa razão que Diaz (2016, p. 46-47)DIAZ, Brigitte. O gênero epistolar ou o pensamento nômade: formas e funções da correspondência em alguns percursos de escritores no século XIX. Tradução de Brigitte Hervot e Sandra Ferreira. São Paulo: Edusp, 2016. vai chamar a literatura epistolar de “pensamento nômade”, pois seu poder está fecundado na disposição de conter todos os registros e digressões, indo da cogitação moral à crítica literária, zombando dos discursos constituídos numa encruzilhada de elementos históricos, estéticos e ideológicos.

As correspondências de Paulo Barreto3 3 Todas as cartas do autor se encontram em PONCIONI, Claudia & CAMILOTTI, Virginia (org.). Muito d’alma: cartas de Paulo Barreto (João do Rio) a João de Barros (1909-1921). Rio de Janeiro: Garamond, 2015. (João do Rio) ao poeta português João de Barros, assim como as missivas do carioca Lima Barreto4 4 Todas as cartas do autor se encontram em CAVALHEIRO, Edgard. A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto. Rio de Janeiro: Versos Brasil, 2017. ao paulista Monteiro Lobato, flutuam nesse labirinto de temas, fatos e sentimentos, tendo a literatura como o princípio norteador da mensagem. São abordadas questões sobre amizade, amor, ficção, trabalho, dinheiro, política, crises sociais, fracassos pessoais, intrigas, bisbilhotices, planos literários, estilo epistolar, guerra mundial e problemas nacionais. Essa infinidade de motes é condensada em múltiplas temporalidades, despertando a sensibilidade dos artistas para distintas texturas e contextos.

Efetivamente, este estudo pretende refletir, a partir do espaço epistolar e das várias significações contidas nas cartas, sobre como esses autores operam a relação entre literatura e trabalho, segundo a concepção que cada um possui sobre a arte. Tal investigação é significativa porque expõe como os percursos ficcionais são afetados em função do mercado de livros, revelando os obstáculos que os literatos experimentaram para que suas obras fossem publicadas e postas em circulação. As correspondências, nesse aspecto, se mostram uma fonte potencial de informação, descortinando detalhes da história do processo literário no Brasil República, que inclui a tensão do artista entre a necessidade de sobreviver e a comercialização de sua arte.

Com efeito, uma missiva possui sempre uma perspectiva histórica. O indivíduo que escreve não elabora apenas uma imagem de si, mas também da comunidade a que pertence, dos hábitos que compartilha, das paisagens e dos locais que vivencia. Ele trata igualmente sobre os laços com outros indivíduos, constrói uma crônica do cotidiano, despontando toda uma sociabilidade, marcada por desejos, tormentos, expectativas e conflitos. Essa experiência e instantes fixados vêm datados na estrutura formal da carta, indicando sua temporalidade. Mas, deve-se salientar, que o tempo da correspondência é um tempo perdido, em defasagem. A distância e a duração do envio produzem um espaço temporal dilatado, às vezes, marcado de mal-entendidos. Enquanto o remetente escreve num devir, para o momento de recepção futura; o destinatário apanha a mensagem com atraso, porque os eventos, as dúvidas e os relatos já foram inscritos num passado (HAROCHE-BOUZINAC, 2016HAROCHE-BOUZINAC, Geneviève. Escritas epistolares. Tradução de Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Edusp, 2016., p. 111-119).

O relógio epistolar é caracterizado pelo retardamento e pela fragmentação; o calendário e as horas nem sempre correspondem ao momento da escrita ou à data da emissão. Uma carta pode ser feita às pressas, ao correr da pena e dos minutos, como também pode levar dias para ser preparada, tendo qualidade cumulativa. Escreve Paulo Barreto (1919): “esta carta foi começada há dez dias. Desejei terminá-la para ir com a Júdice, mas fiquei doente ligeiramente na véspera da partida da cantora ilustre”.5 5 PONCIONI, Claudia & CAMILOTTI, Virginia, op. cit., p. 188.

Em períodos de crises e tensões históricas, os riscos de extravios podem aumentar, o que alarga ainda mais as distâncias temporais da epistolografia. O autor brasileiro também passa por esses apertos, no contexto da Primeira Guerra Mundial, quando escreve a João de Barros, residente em Portugal. Em várias de suas missivas comenta sobre as angústias e os medos no que se refere à perda de suas mensagens, à irregularidade dos correios, ao padecimento que sente com a separação e ausência de notícia, gerada pela guerra e pela lentidão dos postais.

Há positivamente um inferno de cartas perdidas e em atrasos com a guerra! Imagina q. – só ontem recebi três cartas tuas e o teu último livro – ainda não falando de cartas minhas e de uma conferência q. te mandei (nº do País). Por essas mesmas cartas, parece-me q. não recebes o País, quando dei a tua adresse para a remessa diária

(BARRETO, P., 1916).6 6 Idem, p. 145.

Porém, não é preciso sobrevir um grave conflito mundial ou um afastamento transatlântico para existir um equívoco epistolar. O silêncio de uma missiva não recebida acarreta reclamações e incertezas, podendo pôr em perigo a amizade e os negócios dos correspondentes. Esse sentimento de desconfiança e de ansiedade foi expresso por Lima Barreto numa carta a Monteiro Lobato (1919), em que aquele se queixa de não obter nenhuma resposta aos seus bilhetes: “apesar de não ter até hoje recebido resposta de três sucessivas cartas que te escrevi, nem acusação de teres recebido o manuscrito de um conteco meu, mando-te mais este bilhete, a fim de acompanhares a notícia do Gonzaga de Sá, que A Notícia deu”.7 7 CAVALHEIRO, Edgard, op. cit., p. 63.

É complexo e instável o mundo das cartas, mexendo não somente no campo da intimidade, mas também em aspectos da vida pública, como as relações de trabalho. Tanto Paulo Barreto quanto Lima Barreto utilizaram as epístolas como uma mediação para negociar e divulgar sua arte. Seus projetos literários dependiam igualmente do sucesso estabelecido nas trocas das missivas, no contato amistoso com o destinatário. E o estilo simples, que beira à conversação, não deixa de lado o cuidado com as palavras, o uso e a escolha de termos adequados, buscando evitar assim qualquer desentendimento. Destarte, toda correspondência é uma convenção, porque possui um procedimento e um ajuste de posição entre as partes.

Uma missiva não é nada ingênua, feita ao sabor do vento e da espontaneidade de quem escreve. Sua naturalidade e leveza são uma construção estética. Seus improvisos e negligências passam por uma triagem, fazendo parte de uma criação. Com efeito, a carta é uma literatura nem sempre confessada, cuja tessitura está mergulhada de intenções e de técnicas literárias. Ao escrever epístolas, os autores em estudo estão pondo em prática seu fazer artístico, jogando com as palavras numa perspectiva de distância e de aproximação. Enquanto a distância assegura o tom respeitável e um grau de admiração, marcados por pedidos de desculpas e agradecimentos aos destinatários; a proximidade é sinalizada por adjetivos afetuosos, a utilização de diminutivos e do tratamento informal, como uso do pronome tu ou você. A inserção de anedotas, de intrigas ou de pequenos mexericos, de acontecimentos privados e domésticos dá o colorido ao espaço epistolar dos escritores, produzindo uma atmosfera de familiaridade e de confidência, o que retira a frieza protocolar de um contato mais profissional. Do mesmo modo, os pontos de referência, que remetem ao local de onde se escreve, ajudam a remover o lugar de limbo e a separação que circunscrevem o universo dos epistológrafos.

O que se verifica nas trocas contínuas de cartas desses ficcionistas era um laço de amizade, condicionado pela afinidade com as letras. Ao mesmo tempo, existia um interesse comercial, ou seja, a possibilidade de vender, ganhar dinheiro e fazer circular o produto literário. Em Paulo Barreto, o problema financeiro surge nas mensagens quase de modo obsessivo durante a Primeira Guerra. Isso se torna compreensivo, visto que os honorários do escritor resultavam principalmente de seu trabalho como jornalista, profissão bastante vulnerável no período, estando sujeita às circunstâncias e às arbitrariedades políticas. Também é marcante, em suas epístolas, a fundação da Revista Atlântida, em 1915, periódico cuja finalidade era desenvolver um circuito literário e cultural entre Brasil e Portugal. Outro ponto forte em sua comunicação epistolar é a amizade que nutre por João de Barros.

No caso de Lima Barreto, a necessidade de receber proveitos monetários se mostra menos intensa nas missivas. Parece estar mais interessado na divulgação de seus escritos e de construir um diálogo sobre a literatura, fazendo intercâmbio de leituras, comentando as obras de outros escritores, o processo de publicação de seus textos, a quantidade de exemplares de seus livros, as críticas recebidas nos jornais. Sua compreensão militante da arte colocava o problema da comercialização de livros numa posição secundária. Mais do que ganhar dinheiro, o autor estava preocupado em revelar as injustiças sociais por meio de sua obra.

A correspondência abrange um “espaço literário virtual” (DIAZ, 2016DIAZ, Brigitte. O gênero epistolar ou o pensamento nômade: formas e funções da correspondência em alguns percursos de escritores no século XIX. Tradução de Brigitte Hervot e Sandra Ferreira. São Paulo: Edusp, 2016., p. 237), porque elabora uma rede de debate sobre a literatura, se tornando um precioso campo crítico, já que os escritores entram em diálogo com outros artistas, tratam da função social da escrita, tiram retratos de si mesmo, falam de obras em andamento. Em suas missivas, Lima Barreto e Paulo Barreto fotografaram várias imagens de si, como autores, leitores, editores, negociadores, críticos literários e propagandistas de sua ficção. Nelas, eles expuseram toda a comunidade profissional envolvida no processo de circulação de seus textos, mostrando que o sucesso de uma obra não dependia somente do talento do artista, se fazendo necessário igualmente estabelecer contato com editores, jornalistas, leitores, distribuidores ou vendedores, no caso as livrarias. Era preciso que o livro tivesse uma boa diagramação, a feitura da capa fosse graciosa e as folhas estivessem em bom estado. Tudo isso atrairia o público e os leitores em potencial.

Vale dizer que as cartas dos literatos quase nunca transitavam sozinhas pelos correios, sendo acompanhadas, geralmente, com as peças de trabalho: 1. manuscritos de contos, crônicas, ensaios, artigos e livros; 2. retalhos de jornais, contendo críticas à obra publicada; e 3. cópias de contratos. Quando acompanhada de uma obra, as epístolas explicavam o objetivo da criação artística, a dificuldade de sua confecção, as alterações e revisões realizadas, os abatimentos e as alegrias sentidas no preparo dos textos, as doenças que emperravam o trabalho literário, a possibilidade de publicação. Os relatos, as declarações e as confissões sobre as demandas do procedimento criativo eram comunicados como desabafos íntimos sobre o cotidiano da escrita. Isso converte a correspondência numa espécie de diário, no qual as experiências pessoais, os hábitos do dia a dia e as notas sociais eram postas em papel. É por essa razão que a carta é uma fala de si, ainda que remeta a um outro – o destinatário.

Analisar as epístolas de Paulo Barreto e de Lima Barreto é penetrar nos lugares escondidos da história da literatura, observando uma série de operações conjuntas que é inalcançável ao público leitor. A carta é a coxia dos literatos, um espaço fora de cena e ponto de passagem fundamental para o destino final da obra – o grande público. Lá pode se encontrar todo o elenco por trás da divulgação do livro, o esforço e o preparo dos romancistas, a concepção e o processo de fabricação de seu texto. Para apreender com minúcia os elementos que compõem o recinto secreto da correspondência, esta investigação se organiza em duas partes: a primeira examina as mensagens de Paulo Barreto, e, a segunda, os bilhetes de Lima Barreto. Na conclusão, faremos uma confrontação entre as duas produções epistolográficas, tomando como focagem a encruzilhada entre arte, jornalismo e trabalho.

Lima Barreto e Paulo Barreto não eram amigos e pertenciam a círculos culturais distintos. Aliás, o escritor de Triste fim de Policarpo Quaresma (2011)BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguin-Companhia, 2011. fez diversas censuras ao autor de A alma encantadora das ruas (2008)RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., seja em seus romances, crônicas e até mesmos em cartas aos colegas. Apesar de certa inimizade, havia entre eles pontos biográficos comuns: amaram a literatura e a cidade do Rio de Janeiro, buscaram compreender a cultura popular urbana, tinham prazer na flânerie e possuíam uma narrativa familiar parecida. Eram escritores negros, de origem pobre, e seus avós estavam ligados à história da escravidão. Ambos foram versáteis, flutuando entre diversos gêneros: romance, conto, ensaio, crônica e artigos.8 8 Sobre Lima Barreto ver: BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. 7ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017; e sobre João do Rio, ver MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. A vida vertiginosa de João do Rio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, DF: INL, 1978; RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: vida, paixão e obra. Rio de Janeiro: Organização Brasileira, 2010.

A análise das cartas desses autores, em seu conjunto, nos possibilita uma compreensão de seu fazer literário, da atividade laboral que constitui a ficção, desmistificando a obra literária como resultado de pura inspiração. Suas correspondências revelam que o texto ficcional é composto da individuação do escritor, como também de um trabalho de pesquisa, de condições técnicas e legais, de redes de negociação com os diversos ofícios e encargos que envolvem o campo da arte. As epístolas descortinam que a qualidade de uma obra depende não somente da força criativa, mas também de seu formato, da construção da página, da divisão do texto, da escolha da capa, oferecendo uma compreensão histórica do escrito, que fazem os textos descerem “do céu para a terra”, como destacou Chartier (2010, p. 7)CHARTIER, Roger. "Escutar os mortos com os olhos". Estudos Avançados, São Paulo, v. 24, n. 69, p. 8-30, 2010. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/10510/12252>. Acesso em: 10 abr. 2023. doi: <https://doi.org/10.1590/S0103-40142010000200002>.
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Aos bocados: cartas de Paulo Barreto (João do Rio) a João de Barros

Escritas entre 1909 e 1921, nas redações e nas penumbras dos jornais, durante as viagens a trabalho ou nos hotéis onde se hospedava, as correspondências de Paulo Barreto9 9 O autor assinava geralmente as cartas com o nome civil. Em razão de sua preferência, quando se tratar das correspondências, o escritor será tratado como Paulo Barreto. ao poeta português João de Barros parecem ser elaboradas às pressas. A impressão é de que ele escrevia com o pensamento da hora, sem talhar muito as palavras, podendo tratar de qualquer assunto em mente. Os locais de sua escritura epistolar eram arranjados, conforme o espaço-tempo livre que sobrava, comumente apertado. Era uma conversa de amigos, que se afigurava aberta e espontânea. O texto “improvisado” acompanha uma linguagem também ligeira, marcada por traços e abreviações dos pronomes de tratamentos: “você” (v.), demonstrativo “meu” ou “minha” (m.) e relativo “que” (q.). Como observaram Poncioni e Camilotti (2015, p. 17), esse estilo lembra a transmissão telegráfica. O papel usado para redigir as missivas demonstra igualmente uma escrita improvisada: as folhas timbradas dos hotéis e os linguados, que eram laudas em tiras, muito usadas nas redações periodistas. “Escrevo-te aqui, na redação, em linguados destinados à tipografia – porque é desejo meu escrever-te muito e logo, e no momento falta-me o meu papel” (1909).10 10 PONCIONI, Claudia & CAMILOTTI, Virginia, op. cit., p. 47.

Esse é o primeiro retrato de si que o escritor elabora em suas mensagens – a de um homem extremamente ativo e apressado, redigindo cartas nos intervalos, nos momentos de insônia, às vezes enfermiço, em estado nervoso. Seus bilhetes aparentam ser guiados pelo calor das paixões e dos sentimentos: “por estas linhas vês q. estou quase furioso” (1919),11 11 Ibidem, p. 173. “pedi-te perdão por telegrama das minhas cartas nervosas” (1920).12 12 Ibidem, p. 217. Nas situações de aflição suspendia as tarefas e punha a escrever para o amigo. “Escrevo-te porque estou tão nervoso q. não posso terminar agora as 5 folhas restantes da Conferência. É o entusiasmo do verbalismo” (1919).13 13 Ibidem, p. 172.

Assim, ele está constantemente falando de seu modo epistolar, quase como um pedido de desculpa. Nesses momentos, a carta se constitui numa metalinguagem, em que o autor assume um estilo de escrever, que finge irrefletido e instintivo, se configurando numa espécie de teatralização, comum ao gênero (HAROCHE-BOUZINAC, 2016HAROCHE-BOUZINAC, Geneviève. Escritas epistolares. Tradução de Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Edusp, 2016., p. 136). Paulo Barreto inicia suas cartas a miúdo com: “este bilhete é rápido”, “um simples bilhete de despedida, escrito a correr”, “desculpa a brevidade destas [cartas]”, “um curto bilhete apenas para dizer-te adeus” (1909, 1912, 1913).14 14 Ibidem, p. 37, 45, 53, 81. Há o desejo de conversar, de registrar a crônica do dia, dos pequenos fatos da cidade e do ambiente cultural, mas o trabalho, a fadiga e o barulho das redações impedem uma longa missiva. “Sempre q. pretendo escrever uma carta longa, as atrapalhações da Gazeta cortam-me o tempo” (1912).15 15 Ibidem, p. 62. “Tenho tanta coisa com o q. preocupar o espírito e agitar o corpo q. é impossível a tranquilidade de uma longa epístola” (1914).16 16 Ibidem, p. 97. “Ia escrever-te uma longa epístola. Esse pessoal fala tanto aqui, q. suspenso aturdido” (1912).17 17 Ibidem, p. 65.

A busca por uma escrita epistolar que pareça espontânea se manifesta igualmente pela maneira como se identifica. Seu pseudônimo mais conhecido, João do Rio, marca indelével de seu fazer literário e de seu sucesso como autor, só aparece duas vezes como assinatura, permanecendo depois seu verdadeiro nome. Essa preferência não é desinteressada! Além de criar uma proximidade e um contato mais informal, procura passar uma imagem de autenticidade. Não é o literato que escreve as correspondências, mas o homem sem artifício – o amigo e admirador. Nelas, não existe a artimanha inventiva do artista, mas somente a verdade. A alcunha fictícia era para a vida pública e para a literatura. No mundo privado das epístolas, ele era ele mesmo. “O livreiro daí, a casa da revista, a sede, etc. Eu não sou Paulo Barreto, sou João do Rio só para letras” (1915).18 18 Ibidem, p. 114.

Mas as cartas “não premeditadas” do escritor são uma fabricação, marcada de ambiguidades e de narrativas inventadas. O modo abreviado como escreve faz parte de seu estilo e da maneira como quer ser visto pelo destinatário. A autenticidade que busca imprimir nas correspondências passa por um processo de representação de si e do outro. Walnice Galvão (2008, p. 26)GALVÃO, Walnice Nogueira. À margem da carta. Teresa: Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 8-9, p. 14-29, 2008. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/116656/114243>. Acesso em: 10 abr. 2023.
https://www.revistas.usp.br/teresa/artic...
, em entrevista cedida à revista Teresa, comenta o problema da demarcação entre a carta como documento histórico e produção literária:

O problema é o limite… Quando é que a carta deixa de ser documento histórico e passa a ser construção literária? Como saber se a pessoa está inventando? Frequentemente está… Proust inventava à beça nas cartas, queixando-se tanto e de tantas doenças que dá para desconfiar se não seria uma invenção, uma forma de distanciamento…

Paulo Barreto faz uma triagem, seleciona e recorta palavras. Ele revisa seus bilhetes e notas, questiona seu estilo epistolar, mostrando que a improvisação de suas missivas é uma farsa. “Releio a minha carta. É de doido. Parece hospício. Mas q. fazer? Estou estúpido e o estilo morre” (1914).19 19 Ibidem, p. 105. “Releio estas notas. Se eu escrevesse sempre neste lindo estilo só tinha um caminho a seguir: ser reprovado em português e, em seguida, eleito membro efetivo da Acad. Brasileira!” (1919).20 20 Ibidem, p. 191. “Tenho tristeza em confessar q. meu estilo epistolar desaparece totalmente quando te escrevo (…). Decididamente gosto muito do Poeta!” (1919).21 21 Ibidem, p. 180.

O ficcionista elabora um jogo epistolar, num velar e desvelar da pessoa íntima e da pessoa pública, do homem ordinário e do homem de letras, do indivíduo que pensa quando escreve, ou se perde em sua escritura quando apaixonado. Em meio a isso, ele vai procurando rascunhar diversos autorretratos: o amante, o inimigo público, o trabalhador exaustivo, o valente. Meias verdades e meias mentiras vão se costurando nas missivas, numa encenação que busca fazer rir o destinatário, como também enfeitar a si mesmo. Paulo Barreto não conseguia retirar por completo sua máscara literária – o personagem-escritor João do Rio. Com efeito, as correspondências vão se convertendo num álbum de fotografias inventadas.

A imagem do amante pode ser destacada na passagem em que narra sua relação com a coreógrafa norte-americana Isadora Duncan: “Eu devia dizer-te q., mesmo sem dinheiro passei os 15 dias mais felizes da minha vida no êxtase amoroso, no verdadeiro amor, com uma criatura q. é Gênio, Bondade divina – tudo. Essa criatura q. me olhou, q. me desejou, q. quase me faz secretário humilde, foi Isadora” (1916).22 22 Ibidem, p. 152. Já o autorretrato de homem valente é relatado numa mensagem hiperbólica que conta sobre uma suposta desavença que teve na rua:

No dia do ensaio geral estava doido. Tão doido q. à 1 da noite [rasura] esbordoei na Avenida três homens e levei-os à delegacia. A fúria redobra a força. Espanquei-os com a mão esquerda e os pés – porque tinha a mão direita ferida por um desastre de automóvel q. quase leva desta para melhor eu e a senhora minha mãe (1912).23 23 Ibidem, p. 55.

Entre tantos “eus”, outras representações vão surgindo, como a do indivíduo vingativo: “conheço há 10 anos essa gente na intimidade. A hostilidade era fatal. Não te aborreças. Deixa-os. Eu vingo-me depois como vinguei dos ares de idiota do Schwalbach.24 24 Eduardo Frederico Schwalbach Lucci (1860-1946) foi um jornalista e escritor português que colaborava na revista quinzenal Brasil-Portugal (1889-1914). Sou um inimigo talvez inconveniente para quem tem interesses no Rio” (1913);25 25 Ibidem, p. 73. e o trabalhador exaustivo: “isso custa um trabalho estafantíssimo e prático no momento em q. eu voltei freneticamente a escritor: 2 folhetins para o Commercio, 1 para o Correio Paulistano, uma nota diária na Rua, outra no País, fora os artigos de sábado, etc., etc., etc.” (1915).26 26 Ibidem, p. 116.

Paulo Barreto explicava a João de Barros que suas epístolas eram “malucas”, compostas de “faits-divers dos Séculos”. Embora a literatura e o trabalho fossem a tônica das correspondências, ele tratava de vários assuntos: sérios e frívolos. Narrava suas aventuras amorosas, fazia mexerico das atrizes e mulheres ricas, falava das políticas governamentais, como a construção de casas operárias no governo do Marechal Hermes da Fonseca (1910-1914), contava causos sobre sua mãe, comentava a situação do país durante a Primeira Guerra Mundial, relatava sobre a crise financeira e o estado de sítio, discutia o problema do jacobinismo, que criava uma tensão entre Brasil e Portugal. Todos esses “bocados” de acontecimentos, desejos e sentidos se entrelaçavam com os múltiplos “eus” espelhados do autor.

Suas cartas são um mosaico da sociedade e da vida literária de seu tempo. Livros, artigos, conferências, peças teatrais, ensaios, crônicas, notas de jornais, críticas textuais se entrecruzam no espaço da missiva. Um desfile de figuras importantes do universo das letras do Brasil e de Portugal se apresenta na passarela epistolar: donos de periódicos, jornalistas, redatores, editores, escritores, poetas, distribuidores, diretores de teatro, companhias teatrais, atrizes e atores. Também comparecem nessa miscelânea um cortejo de homens poderosos: ministros, deputados, senadores, presidentes, diplomatas e governadores. Eles eram referidos como uma força de apoio para a execução de projetos literários, o financiamento de viagens e de conferências.

Todos esses contatos e sistema de trocas oferecem um outro retrato, a de um homem com grande eficácia política, que constrói diversas possibilidades de trabalho, por meio de inúmeras negociações. Sua esperteza política pode ser evidenciada num episódio de agressão que sofreu, em 1920, feito pelo capitão Frederico Villar. Enquanto almoçava no restaurante da Brahma, o escritor foi abordado pelo capitão e por outros indivíduos fardados, recebendo vários socos e bengaladas. O motivo do ataque foi o apoio que o autor ofereceu aos pescadores de origem portuguesa, que estavam sofrendo pressão do governo brasileiro para uma naturalização compulsória. Paulo Barreto recebeu a solidariedade de vários homens públicos, como do deputado Maurício de Lacerda, do jornalista e escritor Medeiros e Albuquerque, de Rui Barbosa, de Monteiro Lobato, entre outros (RODRIGUES, 2010RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: vida, paixão e obra. Rio de Janeiro: Organização Brasileira, 2010., p. 255-257).

A violência foi relatada brevemente a João de Barros. O que se destaca é a maneira como o jornalista percebeu a situação, buscando se aproveitar da notoriedade que recebeu. O literato saiu ainda mais forte da agressão, concentrando, em torno de sua figura, pessoas de poder. Isso demonstrava a seus inimigos e detratores o grande prestígio que tinha como literato. O caso revela igualmente algo da personalidade elástica do autor, capaz de converter a adversidade e a humilhação num evento favorável. “O caso da agressão foi muito conveniente. Eu mostrei a essa canalha um prestígio imediato e imenso – sacudindo Câmara, Senado, Supremo, etc.” (1920).27 27 Ibidem, p. 215.

Nas correspondências, ele arquivou sua própria vida, pondo no papel os fatos, os sentimentos, as lembranças, as ações e o pensamento que guiaram seu modo de ser. Segundo Artière (1998, p. 11)ARTIÈRE, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998. Disponível em: <https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2061/1200>. Acesso em: 10 abr. 2023.
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, “arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor à (sic) imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de resistência”. Portanto, os autorretratos do escritor não têm nada de ingênuos, pois procuram elaborar para o destinatário uma representação de um eu forte e influenciador, que não se deixa temer por seus inimigos. Tantos espelhos de alma não se destinavam apenas à figura de João de Barros, visto que uma carta poderia ter outros leitores, servir para a posteridade. Isso não passava de modo inconsciente pelo remetente. Assim, uma missiva nunca é inteiramente espontânea e a privacidade estava sempre na fronteira com o público. Sua naturalidade é retórica.

Diz Paulo Barreto: “não lhes mostres esta carta e prega-lhe a peça de concordar, inclusive como [rasura] casamento Áurea-Paulo. As pilhérias foram combinadas no Leme, à minha vista. Eu ri imenso” (1919).28 28 Ibidem, p. 189. Há sempre a possibilidade de ser lido por outrem; então, é preciso sublinhar certas qualidades, esconder alguns defeitos, aparecer sob um determinado ângulo, e assegurar estados de alegrias, de tristeza ou de seriedade, a fim de que a fotobiografia saia como esperada. O medo de um leitor indevido, por exemplo, pode ser visto no post scriptum de uma epístola de Monteiro Lobato a Lima Barreto. O autor de Urupês faz o curioso pedido para que a carta fosse descartada, depois de lida – “P. S. Pelo amor de Deus, leia e rasgue isto” (1918).29 29 CAVALHEIRO, Edgard, op. cit., p. 40.

Vale destacar que a imagem de empresário das letras surge, da mesma maneira, na escrita íntima de Paulo Barreto, em seu esforço hercúleo para alargar e fazer avançar a literatura. Tinha grandes ambições literárias, e entre elas, estava a fundação da revista Atlântida, junto com o amigo João de Barros. O primeiro número do periódico foi lançado em novembro de 1915, durante a Primeira Guerra Mundial. A ideia da revista tinha surgido seis anos antes, com o objetivo de estreitar as relações entre Brasil e Portugal, a partir da colaboração de artistas, escritores, jornalistas e políticos. Seus 48 números foram todos impressos em terra portuguesa, mas o empreendimento tinha igualmente escritório e agências no Rio de Janeiro. No magazine cooperaram Olavo Bilac, Júlia Lopes de Almeida, Alberto de Oliveira, Manuel de Souza Pinto, Oscar Lopes, Xavier Marques, Aurelino Leal, Vitor Vianna, Hélio Lobo e Afrânio Peixoto. Tanto o autor brasileiro quanto o poeta português pretendiam que a empresa fosse um grande sucesso financeiro, abrindo espaço para os anunciantes. A intenção era gerar uma produção literária de fôlego, com a participação de autores já consagrados pela crítica. O literato carioca ansiava em fazer uma obra artística suntuosa, inspirada em autores ilustres tal qual Oscar Wilde, Walter Crane, William Morris e Percy Bysshe Shelley.

Um simples bilhete, escrito a correr. Fui ao Porto, falei aos Lello, desenvolvi o plano da nossa revista num grande magazine de fôlego e de lucro. Ao mesmo tempo q. esta carta, segue a explicação definitiva para a livraria. Vai lá e fala-lhes. Podemos fazer arte esplêndida como Oscar Wilde, Walter Crane, Morris e até Shelley nos magazines ingleses e podemos ser de fato, jornalisticamente no mundo, diretores de uma força. Desenvolve meu tema. A situação, o momento, tudo diz: é agora. Não percamos a deliciosa q. passa…. Escreve-me para o Rio, Gazeta de Notícias, Ouvidor 70 (1909).30 30 PONCIONI, Claudia & CAMILOTTI, Virginia, op. cit., p. 45.

A Atlântida, logo de início, teve um bom acolhimento no Brasil. Numa das mensagens, o jornalista informava que o primeiro número vendeu 2.000 exemplares e que a quantidade de anúncios havia dado quase dois contos fracos. A previsão era de que, em maio de 1916, a empresa tivesse em torno de 1.000 assinantes (1915).31 31 Ibidem, p. 128. Mas a elaboração e a circulação da revista eram uma tarefa laboriosa, feita com muitos problemas, uma vez que as negociações e as decisões entre Paulo Barreto e João de Barros eram tratadas via correspondências, numa separação atlântica que causava vários mal-entendidos.

Desse modo, algumas missivas eram extraviadas, junto com os manuscritos enviados para a publicação; havia ainda a demora dos correios na entrega do material, aproximadamente entre 35 a 45 dias; existia a dificuldade de se conseguir colaboração de autores brasileiros de relevo; os textos demoravam para serem publicados, deixando os colaboradores aturdidos; as despesas com a propaganda da revista, somadas à falta de dinheiro, eram inúmeras. Por sua vez, a guerra aprofundou as distâncias e promoveu um caos postal, visto que muitas epístolas e textos eram perdidos e violados por censores: “é tal a desorganização das companhias de navegação e são tais e tantos os censors a abrir correspondências – q. desanimava de te escrever ou mandar originais – porque evidentemente muitos desses lá não tem chegado” (1916).32 32 Ibidem, p. 153. Com o conflito, muitos anunciantes também deixaram de publicar no magazine. A crise econômica vivida no Brasil suspendia igualmente o auxílio financeiro de políticos e amigos.

As complicações já podiam ser observadas no período de lançamento da Atlântida no país. As remessas vinham em partes, sendo compartilhadas em vapores ou chegando por encomendas postais. Isso levava um enorme tempo e gerava mais gastos, pois havia um custo para retirar cada material da alfândega. Tais confusões atrasavam o trabalho do escritor, que ainda se ocupava da divulgação, da porção literária e econômica da revista. Ademais, isso atrapalhava outros projetos pessoais e profissionais de Paulo Barreto, que precisava cavar a vida em tempos de crise. Em 1916, colaborava em jornais brasileiros, a exemplo d’O País, A Rua e Revista da Semana; escrevia para periódicos argentinos como El Diario e La Nación; tinha concluído os livros Crônicas de Godolfredo d’Alencar (1916)RIO, João do. Crônica e frases de Godofredo de Alencar. Rio de Janeiro: Vilas Boas & C., 1916. e Sésamo (1917)RIO, João do. Sésamo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1917.; estava com a peça Eva ([19-?]RIO, João do. Eva: peça em três atos. Rio de Janeiro: Villas Boas, [19-?].) em cartaz. De fato, Paulo Barreto não parava, era um autor frenético! E todos os dilemas e atividades eram postos em conversação com o amigo e parceiro comercial João de Barros. Numa de suas cartas, o literato reclamava da maneira como se realizou o envio dos números da revista.

A 1ª remessa custou-me na Alfândega 200$000 fracos o retirá-la. Agora o nº 2 vem parte num vapor, parte noutro e ainda parte pelo colis com o nome de pessoas conhecidas aqui como moradoras em Lisboa (Júlio Dantas, Bordalho, etc.). O resultado é uma tremenda complicação no correio q. V. sabe menos difícil do q. qualquer correio da Europa (1915).33 33 Ibidem, p. 122.

Ao lado dos problemas em volta do magazine, havia o atual estado de guerra, que levou o Brasil a um colapso social e à falta de dinheiro. Não sendo servidor público, vivendo só das letras e sem os amigos habituais no poder, o escritor passava por maus bocados financeiros. Ainda que trabalhasse num grande jornal, como a Gazeta de Notícias, esta, em função da crise econômica, não pagava os honorários do autor. Nessa época, eram constantes as queixas ao colega português, no que tange às dificuldades monetárias em que vivia. Tal situação atravancava seu fazer artístico, uma vez que era forçado a escrever assuntos banais na imprensa para captar moedas: “no resto – aborreço-me de escrever, de pensar, de agir. Cavo dinheiro para a Gazeta. Voilà ce q. je fait! [sic]” (1914).34 34 Ibidem, p. 100.

A escrita epistolar de Paulo Barreto mostra os fios que tramam a relação entre literatura, imprensa e trabalho, expondo as diversas faces dessa articulação. Ela revela como o mundo das letras não está isento do mundo político, e é afetado pelas condições externas. Além disso, o autor esclarece em suas missivas que, apesar da fama e da imensa produção jornalística e ficcional, a profissão de jornalista e a dedicação à literatura não eram algo estável. O ofício dos literatos nem sempre era reconhecido. Em seus bilhetes, reclamava de endividamento e de nunca ter recebido um ordenado regular, quando era empregado da Gazeta de Notícias. Ele deixa entrever igualmente como o espaço literário nas primeiras décadas da República era atrativo para captar dinheiro. Segue um longo trecho de uma correspondência que relata de forma clara as conexões entre escrita, poder e trabalho.

Precisarias estar aqui – se os jornais não te contam a coisa – para ver a crise do Brasil. Não há positivamente dinheiro.

Compreende por mim. A Gazeta nunca me pagou o meu ordenado com regularidade. Era [rasura] 1.500$ daqui, dos quais eu dava 1 conto a minha mãe. Sabes o q. são 100 libras no Rio: voam, são [rasuras] rodelas de papel.

Apesar disso eu fazia três a quatro mensais e ia todos os anos à Europa. Ora, a minha saída da Gazeta em nada me prejudicou. Vivo em plena evidência e de todos o q. escrevem, o Bilac e eu somos os aclamados. A Gazeta ainda me deve 14 contos.

[rasura] Imagina agora q. há três anos eu não vou à Europa, dispondo das mesmas amizades, dos amigos ministros q. me forneciam as 2 e 3 mil libras para passeios. É que positivamente não há.

Se tu fosses ministro aqui não desejarias dar-me um passeio à Europa? Pois o Souza Dantas é no Rio o q. tu és em Lisboa: como meu irmão.

Não dá porque não pode, porque não há. Ele mesmo riu com a tua carta cheia do sonho indignado com a realidade.

A gratidão que têm por ti, Dantas, Altino, Oscar – é sincera. Mas a possibilidade é 0 (1916).35 35 Ibidem, p. 151.

O fragmento revela que a literatura podia ser um negócio politicamente rendoso para alguns escritores. Da mesma maneira, o trecho mostra que uma carta não era logo guardada no fundo de uma gaveta, depois de lida. Ela podia circular entre amigos, ser lida em conjunto, ser narrada para outras pessoas. Isso remete, como já dito antes, à construção e à organização interna da correspondência, feita para a intimidade e para um público, quase nunca declarado. Vale dizer que não era uma divisão fácil escrever para trabalhar e escrever para fazer arte. A necessidade de sobreviver e de ganhar dinheiro não deixava de ser igualmente um empecilho para a criação de um texto mais artístico. A literatura perdia espaço para uma escrita, muitas vezes, trivial e confeccionada para elogiar amigos e políticos, e para atender um leitor não muito preocupado com os esquemas formais. O escritor lamenta: “como deve ter visto – arrebento de trabalho. Adeus arte! Servo da gleba, jornalista, arte de jornal é q. tem de ser” (1921).36 36 Ibidem, p. 229.

É preciso destacar que o autor brasileiro e João de Barros se ajudavam mutuamente, se esforçando para que seus textos e projetos pessoais fossem publicados e tivessem notoriedades tanto no Brasil quanto em Portugal. O escritor brasileiro era incansável, buscando divulgar em jornais nacionais os poemas, as crônicas e os artigos do amigo português. Entrava em contato com figuras políticas a fim de conseguir financiamento para que João de Barros viesse ao país, com intuito de realizar uma série de conferências. E, em 1917, teve a façanha de fazer com que o colega se tornasse sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. “Estás enfim na Academia! Quatro vezes eu tentara meter-te nas vagas e 4 vezes com imensa simpatia por ti, já havia trabalhado por outros. Da última perdeste por dois votos. Mas fiquei com o compromisso de Mario de Alencar e Filinto, duas almas nobres” (1917).37 37 Ibidem, p. 159.

João de Barros, por sua vez, se empenhava para que Paulo Barreto tivesse visibilidade em Portugal, divulgando seus escritos na imprensa do país, pressionando as editoras portuguesas para que suas obras fossem publicadas, obtendo colaboradores para seu periódico A Pátria, se esforçando para conseguir montar as peças teatrais do amigo brasileiro em terra portuguesa. Do mesmo modo, enviava fontes e documentos que interessavam ao literato carioca: fotografias, álbuns, canções populares etc. Estes dados dariam conteúdo a seu jornal.

O último grande empreendimento do jornalista carioca foi a fundação d’A Pátria, que tinha o capital português envolvido e que se posicionava contra a onda lusófoba no Brasil. Apesar do êxito do jornal, o escritor não conseguia manter as finanças em dia, acumulando prejuízos diários. Em 1921, escreve: “sabes bem q. para o meu interesse pessoal A Pátria esgota os meus nervos, cerceia-me as probabilidades, só me dá prejuízos. Para mim é mau. A começar pela finança. Sou um sujeito arruinado e endividado” (1921).38 38 Ibidem, p. 221.

Paulo Barreto faleceu no mesmo ano, de infarto, logo após sair da redação de seu jornal. As últimas imagens que deixou em sua correspondência foi a de homem cansado, que lutava para ser um grande escritor e viver da escrita. As letras sempre foram suas companheiras e seu sustento. Por elas, construiu muitas amizades e fez inúmeros inimigos. Viveu a tensão de uma literatura que era fonte de prazer e de trabalho. Em sua última missiva a João de Barros, imaginava um passeio com o amigo e uma grande obra: “que pena não termos dinheiro para vivermos juntos a passear! Realizaríamos os dois uma estupenda obra de Beleza e de Fé” (1921).39 39 Ibidem, p. 232.

Caro amigo: cartas de Lima Barreto a Monteiro Lobato

Lima Barreto trocou cartas com Monteiro Lobato durante quase quatro anos, entre setembro de 1918 e março de 1922. O primeiro contato dos escritores foi motivado por interesses comerciais. Lobato, enquanto editor e dono da Revista do Brasil, procurou Lima Barreto em busca de colaboração. No início da relação epistolar, eles se tratavam de modo formal, usando vocativos como “prezadíssimo”, “prezado” e “meu caro Sr.”. O conteúdo das correspondências também era restrito à cooperação literária, a contratos e a formas de pagamentos. Com o passar das missivas, os vínculos entre os autores foram se fortalecendo, e eles se tornaram mais próximos. Já se chamavam de amigos, ou se tratavam pelos nomes mais conhecidos, “Lima” e “Lobato”. Os assuntos foram igualmente se diversificando, entrando na vida íntima e na rede literária de sua época, nos acontecimentos políticos que agitavam o país, nas pequenas fofocas, nos possíveis encontros entre os amigos. Apesar de várias tentativas de uma aproximação física, os escritores nunca se viram pessoalmente.

Lima Barreto comenta, numa carta endereçada ao livreiro-editor Schettino, que teria conhecido Lobato, quando estava em São Paulo, a caminho de Mirassol. Teria sido um “encontro simples e cordial”. Todavia, como nota Schwarcz (2017, p. 436-437)SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., existe pouca evidência que tal contato ocorreu. Nesse período em que esteve no interior paulista, a convite do médico e amigo Ranulfo Prata, para se tratar do alcoolismo, o escritor andava meio delirante. Além disso, o bilhete, que anuncia o possível encontro, é muito curto e sem detalhes. Da parte de Lobato, não há indícios sobre a verossímil reunião. Em 1920, contou para alguns amigos que chegou a ver Lima Barreto, quando estava no Rio de Janeiro, mas não se aproximou, porque o autor parecia estar muito alcoolizado.40 40 CAVALHEIRO, Edgard, op. cit., p. 91.

Os locais onde Lima Barreto escrevia suas missivas eram variados. Elas foram elaboradas no Hospital Central do Exército, enquanto o literato estava internado com a clavícula quebrada, numa crise de alucinação alcoólica. Nesse período, ele comentava a dificuldade que tinha para escrever com o movimento e o barulho dos internos, que o desviava do trabalho. Redigia igualmente em sua casa, bem como na Livraria Azevedo, que ficava na rua da Uruguaiana, centro do Rio de Janeiro. Outro lugar era a biblioteca da Associação da Imprensa.

Nas correspondências, o romancista comentava seu estado físico e emocional. Escrevia preocupado, querendo saber se o destinatário teria recebido seus originais: “escrevo-te, muito ansioso, por saber se recebeste um manuscrito meu, uma carta e um ‘A.B.C.’, com uma notícia do meu livro” (1919).41 41 Ibidem, p. 61. Os atrasos dos correios geravam, do mesmo modo, mal-entendidos, deixando o autor apreensivo, e cheio de cobranças. “não repares nas minhas apreensões malucas (carta tua, que recebi hoje em casa). Sou assim e a vida me aparece cheia de gênios maus e de feitiços” (1919).42 42 Ibidem, p. 65.

Nesses manuscritos pessoais, a intimidade de Lima Barreto aparece concentrada em sua vida boêmia, nas pândegas e perambulações que faz pela cidade, no excesso de ingestão de álcool, na existência desordenada e no tempo em que ficou internado no hospício. Todos esses motes perpassam suas mensagens, muitas vezes, como respostas às interrogações de Monteiro Lobato; desculpas pelo período de ausência (quando não escreve cartas) ou tão somente como uma exposição confessada do eu. Porém, são três as fotografias de si que se destacam: a do literato, que se sacrificou por sua arte; a do boêmio carioca, que vivia pelos botequins; e a do homem doméstico, que passava as manhãs em sua residência, no subúrbio de Todos os Santos, seja descansando, seja escrevendo ou lendo. Todos esses autorretratos compõem a imagem do escritor e estão articulados entre si, revelando uma personalidade em tensão.

Assim, em diversas cartas aparecem o homem de letras, que buscou fazer uma arte sincera, capaz de expressar o fundo de nossa humanidade e de nossos afetos, bem como de nossas tragédias. Essa representação fica evidente na passagem: “procurei empregar a violência, a análise cruel e corajosa, para ser veículo das minhas emoções e pensamentos, despertando a curiosidade, de forma a não morrerem meus livros nas livrarias. É defeito que neles eu reconheço, mas era preciso. Estou falando muito de mim. Adeus” (1918).43 43 Ibidem, p. 51-53. Ao lado dessa imagem, misturando-se a ela, há o espelho do boêmio e do flâneur que mergulha na vertigem da cidade: “andei todo o começo do mês em pândegas vulgares até o meu aniversário, que foi a 13. Descansei e li os livros que me mandastes e outros que havia recebido” (1920).44 44 Ibidem, p. 81. Ou ainda: “sei bem que não dou para a Academia e a reputação da minha vida urbana não se coaduna com sua respeitabilidade” (sem data).45 45 Ibidem, p. 74.

A essa pintura do artista e de sua vida boêmia e entrecruzam outros retratos: a da imagem doméstica e do mundo privado da casa, na qual o escritor podia ser encontrado todas as manhãs.

Admira-me como não me houvesse encontrado nas tascas centrais. É verdade que há dias seguidos em que me deixo ficar em Todos os Santos. Tudo o que te disseram a respeito dos meus modos ambulatórios é verdade; mas o que não é verdade é que [trecho ilegível] em Todos os Santos. Resido, moro, durmo, estudo em Todos os Santos; mas só me encontram em casa de manhã. Isto, no geral (1920).46 46 Ibidem, p. 88.

Lima Barreto registra nas correspondências seu compromisso com a literatura, com uma escrita que fosse capaz de comunicar a realidade e o sentimento de maneira profunda. Esse sacerdócio e amor incondicional às letras eram insistentemente relatados nos romances, contos e crônicas do autor. Existem, portanto, zonas de contatos entre os diversos gêneros. Suas cartas são também um artigo de fé sobre o campo literário. E suas manias ambulatórias eram fundamentais para confeccionar suas narrativas e histórias. Era de seu hábito de passear e das observações, apanhadas nas ruas e nas avenidas, que ele obtinha o material humano para construir suas personagens. Era perscrutando a urbe, que o literato agarrava as fontes para descrever os costumes e o cotidiano da população pobre e suburbana. Já sua residência era uma espécie de esconderijo, seu local de reflexão, onde organizava seu pensamento e compunha sua escrita, pondo em ordem e em palavras a experiência da cidade e do humano. A boemia, Todos os Santos e a literatura são três elementos indissociáveis na vida de Lima Barreto, são peças de um mesmo quebra-cabeça.

Mas além dessas imagens de si, realçadas nas missivas, o escritor deixa entrever outros retratos ao destinatário. Lima Barreto se apresentava como um amigo incomum, cheio de desconfianças, ansiedades, maluquices e um tanto esquisito: “não repares nas minhas apreensões malucas”47 47 Ibidem, p. 65. (1919) “e creia-me sempre seu amigo grato, confrade esquisito e admirador” (sem data).48 48 Ibidem, p. 43. Fazia questão de dizer que tinha nascido no Rio de Janeiro e que era “carioca da gema”. Nesse aspecto, cria uma identidade local e afirma seu amor à urbe. Sentia-se possuído e possuidor da cidade: “o Rio é meu”. Cada epístola traz um fragmento do eu Lima Barreto, que vai sendo composto à medida que as cartas são lidas em conjunto, posta em série. Literato, pândego, caseiro, desconfiado, ansioso, um escritor excêntrico e identificado com a geografia de seu nascimento: o Rio de Janeiro. Ele é a própria cidade e sua contradição.

As correspondências exibem ainda sua visão da política do país: “é preciso mudar de forma de governo, seja como for ou para o que for. Os Paussilippo49 49 Paussilippo da Fonseca (1901-1974) foi redator de política do Jornal Correio da Manhã. não podem continuar…” (1919).50 50 Ibidem, p. 73. Os mexericos da rua do Ouvidor, dos cafés e das confeitarias costuravam igualmente sua escrita epistolar. Uma personalidade marcante do falatório entre os missivistas era Paulo Barreto (João do Rio), um oponente que Lima Barreto sempre fez questão de deixar público. Mas sua hostilidade com o autor, é preciso enfatizar, ocorre no campo da literatura. É partindo do ofício de escritor e da missão sacrossanta da escrita que surge a censura a João do Rio. A repreensão está no modo como este usa a linguagem para fazer elogios e obter rendimentos.

Por falar em semelhante paquiderme… [João do Rio] eu tenho notícias de que ele já não se tem a conta de homem de letras, senão para arranjar propinas com os ministros e presidentes de Estado ou senão para receber sorrisos das moças brancas botafoganas daqui – muitas das quais, como ele, escondem a mãe ou o pai. É por causa dessa covardia idiota que “essa coisa” não acaba… (1918).51 51 Ibidem, p. 52.

Lima Barreto acreditava que o prestígio literário deveria ser resultado do talento, da criatividade do artista e do sacrifício pessoal. A literatura deveria atender a vontade de justiça e a difusão das grandes ideias do tempo, sendo capaz de unir todos os homens. Uma obra de arte não poderia jamais ser contemplativa, elevando um passado de deuses mortos ou figuras ilustres: ministros, governadores, presidentes, diplomatas etc. Ela tinha que ser militante, prestando serviço à humanidade, aos humildes, aos que sofrem e são desprovidos de bens materiais. Assim, o papel do escritor era “reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior”.52 52 BARRETO, Lima. Amplius! In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). Lima Barreto: contos completos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 58-59.

A inimizade com João do Rio advinha, então, de sua compreensão particular da obra literária. Via aquele como um oportunista, que fazia negociata com as letras para conquistar a fama e recursos monetários. Em vários momentos fez crítica ao comportamento extravagante e à ficção ostentatória de seu oponente. Com essa hostilidade declarada, Lima Barreto agia de modo político, construindo uma tensão e uma divisão no mundo literário do Rio de Janeiro do início da República brasileira, uma cisão em que ele era um dos polos. A partir de sua reprimenda àquele autor, ele chamava a atenção para si, como um escritor diferenciado, que estava situado em outra perspectiva artística. Nesse sentido, fazia distinção entre uma literatura de alfaiataria e uma literatura militante, com a qual se identificava. Esse procedimento pode ser visto na missiva a Monteiro Lobato: “embora o João do Rio se diga literato, eu me honro muito com o título e dediquei toda a minha vida para merecê-lo” (1918).53 53 CAVALHEIRO, Edgard, op. cit., p. 51-53.

Na crônica O Garnier morreu (2010), refere-se à imagem floreada e mercantil de Paulo Barreto, diferenciando os escritores que vivem de fazer reclames e aqueles que negam uma literatura publicitária. Pondo-se em oposição ao “artista de casaca”, Lima Barreto elabora uma contraimagem, a do literato que nasceu pobre e se veste mal, porém, não faz de sua escrita uma “micha” para satisfazer o luxo pessoal. Seu autorretrato é a de um homem despossuído, que escreve também para os despossuídos:

Não há de ser só o João do Rio, com sua literatura cortada no Brandão, nem o marechal Leite de Castro, nem o lindo Ciro de Azevedo, nem talvez, o Cândido Campos, especialista em anúncios, que terão as suas portentosas obras editadas e pagas. Outros, com menos roupas, sem bordados, sem pés famosos, sem capacidade de agenciar anúncios, hão de tê-las também; e então veremos quem são os nossos homens de talento e se são só os auteurs de la maison do mentecapto Hipólito Garnier. Veremos!54 54 BARRETO, Lima, op. cit., p. 104.

Lima Barreto não criticava o mercado da arte, mas como funcionava a relação mercantil no Brasil. A venda de livros e romances era necessária para a sobrevivência e a divulgação do artista. Portanto, gostaria que sua produção ficcional fosse editada e paga. Desejava viver profissionalmente das letras, mas ganhando um preço justo por seu trabalho. Além do mais, para o autor, a produção literária era sagrada demais para ser barganhada por interesses políticos e financeiros. Em razão disso, recusou a republicação de Recordações do escrivão Isaías Caminha pelo O Paiz, afirmando que seu livro era uma “obra de arte”, e não serviria a uma imprensa de vida efêmera e voltada para proveitos econômicos (SCHWARCZ, 2017SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 367). Do mesmo modo, em 1908, rompeu, por carta, com o editor do periódico A Época, Carlos Viana, dizendo: “é bem ignóbil esta minha vida de escriba assalariado a jornalecos de cavação e de pilhérias” (PRADO, 2000PRADO, Antonio Arnoni. Mágoas de perto e de longe (Lima Barreto). In: GALVÃO, Walnice Nogueira & GOTLIB, Nádia Battella (org.). Prezado senhor, prezada senhora: estudos sobre cartas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 185-192., p. 188).

Todavia, é necessário destacar que João do Rio não era simplesmente um oportunista. Longe disso, o autor tinha a compreensão de que escrever não era apenas um meio de se fazer arte. A linguagem podia servir para outras finalidades menos nobres, como destruir a reputação de opositores, fazer propaganda de homens públicos e exaltar suas medidas políticas. Soube usar da fama de jornalista e de literato para conquistar espaço nos círculos de poder e financiar suas empreitadas literárias. Em suas cartas, como foi visto, fazia distinção entre uma escritura feita para embolsar dinheiro e outra como expressão de um ideal estético. De um lado, estava uma escrita que assegurava a sobrevivência pessoal e familiar. “Voltando à estrela de jornal, sou pago miseravelmente e tenho obrigações sérias. Assim vivo a escrever e a cavar a vida” (1916).55 55 PONCIONI, Claudia & CAMILOTTI, Virginia, op. cit., p. 145. Do outro lado, tinha planos para grandes obras: romances, contos e peças. A palavra era igualmente a isca para granjear dinheiro a fim de sustentar a arte mais elevada, a exemplo de seu magazine Atlântida.

João do Rio, tendo uma visão mais utilitária do jogo literário e da sociedade republicana de seu tempo, sabia usar da linguagem para se beneficiar e fazer arte. Lima Barreto, com uma personalidade mais arredia e uma concepção de literatura radical, jamais poderia aceitar uma separação entre uma escrita banal e rentável e uma outra pautada numa entrega sincera à vida e à invenção artística. Sua escritura jamais estaria sobre o balcão especulativo das carreiras e dos lucros. Não obstante, almejava receber o valor merecido por seu ofício literário e seu sacrifício como escritor.

Trabalho e literatura não são instâncias inconciliáveis para essa geração do início do século XX. O problema está no modo como essa relação é pensada e praticada no mundo intelectual e artístico da República brasileira, em particular; e do capitalismo, de maneira geral. Ou seja, a dificuldade não é o de viver da arte ou ganhar o pão por meio dela, mas como opera tal articulação, num país onde a maioria da população era analfabeta, onde havia poucos livreiros-editores, e os instrumentos e a circulação de impressos se concentravam nas mãos de uma minoria.

Nas primeiras décadas do século XX eram poucas as fábricas de papel e as maquinarias gráficas. Aliás, para desenvolver o comércio editorial era preciso importar máquinas e papéis, a um preço muito caro. O valor da mercadoria, porém, não significava a alta qualidade dos produtos e dos serviços. Em face disso, era uma prática habitual imprimir os livros no exterior, principalmente em Portugal e na França (BRAGANÇA, 2009BRAGANÇA, Aníbal. As políticas públicas para o livro e a leitura no Brasil: o Instituto Nacional do Livro (1937-1967). Matrizes, São Paulo, v. 2, nº 2, p. 221-246, 2009. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/38232/41008>. Acesso em: 10 abr. 2023.
https://www.revistas.usp.br/matrizes/art...
, p. 223). Somente a grande imprensa da época tinha condições de investir em modernos equipamentos gráficos, capazes de produzir um folheto mais leve e barato, que tivesse lançamento diário. Nesse momento, aparecem periódicos e magazines bastante atrativos, congregando páginas coloridas, ilustrações, caricaturas e fotografias, a exemplo da revista Fon-Fon!, inaugurada em 1907. Alguns jornais editavam as obras de autores brasileiros, mas, em regra, o trabalho editorial estava centralizado na atividade dos livreiros-editores. Em 1915, Lima Barreto consegue publicar, pelo vespertino A Noite, o romance satírico Numa e a Ninfa, em material de baixa qualidade. O fato é comentado pelo autor em carta ao amigo paulista: “se V. tivesse lido o meu Numa e a Ninfa que A Noite publicou e editou em quase desprezível folheto” (sem data).56 56 CAVALHEIRO, Edgard, op. cit., p. 47.

As trocas epistolares com Lobato, um editor autônomo e moderno, eram de suma importância para a divulgação e as possibilidades da arte barretiana. Essa relação entre ausentes (HAROCHE-BOUZINAC, 2016HAROCHE-BOUZINAC, Geneviève. Escritas epistolares. Tradução de Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Edusp, 2016., p. 105) era bastante vantajosa, visto que o literato carioca podia alargar sua produção literária e ter mais visibilidade não só no Rio de Janeiro, como também em São Paulo. Além do mais, ele sofria para ver seus textos lançados ao público. A publicação, em 1916, do romance Triste fim de Policarpo Quaresma foi feita pelo próprio autor, que tomou dinheiro emprestado e imprimiu a obra, em papel ordinário, na tipografia do amigo e compadre Benedito de Sousa (BARBOSA, 1988BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. 7ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988., p. 193). A busca por livrarias-editoras não era fácil, porque estas estavam sempre atentas às demandas do mercado e da clientela. Assim, os grandes livreiros-editores da época eram a empresa francesa Garnier Irmãos e a Casa Francisco Alves, que tinham como alvo frequente os autores já consagrados como Machado de Assis, José de Alencar, Olavo Bilac, Euclides da Cunha, João do Rio etc. A fama boêmia de Lima Barreto, a imagem de escritor arredio e sua literatura ácida não coadunavam com o panteão de literatos que essas livrarias procuravam encarnar. seu primeiro livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha não atraiu o interesse de nenhuma empresa editorial no Brasil. Só conseguiu publicar a obra em 1909, fora do país, por intermédio de um editor português, A. M. Teixeira, da Livraria Clássica. Era uma prática usual procurar livreiros no exterior, em razão do desinteresse das casas editoriais brasileiras. João do Rio também apelava para os editores portugueses e franceses: Lello & Irmão, Bertrand e Aillaud.

Monteiro Lobato, quando comprou a Revista do Brasil, em 1918, provocou uma mudança substancial no mercado de livros. Sua figura não era a do dono de livraria, mas de um editor inovador à caça de novos talentos. Tinha o objetivo de baratear a produção livresca e ampliar a circulação de livros no Brasil, atraindo leitores em vários locais do país, criando uma rede de distribuição em diversas cidades, até mesmo nas do interior, por meio do pagamento consignado. Fazia também anúncios das obras editadas, além de contar com os amigos para divulgar sua revista (BRAGANÇA, 2002BRAGANÇA, Aníbal. Uma introdução à história editorial brasileira. Cultura: Revista de História e Teoria das Ideias, Lisboa, v. 14, n. 2, p. 57-83, 2002.).

É como um novo empreendedor que Lobato escreve para Lima Barreto, pedindo sua colaboração. Segundo Barbosa (1988, p. 216)BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. 7ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988., era a primeira vez que o autor carioca recebia uma proposta de trabalho intelectual, em que o editor se dispunha a pagar bem. Até então, nenhum negociante havia procurado o romancista a fim de publicar qualquer livro. As dificuldades do literato para lançar uma obra deixa evidente como o domínio da escrita é marcado de desigualdades e desamparos.

De pronto, Lima Barreto aceitou a colaboração, entregando os originais de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Por meio do acordo, ele teria 50% dos lucros líquidos, pagáveis à medida que a obra fosse vendida, e ainda receberia o adiantamento de 800$000. A edição teria 3000 exemplares, custando o livro 2$000 ou no máximo 2$5000. Em carta, escreve: “de há muito devia ter-lhe escrito, manifestando os meus agradecimentos e acusando também o recebimento dos oitocentos mil-réis e uma das vias do contrato estabelecido entre Revista do Brasil e eu para a publicação do Gonzaga de Sá” (sem data).57 57 Ibidem, p. 42. Todo o processo de editoração do romance até sua chegada às livrarias foi discutido nas correspondências entre os amigos. Os custos e a venda, o número de exemplares, a diagramação, a qualidade das folhas, as provas revistas, a propaganda e as críticas ao livro eram temas constantes nas missivas.

O intercâmbio contínuo de missivas não só alargava a amizade e os negócios, mas também ampliava as parcerias entre os escritores. Lima Barreto indicava novos livreiros para Lobato, como a Casa do Schettino e a Livraria Azevedo, se convertendo num intermediário entre as livrarias cariocas e o editor paulista. Não raro aparecia como um propagandista da Revista do Brasil e da obra lobatiana.

Recebi agora mesmo a tua carta de 22. Já suspeitava que o Gonzaga de Sá andasse por aqui, porquanto ontem chegou-me às mãos um cartão de um vago conhecido – Sr. Astrojildo César – Acadêmico de Belas-Artes – dando-me parabéns pelo meu lindo e recente livro e pedindo-me um exemplar. Os exemplares que me são destinados, ainda não recebi. Eu saberei colocá-los convenientemente. […] Farei como faço a propaganda da tua revista e até tinha um conto “A Expiação”, para mandar-te […].

Por falar em propaganda. Quando a tua carta me chegou, escrevia um artigo para uma revisteca daqui – a Revista Contemporânea – falando na do Brasil. O “a propósito” era devido tratar eu de maximalismo e me referir à conferência de Ingenieros que vocês dão um resumo, no número de dezembro. No nº de 22 deste mês, na tal Contemporânea, eu ligeiramente fiz algumas considerações sobre o Urupês e o Problema Vital. Leste? (1919).58 58 Ibidem, p. 56.

As missivas barretianas eram frequentemente acompanhadas de manuscritos, retalhos de jornais e magazines da capital, que falavam sobre a nova obra do romancista e a Revista do Brasil. A Notícia, A Noite, Rio-Jornal, Jornal do Brasil, A. B. C. foram alguns dos periódicos recortados que trataram de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. O livro, apesar de ser bem recebido pela crítica, não obteve o sucesso editorial desejado. Lima Barreto tentou publicar outros trabalhos com o selo da Revista do Brasil, mas não obteve sucesso. Talvez o fracasso comercial do romance tenha impossibilitado novos contratos. Mas a amizade entre os literatos continuou, ainda que as trocas epistolares fossem cada vez mais rareando.

Considerações finais: entre literatura e jornalismo

A escrita como elaboração artística e expressão sincera de uma realidade pode existir ao lado de uma escrita feita para assegurar o sustento? Essa indagação não sondou apenas a mente dos autores em questão, mas de vários escritores que viveram ao longo dos primeiros anos republicanos. O trabalho literário remunerado gera um debate acalorado nas cartas de Lima Barreto e de João do Rio, expondo as tensões, as dúvidas e as necessidades de uma arte que desejava e carecia ser paga. Em torno desse conflito entre literatura e comércio girava o exercício do jornalismo e o interesse do editor.

A atividade jornalística era fundamental para a vida literária no começo do século XX, uma vez que era o maior espaço de leitura e de público que os escritores tinham acesso na época. Ademais, eles recebiam por suas colaborações e pelos contratos com a imprensa, diminuindo as agruras financeiras. Vale dizer que numa sociedade com quase 80% de analfabetos (SALIBA, 2012SALIBA, Elias Thomé. Cultura/as apostas na República. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (coord.). A abertura para o mundo (1889-1930). Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 238-249., p. 239), na qual existiam poucas livrarias e editores, o jornal se convertia num meio possível de fazer literatura, de ser lido e de ganhar dinheiro. O livro tinha pouca circulação e era objeto de luxo para a maioria da população. Além disso, somente os literatos mais célebres conseguiam publicar suas obras sem tantos infortúnios.

Muitos autores viveram do jornalismo, começaram nele, ensaiando e desenvolvendo sua escrita. Foi a partir do periódico que passaram a ser conhecidos, ganhando o estrelato, construindo uma rede de influência e de amizade que alimentava e fazia crescer a própria arte. O jornal se transformou numa oficina para os homens que sonhavam em viver das letras, era o local onde se descobria os talentos e apreendia o estilo. Para ser publicado e visto, os escritores tinham que primeiro passar pela imprensa, conquistar os possíveis leitores, que eram, em sua maior parte, aqueles que compravam as folhas diárias. Só então, chamaria a atenção dos livreiros-editores, que editavam as obras na expectativa do lucro certo. João do Rio e Lima Barreto dedicaram a vida toda à atividade jornalística. Era no campo periodista que divulgavam suas crônicas, contos, críticas e lançavam seus romances em folhetins. O ofício de jornalista influenciou suas escrituras, penetrando na confecção de suas narrativas. O processo e as técnicas do jornal estão internalizados na feitura literária dos escritores (SÜSSEKIND, 1987SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1987.).

Deve-se enfatizar que a imprensa era um espaço dialético. E apesar de compreender uma alternativa venturosa à profissão de escritor, trazia dissabores, porque nem sempre se escrevia sobre algo desejado. Era preciso agradar ao público, escrever para atrair mais leitores, quase sempre de forma rápida para que o texto fosse impresso no dia anterior. Fabricar notícias ligeiras, superficiais e de acordo com a moda da época eram tarefas que muitos autores foram compelidos a praticar. Em O momento literário, João do Rio (1908)RIO, João do. O momento literário. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1908. fez um inquérito com alguns literatos, trazendo como problema central a relação entre literatura e jornalismo.59 59 RIO, João do. O momento literário. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1908. Foram interrogados Olavo Bilac, Coelho Neto, Medeiros e Albuquerque, Júlia Lopes de Almeida, Luiz Edmundo, Guimarães Passos etc. A maioria dos entrevistados reconhecia a importância do jornal como espaço de sobrevivência e meio de ser lido. Ao mesmo tempo, eles expunham a dependência financeira e o tolhimento artístico de quem se ocupava do jornalismo. Bilac comentou: “Oh! sim, é um bem. Mas se um moço escritor viesse, nesse dia triste, pedir um conselho à minha tristeza e ao meu desconsolado outono, eu lhe diria apenas: Ama a tua arte sobre todas as coisas e tem a coragem, que eu não tive, de morrer de fome para não prostituir o teu talento!”.60 60 Ibidem, p. 111-112. Já Guimarães Passos considerou apenas os aspectos negativos: “o jornalismo é o balcão. Não pode haver arte onde há trocos; não pode haver arte onde o trabalho é dispersivo”.61 61 Ibidem, p. 150.

Lima Barreto não via absolutamente como negativo o trabalho na imprensa. Reconhecia-se como jornalista, exercendo seu ofício com base nos fortes princípios éticos que regulavam sua vida. Não aceitava suborno, não escrevia para agradar políticos e chefes. Recusou trabalhar em grandes empresas jornalísticas que não coadunavam com seu pensamento. Por isso mesmo, não foi escolhido e premiado como grande homem das letras entre muitos de seus pares. Forçou sua entrada nos palcos literários por meio de inumeráveis amarguras. Boa parte de suas obras foi recebida por um silêncio quase tumular na imprensa. Ele compreendia que o jornal era importante para a própria existência de seus escritos, mas percebia igualmente seus elementos nocivos. Tratou, em carta a Lobato, acerca do monopólio que os grandes jornais tinham sobre os leitores, criando hábitos e gostos de leituras, empilhando o leitor carioca de assuntos frívolos:

Lendo unicamente jornais, como a gente inteligente do Rio, elas só conhecem a literatura do seu tempo por aquilo que, como tal, nele é publicado: João do Rio etc. etc.

Com a formidável venda que o livro de V. tem tido aí, parece que lá a coisa é diferente. Nunca supus assim São Paulo. Penitencio-me!

O meu Policarpo do qual tirei 2.000, há dois anos, está longe de esgotar-se, apesar de tê-lo vendido (a edição) quase pelo preço da impressão.

A D. Albertina Berta foi mais feliz e a D. Gilka Machado, com os seus livros de versos, a 5$000 a plaquete, ainda mais.

Isto dá a medida da inteligência do leitor do Rio. Há uma coisa que ele pede ao autor: posição. Austregésilo pode escrever a maior tolice, seja sobre Mecânica Celeste, ou sobre a cura da bouba nas galinhas, que se venderá fatalmente. Haja a vista o sucesso do Nilo com as suas Impressões. Além disso, uma outra coisa influi poderosamente no livro: a tendência erótica, com a falta total de pensamento próprio sobre as coisas e homens do meio. O leitor carioca não quer julgamento… (1918(9)).62 62 CAVALHEIRO, Edgard, op. cit., p. 52-53.

Lima Barreto denunciava na correspondência o que criticou a vida inteira em suas crônicas e artigos, isto é, a relação muitas vezes escusa entre a literatura, a política e o jornalismo. Todavia, não se pode negar certa injustiça na maneira como percebia João do Rio: uma figura supérflua e interessada somente em arrecadar dinheiro, alguém que profanava a missão do escritor. Importa destacar que esse autor escreveu crônicas e narrativas de valiosa qualidade ficcional e documental, tal qual a Alma encantadora das ruas (2008)RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., os contos O bebê de tarlatana rosa (2002)RIO, João do. O bebê de tarlatana rosa. In: RIO, João do. Dentro da noite. São Paulo: Antiqua, 2002. e o Homem da cabeça de papelão (2012)RIO, João do. O homem da cabeça de papelão. São Paulo: Hedra, 2012..

Lima Barreto e João do Rio trazem muitas revelações do processo literário em suas escritas de si, ao passo que vão tratando de suas intimidades. As cartas, tomadas como autofotografias, condensam paisagens involuntárias, apresentando expressões, gestos e pinturas que escapam do controle dos missivistas. Suas correspondências desvendam os bastidores das obras dos artistas, mostrando um mundo em tensão, que se manifesta na articulação inextricável entre a literatura e o trabalho. Qual valor a ser pago à arte? Quantos sofrimentos um escritor tende a viver para não corromper sua criação artística? Todos esses questionamentos costuram as missivas, orientam os caminhos e as práticas da escrita literária. A resposta a essas interrogações, marcadas de conflitos internos e pessoais, depende da interpretação que os romancistas têm do que é a literatura e sua função social, depende também de suas personalidades.

Lima Barreto, mais radical, compreende o fazer literário à maneira do sacerdócio capaz de emancipar a humanidade de seus grilhões. Já João do Rio, um tanto conservador, buscava continuamente meios de negociação entre o poder e a literatura, o que não significa que ele não comprou lutas ou não tomou partidos. As epístolas verificadas mostraram exatamente o contrário. Entendia que o ato de escrever nem sempre era uma tarefa artística, podendo desempenhar outros papéis, como o reclame. E este sentido estava associado à profissão de repórter e à própria subsistência.

Na câmara secreta dessas cartas, a relação entre literatura e trabalho fica mais evidente, expondo a influência do jornal e dos jornalistas na produção e na publicização do livro: processo de edição, propaganda e circulação da obra. As trocas comerciais, o preço a ser pago, as negociações com o editor, os exemplares a ser distribuídos nas livrarias, as provas revistas, as notícias que circulam do texto, tudo isso estão presentes no universo dos missivistas. Por meio das correspondências, compreende-se que, para uma obra se realizar enquanto objeto de arte, não basta o autor determinar que ela está acabada, é preciso que chegue ao leitor e, para isso, os caminhos são árduos, passando por diversos interesses e profissionais da área. Por último, deve-se destacar que, no vínculo entre literatura e trabalho, as cartas tomam um papel importante, são canais que ligam o artista a toda uma rede de produção e comercialização do livro, abrindo um leque de possibilidades e de contatos, que dão concretude à própria obra. As epístolas se convertem, nesse sentido, no modus operandi dos escritores, num de seus instrumentos de trabalho.

  • 1
    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo.
  • 3
    Todas as cartas do autor se encontram em PONCIONI, Claudia & CAMILOTTI, Virginia (org.). Muito d’alma: cartas de Paulo Barreto (João do Rio) a João de Barros (1909-1921). Rio de Janeiro: Garamond, 2015.
  • 4
    Todas as cartas do autor se encontram em CAVALHEIRO, Edgard. A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto. Rio de Janeiro: Versos Brasil, 2017CAVALHEIRO, Edgard. A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto. Organização de Valéria Lamego. Rio de Janeiro: Versos Brasil Editora, 2017..
  • 5
    PONCIONI, Claudia & CAMILOTTI, Virginia, op. cit., p. 188.
  • 6
    Idem, p. 145.
  • 7
    CAVALHEIRO, Edgard, op. cit., p. 63.
  • 8
    Sobre Lima Barreto ver: BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. 7ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. 7ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988.; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.; e sobre João do Rio, ver MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. A vida vertiginosa de João do Rio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, DF: INL, 1978MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. A vida vertiginosa de João do Rio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, DF: INL, 1978.; RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: vida, paixão e obra. Rio de Janeiro: Organização Brasileira, 2010RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: vida, paixão e obra. Rio de Janeiro: Organização Brasileira, 2010..
  • 9
    O autor assinava geralmente as cartas com o nome civil. Em razão de sua preferência, quando se tratar das correspondências, o escritor será tratado como Paulo Barreto.
  • 10
    PONCIONI, Claudia & CAMILOTTI, Virginia, op. cit., p. 47.
  • 11
    Ibidem, p. 173.
  • 12
    Ibidem, p. 217.
  • 13
    Ibidem, p. 172.
  • 14
    Ibidem, p. 37, 45, 53, 81.
  • 15
    Ibidem, p. 62.
  • 16
    Ibidem, p. 97.
  • 17
    Ibidem, p. 65.
  • 18
    Ibidem, p. 114.
  • 19
    Ibidem, p. 105.
  • 20
    Ibidem, p. 191.
  • 21
    Ibidem, p. 180.
  • 22
    Ibidem, p. 152.
  • 23
    Ibidem, p. 55.
  • 24
    Eduardo Frederico Schwalbach Lucci (1860-1946) foi um jornalista e escritor português que colaborava na revista quinzenal Brasil-Portugal (1889-1914).
  • 25
    Ibidem, p. 73.
  • 26
    Ibidem, p. 116.
  • 27
    Ibidem, p. 215.
  • 28
    Ibidem, p. 189.
  • 29
    CAVALHEIRO, Edgard, op. cit., p. 40.
  • 30
    PONCIONI, Claudia & CAMILOTTI, Virginia, op. cit., p. 45.
  • 31
    Ibidem, p. 128.
  • 32
    Ibidem, p. 153.
  • 33
    Ibidem, p. 122.
  • 34
    Ibidem, p. 100.
  • 35
    Ibidem, p. 151.
  • 36
    Ibidem, p. 229.
  • 37
    Ibidem, p. 159.
  • 38
    Ibidem, p. 221.
  • 39
    Ibidem, p. 232.
  • 40
    CAVALHEIRO, Edgard, op. cit., p. 91.
  • 41
    Ibidem, p. 61.
  • 42
    Ibidem, p. 65.
  • 43
    Ibidem, p. 51-53.
  • 44
    Ibidem, p. 81.
  • 45
    Ibidem, p. 74.
  • 46
    Ibidem, p. 88.
  • 47
    Ibidem, p. 65.
  • 48
    Ibidem, p. 43.
  • 49
    Paussilippo da Fonseca (1901-1974) foi redator de política do Jornal Correio da Manhã.
  • 50
    Ibidem, p. 73.
  • 51
    Ibidem, p. 52.
  • 52
    BARRETO, Lima. Amplius! In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). Lima Barreto: contos completos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 58-59BARRETO, Lima. Amplius! In: BARRETO, Lima. Contos completos. Organização de Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2010..
  • 53
    CAVALHEIRO, Edgard, op. cit., p. 51-53.
  • 54
    BARRETO, Lima, op. cit., p. 104.
  • 55
    PONCIONI, Claudia & CAMILOTTI, Virginia, op. cit., p. 145.
  • 56
    CAVALHEIRO, Edgard, op. cit., p. 47.
  • 57
    Ibidem, p. 42.
  • 58
    Ibidem, p. 56.
  • 59
    RIO, João do. O momento literário. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1908RIO, João do. Muito d’alma: cartas de Paulo Barreto (João do Rio) a João de Barros (1909-1921). Organização de Claudia Poncioni e Virginia Camilotti. Rio de Janeiro: Garamond, 2015..
  • 60
    Ibidem, p. 111-112.
  • 61
    Ibidem, p. 150.
  • 62
    CAVALHEIRO, Edgard, op. cit., p. 52-53.

Fontes consultadas

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  • CAVALHEIRO, Edgard. A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto Organização de Valéria Lamego. Rio de Janeiro: Versos Brasil Editora, 2017.
  • RIO, João do. Muito d’alma: cartas de Paulo Barreto (João do Rio) a João de Barros (1909-1921). Organização de Claudia Poncioni e Virginia Camilotti. Rio de Janeiro: Garamond, 2015.
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Editores Responsáveis

Miriam Dolhnikoff e Miguel Palmeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Jun 2022
  • Aceito
    15 Dez 2022
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