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CIUDADES VIBRANTES: SONIDO Y EXPERIENCIA AURAL URBANA EN AMÉRICA LATINA

BIELETTO-BUENO, Natalia. Ciudades vibrantes: sonido y experiencia aural urbana en América Latina. Santiago do Chile: Ediciones Universidad Mayor, 2020. 297 p.Edição Kindle

Ciudades vibrantes: sonido y experiencia aural urbana en América Latina é o título deste livro publicado em meados de 2020 no Chile, em formato impresso e digital. Editado pela musicóloga mexicana Natalia Bieletto-Bueno, a publicação reúne textos de pesquisadores do Brasil, da Argentina, do Chile e do México, compilados em quatro seções temáticas. Nessa obra, analisam-se dinâmicas sociais em torno de culturas musicais e sons presentes no espaço público de cidades latino-americanas. Partindo-se da escuta de um mundo urbano em permanente disputa, o livro aborda uma série de práticas sociais que vibram na esfera pública aural das cidades, dando vida a territórios sonoros indissociáveis de questões políticas, econômicas, históricas e sociais.

Algumas atividades acadêmicas foram importantes para o surgimento da compilação. A primeira foi o Coloquio Internacional de Música Callejera, realizado em 2017 pelo Departamento de Estudos Culturais da Universidade de Guanajuato, no México. A segunda foi um painel proposto ao Simposio América Latina y Caribe da ICTM (Internacional Council for Traditional Music), realizado no Uruguai em 2018. Mesmo ano de realização do Coloquio Internacional Modos de Escucha: Abordajes Interdisciplinares sobre el Sonido, que aconteceu na capital do México e foi organizado pela RESEMX (Rede de Estudos sobre o Som e a Escuta). Essas atividades contribuíram para definir o viés interdisciplinar do conjunto da obra, que conta com profissionais de etnomusicologia, música, sociologia, história, antropologia, musicologia e comunicação.

A introdução escrita por Bieletto-Bueno se chama Sonido y escucha en las ciudades latino-americanas: derecho a ciudad, poder y ciudadanía. Nela afirma-se o interesse do livro pela relação entre as condutas sociais e a dimensão sonora da vida urbana. O som é problematizado pela autora como um modo de comunicação e de interação social. Sua interpretação da relação som, música e cidade procura distanciar-se de metodologias que caracterizam paisagens sonoras por meio de medições e amostragens acústicas. Ao invés disso, o “microfone analítico” parte do estudo de modalidades e estratégias de escuta dos habitantes das cidades, suas intervenções sonoras no espaço público e como, através disso, constroem-se processos socioculturais entre som, música, localidade, história, memória, identidades coletivas e sentidos de pertencimento (BIELETTO-BUENO, 2020BIELETTO-BUENO, Natalia (ed.). Ciudades vibrantes: sonido y experiencia aural urbana en América Latina. Santiago do Chile: Ediciones Universidad Mayor, 2020. 297 p. Edição Kindle., p. 6).

Ciudades vibrantes trata da convergência entre o espaço público (ruas, praças, estações de metrô, festas de rua, transportes coletivos etc.), o sônico (práticas musicais e sons urbanos) e o territorial (a construção social de espaços compartilhados). Como pontua Bieletto-Bueno, as práticas musicais e as formas de territorialização sonora dos espaços públicos suscitam modos particulares de apropriação das cidades (Ibid., 2020, p. 7). Nesse sentido, a música permitiria construir, reconstruir e imaginar os espaços urbanos e as relações entre seus habitantes (Ibid., 2020, p. 16).

Cada seção temática corresponde ao tipo de problemática abordada pelos autores em seus estudos de caso. A primeira se chama Música, memoria y história. São apresentados dois casos históricos em que práticas musicais ganharam novas formas de expressão, seja por meio de um processo de transformação de suas tradições performáticas ou por meio da interação social suscitada no cotidiano.

O historiador brasileiro Guilherme Gustavo Simões de Castro inicia a seção com o trabalho Samba outsider: música, historia y territorialidades en São Paulo, Brasil, 1950. Partindo de um conjunto de crônicas escritas pelo jornalista e radialista Osvaldo Moles (1913-1967), o autor descreve o desenvolvimento do samba paulistano como uma expressão musical nascida em relação íntima com as segregações socioespaciais do seu entorno urbano. Música protagonizada por sujeitos, em sua maioria negros ou filhos de imigrantes pobres, seus principais artífices eram habitantes de bairros populares do centro e das zonas periféricas da cidade (Ibid., 2020, p. 21). Toninho Batuqueiro, Osvaldinho da Cuíca, Germano Mathias, Geraldo Filme e Adoniran Barbosa são alguns personagens das crônicas de Osvaldo Moles, por meio de testemunhos e memórias colhidas por ele na década de 1950.

Valendo-se de fragmentos dessas crônicas, Guilherme de Castro aborda práticas de controle e repressão aos sambistas, já que a violência policial era uma constante, o que incluía práticas abusivas, tais como prisões, perseguições e até mesmo destruição de instrumentos musicais (Ibid., 2020, p. 39).

O autor pontua a importância do Largo da Banana, espaço público que se tornou um ambiente de intercâmbio cultural e musical na capital paulista, colaborando para a formatação das principais influências presentes na música praticada pelos sambistas da década de 1950. O tipo de instrumentação utilizado por eles também é retomado no texto, apontando para a dimensão inventiva de criação artesanal de instrumentos percussivos vindos do cotidiano, como pandeiros feitos com pele de gato, cuícas, caixinhas de fósforo, caixas de engraxar sapatos, matracas, dentre outros (Ibid., 2020, p. 42). Por fim, o historiador trata dos bailes de gafieira como um elemento importante do ambiente cultural criado em torno do samba paulistano, trazendo o exemplo da Sociedade Recreativa Cor de Otelo e de sua forma de sociabilidade. Disso se conclui que o samba feito em São Paulo na década de 1950 é fruto de um cruzamento de informações musicais vindas de muitos lugares, da vivência de sujeitos marginalizados pelas forças repressivas do aparato estatal, que, mesmo diante de uma série de segregações cotidianas, inventaram formas autênticas de expressão musical e de mediação com o ambiente a sua volta, deixando um legado singular na história da música popular feita no Brasil.

Yo pisaré las calles nuevamente: la música en las calles de Concepción como acción de resistencia política é o título do texto apresentado pelo musicólogo chileno Nicolás Masquiarán Diáz. Logo no início, o autor afirma que seu estudo não tratará da Nueva canção chilena ou do Canto nuevo, movimentos musicais que costumam predominar nos estudos históricos sobre a música chilena feita no período ditatorial (1973-1990). Buscando um outro caminho de análise, o texto trata da presença de músicos de formação universitária nos espaços públicos da cidade de Concepción, ao sul do Chile.

Por meio de entrevistas com esses músicos, procura-se revelar parte de suas práticas junto à Universidad de Concepción, seus repertórios apresentados ao ar livre, suas articulações para a realização dessas performances na rua e como isso se dava no cenário político posto à época. O autor pretende evidenciar um tipo de resistência política que passava pela produção de vínculos comunitários por meio da performance musical de rua. No encontro entre esses instrumentistas e a população da cidade, fazer música na rua configurava-se como uma forma específica de resistência infrapolítica ao regime (Ibid., 2020, p. 56).

Em um cenário marcado por repressão e perseguição aos opositores e às liberdades de livre associação, reapropriar-se do espaço público era um ato de transgressão. Para o autor, a música apresentada nas ruas de Concepción operava como um agente de coesão, criando uma oportunidade para restituir vínculos e cicatrizar um tecido social já bastante corroído pela ditadura (Ibid., 2020, p. 71).

Seu trabalho de pesquisa procura se aprofundar nas relações entre música, cidade e política, tomando como ponto de partida uma experiência histórica à margem do cânone historiográfico que trata de música e resistência no país. Ao apresentar relatos dos músicos que tocavam nas ruas e que faziam parte do circuito de conservatório universitário, o pesquisador aciona perspectivas como a da micro-história, com o objetivo de demonstrar que essa atividade coletiva representava um movimento com características próprias de resistência.

El breakdance en Santiago de Chile: auge y declive de un baile que incomoda encerra a primeira seção do livro. De autoria do musicólogo chileno Nelson Rodríguez Vega, pesquisador ligado à cultura hip-hop em seu país, o texto oferece um panorama sobre o desenvolvimento das experiências coletivas de rua ligadas ao break e ao rap, na transição entre o final da ditadura e a retomada da vida democrática.

Considerando a conexão entre música e dança como uma espécie de intervenção urbana sonora, Nelson foca sua análise na relação dialética entre dominação e subordinação, mostrando como a ocorrência desses encontros ao ar livre, em praças, ruas e estações de metrô alteravam a dinâmica socioespacial da cidade de modo significativo. Como a maioria desses indivíduos vinham das periferias de Santiago, sua presença na região central incomodava parte da sociedade, indicando a tendência segregadora que se configura nos espaços públicos da região central. Valendo-se de entrevistas com dançarinos da época, imagens de mapas da cidade e uma exposição das transformações da cultura hip-hop em Santiago, o autor traça uma pequena história desse movimento em seus primeiros anos, demonstrando como características locais foram incorporadas a essa cultura de rua nascida nos guetos norte-americanos.

A parte II de Ciudades vibrantes intitula-se Poder y ciudadanía e possui cinco estudos de caso contemporâneos. Dança, música e a própria voz dos sujeitos emergem como formas de resistência ou como estratégias de exercício da cidadania de certos grupos sociais. Por meio dessas formas de expressão, os estudos procuram demonstrar que ocupar sonoramente o espaço público é uma questão repleta de tensões e dilemas socioculturais, o que toca em pontos como o direito à cidade, a organização coletiva e a invenção de espaços de enunciação.

El rap como poética de la micropolítica: Proyecto Rima de Rua é um estudo de caso que remonta à experiência cotidiana de um projeto cultural de rap realizado no bairro Taquaril, na periferia de Belo Horizonte. De autoria de Rodrigo Fonseca Rodrigues e Alessandra Nardini, ambos pesquisadores da área de Comunicação, o texto reflete sobre o potencial micropolítico das práticas criativas que envolvem o projeto. O Rima de Rua reúne jovens para compor as chamadas “batalhas do conhecimento”, que são duelos de rima por meio de improvisações poéticas, sempre alicerçadas em cima das montagens sonoras tocadas por DJs. Na intersecção entre as vozes que versam livremente e as batidas sonoras sampleadas, o projeto articularia uma importante ferramenta de elaboração de consciência política coletiva, fruição criativa e expressão artística da juventude no cotidiano do bairro. Como esses duelos de rima se dão na rua, sua ocorrência no espaço público suscitaria um tipo de escuta socializada, capaz de fomentar sentidos de pertencimento comunitário através da música (Ibid., 2020, p. 24).

“Musicar” local y ocupación del espacio público: Playa de la Estación y el carnaval callejero de Belo Horizonte é o título do trabalho escrito por Estevão Amaro dos Reis, doutor em Música pela Unicamp. Musicar é uma tradução para o conceito de Musicking, concebido pelo escritor inglês Christopher Small, que se refere a qualquer forma de compromisso interativo com determinada prática musical ou experimentação social em torno da música (Ibid., 2020, p. 118).

Considerando a música feita na rua como uma experiência baseada na sociabilidade com o espaço público, Estevão analisa o desenvolvimento e as características do recente carnaval de rua de Belo Horizonte, por meio do movimento que ficou conhecido como Praia da Estação. Com o intuito de entender as origens dessa movimentação cultural que se articula no cotidiano, o autor apresenta uma série de imagens, marcos históricos e reflexões que ajudam a compreender os caminhos dessa nova cena musical e o seu papel na expansão do carnaval da cidade. Seu estudo de caso aponta para as dificuldades encontradas pelo movimento para se estabelecer, mantendo-se em permanente disputa por espaço diante da institucionalização pública e comercial do carnaval de Belo Horizonte.

Música de calle, comunicación urbana y etnografía multi-situada en dos países (Brasil/México) é um estudo comparado feito pela brasileira Simone Luci Pereira e pelo mexicano Martín de la Cruz López Moya, pesquisadores ligados ao campo das Ciências Sociais e da Comunicação, com enfoque em culturas musicais urbanas.

A música feita na rua é analisada na perspectiva de duas cidades com características distintas: a megalópole São Paulo e a pequena San Cristóbal de las Casas, situada no Estado de Chiapas, região sul do México. A etnografia feita por Simone percorre a Avenida Paulista e observa a dinâmica social em torno de músicos que se apresentam naquele local aos domingos, quando a circulação de carros é interrompida. Martín, por sua vez, atravessa as ruas de San Cristóbal de las Casas, cidade de caráter cosmopolita e de herança colonial, que costuma receber músicos de rua vindos de vários lugares do mundo.

Apesar das diferenças qualitativas e quantitativas, em ambas as cidades as práticas musicais feitas na rua constituíram experiências de comunicação urbana e de interculturalidade. Para os autores, a gestação de territórios sonoros na rua colocam a dimensão espacial como um dado fundamental para a compreensão da cultura sonora urbana. O espaço aparece aqui como produto de múltiplas relações e fluxos sociais, nunca como algo dado, mas sim em constante elaboração.

A segunda seção termina com o texto Lucha y resistencia sonora: funciones de la consigna y la música en las marchas de protesto en Ciudad de México. O estudo foi desenvolvido pelo antropólogo mexicano Alan Granados, professor de Etnomusicologia na Faculdade de Música da Unam. Entre 2014 e 2018, o pesquisador frequentou 11 manifestações populares na capital mexicana, e seu intuito era compreender a função dos sons, da música e dos slogans de protesto que ecoavam nas ruas.

Através de um mapeamento de células rítmicas, melodias e outros marcadores sonoros, Granados identifica fragmentos de memórias sociais, práticas musicais e algumas ressignificações de tradições e repertórios que passaram a ganhar novos contornos sonoros no contexto das marchas de rua. As vocalizações de protesto são pensadas pelo autor como marcadores identitários dos grupos sociais ali presentes, expressando o desejo de participação dos cidadãos como sujeitos políticos. Sua conclusão é a de que a música e os slogans de protesto definem a dimensão sonora das lutas coletivas no espaço público da cidade, portanto fazem parte da práxis política, cultural e cognitiva dos sujeitos que se manifestam.

A terceira seção temática do livro se chama Comunicación acústica y conflicto en la ciudad. Composta por três estudos de caso, lida com temas como políticas públicas de controle sonoro e governabilidade, conflitos sociais decorrentes do ambiente sonoro em contextos urbanos e formas de comunicação acústica.

Prácticas sonoras y desplazamientos sensoriales entre los banderilleros del tren de la ciudad de Buenos Aires é um estudo de caso feito pelo antropólogo argentino Facundo Petit de Murat. Ele trata dos sistemas de trem de Buenos Aires a partir da escuta e dos corpos dos banderilleros, um grupo de trabalhadores que estão espalhados pelas linhas férreas da cidade, sempre com bandeiras de sinalização e ouvidos atentos a qualquer situação de risco no deslocamento dos trens. Ao invés de centrar sua análise em agentes sociais mais tipicamente estudados, como geradores de mensagens musicais ou sonoras, o autor oferece uma descrição etnográfica minuciosa da experiência sensorial desses trabalhadores, entendidos enquanto agentes sônicos que geram, interpretam, traduzem e transmitem sinais sonoros de extrema importância para o funcionamento do sistema de trens da cidade. Especialista de uma forma de labor aural, Facundo conclui:

Diante da grande quantidade acidentes que ocorrem nas vias de trem, seja pelo descumprimento de normas ou pela baixa percepção social dos riscos, os banderilleros se incorporam a estas vias como corpos que escutam o entorno de maneira específica, a serviço de tentar manter em segurança a população

(Ibid., 2020, p. 188).

Já o brasileiro Felipe Trotta apresenta o estudo Música y violencia en el transporte colectivo: conflictos cotidianos en las metrópolis de América Latina. Sua proposta passa por entender a dinâmica social em torno de “escutas forçadas” ou “escutas impostas” nos transportes públicos da cidade do Rio de Janeiro. Valendo-se de entrevistas com diversos passageiros, Felipe analisa conflitos cotidianos que surgem em decorrência da reprodução sonora de música nos transportes públicos.

O incômodo causado pelo alto volume ou pelas características da música e a utilização da reprodução sonora como forma de afirmação entre os jovens são alguns dos pontos trabalhados pelo autor, que discorre sobre tensões e imaginários sociais que se formam nesse ambiente. Ao constatar que determinados gêneros musicais causam maior sensação de “incômodo” nos passageiros do que outros, Felipe aponta para os preconceitos que se criam em torno da música feita na periferia, no caso o funk carioca, levando sua discussão para os processos de autoafirmação de uma juventude que quase nunca é escutada pela sociedade.

A terceira seção se encerra com o texto El programa “Música a un metro” y el “orden” como lógica intrínseca de la ciudad de Santiago de Chile, de Natalia Bieletto-Bueno, também responsável pela organização do livro. Música a un metro é o nome de uma iniciativa do sistema de metrô de Santiago criada em 2016, com o objetivo de regular o trabalho de músicos itinerantes que atuavam em estações e vagões.

Por meio de uma convocatória anual, criou-se uma espécie de processo seletivo para escolher aqueles músicos que passariam a ocupar lugares definidos para apresentar seus repertórios musicais. A autora argumenta que esse programa constitui uma forma de domesticação de sonoridades urbanas e de práticas de trabalho dissidentes (Ibid., 2020, p. 209). Seu interesse é compreender a relação entre políticas públicas para o controle de práticas musicais e uma certa fixação obsessiva das autoridades para preservar uma ideia de “ordem pública”. A institucionalização de um espaço definido para os músicos itinerantes estaria enfraquecendo a potência dos encontros sociais e fortalecendo uma forma paternalista de controle (Ibid., 2020, p. 221).

A última seção do livro se chama Testimonios e apresenta quatro relatos de pessoas com longa trajetória de vivência musical no espaço público. Mais do que se originar de um interesse acadêmico sobre sons e cidades, os textos retomam memórias e experiências. Uma oficina de musicalização para pessoas em situação de rua na cidade de Salvador, personagens musicais típicos da cultura urbana chilena e mexicana, ressignificação da vida urbana na perspectiva de um músico itinerante são alguns assuntos da parte final de Ciudades vibrantes.

O etnomusicólogo brasileiro Juracy do Amor inicia a seção com o texto Música de la calle, etnomusicología comprometida: otros caminos posibles. Trata-se de um relato sobre o seu trabalho de intervenção social em Salvador entre 2010 e 2019, onde realizou oficinas musicais com pessoas em situação de rua.

Fazendo suas oficinas em diferentes contextos e programas sociais, Juracy descreve um pouco da relação que essas pessoas desenvolvem com a cidade e como isso afeta suas subjetividades, condicionando processos de desvalorização e estigmatização. Por meio da prática musical em grupo, Juracy nos mostra como a música desempenhou um tipo de “redução de danos” entre os praticantes das oficinas.

Ao refletir sobre o papel da música na reconstrução de sociabilidades e da autopercepção desses indivíduos, Juracy deixa um testemunho valioso sobre a função social da educação musical num contexto difícil da vida urbana. A isso se misturam considerações a respeito de novos caminhos para o fazer etnomusicológico, apontando para uma etnomusicologia das zonas urbanas.

Habitar la ciudad desde lo festivo-carnavalesco: reflexiones y experiencias sobre el oficio del chinchinera(o), espacios públicos y carnavales en Santiago de Chile, escrito pela professora de dança, bailarina, pesquisadora e chinchinera Rosa Jiménez Cornejo, o texto combina uma narrativa autobiográfica com uma reflexão histórica sobre a importância dos chinchineros e organilleros na cultura de rua de Santiago. Portando um aparato percussivo em seu próprio corpo, o chinchinero é um tipo de músico de rua muito popular na cidade, assim como organillero, que toca uma espécie de órgão portátil à manivela.

A história desses personagens musicais da cidade são o ponto de partida para o relato de Rosa Jiménez, que nos oferece suas memórias a respeito de sujeitos notórios na realização desses ofícios. Passando pelo período da Ditadura Militar até as manifestações de rua de 2019, a trajetória desses ofícios é pensada em relação direta com as transformações políticas e sociais da capital chilena. Ao destacar o ambiente cultural dos carnavais de rua na cidade, a autora afirma que a música de chinchineros e organilleros é fundamental para a formação dos laços comunitários no espaço público. A recente incorporação de mulheres é outro ponto interessante de seu testemunho, que se baseia em sua experiência com a gestão da escola carnavalesca Chinchin Tirapié.

El juglar de la plaza de Coyoacán en Ciudad de México é uma entrevista de Natalia Bieletto-Bueno com seu pai, Maurício Bieletto, que desde a década de oitenta exerce ofício de músico em uma das maiores praças da Cidade do México. A entrevista aborda o fazer cotidiano de Maurício como menestrel naquela região. Os tipos de canções presentes em seu repertório, a importância da interação estabelecida com os transeuntes, os prazeres e as dificuldades de sua rotina de trabalho, a organização social do movimento Artistas a Cielo Abierto, são alguns dos pontos que se destacam no texto. Trata-se de um relato carregado de vivência e de visão política sobre o valor social da música feita em espaço público.

El imperio de lo efímero: testimonio de un músico callejero internacional é um texto do músico e etnomusicólogo chileno Christian Spencer. Ele descreve sua trajetória de atuação como guitarrista itinerante tocando nas ruas e, ao mesmo tempo, sua formação como etnomusicólogo interessado na música popular e tradicional da América Latina. Seu texto reflete sobre como o músico atuante na rua constrói um espaço social para a circulação de afetos referentes ao lugar em que está inserido.

O autor também aborda a questão do valor atribuído ao músico de rua e a percepção que se tem sobre sua função social. Agente de uma situação efêmera no cotidiano da cidade, o músico toca no espaço público como uma forma de trabalho. Existe, portanto, uma busca pela atenção aural dos transeuntes, fato que é explorado por Spencer em seu testemunho. Ele nos mostra como o fazer musical em espaço público demanda a construção de uma inteligência musical das ruas, indispensável para garantir o sustento cotidiano.

Da leitura de Ciudades vibrantes, pode-se concluir que um ponto positivo da publicação é o seu esforço em compilar um panorama de diversos estudos sobre experiências sociais latino-americanas. Ainda que a publicação se restrinja a estudos de caso de apenas quatro países – Brasil, Argentina, Chile e México –, trata-se um movimento importante para aglutinar pesquisas em torno da temática do som, da música e da escuta.

O livro é um bom exemplo de como o esforço interdisciplinar pode colaborar para a construção de novos objetos de estudo em áreas como a História, a Antropologia, a Comunicação, a Etnomusicologia, dentre outras. Ao sugerir um recorte espacial voltado para a América Latina, coloca-se no debate dos Estudos de Som de maneira crítica, afirmando um propósito de decolonialidade dentro de um campo ainda dominado pelo horizonte epistemológico europeu e norte-americano.

Um ponto negativo da publicação é a ausência de fragmentos sonoros que poderiam somar-se à leitura dos estudos de caso. A versão digital do livro poderia oferecer ao leitor uma experiência de ouvinte daquilo que está sendo apresentado ao longo dos textos, algo que poderia se dar pela inserção de links ou trechos de recortes sonoros que fazem parte do tema apresentado pelos autores. A utilização de fontes sonoras ainda se apresenta como uma barreira na maioria das pesquisas acadêmicas que lidam com música, sons e escuta, algo perceptível no decorrer da leitura de Ciudades vibrantes. Considerando que transformar o leitor em “leitor-ouvinte” é uma tarefa importante para o futuro desse campo, a utilização criativa de fontes sonoras enriqueceria os textos.

Organizadores do Dossiê História e Culturas Sonoras

  • Virgínia de Almeida Bessa
    Juliana Pérez González
    Cacá Machado
    José Geraldo Vinci de Moraes

Referências bibliográficas

  • BIELETTO-BUENO, Natalia (ed.). Ciudades vibrantes: sonido y experiencia aural urbana en América Latina Santiago do Chile: Ediciones Universidad Mayor, 2020. 297 p. Edição Kindle.

Editado por

Editores Responsáveis

Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2023
  • Aceito
    10 Jul 2023
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