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O SILÊNCIO COMO EXPERIÊNCIA DE ESCUTA EM HISTÓRIA DO SILÊNCIO, DE ALAIN CORBIN

CORBIN, Alain. História do silêncio: do Renascimento aos nossos dias. Amaral, Clinio de Oliveira. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2021. [2016]. 1ª Reimpressão, 2022

Os estudos sobre a cultura sonora têm recebido a atenção da historiografia. Para além da história da música, esses trabalhos captaram inúmeros sons residuais produzidos pelas sociedades ao longo do tempo, buscando compreender suas relações com o contexto do qual emanaram. Assim, dos códigos de comunicação estabelecidos através dos repiques de sinos aos ruídos de fábricas, de automóveis e de estática do mundo pós-industrial, múltiplos aspectos e paisagens sonoras tornaram-se objeto de investigação. Mesmo quando envolvem recortes temporais anteriores ao advento da gravação sonora, as pesquisas nesse campo têm sido possíveis e proveitosas, graças aos vestígios deixados por diversas práticas associadas à existência dos sons. Nesse sentido, como proceder quando o objeto de estudo é a ausência de sons?

História do silêncio, de Alain Corbin, apresenta um instigante desafio metodológico, isto é, o de fazer “escutar” o silêncio. Para isso, o autor recorre às “citações de tantos autores que partiram em uma verdadeira busca estética”, a fim de trazer “a experiência da sua própria sensibilidade” (CORBIN, 2021CORBIN, Alain. História do silêncio: do Renascimento aos nossos dias. Tradução de Clinio de Oliveira Amaral. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2021 [2016]. [1ª Reimpressão, 2022] [2016], p. 10). A obra se preocupa menos em reconstituir fatos e apresentar explicações do que em trazer à tona diferentes aspectos e texturas que emergiram da experiência do silêncio. Para Corbin,

Quando se aproxima do mundo das emoções, [a história] deve, acima de tudo, fazer experimentar, particularmente quando os universos mentais desapareceram. Por isso, muitas citações reveladoras são indispensáveis. Somente elas permitem ao leitor compreender a maneira pela qual os indivíduos do passado experimentaram o silêncio

(CORBIN, 2021CORBIN, Alain. História do silêncio: do Renascimento aos nossos dias. Tradução de Clinio de Oliveira Amaral. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2021 [2016]. [1ª Reimpressão, 2022] [2016], p. 10).

O autor, assim, revisita relatos de memorialistas, viajantes, obras literárias, filosóficas e poéticas, que fizeram do silêncio matéria de suas reflexões e expressão de sua maneira de sentir o mundo. Interessado pela história das sensibilidades, seu intuito é apreender como o silêncio foi percebido pelos sujeitos que o vivenciaram e os significados por ele assumidos. Ao percorrer esse trajeto, a obra permite perceber o silêncio, não apenas como a ausência de ruídos, mas como uma prática que orientou diferentes aspectos da vida humana ao longo do tempo e, não raro, como uma ética. Essas manifestações se espraiaram para outras linguagens, como a pintura e o cinema, embora Corbin privilegie o legado da escrita e, mais precisamente, autores do Ocidente europeu, como reconhece no capítulo em que aborda as buscas pelo silêncio:

As buscas por silêncio são múltiplas, antigas e universais. Elas impregnam toda a história humana: hinduístas, budistas, taoístas, pitagóricos e, é claro, cristãos, católicos e, talvez, mais ainda, ortodoxos sentiram a necessidade e as benfeitorias do silêncio; além disso, a necessidade ultrapassa a esfera do sagrado e do religioso. Portanto, eu não possuo as competências capazes de permitir uma exposição desta multiplicidade. (...) Nós nos limitaremos a algumas buscas efetuadas nos séculos XVI e XVII

(CORBIN, 2021CORBIN, Alain. História do silêncio: do Renascimento aos nossos dias. Tradução de Clinio de Oliveira Amaral. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2021 [2016]. [1ª Reimpressão, 2022] [2016], p. 79).

Curiosamente, o autor não recorre a uma narrativa cronológica para situar seu objeto, embora o subtítulo delimite um recorte temporal, bastante elástico, aliás – do Renascimento aos nossos dias. Organizada em eixos temáticos que atravessam diferentes temporalidades, a obra procura explorar as dimensões do silêncio na experiência subjetiva através dos numerosos exemplos oferecidos, embora não realize uma análise documental mais detida, característica de seus trabalhos anteriores. No primeiro capítulo, percorre espaços públicos e privados, nos quais se revelaram as relações entre o silêncio e a intimidade dos lugares. Não à toa, esse capítulo privilegia relatos do XIX e XX, “momento em que se aprofunda o discurso sobre o silêncio dos lugares íntimos” (CORBIN, 2021CORBIN, Alain. História do silêncio: do Renascimento aos nossos dias. Tradução de Clinio de Oliveira Amaral. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2021 [2016]. [1ª Reimpressão, 2022] [2016], p. 14). Em outros momentos, sua abordagem retrocede à Antiguidade, como o faz ao recuperar o mais silente personagem da Bíblia Sagrada, José de Nazaré.

Além de se mover no tempo, o autor transita por espaços evocados como territórios próprios do silêncio, tais como o deserto, a montanha e o mar, nos quais seus personagens habitaram o silêncio da natureza. Mais adiante, recupera as tradições monásticas e outras em que o silêncio era considerado condição para o exercício espiritual e para a busca pela sabedoria, tanto em ambientes religiosos como seculares. Corbin aborda, ainda, a existência de espaços onde o silêncio se impõe, como as igrejas, as escolas e o exército, demonstrando que a prática do silêncio não fora estabelecida espontaneamente, mas requeria aprendizagem e disciplina.

Afora os espaços restritos onde o silêncio era imperativo, a obra passa pelas transformações sociais que ocorreram a partir do século XVII em Paris, quando a prática do silêncio se tornou um saber ligado às chamadas boas maneiras e, portanto, um elemento de distinção. Essa disciplinarização dos corpos seria reforçada a partir do século XIX, como atesta a profusão dos manuais de etiqueta no período. Conforme observou J. Sterne, historiador interessado pela cultura sonora, o século XIX foi marcado por uma crescente obsessão pela privacidade e domesticidade. Assim, mesmo os espaços públicos tornaram-se mais privados no século XIX, o que coincidiu com uma mudança nos comportamentos de escuta. Se antes as manifestações do público durante um concerto, uma ópera ou mesmo durante a exibição de um filme eram admitidas, à medida que se consagraram como arte autônoma, a tendência foi a de a plateia se tornar cada vez mais silenciosa (STERNE, 2003STERNE, Jonathan. The audible past. Cultural origins of sound reproduction. Durham: Duke University Press, 2003., p. 160-161).

Na mesma direção, Corbin aponta que a tolerância ao ruído na Paris de meados do século XIX dependia do lugar e do contexto: o mesmo sujeito que admitia o volume alto em estabelecimentos de divertimentos noturnos poderia ser mais sensível a ruídos da audiência dentro de uma sala de concertos. Assim, o autor aponta para o fato de que os comportamentos de escuta não dependiam apenas da disponibilidade de sons e ruídos no ambiente, mas estavam vinculados a certos códigos de conduta e ao adestramento dos ouvintes, o que determinava o que era ou não tolerável de se ouvir.

Semelhante aos comportamentos de escuta, o saber calar-se, aponta Corbin, esteve relacionado à interiorização de normas sociais. Dessa forma, o silêncio se configurou, ao mesmo tempo, como uma tática – utilizada tanto para evitar o pecado como para não revelar além do necessário em conversações mundanas – e como uma virtude, valorizada por diferentes sociedades. Nesse sentido, ao tratar do silêncio presente em depoimentos de camponeses, o autor alerta para a necessidade de o historiador distinguir “os silêncios impostos, os silêncios deliberados, os silêncios implícitos, (...) sem esquecer a recusa das elites em registrar a palavra camponesa” (CORBIN, 2021CORBIN, Alain. História do silêncio: do Renascimento aos nossos dias. Tradução de Clinio de Oliveira Amaral. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2021 [2016]. [1ª Reimpressão, 2022] [2016], p. 174).

Ao procurar por essas sutilezas em torno do silêncio, a obra de Corbin traz aspectos que também dizem respeito às experiências de escuta através dos tempos. Ao longo de sua narrativa, percebe-se que a busca pelo silêncio atravessou diferentes momentos da história, o que o autor permite “escutar”, através das ruidosas menções ao silêncio na literatura que compõe o corpus de sua investigação. Assim, ele refaz esse caminho em busca de realizar “o trabalho mais essencial do historiador [que] é reencontrar o olhar antigo e explicá-lo a seus leitores” (CORBIN, 2021CORBIN, Alain. História do silêncio: do Renascimento aos nossos dias. Tradução de Clinio de Oliveira Amaral. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2021 [2016]. [1ª Reimpressão, 2022] [2016], p. 138).

Embora o subtítulo do livro traga a expectativa de que sua abordagem chegará até o século XXI, o historiador restringe seu recorte a meados do século passado. Antes que nos precipitemos rumo ao silêncio da finitude do planeta, como o autor nos instiga a pensar, talvez caiba ponderar sobre o que de fato escutaremos até lá. Nunca foi produzido tanto material sonoro como em nossa época e, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão impacientes para escutar. Em tempos de verborragia nas redes sociais, de aceleração no ritmo de audição em aplicativos de mensagens instantâneas, e em que a escuta atomizada se tornou a regra, a obra de Corbin é um convite a experimentar o silêncio e a exercitar a escuta atenta.

Organizadores do Dossiê História e Culturas Sonoras

  • Virgínia de Almeida Bessa
    Juliana Pérez González
    Cacá Machado
    José Geraldo Vinci de Moraes

Referências bibliográficas

  • CORBIN, Alain. História do silêncio: do Renascimento aos nossos dias. Tradução de Clinio de Oliveira Amaral. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2021 [2016]. [1ª Reimpressão, 2022]
  • STERNE, Jonathan. The audible past. Cultural origins of sound reproduction. Durham: Duke University Press, 2003.

Editado por

Editores Responsáveis

Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2023
  • Aceito
    10 Jul 2023
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