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A FILÓSOFA, A HISTÓRIA E A ESCRITA BIOGRÁFICA: UM DIÁLOGO COM HANNAH ARENDT1 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e a bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. O autor agradece a leitura atenta, os comentários e as sugestões de Benito Schmidt, Denise Rollemberg, Flavio Limoncic, Marta Prista e Vavy Pacheco Borges.

THE PHILOSOPHER, HISTORY AND BIOGRAPHICAL WRITING: A DIALOGUE WITH HANNA ARENDT

Resumo

No ano de 1957, Hannah Arendt publicou a obra Rahel Varnhagen, a vida de uma judia alemã na época do Romantismo. O livro foi quase todo redigido no início da década de 1930, e somente o prefácio data de sua publicação. A partir desse trabalho, o presente artigo procurará fazer uma análise do contributo de Hannah Arendt para a narrativa biográfica, a tensão entre História e memória e a relação da História com a política.

Palavras-chave
Hannah Arendt; história; narrativa; biografia; memória

Abstract

In 1957, Hannah Arendt published the work Rahel Varnhagen, the life of a German Jew in the age of Romanticism. The book, almost all of it, was written in the early 1930s and only the preface dates from its publication. Based on this work, this article will seek to analyze Hannah Arendt’s contribution to the biographical narrative, the tension between History and the relationship between History and politics.

Keywords
Hannah Arendt; story; narrative; biography; memory

Introdução

“O que me interessava unicamente era narrar a história da vida de Rahel como ela própria poderia ter feito”. É assim, no prefácio à obra Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do Romantismo, que Hannah Arendt informa aos leitores sobre os caminhos que pretendeu trilhar para a redação desse texto (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 11). E é em torno desse trabalho que buscaremos desenvolver uma reflexão acerca da escrita biográfica em Arendt. Embora a autora tenha apenas esse livro escrito formalmente como biografia, sua contribuição ao tema é bem mais abrangente.

É Arendt personagem determinante no debate a respeito do chamado “retorno da narrativa” quando, em A condição humana, levantou o problema do quem da ação no texto narrado, buscando aí, no sujeito da história, sua identidade pessoal (ARENDT, 2007ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007 [1958]., p. 232). A indagação da filósofa abre imensas possibilidades para o biográfico, na medida em que nos permite compreender o “percurso da vida como totalidade singular” (OLIVEIRA, 2017OLIVEIRA, Maria da Glória de. Quem tem medo da ilusão biográfica? Topoi, Rio de Janeiro, v. 18, n. 35, p. 429-46, 2017., p. 431). Nas palavras de Paul Ricoeur: “Dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade é responder à pergunta: quem fez tal ação? Quem é seu agente, seu autor?” (RICOEUR, 2010bRICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. 3. O tempo narrado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010b., p. 418).

No entanto, no capítulo dedicado a Rosa Luxemburgo, em seu Homens em tempos sombrios, Arendt expõe uma concepção do biográfico que vai de encontro às interpretações acima anunciadas. Diz a autora:

A biografia definitiva, ao estilo inglês, conta-se entre os gêneros mais admiráveis da historiografia. Extensa, meticulosamente documentada, densamente anotada e generosamente entremeada de citações, geralmente aparece em dois grandes volumes e conta mais, e mais vivamente, sobre o período histórico em questão do que todos os livros de história mais importantes. Pois, ao contrário de outras biografias, a história não é aí tratada como o inevitável pano de fundo do tempo de vida de uma pessoa famosa; é antes como se a luz incolor do tempo histórico fosse atravessada e refratada pelo prisma de um grande caráter, de modo que no espectro resultante obtém-se uma unidade completa da vida e do mundo. Talvez por isso tenha se tornado o gênero clássico para as vidas dos grandes estadistas, mas permaneceu impróprio para aqueles cujo principal interesse reside na história de vida, ou para as vidas de artistas, escritores e, de modo geral, homens ou mulheres cujo gênio os obrigou a manter o mundo a uma certa distância, e cuja significação reside principalmente em suas obras, artefatos que acrescentaram ao mundo, e não ao papel que nele desempenharam

(ARENDT, 2008ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [1968]., p. 41).3 3 Reconheço que também há, em Homens em tempos sombrios, uma importante reflexão a respeito da escrita biográfica. Entretanto, para o presente artigo, dadas as limitações de espaço, tratarei privilegiadamente de sua biografia de Rahel Varnhagen. Para outras reflexões acerca do biográfico em Arendt, ver: LORIGA, 2022; e SCHITTINO, 2012.

Logo em seguida, no mesmo texto, na primeira nota de rodapé e como a confirmar sua ideia de biografia, Arendt referiu-se aos personagens que, em sua opinião, eram ou não merecedores de um texto biográfico:

Uma outra limitação se tornou ainda mais óbvia nos últimos anos quando Hitler e Stálin, devido à sua importância na história contemporânea, foram honrados imerecidamente com biografias definitivas. Não importa tão escrupulosamente Alan Bullock, em seu livro sobre Hitler e Isaac Deutscher em sua biografia de Stálin tenham seguido os detalhes técnicos exigidos pelo gênero: ver a história sob a luz de teses impessoais apenas resulta na promoção falsa à respeitabilidade e em uma distorção ainda mais sutil dos eventos

(ARENDT, 2008ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [1968]., nota de rodapé 1; grifo nosso).4 4 Arendt faz referência aos livros de Allan Bullock, 1952, e de Deutscher, 1949.

Feitas essas observações, pretendemos problematizar três temáticas fundamentais para o entendimento da forma como Arendt concebeu a biografia de Rahel: em primeiro lugar, a chamada relação indivíduo/coletivo no texto biográfico; em seguida, o problema da narrativa biográfica; por fim, pretende-se analisar em que medida essa narrativa revela a “historiadora” Hannah Arendt.

Indivíduo, coletivo e escrita biográfica

A opção pelo biográfico, como se sabe, foi, durante muito tempo, estranha aos historiadores, de modo que seu reconhecimento como gênero historiográfico foi “lento, gradual e inseguro”. Sobre essa letargia dos historiadores, Guilherme Pereira das Neves, ao proferir uma conferência com o sugestivo título Elétrons não são intrinsecamente mais interessantes do que gente, chamou a atenção para os motivos de tal esquecimento, bem como as alternâncias e possibilidades de ação do indivíduo, sua autonomia de escolha e suas incongruências. Em breves palavras, as heranças do marxismo e da Escola dos Annales teriam marcado, como tatuagem, a historiografia do século 20 (NEVES, 2002NEVES, Guilherme Pereira das. Elétrons não são intrinsecamente interessantes como gente. In: MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes; SOARES, Luiz Carlos; BESSONE, Tânia (org.). X ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA. ANPUH-RJ. História e Biografia. Anais... Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002.). Assim, o acontecimento singular, o fato, era quase descartado. Na melhor das hipóteses, poderia ser um complemento, nunca determinante, frente ao vaticínio do suposto “espírito da história”. Como bem comentou, não sem ironia, Sabina Loriga:

Nesta concepção providencial do futuro, o indivíduo permanece totalmente sujeito à lei, uma lei terrível e implacável, nunca desviando de seu curso. O esquecimento da pessoa coincide quase sempre com a recusa do acaso. (...) o resultado da batalha de Waterloo foi condicionada pelas chuvas torrenciais que caíram durante a noite de 17 e 18 de junho de 1815, mas essas trombas de água eram também a marca do deus da história”

(LORIGA, 2012LORIGA, Sabina. O pequeno x: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012., p. 5).

Quanto ao livro de Arendt, trata-se de um texto a respeito de uma mulher nascida em Berlim em 1771 e falecida na mesma cidade em 1833, que, judia, fez do esforço em abdicar da condição determinada pelo seu nascimento o objetivo maior de sua existência. Rahel Varnhagen foi escrita, quase toda ela, no início da década de 1930, “às vésperas do precipício de 1933” (LORIGA, 2011LORIGA, Sabina. L’histoire mode de vie: réfletions autour de Hannah Arendt et Siegfried Kracauer. In: BOUTON, Christophe et al. Penser l’histoire. Paris: Editions l’Éclat, 2011. En ligne, adresse: https://www.cairn.info/penser-l-histoire---page-209.htm. Acesso em: 17 fev. 2022.
https://www.cairn.info/penser-l-histoire...
, p. 212). Os dois últimos capítulos foram redigidos no exílio parisiense da autora, e apenas o prefácio data do ano de sua primeira edição, 1957. É aí que a autora nos informa dos limites por ela enfrentados para a redação do texto, sobretudo no que toca às fontes. August Varnhagen, marido da biografada, ao publicar as correspondências de Rahel, em 1834, não se furtou em suprimir as fontes que expunham o círculo de convivência judaica de Rahel, ao mesmo tempo em que realçava seu círculo aristocrático (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 9-10).

Considerando o que significou a biografia entre os séculos 19 e 20, percebemos que Rahel seguramente não se apresenta como a pessoa mais credenciada para ter sua “experiência do vivido” transformada em conhecimento (RICOEUR, 2010aRICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. 1. A intriga e a narrativa histórica. Tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010a., p. 163). Afirmava Ranke, com quem, aliás, Rahel se correspondia, que a biografia só se torna significante na medida em que “a existência pessoal atinge uma dimensão histórica universal” (apud LORIGA, 1996LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996., p. 233-234).

Rahel se tornou conhecida quando, no final do século 18, organizou em sua casa salões que ganharam notoriedade em toda a Berlim. Sua notabilidade decorria mais do fato de ter sido a anfitriã de uma gama heterogênea de notáveis do que propriamente por ter construído algo que revelasse a universalidade reclamada por Ranke. Rahel se distanciava literalmente da “grande personagem”, do monumento consagrado pela memória nacional; aquele que propicia, nas palavras de Henry Rousso, a “memória enquadrada” (ROUSSO, 1984ROUSSO, Henry. Vichy, le grand fossé. Vingtieme Siècle, Revue d’histoire, n. 5, p. 55-80, 1985., p. 73).

Biografando Rahel, a autora traz para a frente da cena a personagem que age sobre o meio que a cerca, e não o contrário (RICOEUR, 2010aRICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. 1. A intriga e a narrativa histórica. Tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010a., p. 170; DOSSE, 2009DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EdUSP, 2009., p. 56). Rahel “se acha, sem o saber, sob a luz dos holofotes” (DOSSE, 2009DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EdUSP, 2009., p. 67). Não é, pois, a paisagem contínua das grandes estruturas que determina o relato; também não é a “natureza humana”, de matriz kantiana,5 5 “Os indivíduos, e mesmo os povos inteiros, não pensam que, enquanto eles prosseguem com suas intenções privadas, cada um segundo seus gostos e muitas vezes contra outros indivíduos [ou povos], seguem como um fio condutor, sem se aperceberem, a intenção da natureza, que lhes é desconhecida, e que, mesmo que a tivessem conhecimento, no entanto, não lhes importaria” (KANT, 2009, p. 32). ou o suposto “espírito da história” hegeliano, arquitetura de um porvir tanto idealista quanto teleológico.6 6 “A verdade de que uma Providência, ou seja, a Providência divina, preside os acontecimentos do mundo corresponde ao nosso princípio, pois a Providência divina é a sabedoria dotada de infinito poder que realiza seu objetivo, ou seja, o objetivo final, racional e absoluto do mundo. A Razão é o Pensamento determinando-se em absoluta liberdade” (HEGEL, 1990, p. 56). Rahel pertencia àquele universo das personagens destinadas a permanecerem mortas. É Arendt que a resgata à vida, outorga-lhe a condição de “amiga mais próxima” e dá-nos conhecimento de suas escolhas (ADLER, 2007ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Trad. Tatyana Salem Levy. Rio de Janeiro: Record, 2007., p. 104). É afortunado que a biógrafa assim proceda. Em coerência, aliás, com o que escreveu cerca de vinte anos depois:

A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais (...). Se não fossem diferentes (...), os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender

(ARENDT, 2007ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007 [1958]., p. 188).

Nessa tensão entre igualdade e diferença, Rahel elegeu seus caminhos. O mais importante deles advém das possibilidades abertas pelo Iluminismo, sem o qual o salão de sua casa não teria acontecido (ARENDT, 2016aARENDT, Hannah. O Iluminismo e a questão judaica. In: Escritos judaicos.Org. Jerome Kohn e Ron H. Feldman. Trad. Laura Degaspare Monte Mascaro; Luciana Garcia de Oliveira; Thiago Dias da Silva. Bauru/SP: Amarilys, 2016a., p. 111). Arendt, em diversas passagens, menciona o compromisso com o pensar iluminista e racionalista de sua biografada. “O que é o ser humano sem a sua História? – questionava Rahel – Produto da natureza e nada de pessoal”. Uma natureza que é “tão dependente da sorte quanto o trigo do bom tempo” (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 16).

Para a fortuna de Rahel, a Prússia de Frederico II ampliou as possibilidades de inserção da comunidade judaica, e nossa personagem teve a virtude de explorá-las (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 20; GAINES, 2017GAINES, James R. Uma noite no Palácio da Razão. O encontro de Bach e Frederico, o Grande na era do Iluminismo. Rio de Janeiro: Record, 2007.). As alterações provocadas pelas Luzes interferiram diretamente na vida das pessoas, inclusive das mulheres judias (ARENDT, 2016aARENDT, Hannah. O Iluminismo e a questão judaica. In: Escritos judaicos.Org. Jerome Kohn e Ron H. Feldman. Trad. Laura Degaspare Monte Mascaro; Luciana Garcia de Oliveira; Thiago Dias da Silva. Bauru/SP: Amarilys, 2016a., p. 111). Arendt refere-se ao que chamou de “problema feminino”, ou seja, a “discrepância entre o que os homens esperavam das mulheres (...) e o que as mulheres podiam dar e que desejavam por sua vez” (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 13). Aqui se pode perceber a importância que Arendt atribui a Rahel, uma mulher cuja vida não era complemento de outra, no caso, a de um homem.

Rahel foi protagonista de sua trajetória. Escolheu, por exemplo, suas relações amorosas, quase sempre com homens mais jovens. Dolorosa, atormentada, sofrida, mas a seu modo construiu seu trajeto. A autora poderia, por exemplo, ter biografado Dorothea Mendelssohn, amiga de Rahel e filha de Moses Mendelssohn, expoente do Iluminismo judaico na Europa (ARENDT, 2016aARENDT, Hannah. O Iluminismo e a questão judaica. In: Escritos judaicos.Org. Jerome Kohn e Ron H. Feldman. Trad. Laura Degaspare Monte Mascaro; Luciana Garcia de Oliveira; Thiago Dias da Silva. Bauru/SP: Amarilys, 2016a., p. 111-132). Dorothea que, para se assimilar, abandonou o marido judeu, converteu-se ao cristianismo e se casou com o poeta e filósofo Friedrich Schlegel (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 37). Mas, a partir daí, sua vida se confundiu com as vidas das demais mulheres da Europa de seu tempo (PERROT, 1988PERROT, Michelle. As mulheres, o poder, a história. In: Os excluídos da história: operários, mulheres, prisioneiros. Seleção de Textos. Stella Bresciani. Trad. Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988., p. 177). A vida de Dorothea se imortalizou em um único ato, o de seu casamento (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 37). Fora desse quadro, estava a “inconversível” Rahel, e por isso foi ela a eleita (Idem, p. 47). Dorothea era semelhança; Rahel, diversidade (CHARTIER, 2022CHARTIER, Roger. Verdade e prova: história e retórica, literatura e memória. Revista de História. São Paulo: Universidade de São Paulo, n° 181, a00821, p. 1-22, 2022., p. 14).7 7 Parece que Elizabeth Young Bruehl tem razão ao afirmar que “Los amigos de todo tipo y también las figuras históricas con las que Hannah Arendt se sentía especialmente afín, como Rosa Luxemburgo y Rahel Varnhagen, tenían una característica en común: todos ellos fueran, cada uno a su modo, outsiders” (YOUNG-BRUELH, 1993 [1982], p. 14). Aliás, Rahel correu o risco de enveredar pelo mesmo destino da amiga. Noiva de Karl Leopold Finck Von Finckenstein, nobre e filho de uma família anti-iluminista, foi advertida por um amigo:

“Ao entrar nesta casa você se torna membro da família mais amável, por outro lado, perde toda a sua liberdade, cessa inteiramente de ser uma pessoa (...) existindo por si mesma e realmente não possui mais vontade própria”

(ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 39).

O noivo, ciente dessas dificuldades, afastou-se da família e se aproximou dos amigos de Rahel. Mas ali, sem vínculos familiares, abdicava de sua existência: “despido de seu título de nobre, nada tinha que pudesse representar, pois o mesmo não era de qualquer valia para os amigos de Rahel” (Idem, p. 42; YOUNG-BRUEHL, 1993YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Hannah Arendt: por el amor del mundo. Valencia: Ediciones Alfons el Magnànim, 1993 [1982]. [1982], p. 130). Finckenstein abdicava de si entre os amigos dela; Rahel abdicaria de si no ambiente dele.

Vê-se, portanto, que a defesa de valores universalistas, caros a toda a obra de Arendt, não obsta o reconhecimento da diversidade. Sobretudo no que toca às ações humanas. Em correspondência a seu orientador Karl Jaspers, Arendt lamentava o fato de que o pensamento moderno perdera o gosto pela diferença (ARENDT, 2006ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007 [1958]., p. XXX). Rahel, reiteramos, foi eleita exatamente por não representar o normal, o espectável. Assim, a escrita biográfica de Arendt, longe de toda uma tradição historiográfica, tanto do século 19 como do 20 (DOSSE, 2009DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EdUSP, 2009., p. 55-122), recusa reduzir Rahel a mera consequência do todo, expressão bem-acabada das condicionantes de seu tempo. Georges Duby, por exemplo, ao comentar sobre seu Guilherme Marechal, deixou evidente que sua preocupação na obra não era o biografado, mas os valores da cavalaria e os mecanismos de funcionamento da sociedade feudal (DUBY, 1993DUBY, Georges. A história continua. Rio de Janeiro: Zahar; Editora UFRJ, 1993., p. 138; DUBY, 1988DUBY, Georges. Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro: Graal, 1988.). Não foi esse o caminho escolhido pela biógrafa Hannah Arendt.

A narrativa histórica

Arendt nos informa que optou pela recusa a qualquer perspectiva abstrata ou “criativa” (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 13). Logo ela que, quando jovem, demonstrava um forte interesse, além da filosofia, pela teologia e pela crítica literária (ECCEL, 2019ECCEL, Daiane. O Problema da formação nos escritos de juventude de Hannah Arendt: uma investigação sobre a Bildung. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 44, n. 2, p. 01-16, e84355, 2019.). Arendt, assim, discordaria de Giovanni Levi, para quem “a literatura comporta uma infinidade de modelos e esquemas biográficos que influenciariam amplamente os historiadores” (LEVI, 2008LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). Usos e abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008., p. 168); ou de François Dosse:

“O recurso à ficção no trabalho biográfico é, com efeito, inevitável na medida em que não se pode restituir a riqueza e a complexidade da vida real”

(DOSSE, 2009DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EdUSP, 2009., p. 55).

Já para Ricoeur, a atividade narrada, por ele entendida como um terceiro tempo, é vista como “uma interpenetração da história e da ficção, decorrente dos processos cruzados de ficcionalização da história e de historicização da ficção” (RICOEUR, 2010bRICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. 3. O tempo narrado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010b., p. 418). É verdade que, quanto a esse aspecto, Arendt não se encontrava isolada. O apreço à narrativa nunca foi unanimidade entre historiadores ou cientistas sociais. Daí os acalorados debates quando do suposto “retorno da narrativa” e a chamada crise dos paradigmas nas últimas décadas do século 20 (STONE, 1991STONE, Lawrence. O ressurgimento da narrativa: reflexões sobre uma nova velha história. Revista de História, Campinas/SP, p. 13-46, 1991.; MALERBA, 2016MALERBA, Jurandir. O que narram os historiadores? Para uma genealogia da questão narrativa em história. Topoi, Rio de Janeiro, v. 17, n. 33, p. 399-418, jul./dez. 2016., p. 415; RICOEUR, 2010bRICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. 3. O tempo narrado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010b., p. 93). O método narrativo, no entanto, lembra Roger Chartier, está presente em toda a produção historiográfica, à revelia da vontade de seus autores. Ao mesmo tempo, chama atenção para o fato de que, apesar da forma literária que a narrativa historiográfica pode apresentar, o historiador, ao contrário do romancista, depende dos arquivos e do passado, sem os quais inexiste o seu ofício (CHARTIER, 1994CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 13, v. 7, p. 97-113, 1994., p. 103-104, p. 111-112).

Preocupada com fontes e documentos, o argumento narrativo de Arendt não se fechou em si próprio, como deseja certa perspectiva “narrativista”, corrente na história e nas ciências sociais e humanas a partir dos anos 1970 (RICOEUR, 2010bRICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. 3. O tempo narrado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010b., p. 327, nota 27).

(...) deixar fluir a estética não deve significar a sua autonomia completa, pois isso também a afastaria do cotidiano das experiências, do social e do histórico. Se isso ocorresse, teríamos a ornamentação do texto sobreposto ao histórico e, conseqüentemente, nada mais do que um novo jogo da hostilização ao passado, onde predominariam o gozo das formas do esteticismo técnico e superficial. Em outras palavras, teríamos apenas um paraíso estético de alienação e de escapismo

(DIEHEL, 2002DIEHEL, Astor Antonio. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação. São Paulo: EDUSC, 2002., 107).

Portanto, ainda que recusando o “criativo”, a redação de Arendt não deixa de ser uma narrativa. Por exemplo, quando narra o sofrido fardo de Rahel para libertar-se daquele “complexo de Shylock”, o agiota judeu, personagem de Shakespeare, chantagista do cristão Antonio (SHAKESPEARE, 2002SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. Almada: Água Forte, 2002 [1594]., p. 52).8 8 Sobre a permanência do complexo de Shylock, ver: ROTH, 2019, p. 332. Shylock, o ressentido, ávido por vingança, reconhecimento e respeito. Mas, como não há mau tempo que não possa piorar, esse judeu bem-sucedido, Shylock, podia transitar para o fracassado, schlemiel, palavra iídiche utilizada para designar o “malsucedido”, o “pobre coitado” (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 15-32). Rahel abominava esse desígnio: pois para ser schlemiel, é necessário, antes, ser judeu. “Nunca ficarei convencida de que sou um schlemiel e uma judia; uma vez que, em todos esses anos e após tanto pensar a respeito, eu ainda não comecei a compreender, sei que nunca realmente conseguirei fazê-lo”, dizia Rahel (Idem, p. 20).

Diante dessa incontornável realidade, algo pária, algo schlemiel, Rahel, em duas ocasiões, saiu de Berlim. Residiu em Paris em 1800 e, entre 1813 e 1814, em Praga. Nos dois casos, o desejo de andar pelas ruas, livre da nefasta marca. Ser estrangeira, estar fora de seu território, quando então todas as particularidades desaparecem. No exterior, seu lugar de origem era Berlim; em Berlim era a Judengasse, e essa não era uma diferença menor (Idem, p. 180-181). “É fácil esquecer a si mesmo quando a razão para toda a infelicidade não é reconhecida, nem reparada, nem considerada” (Idem, p. 67).

Mas, para seu infortúnio, em Paris como em Praga, a alegria durou pouco. Havia judeus em todo canto, que lembravam uns aos outros suas origens (MEZAN, 1986MEZAN, Renato. Psicanálise e judaísmo: ressonâncias. Campinas: Escuta, 1986., p. 114). Pobre Rahel, que tanto desejava se expor à vida comumente, “como uma tempestade, sem um guarda-chuva” (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 11). Essa vida comum, a “vida ordinária” de que fala Hume, foi-lhe negada (HUME, 1985HUME, David. Essays Moral, Political and Literary. Indianapolis/USA: Liberty Fund, 1985 [1741-1742]., p. 535); a ela foi imposto o agir, para desaparecer e, talvez, renascer sob uma veste cristã (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 71). E essa “exposição obrigatória” era uma realidade tanto da época do prussianismo xenófobo quanto do Iluminismo; neste caso não havia diferença. “O que permanecia, mesmo na situação mais favorável, era a ‘necessidade de sempre ter de legitimar-se primeiro! É por isso que é tão desagradável ser judia!’” (Idem, p. 77).

O desconforto aumentava na medida em que um antijudaísmo se foi consolidando na Prússia em um processo, aí sim, “lento, gradual e seguro”. Uma primeira onda de “antissemitismo” varreu a Prússia a partir da publicação do livro Wider die juden (Contra os judeus) de Karl Friedrich Grattenauer (2012 [1803])GRATTENAUER, Karl Wilhelm Friedrich. Wider die Juden. London: Nabu Press, 2012 [1803].. Esse manifesto antijudaico ganhou forma de legislação a partir de 1806, quando os direitos à época adquiridos pelos judeus lhes foram retirados. O ano de 1806 foi, portanto, o “ponto zero” que marca a distinção entre passado e futuro responsável pela alteração na vida das gentes prussianas.

Aos prussianos cristãos, o tempo do conservadorismo ressentido pela derrota frente a Napoleão; aos judeus prussianos, o tempo da intolerância que sobre eles se abateu (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 107). Talvez por isso, diante dos nacionalismos que excluíam o “outro”, Rahel tenha pensado – à semelhança de Stefan Zweig anos depois (2014 [1942])ZWEIG, Stefan. O mundo de ontem: recordações de um europeu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2014 [1942]. – numa Europa como pátria. Acima de tudo, como revelara em discretas e heréticas correspondências a seus irmãos, temia o exacerbado “patriotismo prussiano”. Foi essa a razão pela qual, nas primeiras guerras napoleônicas, viu com entusiasmo o avanço do general francês. Não que fosse adepta da Revolução Francesa, jacobina ou similar, mas ali percebeu a possibilidade concreta de ver derrotada a Prússia nacionalista tão profundamente hostil aos judeus (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 107-108).

A viagem de Rahel a Praga marca, entretanto, uma curiosa viragem de rumo e de escolhas. Nessa cidade, pela primeira vez, Rahel sentia-se tanto útil quanto prussiana (Idem, p. 160-161). Mais uma vez em guerra contra Napoleão, Rahel se ocupava: cuidava dos feridos, providenciava-lhes alojamentos e coletava fundos; era uma patriota a agir como tal (Idem, p. 112). Logo após seu retorno à Prússia, casa-se com August Varnhagen, desejo acalentado de anos, ainda que não necessariamente com esse noivo em particular. Imaginava, enfim, “cobrir a nudez do judaísmo com outra roupa” (Idem, p. 104).

Retornada à Alemanha, foi radical em suas escolhas: “encontrar seu caminho (...), assimilar-se, tornar-se como os outros”. E criar outros preconceitos. Dificilmente existiria uma alternativa que não a de trocar antigos preconceitos por preconceitos novos (Idem, p. 185; ARENDT, 2016aARENDT, Hannah. O Iluminismo e a questão judaica. In: Escritos judaicos.Org. Jerome Kohn e Ron H. Feldman. Trad. Laura Degaspare Monte Mascaro; Luciana Garcia de Oliveira; Thiago Dias da Silva. Bauru/SP: Amarilys, 2016a., p. 126-128). E assim o fez tomando por base os Discursos para a nação alemã, de Fichte. Escolheu, pois, aderir aos valores de um baluarte do pangermanismo e do nacionalismo étnico alemão (ARENDT, 1994, p. 109; GONÇALVES; ALBUQUERQUE, 2017GONÇALVES, Daniele Gallindo; ALBUQUERQUE, Mauricio da Cunha. “Hail Arminus! O Pai dos Alemães!”: a construção mítica da Unificação Alemã entre 1808 e 1875. Topoi, Rio de Janeiro, v. 18, n. 35, p. 330-55, maio/ago. 2017., p. 336).

O “antissemitismo” patriótico de Fichte envenenara o relacionamento entre judeus e não judeus. Rahel invocava, assim, uma “assimilação entre seus inimigos, enfrentando um mundo que nunca ouvirá seu choro” (LORIGA, 2011LORIGA, Sabina. L’histoire mode de vie: réfletions autour de Hannah Arendt et Siegfried Kracauer. In: BOUTON, Christophe et al. Penser l’histoire. Paris: Editions l’Éclat, 2011. En ligne, adresse: https://www.cairn.info/penser-l-histoire---page-209.htm. Acesso em: 17 fev. 2022.
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, p. 215). Preconceitos sociais e de classe formavam-se recebendo apoio de uma intelligentsia patriótica e antijudaica contrária aos seus empenhos assimilacionistas (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 112).

Em reação a tais hostilidades, uma intelligentsia judaica filiou-se a movimentos coletivos, de cariz revolucionário. Não foi o caso de Rahel, firme em sua travessia individual (Idem, p. 151). Residindo em Baden, esposa de oficial, Rahel obteve a cidadania prussiana. Tornava-se, ao menos formalmente, uma igual entre os iguais ao mesmo tempo em que rompia com suas origens e com “todos aqueles que soubessem sobre tais origens” (Idem, p. 168-169). Mas o afastamento dos seus não mudava a si, de modo que, com sua vontade ou sem ela, permanecia judia. Na feliz expressão de Sabina Loriga, Rahel descobriu “rapidamente que não se pode nascer uma segunda vez” (LORIGA, 2011LORIGA, Sabina. L’histoire mode de vie: réfletions autour de Hannah Arendt et Siegfried Kracauer. In: BOUTON, Christophe et al. Penser l’histoire. Paris: Editions l’Éclat, 2011. En ligne, adresse: https://www.cairn.info/penser-l-histoire---page-209.htm. Acesso em: 17 fev. 2022.
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, p. 217).

Imaginou que, casada, podia se afastar de toda relação de “solidariedade (...) com o pequeno grupo de judeus prussianos, dos quais se originara e de cujo destino partilhava” (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 180). Vivia a ambivalente situação de negar a coletividade judaica sendo, ao mesmo tempo, uma expressão dela. Exigia direitos individuais e se negava a partilhar do destino geral dos seus. Diz Arendt:

Havia caminhado por todos os caminhos que pudessem levá-la para um mundo estrangeiro, e em todos esses caminhos deixara seu rastro, convertera-os em caminhos judaicos, caminhos de párias; em última análise, sua vida inteira havia-se tornado um segmento da História judaica na Alemanha (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 184).

Como se vê, a estratégia narrativa de Arendt evidencia a “singularidade de uma existência” (COSTA, 2021COSTA, Vítor Hugo dos Reis. A insustentável leveza do si: a ipseidade entre a existência e a narrativa. Griot: Revista de Filosofia. Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, v. 21, n. 1, p. 94-113, 2021., p. 2). Em outras palavras, o “senso de narratividade” empregado pela biógrafa entrelaça a personagem Rahel com as instituições, os valores e os empreendimentos de seu tempo sem, entretanto, torná-la deles refém (Idem, p. 6). Foi, então, “a partir desta interação constante entre o mundo e a pessoa que evolui em meio a histórias cruzadas” que Arendt percebeu o que era próprio em sua personagem (DOSSE, 2009DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EdUSP, 2009., p. 343).

Essa articulação, diga-se, apenas traz algo de Rahel, cuja identidade narrada estará submetida à prova do tempo. A narrativa de sua história revela uma identidade que não se esgota, é sempre inacabada. O percurso do si nessa personagem surge, como sugere François Dosse, “na tomada de responsabilidade, de um engajamento que assume a travessia da experiência”. Uma travessia que recusa “a alternativa prejudicial entre um ego todo poderoso, divinizado, e um sujeito humilhado, desfeito” (Idem, p. 342).

Aqui se pode perceber a diferença fundamental entre o que um autor como Jean-Paul Sartre entende como Ser e ipseidade e o que pensa Ricoeur a esse mesmo respeito. Para o primeiro, o Ser é a expressão absoluta do indivíduo, enquanto a ipsei­dade é sua relação fragmentada diante da vida. A contingência inerente à ação humana impede-nos, em Sartre, que em nossa ipseidade sejamos um Ser Para-si; as inconstâncias e incoerências das pessoas reduzem-nas, forçosamente, à condição de Ser Em-si” (SARTRE, 2008SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 16. ed. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2008 [1943]., p. 592).

Para ser um Ser, é necessária, nessa perspectiva, a estabilidade de uma parede bem construída. Em Ricoeur, ao contrário, e influenciado pelo texto de Arendt a respeito do quem da ação, a narração não produz um Ser tão absoluto quanto perigoso; ela busca, sim, o indivíduo fragmentado, inconstante. Como nos afirma o autor, “diferentemente da identidade abstrata, a identidade narrativa, constituída da ipseidade, pode incluir a mudança, a mutabilidade na coesão de uma vida” (RICOEUR, 2010bRICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. 3. O tempo narrado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010b., p. 419).

Mas é necessário lembrar que a apreensão do quem não é conclusiva, caso contrário estaríamos dando ao indivíduo Rahel uma linearidade que apenas encontramos nas hagiografias proposital ou involuntariamente escritas. Portanto:

Recusando tanto a inclusão, num molde definitivo, de um caráter individual que se desdobraria de maneira puramente linear segundo sua lógica endógena própria, como o escolho que reduziria a personalidade a mero joguete das estruturas externas, a distinção mesmidade/ipseidade permite pensar conjuntamente o que perdura e o que muda na experiência viva, em sua expressão e na compreensão dela que possamos ter

(DOSSE, 2009DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EdUSP, 2009., p. 343, grifos do autor).

Desse modo, “a questão do quem requer uma resposta equívoca, uma resposta cindida” (RICOEUR, 2019RICOEUR, Paul. O si mesmo como outro. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014., p. 15). Apenas assim, a reprodução do caráter do sujeito Rahel e as mudanças por ela experimentadas ao longo de sua existência se apresentam de forma inteligível (DOSSE, 2009DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EdUSP, 2009., p. 343). Para além dos exemplos já referidos, Rahel, em seu leito de morte, confessou ao marido que o motivo do infortúnio de sua existência, o “nascimento infame”, era, naquele momento, uma condição não mais merecedora de sua repulsa (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 15). São tais contradições, mudanças de percurso, que tornam interessantes os humanos. Das duas uma: ou limitamo-nos a vê-los interessantes e complexos apenas na literatura, ou os incorporamos à história compreendendo seus “descaminhos”. O desafio é este, abraçar “a condição informe e heterogênea” do ser. Afinal de contas, “o que justifica que se se considere que o sujeito da ação, assim designado por seu nome, é o mesmo ao longo de toda uma vida que se estende do nascimento à morte”? (OLIVEIRA, 2007OLIVEIRA, Maria da Glória de. Quem tem medo da ilusão biográfica? Topoi, Rio de Janeiro, v. 18, n. 35, p. 429-46, 2017., p. 431).

Ao narrarmos uma história, apresentamos promessas, projetos que indicam um horizonte de expectativas, “a esperança e o temor, o desejar e o querer, a preocupação, o cálculo racional, a curiosidade, em suma, todas as manifestações, privadas ou comuns que visam o futuro” (DOSSE, 2009DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EdUSP, 2009., p. 354-355); a “noção da unidade narrativa põe a tônica na composição entre intenções, causas e acabamentos, que se encontra em toda a narrativa” (RICOEUR, 2019RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. 3. O tempo narrado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010b., p. 195). No caso de Rahel, no “conjunto de ações” a si atribuído “no espaço temporal entre o seu nascimento e a sua morte”, a intenção se materializou na “militância”, afinal derrotada, contra sua condição judaica (OLIVEIRA, 2007OLIVEIRA, Maria da Glória de. Quem tem medo da ilusão biográfica? Topoi, Rio de Janeiro, v. 18, n. 35, p. 429-46, 2017., p. 431). Mas não faz mal a derrota. Ainda que os projetos malogrem ou que a experiência se esvazie e seja impelida a operar em um horizonte desértico, ela se manterá incidindo sobre a vida; ainda que o doloroso caráter de reelaboração seja insuportável, permanece a possibilidade de restaurar o entendimento da vida a partir dos “fragmentos do sentido fraturado” (COSTA, 2021COSTA, Vítor Hugo dos Reis. A insustentável leveza do si: a ipseidade entre a existência e a narrativa. Griot: Revista de Filosofia. Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, v. 21, n. 1, p. 94-113, 2021., p. 13). Como disse Montaigne: “somos todos feitos de peças separadas e num arranjo tão disforme e diverso que cada peça, a todo instante, faz seu próprio jogo” (MONTAIGNE, 2010MONTAIGNE. Os ensaios: uma seleção. Trad. Rosa Freire de Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 210).

Enfim, merecida ou não, é através de Rahel que Arendt se empenha no “retorno do ontem”, tanto em sua escrita como na leitura da obra por aqueles que a ela tiveram acesso (REIS, 1996REIS, José Carlos. O conceito de tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e Annales: uma articulação possível. Síntese Nova Fase, v. 23, n. 73, p. 229-252, 1996., p. 235). E é assim, no relato de Arendt, que a vida de Rahel adquire contornos de “realidade” (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, Maria da Glória de. Para além de uma ilusão: indivíduo, tempo e narrativa biográfica. In: AVELAR, Alexandre; SCHMIDT, Benito Bisso (org.). O que pode a biografia. São Paulo: Letra e Voz, 2018., p. 61). Se essa Rahel de quem falamos era, “sua amiga mais próxima”, isso se deve à impossibilidade de se escrever a biografia a partir de uma exterioridade absoluta (DOSSE, 2009DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EdUSP, 2009., p. 95). Nesse sentido, “autor e narrador estão comumente ligados numa relação de identidade” (LEJEUNE, 1975LEJEUNE, Phillipe. Le pacte autobiographique. Paris: Seul, 1975., p. 38). E em sendo comum os amigos se encontrarem, Arendt estabelece um relacionamento não passivo entre si e sua Rahel. Há, entre uma e outra, ações de reciprocidade caras a toda forma de relação, inclusive em um texto redigido (PINTO, 2020PINTO, Júlio Pimentel. Do fingimento à imaginação moral: diálogos entre história e literatura. Tempo, Niterói, v. 26, n. 1, p. 25-42, jan./abr. 2020., p. 29).

Arendt, assim, vai ao encontro da sentença de Richard Holmes, para quem a “biografia é uma troca humana, (...) ‘um aperto de mão através do tempo’” (HOLMES, 2000HOLMES, Richard. Sidetracks: explorations of a romantic biographer. New York: Pantheon Books, 2000., p. 372). Mas, mais que isso, é através do encontro dessas duas mulheres que o tempo histórico se humaniza. E, visto que humanizado, ele não tem mais como seguir seu curso em uma linha reta. Uma vez que, ao tempo de Rahel, Iluminismo, pietismo, Romantismo ou prussianismo conviviam no mesmo espaço, é mais prudente falarmos de cursos dos tempos em substituição ao curso do tempo (LORIGA, 2010LORIGA, Sabina. Ecriture biographique et écriture de l’histoire aux XIXe et XXe siècles. Les Cahiers du Centre de Recherches Historiques. En ligne, 45 | 1-22, 2010, mis en ligne le 14 mars 2012, consulté le 26 septembre 2021. En ligne, adresse: http://journals.openedition.org/ccrh/3554. Doi: 10.4000/ccrh.3554.
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, p. 15-16). Pertencer ao mesmo calendário não significa necessariamente pertencer ao mesmo tempo (CHARTIER, 2022CHARTIER, Roger. Verdade e prova: história e retórica, literatura e memória. Revista de História. São Paulo: Universidade de São Paulo, n° 181, a00821, p. 1-22, 2022., p. 14). E a recíproca, claro está, é verdadeira.

Rahel percebe as idas e vindas, as disputas contemporâneas a si entre valores inconciliáveis e as consequências da vitória de um sobre o outro. A partir de determinado momento, já nem todas as plantas estavam “abertas ao sol”. Dizia Rahel:

“Até agora vivi sob os auspícios de Frederico II. Cada prazer de fora, cada bem, cada vantagem, cada amizade posso atribuir à sua influência. Isso foi destroçado sobre minha cabeça: sinto-o de fato duramente”

(ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 105).

A natureza dos novos salões demonstra o quão diferente eram os novos dias que se seguiam. “O que constava – diz Arendt – era que as pessoas se reuniam porque eram intelectualmente contra o iluminismo, politicamente contra a França e socialmente contra os salões [judeus]” (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 106-107). Assim: “Nunca mais Rahel conseguiu ser o verdadeiro centro de um círculo representativo sem sequer representar algo diferente além de si mesma” (Idem, p. 106). Afinal, aquela Europa iluminista, heredera de un pasado magnífico, como disse Ortega y Gasset, se retraía (1940, p. 128-129)ORTEGA Y GASSET, José. Pidiendo un Goethe desde dentro. Carta a un Alemán (1932). In: Trìptico. Mirabeau, el político Kant, Goethe. Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1940.. Nas palavras de Sabina Loriga: “A nova conjunção de Romantismo e prussianismo excluía da vida social as mulheres, os franceses e os judeus. O tempo de abertura e inocência acabou” (LORIGA, 2012LORIGA, Sabina. O pequeno x: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012., p. 213). Diria Hegel que foi por pouco tempo que a coruja de Minerva alçou seu voo (HEGEL, 2010HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia do Direito. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2010. [1820], p. 44).

A “historiadora” Hannah Arendt e o texto biográfico

Há vasta literatura a respeito de Arendt que afirma terem sido os acontecimentos da década de 1930 e seus desdobramentos, a Segunda Guerra Mundial e a Shoá, que a conduziram no sentido da política (ADVERSE, 2013ADVERSE, Helton. Arendt e a crítica ao romantismo na biografia de Rahel Varnhagen. Argumentos, Fortaleza, ano 1, n. 9, p. 79-96, jan./jun. 2013., p. 80; ECCEL, 2019ECCEL, Daiane. O Problema da formação nos escritos de juventude de Hannah Arendt: uma investigação sobre a Bildung. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 44, n. 2, p. 01-16, e84355, 2019.). Ela própria, em 1966, afirmou, em um programa de televisão, na então Alemanha Ocidental, que se considerava não propriamente uma filósofa, mas uma pensadora do político (ARENDT, 1994bARENDT, Hannah. Só permanece a língua materna. In: A dignidade da política. Org. Antônio Abranches.Trad. Frida Coelho. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994b [1966]., p. 123). Quando jovem, seus temas preferidos, como sua tese de doutoramento, O conceito de amor em Santo Agostinho, pareciam estar mais próximos da contemplação que da ação (ADLER, 2007ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Trad. Tatyana Salem Levy. Rio de Janeiro: Record, 2007., p. 84). Ainda assim, há questões tratadas em sua Rahel que demonstram uma jovem autora já, de alguma forma, comprometida com o político. E mais, comprometida também na prática. Saliente-se que foi exatamente quando coletava as fontes primárias para a redação de Rahel que Arendt, a pedido do movimento sionista, coletou material de propaganda antissemita do novo regime alemão (Idem, p. 81-81).

A partir daquele mosaico desconcertante representado nas contraditórias escolhas de Rahel, Arendt insinua uma crítica ao Romantismo que será aprofundada anos mais tarde em As origens do totalitarismo. Quando jovem, a recusa de Rahel em aceitar sua condição aporta-se em um mecanismo no qual a realidade é negada em favor da interioridade. Para Arendt, esse procedimento de natureza romântica evidencia também uma liberdade de pensamento (ARENDT, 1989ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 [1949]., p. 197-200). No entanto, aquilo que é determinante para o Iluminismo – o homem pensa por si – é exacerbado na forma de um pensamento que, levado às últimas consequências, “termina por jogar fora (...) a realidade” (ADVERSE, 2013ADVERSE, Helton. Arendt e a crítica ao romantismo na biografia de Rahel Varnhagen. Argumentos, Fortaleza, ano 1, n. 9, p. 79-96, jan./jun. 2013., p. 80); como diria Kant, Rahel abdicava do direito ao “uso público da razão” (KANT, 2021KANT, Immanuel. Filosofia da história. Trad. Cláudio Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2021 [1784]. [1784], p. 16).

Mas, em seguida, a realidade se impõe. Rahel precisava agir, precisava fazer, caso contrário a acalentada boda cristã não se realizaria. Há, desse modo, uma transição, do contemplativo ao pragmático. Ou melhor: no caso de Rahel, não há um, mas diversos pragmatismos. Como disse Arendt: “O implacável individualismo do romantismo nunca significou algo mais sério do que isto: todos têm o direito de criar sua própria ideologia” (ARENDT, 1989ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 [1949]., p. 198). Sendo “sua” a ideologia, ela poderia ser trocada a qualquer hora, consoante a conveniência de cada um. Assim é que Rahel, embora vítima do definhar do Iluminismo, também dele, consciente ou inconscientemente, afastara-se. Sua luta contra os fatos, “acima de tudo contra o fato de ter nascido judia, tornou-se rapidamente uma luta contra si mesma”. E, na medida em que “a pessoa tenha negado a si mesma, não há [mais] nenhuma alternativa” (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 22-23).

Outros temas, além de sua militância sionista ou de seu combate ao romantismo, são demonstrativos do interesse de Arendt, não apenas pela política, mas também pela história. A começar pelos salões, entendidos como espaços de sociabilidades. Em particular os salões judeus, “onde as diferenças econômicas e sociais se desintegravam, deixando aberta a possibilidade de cada um se apresentar por aquilo que é” (ADVERSE, 2013ADVERSE, Helton. Arendt e a crítica ao romantismo na biografia de Rahel Varnhagen. Argumentos, Fortaleza, ano 1, n. 9, p. 79-96, jan./jun. 2013., p. 83). Participavam de suas tertúlias, do príncipe Louis Ferdinand, sobrinho de Frederico II, a “embaixadores estrangeiros, artistas, estudiosos ou negociantes em qualquer área”. Rahel acolhia praticamente todos aqueles que a procuravam. “Ao invés de dizer pouco a poucos, Rahel conversava com todos a respeito de tudo” (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 26). Enfim, os salões representavam um espaço de autonomia naquela Berlim, durante algum tempo, iluminista.

Um outro tema, provavelmente o mais importante para se entender o contributo de Arendt como historiadora, diz respeito à memória histórica. O manuscrito, ainda nos anos 1930, foi enviado para a leitura de dois de seus grandes amigos, Gershom Sholem e Walter Benjamin (ADLER, 2007ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Trad. Tatyana Salem Levy. Rio de Janeiro: Record, 2007., p. 167). Segundo Benjamin:

“Este livro me causou forte impressão. Ele nada, com fortes braçadas, contra a corrente do judaísmo edificante e apologético. (...) tudo o que havia para ler até a presente data sobre os ‘judeus na literatura alemã’ se deixava levar precisamente por esta corrente”

(BENJAMIN; SHOLEM, 1987, p. 269, tradução livre ).9 9 “Este libro me ha causado una gran impresión. Con fuertes impulsos, va nadando contra la corriente de los estudios del Judaísmo de carácter edificante y apologético. Sabes mejor que nadie que todo lo que se ha podido leer hasta la fecha sobre ‘los judíos en la literatura alemana’ se dejaba arrastrar precisamente por esa corriente”.

A resposta de Sholem não foi menos entusiástica: “É uma excelente análise do que aconteceu na época e mostra que uma união baseada em mentiras como essa dos judeus alemães com os ‘germânicos’ não poderia terminar bem” (Idem, p. 282-283, tradução livre). Na contramão dessas opiniões, o orientador Jaspers mostrou-se incomodado. Buscou mesmo dissuadi-la da publicação, pois “esse livro não convirá a ninguém, nem aos judeus, nem aos anti-semitas, nem mesmo a mim” (ADLER, 2007ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Trad. Tatyana Salem Levy. Rio de Janeiro: Record, 2007., p. 195, 379-380). Escrita praticamente um século após a morte de Rahel, Arendt percebia os traços de continuidade entre sua época e a de sua biografada. Com alterações, evidentemente, mas com fortes marcas de permanência. Como disse Michael Pollak (1992, p. 201)POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.: “É como se, numa história individual – mas isso serve igualmente em memórias construídas coletivamente – houvesse elementos irredutíveis, em que o trabalho de solidificação da memória foi tão importante que impossibilitou a ocorrência de mudanças”.

Rahel e Arendt, pertencentes a gerações distintas, compartilhavam “de uma mesma memória, de uma mesma espera” (REIS, 1996REIS, José Carlos. O conceito de tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e Annales: uma articulação possível. Síntese Nova Fase, v. 23, n. 73, p. 229-252, 1996., p. 237). Nas palavras de Marc Ferro, determinadas experiências demonstram “o quanto é artificial o corte entre passado e presente – um vive no outro, o passado tornando-se presente, mais presente que o presente” (FERRO, 1999FERRO, Marc. O ressentimento na História. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Agir, 2009., p. 14). Por isso, a importância, e mesmo a necessidade, do enfrentamento da memória. Rahel era a mais bem acabada expressão daquilo que Elisabeth Roudinesco entendeu como o “ódio de si judaico” (ROUDINESCO, 2010ROUDINESCO, Elisabeth. Retorno à questão judaica. Rio de Janeiro: Zahar, 2010., p. 78). A biografada, em carta a seu irmão, disse: “o judeu deve ser extirpado de nós; essa é a verdade sagrada, e isso deve ser feito mesmo que a vida o seja junto” (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 111-112).

Outros judeus, evidentemente, não tinham exatamente “ódio de si”, mas distanciavam-se das liturgias e mesmo das comunidades judaicas. Stefan Zweig, por exemplo, já no início do século 20, via com profundo desprezo aqueles judeus originários da Europa Oriental que, desde finais do século anterior, ocupavam as ruas e praças de sua Viena (SPITZER, 2001SPITZER, Leo. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e a África Ocidental (1780-1945). Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2001., p. 163-165).

Em pleno século 20, Denise Rollemberg, ao estudar as diversas formas de resistência ao nazismo demonstra que uma das heranças da assimilação judaica foi um tipo de constrangimento que levava parte dos judeus alemães a resistirem apenas individualmente e não como pertencentes a um grupo determinado e formalmente perseguido. A autora cita ainda uma frase lapidar de um sobrevivente do holocausto que poderia muito bem ter sido proferida por Rahel: “é difícil ser judeu, mas é mais difícil ainda tentar não sê-lo” (ROLLEMBERG, 2021ROLLEMBERG, Denise. Valquírias: memórias da resistência alemã ao nazismo. Niterói: EDUFF; FAPERJ, 2021., p. 177).

Evidentemente, a despeito de compartilharem a mesma espera, as diferenças entre um e outro tempo são também gritantes. A tragédia do entreguerras marca uma “nova qualidade”, que distingue antijudaísmo e antissemitismo. Embora Arendt se refira a um “antissemitismo” no tempo de Rahel, quando do Holocausto, ela tratou de distinguir “antijudaísmo” e “antissemitismo”. O antijudaísmo sempre existiu combinando assimilação e repulsa. Já o antissemitismo foi uma ideologia que, nascida em finais do século 19, destinava-se ao extermínio judaico. Como disse Elizabeth Young-Bruehl:

(...) segundo Arendt, a ascensão de Hitler ao poder significou [o fim de] um capítulo da história do judaísmo alemão, um capítulo intitulado assimilação. Este período se iniciou com a geração de Rahel Varnhagen, uma geração que quis escapar de seu judaísmo convertendo-se ao cristianismo e praticando o matrimônio misto com não judeus. Terminou quando o racismo se converteu em uma política estatal alemã e fechou todas as saídas

(YOUNG-BRUEHL, 1993YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Hannah Arendt: por el amor del mundo. Valencia: Ediciones Alfons el Magnànim, 1993 [1982]. 1982], p. 127-128).10 10 “(…) según Arendt, el ascenso de Hitler al poder había significado un capítulo de la historia del judaísmo alemán, un capítulo titulado asimilación. Este período se inició con la generación de Rahel Varnhagen, una generación que quiso escapar a su judaísmo convirtiéndose al cristianismo y practicando el matrimonio mixto con no judíos. Terminó cuando el racismo se convirtió en una política estatal alemana y serró todas las salidas”.

O tempo de Rahel poderia ser, para ela, um drama, e era; mas não era a tragédia vivida pela autora. Interessante paradoxo este entre biógrafa e biografada: Arendt foi contemporânea da Shoá, mas nem por isso pretendeu deixar de ser judia; Rahel assistiu a manifestações ora de integração e ora de repulsa, nunca de extermínio, mas repugnava suas origens (ARENDT, 2016bARENDT, Hannah. Antissemitismo. In: Escritos judaicos. Org. Jerome Kohn e Ron H. Feldman. Trad. Laura Degaspare Monte Mascaro; Luciana Garcia de Oliveira; Thiago Dias da Silva. Bauru/SP: Amarilys, 2016b [1938-1939]., p. 173-284). Portanto, embora seja correto afirmar que a biografia de Rahel é, em parte – e apenas em parte –, um esforço autobiográfico, Arendt tinha plena consciência das diferenças significativas entre si e sua personagem (YOUNG-BRUEHL, 1993YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Hannah Arendt: por el amor del mundo. Valencia: Ediciones Alfons el Magnànim, 1993 [1982]. [1982], p. 72; 127-134).

Como se pode imaginar, muita tinta foi gasta para tentar descrever a “relação de amizade” entre Rahel e Arendt. Laure Adler, biógrafa de Arendt, afirma que a vida de Rahel foi redigida quase como “um auto-retrato mascarado, odisseia de sua própria judeidade atormentada” (ADLER, 2007ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Trad. Tatyana Salem Levy. Rio de Janeiro: Record, 2007., p. 98). Embora seja evidente que o interesse de Arendt por Rahel advenha das condições feminina e judaica de sua personagem, é necessário lembrar que “comparar é também fazer um inventário das diferenças” (BLOCH, 1995BLOCH, Marc. História comparada e a Europa. In: História e historiadores. Ed. Étienne Bloch. Trad. Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1995., p. 109-174). Alguns desses distanciamentos entre uma e outra já foram referidos, mas há ainda, pelo menos um, de grande relevo – que, aliás, parece ser a discrepância maior entre uma e outra. Não foi “atormentada” a judeidade de Arendt como atormentada foi a judeidade de Rahel (ARENDT, 2004ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 [1964-75]., p. 66-67). O que atormentava Arendt eram as consequências de sua condição na Europa de seu tempo: “ser privado dos direitos do homem é (...) ser privado de um lugar no mundo”, dizia ela (ARENDT, 2016cARENDT, Hannah. Hannah Arendt. O judeu como pária. In: Escritos judaicos. Org. Jerome Kohn e Ron H. Feldman. Trad. Laura Degaspare Monte Mascaro; Luciana Garcia de Oliveira; Thiago Dias da Silva. Bauru/SP: Amarilys, 2016c [1940]., p. 494). A busca pelo entendimento dessa situação foi marca determinante de sua trajetória. Nunca para negá-la, mas para compreendê-la.

Assim como a memória de muitas ditaduras tem sido revista,11 11 Sobre essa questão, ver ROLLEMBERG; QUADRAT, 2010; ROLLEMBERG; CORDEIRO, 2021. também a memória judaica, sobretudo no que toca a sua relação com diversas formas de constrangimentos e perseguições, tem sido motivo de novos olhares. Arendt antecipou-se a esses movimentos revisionistas. Quando jovem, ao escrever sua Rahel; e madura, ao enfrentar o senso comum que aponta o mal como “exclusividade” de homens e mulheres desviantes, “organicamente maus”. Foi o que fez em seu livro sobre o julgamento de Adolf Eichmann (ARENDT, 1999ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 [1963].).

No filme Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta, há um diálogo entre Arendt e seu amigo de juventude, o militante sionista Kurt Blumenfeld. Corria o ano de 1961, e Arendt encontrava-se em Jerusalém para acompanhar o julgamento de Eichmann. Blumenfeld, já em seus estertores – faleceu em maio de 1963 –, lamenta o desprezo de Arendt pelo povo judeu; e acusa a velha amiga de ter profanado a memória dos judeus assassinados.12 12 Hanna Arendt. Filme de Margarette von Trotta, 2012 [1:23:00-1:30:00]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wwbH7HQ27gs&t=5206s. Acesso em: 13 fev. 2020. Todos queriam, afinal, uma voz em uníssono contra aquele “monstro” enjaulado em Jerusalém. Arendt não só não o fez como deixou claro que o mal absoluto está ao alcance de todos.

Conclusão

Parece ter ficado evidente que, a despeito da vontade de “narrar a história da vida de Rahel como ela própria poderia ter feito”, essa vontade permanece apenas no desejo, o lugar onde se realiza a liberdade (LEVI, 1991LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. In: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; Editora da FGV, 1996., p. 115). Em primeiro lugar, porque o passado, entendido como a soma do que realmente ocorreu, está fora do alcance do historiador. Aliás, “se a vivência histórica nos fosse acessível, [ela] não seria objeto de conhecimento pois, quando era presente, era como nosso presente, confuso, multiforme, ininteligível” (RICOEUR, 2010aRICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. 1. A intriga e a narrativa histórica. Tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010a., p. 162-163). Em segundo lugar, a distância temporal entre prefácio e corpo do texto, cerca de um quarto de século, provavelmente terá influenciado Arendt a proferir aquele tipo de afirmação. São os ardis da memória, sua “instantaneidade” agindo sobre a biógrafa (CHARTIER, 2022CHARTIER, Roger. Verdade e prova: história e retórica, literatura e memória. Revista de História. São Paulo: Universidade de São Paulo, n° 181, a00821, p. 1-22, 2022., p. 18-19).

Arendt não só não reproduziu apenas as palavras de Rahel, mas criticou-a, questionou-a, ironizou-a. Nas páginas finais do livro, em face das sectárias recusas de Rahel, afirmava: “Em certas circunstâncias a existência de muros pode ser demonstrada apenas pela existência de cabeças quebradas” (ARENDT, 1994aARENDT, Hannah. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo. Trad. Antônio Trânsito; Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994a [1957]., p. 183); ou ainda: “O judaísmo era tão inato a Rahel como a perna mais curta do manco” (Idem, p. 180). Parece evidente que Rahel não proferiria essas palavras. Por isso parece-nos equivocada a afirmação de que Arendt preocupou-se, de fato, em redigir seu texto a partir, exclusivamente, das falas de sua biografada (ADVERSE, 2013ADVERSE, Helton. Arendt e a crítica ao romantismo na biografia de Rahel Varnhagen. Argumentos, Fortaleza, ano 1, n. 9, p. 79-96, jan./jun. 2013., p. 88; SCHITTINO, 2012SCHITTINO, Renata. A escrita histórica e os ensaios biográficos em Hannah Arendt. História da historiografia, Ouro Preto, n. 9, p. 38-56, 2012., p. 40; YOUNG-BRUEHL, 1993YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Hannah Arendt: por el amor del mundo. Valencia: Ediciones Alfons el Magnànim, 1993 [1982]. [1982], p. 128). Diria, enfim, que a jovem historiadora construiu uma narrativa que, sem descartar os acontecimentos daquela Prússia e mesmo da Europa da virada dos séculos 18 para o 19, soube dar protagonismo à “amiga”. Esses foram seus principais méritos.

Uma e outra, Rahel e Arendt, sofreram rachaduras em suas vidas, alteraram caminhos. E as escolhas desses caminhos alternaram sentimentos de certezas e incertezas. O que dizer de uma mulher que em 1808 se postou ao lado de Napoleão e seis anos depois parecia a mais prussiana dentre as prussianas? E que horas antes de seu fim se despiu do “manto da vergonha”, até aquele momento sua veste diária? E o que imaginar de Arendt entre a jovem recém-doutorada que escreveu Rahel e a madura mulher que, reconhecida e estabilizada nos Estados Unidos, escreveu o prefácio? E que alterou e tornou mais rígida sua compreensão da história e do biográfico? Que aparentemente passou a entender o biográfico quase como uma honraria ao personagem?

São as inconstâncias da vida que dão à vida das gentes a inteligibilidade possível.

  • 1
    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e a bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. O autor agradece a leitura atenta, os comentários e as sugestões de Benito Schmidt, Denise Rollemberg, Flavio Limoncic, Marta Prista e Vavy Pacheco BorgesBORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2010..
  • 3
    Reconheço que também há, em Homens em tempos sombrios, uma importante reflexão a respeito da escrita biográfica. Entretanto, para o presente artigo, dadas as limitações de espaço, tratarei privilegiadamente de sua biografia de Rahel Varnhagen. Para outras reflexões acerca do biográfico em Arendt, ver: LORIGA, 2022LORIGA, Sabina. L’histoire mode de vie: réfletions autour de Hannah Arendt et Siegfried Kracauer. In: BOUTON, Christophe et al. Penser l’histoire. Paris: Editions l’Éclat, 2011. En ligne, adresse: https://www.cairn.info/penser-l-histoire---page-209.htm. Acesso em: 17 fev. 2022.
    https://www.cairn.info/penser-l-histoire...
    ; e SCHITTINO, 2012SCHITTINO, Renata. A escrita histórica e os ensaios biográficos em Hannah Arendt. História da historiografia, Ouro Preto, n. 9, p. 38-56, 2012..
  • 4
    Arendt faz referência aos livros de Allan Bullock, 1952BULLOCK, Allan. Hitler: a study in tyranny. London: Odhams Press, 1952., e de Deutscher, 1949.
  • 5
    “Os indivíduos, e mesmo os povos inteiros, não pensam que, enquanto eles prosseguem com suas intenções privadas, cada um segundo seus gostos e muitas vezes contra outros indivíduos [ou povos], seguem como um fio condutor, sem se aperceberem, a intenção da natureza, que lhes é desconhecida, e que, mesmo que a tivessem conhecimento, no entanto, não lhes importaria” (KANT, 2009KANT, Immanuel. Idée sur l’histoire universelle du point de vue cosmopolitique. Trad. Luc Ferry. Paris: Gallimard, 2009 [1784]., p. 32).
  • 6
    “A verdade de que uma Providência, ou seja, a Providência divina, preside os acontecimentos do mundo corresponde ao nosso princípio, pois a Providência divina é a sabedoria dotada de infinito poder que realiza seu objetivo, ou seja, o objetivo final, racional e absoluto do mundo. A Razão é o Pensamento determinando-se em absoluta liberdade” (HEGEL, 1990HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Razão na História. São Paulo: Editora Moraes, 1999 [1807]., p. 56).
  • 7
    Parece que Elizabeth Young Bruehl tem razão ao afirmar que “Los amigos de todo tipo y también las figuras históricas con las que Hannah Arendt se sentía especialmente afín, como Rosa Luxemburgo y Rahel Varnhagen, tenían una característica en común: todos ellos fueran, cada uno a su modo, outsiders” (YOUNG-BRUELH, 1993 [1982]YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Hannah Arendt: por el amor del mundo. Valencia: Ediciones Alfons el Magnànim, 1993 [1982]., p. 14).
  • 8
    Sobre a permanência do complexo de Shylock, ver: ROTH, 2019ROTH, Phillip. Operação Shylock. Lisboa: Dom Quixote, 2019., p. 332.
  • 9
    “Este libro me ha causado una gran impresión. Con fuertes impulsos, va nadando contra la corriente de los estudios del Judaísmo de carácter edificante y apologético. Sabes mejor que nadie que todo lo que se ha podido leer hasta la fecha sobre ‘los judíos en la literatura alemana’ se dejaba arrastrar precisamente por esa corriente”.
  • 10
    “(…) según Arendt, el ascenso de Hitler al poder había significado un capítulo de la historia del judaísmo alemán, un capítulo titulado asimilación. Este período se inició con la generación de Rahel Varnhagen, una generación que quiso escapar a su judaísmo convirtiéndose al cristianismo y practicando el matrimonio mixto con no judíos. Terminó cuando el racismo se convirtió en una política estatal alemana y serró todas las salidas”.
  • 11
    Sobre essa questão, ver ROLLEMBERG; QUADRAT, 2010ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha (org.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. Europa, v. 1; Brasil e América Latina, v. 2; África e Ásia, v. 3.; ROLLEMBERG; CORDEIRO, 2021ROLLEMBERG, Denise; CORDEIRO, Janaína (org.). Por uma revisão crítica: ditadura e sociedade no Brasil. Salvador: Sagga, 2021..
  • 12
    Hanna Arendt. Filme de Margarette von Trotta, 2012 [1:23:00-1:30:00]Hanna Arendt. Filme de Margarette von Trotta, 2012 [1:23:00-1:25:10]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wwbH7HQ27gs&t=5206s. Acesso em: 13 fev. 2020.
    https://www.youtube.com/watch?v=wwbH7HQ2...
    . Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wwbH7HQ27gs&t=5206s. Acesso em: 13 fev. 2020.

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Sítio na Internet

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Editado por

Editores Responsáveis

Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2023
  • Aceito
    25 Jul 2023
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