Acessibilidade / Reportar erro

DEMOCRACIA(S) A SERVIÇO DO (ANTI)RACISMO, OU “DEMOCRACIA” SE SERVINDO DO (ANTI)RACISMO

GRAHAM, Jessica Lynn. Shifting the meaning of democracy: race, politics, and culture in the United States and Brazil. Oakland, California: University of California Press, 2019

Brasil e Estados Unidos. Dois países que, durante séculos, fundamentaram suas economias e organização social na exploração de escravizados de origem africana; que aboliram a escravidão com décadas de atraso em relação a seus vizinhos; dois países nos quais a população negra seguiu institucionalmente marginalizada após sua libertação formal e onde a herança da discriminação racial ainda ecoa fortemente, na forma de desigualdades socioeconômicas e violência policial. O que levou seus respectivos governos a difundirem discursos sobre a igualdade racial e a integração dos negros em suas sociedades, nos anos 1930 e 1940? Por que, e como, essas mensagens foram veiculadas durante a Segunda Guerra Mundial, em nome da defesa da ordem democrática – apesar de o Brasil ter, à época, um regime autoritário? Em Shifting the meaning of democracy: race, politics, and culture in the United States and Brazil, a explicação dessas aparentes dissonâncias se encontra no emaranhado de forças políticas que atuaram nos dois países, que mobilizaram as relações multirraciais como evidência da validade, ou não, dos regimes existentes.

O livro tem como ponto de partida a leitura de que “[a] democracia foi, talvez, o termo político mais amplo e frequentemente interpretado”2 2 “Democracy was arguably the most popular and widely interpreted political term during the 1930s and World War II” (GRAHAM, 2019, p. 4). no período analisado, resultado do desgaste do modelo democrático capitalista e liberal, ocasionado por eventos e forças como a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e o autoritarismo europeu. Tanto nos EUA quanto no Brasil, esse debate foi intimamente vinculado à questão negra e fez com que os grupos políticos, situacionistas e radicais, da esquerda comunista aos fascistas, sustentassem sua legitimidade como promotores de uma igualdade racial. Assim, o livro mostra que a exaltação de um “nacionalismo racialmente inclusivo”, nos termos da autora, não estava restrito apenas ao Brasil – onde se encontrava cristalizado no conceito de “democracia racial” –, mas fervilhava também nos EUA. Em ambos os países, esses debates envolviam atores locais e estrangeiros, com redes transnacionais de ativistas e políticos que entrelaçavam as noções de raça e democracia, à luz de seus interesses, e de dinâmicas sociopolíticas locais e globais.

É o jogo de negociações e embates entre diferentes concepções que buscavam acomodar seus ideários de soberania popular e inclusão racial que conduz a investigação de Graham, brasilianista e docente do Departamento de História da University of California San Diego. Negra, nascida nos EUA, Graham iniciou sua trajetória acadêmica na área de Estudos Africanos, na qual obteve seu mestrado (Cornell University, 2010). Na sequência, visitou o Brasil por dois meses, onde os contatos que travou com acadêmicos e ativistas afro-brasileiros despertaram seu interesse pelo país.3 3 Disponível em: https://history.ucsd.edu/people/faculty/graham.html. Acesso em: 15 ago. 2023. Em 2010, concluiu sua tese de doutorado no Departamento de História da University of Chicago, intitulada Representations of racial democracy: race, national identity, and state cultural policy in the United States and Brazil, 1930-1945 – que, apesar de não mencionada, serviu de base para Shifting the meaning of democracy.

O livro é dividido em sete capítulos, acrescidos por introdução e conclusão. Na introdução, a autora estabelece as premissas teóricas e metodológicas do trabalho. Primeiro, defende como equivocada a interpretação – comum, segundo ela – que considera as disputas políticas da época através da contraposição entre democracia, fascismo e comunismo; ao invés, afirma, que é preciso reconhecer que todos esses sistemas defendiam sua legitimidade como representantes daquilo que consideravam constituir o demos: “a questão de quem constitui ‘o povo’ – ou seja, quais grupos deveriam se beneficiar da democracia e como – distinguia os rivais políticos uns dos outros”.4 4 “[As national, class, gender and racial definitions of ‘the people’ clashed], the question of who constituted ‘the people’ – that is, which groups should benefit from democracy and how – distinguished political rivals from one another” (GRAHAM, 2019, p. 5).

Como enfatiza Graham, esse entendimento não legitima os discursos e práticas dos regimes autoritários abordados na obra; contrariamente, ajuda a perceber o impacto que tiveram essas forças no debate sobre a noção de “democracia racial”. Para estruturar o debate a autora formula quatro categorias operacionais, por meio das quais organiza os posicionamentos em torno da questão racial: 1) “realismo racial” (racial realism): o reconhecimento do racismo e a busca por justiça racial; 2) “negacionismo racial” (racial denail): a negação da existência do racismo; 3) “dissuasão racial” (racial dissuasion): tentativa de enfraquecer a adesão de negros a grupos políticos que ameaçassem a ordem social e política; 4) “obstrução racial” (racial obstructionism): opositores à promoção de igualdade racial. As categorias e seus expoentes interagiam e sobrepunham-se um ao outro, em função da conjuntura sociopolítica, atribuindo ao debate um caráter dinâmico e polissêmico.

O primeiro capítulo focaliza a atuação dos Partidos Comunistas nos EUA e no Brasil nos anos 1930, que buscaram integrar os movimentos e discursos antirracistas na luta contra o sistema capitalista. Os comunistas defendiam que o racismo era incompatível com o ideário democrático; logo, sua presença expressava a falácia da democracia liberal nos dois países. A atuação desses grupos foi central na vinculação entre a questão racial e a democrática, defendendo que apenas o modelo soviético seria capaz de garantir uma verdadeira igualdade, racial e econômica, e, portanto, cristalizar os ideários da Democracia. Orientados pelo Comintern, e alimentados por acontecimentos de repercussão internacional – como os casos dos Scottsboro Boys5 5 O caso do Scottsboro Boys se refere ao julgamento de nove jovens negros por suposto estupro de duas mulheres brancas no estado sulista de Alabama, em 1931. Da acusação à condenação, o processo jurídico foi marcado por racismo e injustiça, mobilizando manifestações populares e recorrências a instâncias superiores, encabeçadas pelo Partido Comunista estadunidense e pelo movimento negro. Tramitando ao longo de décadas – e só encerrado formalmente em 2013, com a absolvição, póstuma, dos últimos acusados –, Scottsboro Boys se tornou um epítome da discriminação dos afrodescendentes e símbolo da luta antirracista no país. e da Coluna Prestes –, esses partidos trouxeram à tona o caráter global dos debates sobre ordem democrática e exclusão racial.

O capítulo dois trata das respostas dos governos aos discursos comunistas, e da forma que empregaram a questão racial em suas políticas anticomunistas durante a década de 1930, quando o comunismo – e não o nazifascismo – era visto como a principal ameaça à estabilidade política e social no continente americano. Graham defende que, em ambos os governos, predominava a negação do racismo: no Brasil – com um governo que já apresentava traços fascistas e autoritários, mesmo antes do Estado Novo –, a miscigenação foi mobilizada como expressão da igualdade e integração entre as raças, constituinte de uma “democracia racial”; nos EUA, onde a segregação se encontrava institucionalizada, contrapunha-se às críticas uma suposta tradição democrática inata à nação, reforçada pelo caráter relativamente progressita do presidente Roosevelt e pela caracterização das críticas como demagogia comunista e antipatriótica. Como resultado, em ambos os países a retórica inclusiva sobrepunha-se à prática, perpetuando a marginalização e a exploração dos negros.

O terceiro capítulo traz os olhares ligados às ideologias autoritárias, com suas formulações na Europa e no hemisfério ocidental, revelando mais uma rede de atores globais. A defesa de uma visão racial hierarquizada e excludente não impedia os nazistas de apontarem para o passado escravista e o racismo presente nas sociedades ocidentais, particularmente nos EUA, como evidências da hipocrisia, e limitações, dos sistemas liberais, supostamente democráticos. Os apoiadores do nazismo no continente americano afirmavam que somente um regime centralizado seria capaz de promover uma verdadeira democracia racial. No Brasil, a Ação Integralista elaborou um modelo sociopolítico adaptado à miscigenação: combatia alguns grupos minoritários vistos como pouco integrados (judeus, nipônicos), paralelamente à inclusão dos negros – sem deixar de vislumbrar o embranquecimento da população do país. Nos EUA, o movimento local obteve menos repercussão e focava na defesa do fascismo como movimento que romperia com o racismo. Em ambos os casos, esses movimentos reconheciam e defendiam o caráter interracial das sociedades; suas projeções da “democracia racial fascista”, conforme denomina a autora, repercutiram nas comunidades negras, encontrando adeptos e opositores.

O capítulo quatro se debruça sobre a produção cultural nos anos 1930, apontada por Graham como o campo que concentrou a maioria das políticas direcionadas à inclusão – limitada – da população negra. Mesmo distintas no que diz respeito a seu grau de organização e extensão, tanto a indústria cultural estadunidense quanto a brasileira experimentaram naquele período forte atuação estatal, que utilizou diferentes canais para difundir sua agenda política, particularmente relativa à questão racial. Por meio do rádio e da música, sobretudo, mas também pelo cinema, dança e literatura, expressões culturais negras foram integradas à produção cultural hegemônica e legitimadas pelo Estado. Ritmos musicais como jazz e samba, personagens negros, representações da cultura e da história das populações afrodescendentes, todos foram penetrando no mainstream, e algumas celebradas como genuinamente “nacionais”. Apesar da importância desse processo, diferentes estratégias foram empregadas para restringir sua potência: retratos estereotipados, artistas negros preteridos por brancos, mediação de produtores brancos e narrativas históricas manipuladas em prol da negação da discriminação, entre outros. Como resultado, operou-se “uma separação simbólica entre os corpos negros e as formas culturais que encetaram”,6 6 “(...) it was a symbolic separation of black bodies from cultural forms they pioneered” (GRAHAM, 2019, p. 170). que escanteava a figura do negro, e os excluía das vantagens econômicas do crescente mercado de bens culturais.

A partir do capítulo cinco, o livro passa a discutir os debates em torno da democracia racial em vista do envolvimento dos países americanos na Segunda Guerra Mundial. Trata-se de um período significativo, no qual relações, tensões e conflitos analisados no livro atingiram seu auge: primeiro, pela extrema intensificação da cooperação entre os EUA e o Brasil; segundo, pela consolidação da “democracia” como palavra de ordem da luta dos Aliados. A conjuntura tornou as relações entre os países ainda mais complexas e tensas: enquanto o governo estadunidense procurava escantear a questão racial, a fim de sustentar sua posição como líder do mundo livre, a ditadura varguista buscava destacar o tema, apresentando a miscigenação como evidência do seu caráter democrático. Para Graham, esse conflito de interesses foi “solucionado”, majoritariamente, pela negação: do racismo estadunidense, por um lado, e do autoritarismo do Estado Novo, por outro.

O sexto capítulo retoma o foco no campo da produção cultural, tomando como objeto central a parceria entre o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e o Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), que representou o principal canal de colaboração na área de propaganda entre os dois países. A imensidade da produção que resultou dessa colaboração incluiu, praticamente, todos os meios de comunicação disponíveis e diversas expressões artísticas, realizada através do intercâmbio de artistas, produtores e agentes de governo. Ainda, fundamentava-se em ações e interesses bilaterais que, sem negar a hegemonia estadunidense, reforçam a necessidade de considerar o polo brasileiro da relação. A questão racial ocupou um lugar central nas realizações dos órgãos das entidades: ambos os países se divulgavam como sociedades inclusivas para as suas populações negras, contrapondo-se às ideias nazistas sobre a hierarquia das raças. Não obstante, conclui a autora,

Assim como foi o caso na década de 1930, a cultura negra praticada por corpos negros permaneceu frequentemente periférica à cultura nacional oficial (…) independentemente do meio utilizado, com poucas exceções, as mensagens de democracia racial sob a forma de propaganda cultural revelaram as significativas limitações da doutrina e estavam repletas de pontos de vista excludentes (GRAHAM, 2019GRAHAM, Jessica Lynn. Shifting the meaning of democracy: race, politics, and culture in the United States and Brazil. Oakland, California: University of California Press, 2019., p. 194-195).7 7 “As was the case in the 1930s, black culture performed by black bodies often remained peripheral to official national culture (...) Regardless of the method employed, with few exceptions messages of racial democracy in the form of cultural propaganda exposed the doctrine’s significant limitations and were fraught with exclusionary viewpoints” (GRAHAM, 2019, p. 194-5).

O sétimo capítulo trata da atuação de grupos antirracistas no contexto da Guerra. A autora mostra como, no Brasil e nos EUA, ativistas e políticos aproveitaram o contexto bélico e os discursos negacionistas para promover a implementação de políticas e ações concretas a favor da causa negra. Nesse momento, lideranças e intelectuais negros “capitalizaram o sentimento anti-Nazista durante a guerra, ao colocarem o racismo sob a rubrica do que chamaram de ‘Hitlerismo’, equacionando, na prática, a discriminação racial com o inimigo antidemocrático e anti-americano”.8 8 “Similar to the Afro-Brazilian activists, US black leaders and journalists capitalized on anti-Nazi sentiment during the war by placing racism under the rubric of what they called ‘Hitlerism’, effectively equating racial discrimination with the anti-US, undemocratic enemy” (p. 251). No Brasil essa demanda caminhava paralelamente à redemocratização promovida com o fim do Estado Novo, num movimento de expansão de direitos políticos e civis. Não obstante, mais uma vez, a maioria desses projetos esbarrou nos discursos que, em nome da “segurança nacional” e/ou da reputação internacional do país, restringiam as lutas pela igualdade racial. Apesar de não contarem com o tamanho e a força alcançada pelos movimentos negros das décadas seguintes, a atenção para suas reivindicações revela a luta contínua por direitos civis por parte da população negra no continente americano.

Por fim, a conclusão retoma as linhas de força do trabalho, sobretudo, os desafios dos movimentos antirracista de promover a implementação de medidas que alterassem, de um modo amplo e direto, as desigualdades raciais. Ademais, a autora aponta alguns legados do período, como a mobilização da “defesa nacional” para conter protestos antirracistas; o apelo à democracia racial para legitimar a presença de governos autoritários no Brasil; a participação dos EUA na construção de uma “agenda negra” no Brasil; ou, principalmente, a inclusão restrita do negro nas duas sociedades, que teria lugar central nos debates políticos no contexto da Guerra Fria e da Ditadura Militar. Desta forma, Graham insere sua análise num continuum histórico e nos debates historiográficos.

Como mostra o resumo acima, a organização dos capítulos busca enfatizar o caráter dialético das inúmeras (re)formulações da noção de democracia racial, à luz das disputas políticas. Nesse sentido, Shifting the meaning of democracy representa um trabalho eminentemente historiográfico: evita definir um paradigma democrático unívoco, segundo o qual seriam balizadas diferentes ideologias; ao invés, atenta-se para a volatilidade do conceito, que passava por uma fase de instabilidade e (re)formulação. São, assim, os intercâmbios e as negociações entre os defensores das quatro agendas – realistas, negacionistas, dissuadistas e obstrucionistas – que se apresentam como força motriz dos debates e das políticas respectivos ao lugar social do negro.

Graham fundamenta sua narrativa num extenso levantamento de material, obtido em arquivos públicos e privados no Brasil e nos EUA. Mobiliza registros oficiais da Administração Pública, acervos pessoais, produção intelectual e imprensa para recuperar múltiplas vozes, e se debruçar sobre seus significados no momento histórico no qual foram proferidas. Ainda, sustenta sua análise num constante diálogo com referências bibliográficas, canônicas e recentes, o que lhe possibilita enriquecer o debate teórico e, ainda, assinalar continuidades e rupturas entre as dinâmicas do período e outras conjunturas históricas, particularmente com a Guerra Fria.

Shifting the meaning of democracy recebeu diversos elogios da crítica especializada nos EUA e, de fato, traz contribuições importantes aos debates historiográficos sobre aspectos políticos e sociais do continente americano da época. Em primeiro lugar, consegue, concomitantemente, ampliar os horizontes e detalhar as nuances da “democracia racial”: não mais discutida em termos de um mito brasileiro, mas vista como uma peça central na produção e promoção de agendas políticas locais e globais. Ao invés de inviabilizar a comparação em razão das contradições que existiam entre o Brasil, racialmente miscigenado e politicamente autoritário, e os Estados Unidos, segregado, porém institucionalmente democrático, Graham expõe diferentes afinidades, como a incorporação de elementos negros na produção intelectual e artística, epitomizada na popularização do jazz e do samba, ou a reputação – justificada, ou não – de Getúlio Vargas e Franklin D. Roosevelt, vistos como líderes bastante ativos no fortalecimento da população pobre, de grande presença negra.

Recorrendo à História Comparada e à Transnacional, a autora revela as conexões estabelecidas entre os dois países, sem perder de vista as particularidades locais. A comparação ajuda então a acentuar traços específicos de cada sociedade, enquanto os recursos da História Transnacional ajudam Graham a revelar os efeitos das articulações internacionais, estabelecidas entre agentes estatais, lideranças do movimento negro e integrantes de grupos políticos da esquerda e da direita. Em uma passagem emblemática dessa abordagem, Graham afirma:

Assim, enquanto o Brasil foi pressionado a democratizar politicamente sua narrativa nacional-racial, em parte devido a sua aliança com os Estados Unidos, os EUA foram impelidos a racializar sua noção de democracia, para agradar os brasileiros, considerados essenciais para a vitória na guerra (GRAHAM, 2019GRAHAM, Jessica Lynn. Shifting the meaning of democracy: race, politics, and culture in the United States and Brazil. Oakland, California: University of California Press, 2019., p. 178).9 9 “Thus, whereas Brazil was compelled to politically democratize its national racial narrative in part because of its alliance with the United States, the United States was impelled to racialize its notion of democracy to court the Brazilians, who were deemed necessary for a victorious outcome to the war” (p. 178).

Trata-se de uma observação representativa do aporte teórico e metodológico da obra: primeiro, ao enfatizar a relação de influência bilateral entre os dois países; segundo, por evitar a imposição de categorias e analogias rígidas, mas desenvolver um cotejamento, que ajuda a elucidar o dinamismo das políticas raciais empregadas em cada país. O aporte epistemológico também permite a Shifting the meaning of democracy recuperar a agência de forças tradicionalmente marginalizadas. Primeiro, em relação aos movimentos negros, que foram a força motriz da luta antirracista, sabendo, inclusive, mobilizar as tensões entre capitalismo e comunismo para difundir sua causa. Ademais, exerceram um papel pioneiro na divulgação e denúncia, na América, de ações tomadas pelo regime nazista, ainda nos anos 30. E, segundo, ao expor o papel fundamental das forças e dos interesses brasileiros, constatando que “de forma alguma o trabalho da OCIAA no Brasil pode ser considerado como uma mera imposição da política americana e a ‘americanização’ hegemônica da cultura brasileira, conforme argumentado no passado”.10 10 “OCIAA work in Brazil should in no way be seen as a mere imposition of US policy and the hegemonic ‘americanization’ of Brazilian culture, as has been argued in the past” (p. 200). Aqui, a obra contribui para um movimento de revisão historiográfica das relações entre os EUA e os demais países americanos que, sem negar a predominância estadunidense no contexto global, repensam os acontecimentos à luz de interesses locais e da atuação dos governos latino-americanos.

Por fim, é importante ressaltar que a busca por recuperar a multiplicidade de vozes e compreender seus interesses e projeções não impede Graham de apontar aquilo que tem sido – e vem sendo – um traço do Brasil e dos EUA: a contínua discriminação de negros e negras, sustentada por meio do abrandamento do problema, ou sua completa negação; escanteamento e/ou coibição da luta pela igualdade; e a construção de políticas restritas, de pequeno impacto estrutural. Ao longo da narrativa, revela-se justamente como diferentes situações foram aproveitadas para conter a luta antirracista, taxando-a de antipatriótica, prejudicial à união nacional e contrária aos interesses da coletividade.

Mesmo nas instâncias que reconheceram a necessidade de mudança, ou quando se exaltavam expressões culturais de matriz negra, as ações adotadas eram, via de regra, superficiais e limitadas. É por esse motivo que essas ações são tratadas como “desmarginalização” (“demarginalization”), e não em termos que indicariam um grau maior de realização. Por essa razão, conclui a autora, “uma das marcas do ativismo negro em ambos os países tem sido a tentativa de substituir formas discursivas e simbólicas de democracia racial por realismo orientado para a ação concreta”.11 1 “One of the hallmarks of black activism in both countries has been the attempt to replace discursive and symbolic forms of racial democracy with action-oriented realism” (p. 261). Dessa forma, Shifting the meaning of democracy consegue revelar as estratégias que formularam e mobilizaram a noção de democracia racial nos anos 1930 e 40. Paralelamente, leva o leitor contemporâneo a perceber o caráter aberto e incompleto desse debate, expresso tanto na contínua violência e desigualdade racial quanto nos ataques aos sistemas democráticos – ambos muito presentes no século XXI.

  • 2
    “Democracy was arguably the most popular and widely interpreted political term during the 1930s and World War II” (GRAHAM, 2019GRAHAM, Jessica Lynn. Shifting the meaning of democracy: race, politics, and culture in the United States and Brazil. Oakland, California: University of California Press, 2019., p. 4).
  • 3
    Disponível em: https://history.ucsd.edu/people/faculty/graham.html. Acesso em: 15 ago. 2023.
  • 4
    “[As national, class, gender and racial definitions of ‘the people’ clashed], the question of who constituted ‘the people’ – that is, which groups should benefit from democracy and how – distinguished political rivals from one another” (GRAHAM, 2019, p. 5).
  • 5
    O caso do Scottsboro Boys se refere ao julgamento de nove jovens negros por suposto estupro de duas mulheres brancas no estado sulista de Alabama, em 1931. Da acusação à condenação, o processo jurídico foi marcado por racismo e injustiça, mobilizando manifestações populares e recorrências a instâncias superiores, encabeçadas pelo Partido Comunista estadunidense e pelo movimento negro. Tramitando ao longo de décadas – e só encerrado formalmente em 2013, com a absolvição, póstuma, dos últimos acusados –, Scottsboro Boys se tornou um epítome da discriminação dos afrodescendentes e símbolo da luta antirracista no país.
  • 6
    “(...) it was a symbolic separation of black bodies from cultural forms they pioneered” (GRAHAM, 2019, p. 170).
  • 7
    “As was the case in the 1930s, black culture performed by black bodies often remained peripheral to official national culture (...) Regardless of the method employed, with few exceptions messages of racial democracy in the form of cultural propaganda exposed the doctrine’s significant limitations and were fraught with exclusionary viewpoints” (GRAHAM, 2019GRAHAM, Jessica Lynn. Shifting the meaning of democracy: race, politics, and culture in the United States and Brazil. Oakland, California: University of California Press, 2019., p. 194-5).
  • 8
    “Similar to the Afro-Brazilian activists, US black leaders and journalists capitalized on anti-Nazi sentiment during the war by placing racism under the rubric of what they called ‘Hitlerism’, effectively equating racial discrimination with the anti-US, undemocratic enemy” (p. 251).
  • 9
    “Thus, whereas Brazil was compelled to politically democratize its national racial narrative in part because of its alliance with the United States, the United States was impelled to racialize its notion of democracy to court the Brazilians, who were deemed necessary for a victorious outcome to the war” (p. 178).
  • 10
    “OCIAA work in Brazil should in no way be seen as a mere imposition of US policy and the hegemonic ‘americanization’ of Brazilian culture, as has been argued in the past” (p. 200).
  • 1
    “One of the hallmarks of black activism in both countries has been the attempt to replace discursive and symbolic forms of racial democracy with action-oriented realism” (p. 261).

Referências bibliográficas

  • GRAHAM, Jessica Lynn. Shifting the meaning of democracy: race, politics, and culture in the United States and Brazil Oakland, California: University of California Press, 2019.

Editado por

Editores responsáveis

Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2023
  • Aceito
    04 Set 2023
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História Av. Prof. Lineu Prestes, 338, 01305-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3091-3701 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@usp.br