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“AO ALCANCE DO OUVIDO” – RECOMPONDO UMA HISTÓRIA CULTURAL DO SOM

JOHNSON, Bruce. Earshot: perspectives on sound. New York; London: Routledge – Taylor & Francis Group, 2023

Entre os anos de 1853 e 1858, qualquer transeunte que passasse pelas redondezas da antiga Rua do Rosário, atual XV de Novembro, provavelmente ouviria gritos coléricos de um homem autoritário “– Não quero relaxações nas ruas de São Paulo! Fora daqui, todos! Fora! Fora! Fora!” (MARQUES, s.d. [1957]1 MARQUES, Gabriel. Ruas de tradições de São Paulo – Uma história em cada rua. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, s.d. [1957]., p. 176). Além de ouvir os gritos, poderia também ver em ação o poder do Chefe de Polícia, que foi Vice-Presidente da Província de São Paulo, Antonio Roberto de Almeida, conhecido na época por seu caráter “austero e ríspido”.

Se estivesse com os ouvidos bem atentos, aquele mesmo transeunte, minutos antes, teria escutado outras sonoridades que também haviam chamado a atenção auditiva e disciplinatória do policial Almeida: o concerto de assobios que os oficiais alfaiates faziam em frente à alfaiataria do francês Pedro Bougard. Nas palavras do memorialista Antonio Egydio Martins:

Os mesmos oficiais alfaiates costumavam, em tempo de verão, trabalhar sentados em um pequeno banco de madeira no meio da rua, de modo que o Dr. Roberto de Almeida, então chefe de polícia, sem que por eles fosse pressentido, se apresentava, munido de uma bengala e enxotava do lugar em que os mesmos alfaiates se achavam, dando bengaladas nos bancos, os quais apressadamente eram retirados do referido lugar por aqueles alfaiates, que, espavoridos, entravam pela porta a dentro da loja do mesmo Pedro Bougard, que existiu no antigo prédio térreo da rua do Rosário, (...)

(MARTINS, 19122 MARTINS, Antonio Egydio. São Paulo antigo (1554-1910). São Paulo: Typografia do Diário Oficial, 1912. v. II., p. 47-8, v. II).

Esse “concerto de assobios”, hoje registro singular da memória aural dos moradores e visitantes da cidade, faz parte da longa e multifacetada história da música popular paulistana; das musicalidades de rua, como aquelas produzidas por engraxates; e dos chamativos pregões de vendedores ambulantes (MORAES, 199512 MORAES, José Geraldo Vinci de. As sonoridades paulistanas: a música popular na cidade de São Paulo. Final do século XIX e início do século XX. Rio de Janeiro: Funarte, 1995.; SANTOS, 201514 SANTOS, André Augusto de Oliveira. ‘Vai graxa ou samba, senhor?’: a música dos engraxates paulistanos entre 1920 e 1950. Dissertação de mestrado, História Social, Departamento de História-FFLCH, Universidade de São Paulo, 2015.; PINTO, 199413 PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo, 1890-1914. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. (Coleção Campi, 18).). Sonoridades essas, entre outras, que ritmavam a vida na e da cidade de São Paulo durante o século XIX e primeiras décadas do XX, mas que, ao mesmo tempo, reverberavam complexas esferas de poder, tanto daqueles que as produziam quanto daqueles que as escutavam.

Em consonância, e muitas vezes em dissonância, o concerto dos alfaiates e os gritos e as bengaladas do Chefe de Polícia eram partes composicionais da ruidosa história dos sons da capital paulista (APROBATO FILHO, 20084 APROBATO FILHO, Nelson. Kaleidosfone: as novas camadas sonoras da cidade de São Paulo; fins do século XIX – início do XX. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2008.).

O universo dos sons urbanos (ritmos, ruídos, harmonias e dissonâncias) muitas vezes esteve na mira dos poderes públicos e privados estabelecidos e, frequentemente, forneceu matéria-prima (sonora) para a legislação municipal. Isso foi o que aconteceu, por exemplo, com os sons produzidos pelos automóveis que começaram a percorrer as ruas de São Paulo na última década do século XIX.

Possuir um automóvel e difundir todos os sons a ele associados, principalmente das buzinas, sempre foi uma forma sonora de expressar poder para aqueles que possuíam o moderno veículo. Rapidamente, começou-se a legislar a respeito.

Em 1920, por exemplo, durante a gestão de Firmiano M. Pinto como prefeito, foi regulamentada a Lei n.º 2.264 que dispunha sobre a “inspeção e fiscalização do trânsito de veículos” (SÃO PAULO, 19343 SÃO PAULO. Leis e átos do Municipio de S. Paulo do ano de 1920 (Nova edição adaptada à ortografia oficial). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1934., p. 20-27 e 282-310). O capítulo II, artigo 33, estabelecia que “todos os veículos que transitarem pelo Município deverão ser munidos de aparelhos que permitam dar sinal de aviso, quando for necessário” (SÃO PAULO, 19343 SÃO PAULO. Leis e átos do Municipio de S. Paulo do ano de 1920 (Nova edição adaptada à ortografia oficial). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1934., p. 289-90). Esse enquadramento pelo poder oficial revela vestígios históricos e sonoros de múltiplas e enredadas temporalidades (KOSELLECK, 200611 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Mass e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2006.), em uma cidade que era modernamente provinciana. Nesse sentido, os parágrafos do artigo 33, da Lei n.º 2.264 de 1920, são uma espécie de peça musical que mesclava sons da modernidade e sons considerados “arcaicos” ou “coloniais”, mas que permaneciam na paisagem sonora da cidade:

  • § 1.º - Os veículos de tração animal terão tímpanos ou campainhas acionadas por pedal ou a mão, sendo proibido o uso de guizos, chocalhos ou campainhas, ligados aos arreios ou veículos e que produzam ruído constante; e proibindo ainda os cocheiros de estalar os chicotes, quer esteja parado ou em movimento o veículo.

  • § 2.º - Os carros com rodas de borracha devem ter um guizo, produzindo ruído constante, quando o veículo em movimento.

  • § 3.º - Os automóveis devem ser munidos de buzinas ou trompas de sons graves, especiais ou combinados, devendo emitir sons uniformes; excetuados os automóveis do Corpo de Bombeiros e da Assistência Policial, que poderão fazer uso do aparelho denominado “Sereia”.

  • § 4.º - Fica proibido fazer uso dos sinais de aviso, quando esteja o veículo parado, salvo o caso de pretender dar saída ao mesmo; e, bem assim, quando em movimento, abusar do uso do sinal, perturbando o sossego público (SÃO PAULO, 19343 SÃO PAULO. Leis e átos do Municipio de S. Paulo do ano de 1920 (Nova edição adaptada à ortografia oficial). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1934., p. 290).

O concerto de assobios, as buzinas dos automóveis e os instrumentos sonoros empregados nos veículos de tração animal representavam apenas uma ínfima parte da gama de sons que existiram na cidade de São Paulo do século XIX e primeiras décadas do XX. Essa multiplicidade de sons, ao ser analisada, possibilita a descoberta e compreensão de promissoras e inusitadas relações históricas, interdisciplinares, socioculturais e político-econômicas. Contudo, quando se insere essa história dos sons e da música popular de São Paulo na milenar história das relações do ser humano com o universo sonoro, percebe-se a riqueza, a profundidade e o horizonte de possibilidades interpretativas que uma inserção nessa perspectiva pode proporcionar. Um caminho promissor para esse e outros exercícios de inserção sonora é o livro Earshot: perspectives on sound, de Bruce Johnson (2023)6 JOHNSON, Bruce. Earshot: perspectives on sound. New York; London: Routledge – Taylor & Francis Group, 2023..

Bruce Johnson, pesquisador ainda pouco conhecido pela historiografia brasileira, iniciou sua carreira acadêmica como professor de inglês e, atualmente, ensina, pesquisa e escreve sobre História do Som, História Cultural, Música e Comunicações. Além de ser um músico atuante de jazz e consultor em política artística, o professor Johnson leciona na University of Turku, na Finlândia, atuando também no Finland’s International Institute for Popular Culture, instituição da qual é um dos fundadores; na University of Technology Sydney, onde é Professor Adjunto, e na University of Glasgow, na Escócia. Autor de centenas de artigos acadêmicos, mais de dez livros e inúmeros capítulos, Johnson tem em seu sonoro e vasto currículo o livro Dark side of the tune: popular music and violence (JOHNSON; CLOONAN, 20089 JOHNSON, Bruce; CLOONAN, Martin. Dark side of the tune: popular music and violence. Aldershot: Ashgate, 2008.) e o artigo From music to noise: the decline of street music (JOHNSON, 2017a7 JOHNSON, Bruce. From Music to noise: the decline of street music. Nineteenth – Century Music Review, v. 15, p. 67-78, 2017a. Available in: https://www.cambridge.org/core/journals/ nineteenth-century-music-review/article/from-music-to-noise-the-decline-of-street-music/690653B23B54ABF8080362CBCD208A52. Doi: https://doi.org/10.1017/S147940981700009X.
https://www.cambridge.org/core/journals/...
). Na área dos estudos sobre o som, Earshot é o seu trabalho mais recente e, de certa forma, o livro que retoma trabalhos e questões abordadas ao longo de sua longa e profícua carreira. Entre outros importantes textos, publicou: Memory, space and sound (JOHNSON; BRUSILA; RICHARDSON, 201610 JOHNSON, Bruce; BRUSILA, Johannes; RICHARDSON, John Richardson. Memory, space and sound. Bristol; Chicago: Intellect/The Mill/The Chicago University Press, 2016.) e Sound studies today: where are we going? (JOHNSON, 2017b8 JOHNSON, Bruce. Sound studies today: where are we going? In: DAMOUSI, Joy; HAMILTON, Paula (ed.). A cultural history of sound, memory and the senses. New York, NY London: Routledge, 2017b.).

Mesmo sem terem sido mencionados, ecos profundos da história dos sons e da música de São Paulo podem ser constantemente “ouvidos” nas sofisticadas, provocativas e enredadas análises e descrições elaboradas por Johnson. Ao iniciar esta resenha trazendo como referências fragmentos sonoros paulistanos, o objetivo foi destacar três relações analítico-interpretativas que perpassam, direta ou indiretamente, tanto esses fragmentos quanto principalmente parte significativa de Earshot, ou seja: som e poder; som e modernidade; som, ruído e música. Por meio dessas e de outras importantes relações, o autor recompõe a história cultural do som partindo do pressuposto de que os sons estão em todos os lugares. Embora chame a atenção para o fato de que a natureza, como um todo, é “literalmente vibrante”, o foco de seu estudo recai sobre os sons antropogênicos, ou seja, aqueles direta ou indiretamente produzidos pelo ser humano, seja por meio de sua voz, seja por meio da miríade de artefatos, instrumentos e equipamentos criados ou adaptados pela espécie humana para produzir e reproduzir sons – por isso a ênfase dada no livro ao advento da modernidade e de seus desdobramentos tecnológicos. Entre inúmeros outros méritos do trabalho, vale destacar a relevância dada à presença e importância da voz e às inúmeras complexidades que envolvem essa sonoridade como elemento constitutivo da paisagem sonora analisada pelo autor.

Para melhor circunscrever o lugar da voz na paisagem sonora, o estudo privilegia as comunidades falantes da língua inglesa como o recorte linguístico adotado. No que se refere aos recortes espacial e temporal, Johnson se detém na história cultural do Ocidente, para o período que vai da Idade Média aos dias atuais. Embora incursione por outros espaços, períodos e idiomas, e apesar de o período parecer por demais extenso, o autor reconstrói a história cultural do som por meio de análises, interpretações e hipóteses bem fundamentadas e bastante articuladas, sendo que alguns temas principais, como por exemplo som e poder ou som e modernidade, são constantemente retomados nos dez capítulos que formam o livro.

Outro grande tema desenvolvido em Earshot são as relações, na história da humanidade, entre sons e imagens, entre audição e visão. A postura teórico-metodológica assumida por Johnson sobre essas relações é digna de nota. Não defende a primazia de um sentido sobre os demais, do som sobre as imagens, da audição sobre a visão e vice-versa. Ao invés disso, a preocupação do autor é refletir como as diferenças entre a audição e a visão são, de fato, sentidas e quais as implicações sociais e culturais disso (JOHNSON, 20236 JOHNSON, Bruce. Earshot: perspectives on sound. New York; London: Routledge – Taylor & Francis Group, 2023., p. 4).

Um ponto de destaque na proposta metodológica adotada por Johnson diz respeito ao trabalho do autor com a literatura sobre o tema. O professor Johnson esclarece que iniciou suas pesquisas na área dos estudos sobre o som na década de 1980 e, naquele período, era ainda possível ler praticamente tudo o que estava sendo produzido. Passados mais de quarenta anos, afirma que essa bibliografia se avolumou em tal proporção e com tamanha rapidez que se tornou impossível citar em detalhes cada uma das novas obras lançadas.

Earshot é um bem articulado diálogo com parte importante dessa vasta bibliografia, principalmente com obras recentes em diversas áreas do conhecimento relativas ao som. Portanto, a leitura da obra é um convite irrecusável para leitores atualizarem-se sobre o tema. Além de realizar uma revisão e uma síntese analítica e temática dessa bibliografia, o livro é fundamentado em fontes primárias, com destaque para registros literários, filmográficos e peças teatrais, principalmente Hamlet, de Willian Shakespeare, tema de um dos capítulos: HamletThe world is out of joint.

Os dez capítulos que compõem Earshot podem ser entendidos como um roteiro ou uma trilha sonora da história cultural da humanidade, da Idade Média aos dias atuais. Essa trilha pode ser recomposta em quatro partes interconectadas e complementares.

A primeira refere-se ao capítulo 1 – Acoustemology: listening to cultural history. Segundo Johnson, o conceito de acoustemology foi cunhado pelo antropólogo Steven Feld como uma forma para distingui-lo do conceito de epistemologia e, dessa maneira, destacar que se trata especificamente de uma espécie de conhecimento adquirido por meio da escuta (FELD, 19965 FELD, Steven. Waterfalls of song: an acoustemology of place resounding in Bossavi, Papua New Guinea. In: FELD, S.; BASSO, K. H. (ed.). Senses of place. Santa Fe, NM: School of American Research Press, 1996.). Nesse capítulo, o mais teórico e técnico do livro, embora rico em exemplos de sonoridades históricas e contemporâneas, são desenvolvidas observações sobre som e escuta e suas relações, tanto com os espaços externos quanto com a psicologia, cognição e fisiologia humanas. Nas interpretações do autor, certos sons produzem determinadas respostas particulares. Para desenvolver essa questão, Johnson aborda quatro estruturas relativas ao universo sonoro. Essas estruturas serão constantemente retomadas ao longo da obra: ubiquidade ou onipresença, localização, frequência ou tonalidade e volume.

Principalmente para os possíveis leitores não especialistas, mas não exclusivamente para eles, o livro oferece descobertas “ensurdecedoras”, dentre as quais, no primeiro capítulo, as explicações sobre os efeitos, muitas vezes letais, dos ruídos de baixa frequência. Segundo o autor, esses Low-Frequency Noises (LFN) podem provocar medo e alarme, como, por exemplo, numa sessão de cinema; podem ter por objetivo emanar poder, como em muitas experiências sonoras existentes no mundo da política e das guerras.

Uma segunda parte do livro poderia englobar os capítulos dois a seis, sendo que o segundo, Sound in cultural history, é uma espécie de estudo introdutório que analisa o processo de transformações ocorridas nas experiências de escuta e nas experiências visuais. Suas interpretações abarcam também as funções que o som exerceu na História Cultural, particularmente na formação de identidades sociais, seja para as situações de solidariedade, seja para eventos de conflito, estabelecendo diversas reflexões sobre as relações entre som e poder.

O terceiro capítulo, From hearing to seeing, traz um detalhamento do capítulo anterior. Nele o autor investiga as mudanças ocorridas entre o século XVI e início do XVIII nas esferas de poder e autoridade entre as culturas oral e escrita. Essas transformações modificaram paisagens sonoras urbanas como, por exemplo, aquelas existentes no século XVI, nas quais havia uma proeminência dos códigos sonoros sobre os códigos escritos e visuais.

Para investigar mais profundamente essas discussões, o autor elege, no capítulo 4, The Pulpit and the playhouse, a igreja e o teatro como, entre os séculos XVI e XVII, os principais espaços para a realização de práticas que envolviam o discurso público e o poder, seja o religioso, seja o secular. Johnson traça vários paralelos comparativos analisando as similaridades e diferenças acústicas existentes nesses espaços. Neles, segundo o autor, foi representado de forma emblemática o momento de transição da audição para a visão.

Hamlet – The world is out of joint – título do quinto capítulo – é a peça teatral escolhida por Johnson como um estudo de caso para dar, como ele afirma, substância aos argumentos estabelecidos nos capítulos anteriores e, principalmente, como forma de explorar detalhadamente a tese central do livro: demonstrar que uma abordagem auditiva, ao invés de predominantemente visual do passado, pode produzir uma análise e compreensão diferenciada da História Cultural. Nesse capítulo o autor discute os intrincados elementos sonoros, incluindo as vozes existentes em Hamlet.

Concluindo a segunda parte em que o livro poderia ser dividido, a temática do “triunfo do olho” durante o século XVIII é a problemática principal apresentada em Print triumphant. Nesse sexto capítulo, o autor explora o paralelismo entre, de um lado, o declínio em torno da informação oral/aural e, de outro lado, a ascensão da palavra impressa, em detrimento da palavra falada, como base principal do conhecimento, da regulação social, do poder e da autoridade no Ocidente.

O “concerto de assobios” dos alfaiates de São Paulo ecoa principalmente nesse capítulo. Nele, Johnson apresenta uma série de sons e seus produtores que eram “condenados” e perseguidos por lei, como, por exemplo as risadas exageradas nos espaços públicos e as músicas de rua, sonoridades sempre associadas às classes pobres e à criminalidade. Nesse período, segundo Johnson, houve uma valorização do silêncio, daí a importância dada ao texto escrito, à leitura individual, à imposição do silêncio nas casas de concerto, igrejas, bibliotecas, escolas e prisões.

Os capítulos 7 e 8 – The aural Renaissance e The aural Renaissance and cultural change – formam o terceiro grande bloco analítico-interpretativo de Earshot. Esses dois capítulos têm como foco temporal o século XIX e as primeiras décadas do XX, sendo que o sétimo faz uma espécie de varredura auditiva dos desenvolvimentos tecnológicos ocorridos no período, destacando três aspectos fundamentais: o surgimento de novas formas de circulação sonora de música e informações, a reconfiguração da paisagem sonora da modernidade e as experiências inéditas surgidas nos atos de ouvir. Nele são incluídas análises sobre os impactos decorrentes de tecnologias como o telégrafo e o telefone, o gramofone e o rádio. Destaque especial foi dado tanto ao jazz, frente à indústria radiofônica e discográfica, quanto aos usos do som e seus efeitos fatais, durante a I Guerra Mundial.

O capítulo 8 novamente surpreende o leitor pela abordagem proposta. Tendo como sonoridade de fundo os três aspectos sonoros da modernidade desenvolvidos no capítulo anterior, o autor nos convida para, nas palavras dele, compreender “algumas das mudanças culturais menos óbvias” que não teriam vindo à tona, que “não teriam ocorrido como ocorreram”, se não tivessem eclodido as revoluções sonoras do século XIX relacionadas à modernidade e aos desenvolvimentos tecnológicos. Nesse sentido, Johnson faz incursões por três áreas principais: gênero, classe e política. No caso das relações entre sons e gênero, para citar apenas uma das áreas, o autor trabalha com a história cultural das mulheres no pós I Guerra. Sobre essa temática, Johnson fala de “política de gêneros” e das novas formas de inserção das mulheres, principalmente de baixa renda e que não tinham acesso ao código escrito, nas esferas públicas, por meio de equipamentos como o microfone, o telefone, o rádio – equipamentos diretamente relacionados à voz e à transmissão sonora –, a máquina de escrever e a estenografia – instrumento e técnica de escrita de singulares culturas sonoras. Johnson aponta caminhos para que se possa pensar a história do som pela perspectiva do advento do trabalho das telefonistas, das datilógrafas e das estenógrafas.

O livro de Johnson é uma obra aberta que, de maneira crítica e auditiva, “ciceroneia” o leitor por seiscentos anos da história do som. No quarto bloco temático de Earshot, o autor detém suas análises nos sons do mundo ocidental contemporâneo, do início do século XX aos dias atuais. No capítulo 9 – Sound in the contemporary world –, analisa desenvolvimentos acústicos nas esferas da vida pública e no cotidiano doméstico e de que forma esses desenvolvimentos produziram novas paisagens sonoras nas ruas e residências. Essas paisagens são compostas por uma verdadeira avalanche de sons produzidos por veículos automotores, pelo tráfego pesado e congestionado desses veículos, pelas enredadas rotas aéreas que encobrem as grandes cidades, pelos eventos musicais de grande proporção, pelos invasivos sons de baixa frequência, pelos literalmente ensurdecedores ambientes imersos na poluição sonora e pelos sons domésticos produzidos por barulhentos eletrodomésticos.

Por fim, o capítulo 10 – The modern soundscape, social welfare and policy – é quase literalmente um “grito” de alerta e uma sofisticada denúncia sobre os efeitos sonoros na contemporaneidade. Para isso, Johnson retoma o impacto social provocado pelas novas tecnologias e suas sonoridades durante o século XIX e início do XX, demonstrando a necessidade e uma certa urgência na reavaliação das políticas e dos protocolos relacionados ao universo sonoro. Temas como bem-estar público, campanhas para redução de ruídos, políticas governamentais para controle da poluição sonora são abordados pelo autor. Alguns relatos são estarrecedores. Segundo o autor, a poluição sonora afeta também a vida marinha, especialmente porque a velocidade do som na água salgada é quatro vezes maior do que no ar. Em 2022, como cita Johnson, a Marinha norte-americana, em um planejamento para a realização de exercícios no Pacífico, que envolveria sonares e explosivos, estabeleceu uma estimativa de que o evento bélico mataria por volta de três mil mamíferos marinhos e interferiria, modificando diretamente os processos de alimentação, reprodução, movimento e cuidados com filhotes de 1,75 milhão a mais.

Como nas demais partes do livro, esses dois últimos capítulos também polemizam e fornecem possíveis novidades para muitos leitores. Neles, Johnson estabelece relações entre os sons e os estilos de vida contemporânea, os sons e as desigualdades globais e, o mais inusitado, pelo menos para alguns, as relações entre os sons e as grandes questões ambientais da atualidade, com destaque para as mudanças climáticas e a geração de energia limpa. Chama a atenção para, por exemplo, a energia eólica e os possíveis problemas causados pelos sons de baixa frequência produzidos pelas turbinas e hélices quando em movimento. O autor não tem nenhuma dúvida quanto à necessidade, urgência e importância dessa pauta ambiental e declara seu apoio à energia eólica, mas, ao mesmo tempo, adverte que, como no caso das outras fontes de energia, um aspecto que deve ser política e estrategicamente discutido é o local no qual equipamentos como esses deveriam ser instalados.

Earshot – Perspectives on sound apresenta-se como uma leitura indispensável para especialistas de várias áreas do conhecimento que tenham direta ou indiretamente a questão sonora como elemento de investigação. O livro de Johnson pode, também, ser fonte esclarecedora de consulta para leigos e profissionais de interesses diversos. Um aspecto a ser destacado é a importância que representa para os estudos históricos, principalmente para historiadores que trabalham com a História da Cultura, com a História da Música, com a História do Som e com a História Ambiental, por trazer um amplo panorama bem orquestrado e arranjado ao longo dos dez capítulos compostos por Bruce Johnson. Como o próprio autor considera, sem atentar para a História dos Sons, é impossível compreender adequadamente a contemporaneidade:

Together, these chapters chart the changing status of sound and hearing in Western society over the last six hundred or so years. They give strength to the argument that we cannot form an adequate understanding of the modern condition if we do not pay attention to the history of sound (JOHNSON, 20236 JOHNSON, Bruce. Earshot: perspectives on sound. New York; London: Routledge – Taylor & Francis Group, 2023., p. X).

Mesmo o autor afirmando que o livro se limita ao estudo da história do som da sociedade ocidental nos últimos seiscentos anos, Earshot lança questões que vão além desse recorte e que abrem possibilidades para novas pesquisas com foco em perspectivas culturais e temporais diferenciadas, amplificando ainda mais a compreensão da contemporaneidade na qual estamos acusticamente envolvidos.

Organizadores do Dossiê História e Culturas Sonoras

  • Virgínia de Almeida Bessa
    Juliana Pérez González
    Cacá Machado
    José Geraldo Vinci de Moraes

Referências bibliográficas

  • 1
    MARQUES, Gabriel. Ruas de tradições de São Paulo – Uma história em cada rua São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, s.d. [1957].
  • 2
    MARTINS, Antonio Egydio. São Paulo antigo (1554-1910) São Paulo: Typografia do Diário Oficial, 1912. v. II.
  • 3
    SÃO PAULO. Leis e átos do Municipio de S. Paulo do ano de 1920 (Nova edição adaptada à ortografia oficial). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1934.
  • 4
    APROBATO FILHO, Nelson. Kaleidosfone: as novas camadas sonoras da cidade de São Paulo; fins do século XIX – início do XX São Paulo: Edusp/Fapesp, 2008.
  • 5
    FELD, Steven. Waterfalls of song: an acoustemology of place resounding in Bossavi, Papua New Guinea. In: FELD, S.; BASSO, K. H. (ed.). Senses of place Santa Fe, NM: School of American Research Press, 1996.
  • 6
    JOHNSON, Bruce. Earshot: perspectives on sound New York; London: Routledge – Taylor & Francis Group, 2023.
  • 7
    JOHNSON, Bruce. From Music to noise: the decline of street music. Nineteenth – Century Music Review, v. 15, p. 67-78, 2017a. Available in: https://www.cambridge.org/core/journals/ nineteenth-century-music-review/article/from-music-to-noise-the-decline-of-street-music/690653B23B54ABF8080362CBCD208A52 Doi: https://doi.org/10.1017/S147940981700009X.
    » https://doi.org/10.1017/S147940981700009X» https://www.cambridge.org/core/journals/ nineteenth-century-music-review/article/from-music-to-noise-the-decline-of-street-music/690653B23B54ABF8080362CBCD208A52
  • 8
    JOHNSON, Bruce. Sound studies today: where are we going? In: DAMOUSI, Joy; HAMILTON, Paula (ed.). A cultural history of sound, memory and the senses. New York, NY London: Routledge, 2017b.
  • 9
    JOHNSON, Bruce; CLOONAN, Martin. Dark side of the tune: popular music and violence Aldershot: Ashgate, 2008.
  • 10
    JOHNSON, Bruce; BRUSILA, Johannes; RICHARDSON, John Richardson. Memory, space and sound Bristol; Chicago: Intellect/The Mill/The Chicago University Press, 2016.
  • 11
    KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos Trad. Wilma Patrícia Mass e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2006.
  • 12
    MORAES, José Geraldo Vinci de. As sonoridades paulistanas: a música popular na cidade de São Paulo. Final do século XIX e início do século XX Rio de Janeiro: Funarte, 1995.
  • 13
    PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo, 1890-1914 São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. (Coleção Campi, 18).
  • 14
    SANTOS, André Augusto de Oliveira. ‘Vai graxa ou samba, senhor?’: a música dos engraxates paulistanos entre 1920 e 1950. Dissertação de mestrado, História Social, Departamento de História-FFLCH, Universidade de São Paulo, 2015.

Editado por

Editores Responsáveis

Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2023
  • Aceito
    12 Jul 2023
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História Av. Prof. Lineu Prestes, 338, 01305-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3091-3701 - São Paulo - SP - Brazil
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