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LEMBRAR E ESQUECER EM HISTÓRIA INTELECTUAL: O BRASIL E AS CIÊNCIAS SOCIAIS FRANCESAS NO SÉCULO XX

MERKEL, Ian. Terms of Exchange: Brazilian Intellectuals and the French Social Sciences. Chicago: University of Chicago Press, 2022

A justificação de objetos de investigação no domínio da história intelectual passa, não raro, pela recuperação dos méritos de um autor ou de um conjunto de autores tidos pelo analista como escanteados, insuficientemente reconhecidos ou, no limite, “esquecidos” em sua área de atuação. Nesses casos, a operação de pesquisa torna-se, também, uma operação de resgate: debruçando-se sobre uma obra lida como indevidamente ensombrada por determinada tradição de pensamento, espera-se reconduzir à luz as contribuições do autor que se toma por objeto, recuperando-se seu lugar condigno no seio da mesma constelação intelectual que teria falhado em atribuir-lhe o devido valor. Esse modo de formulação de um problema de pesquisa é familiar a qualquer investigador interessado na história das ideias e de seus artífices. Ele se despe, no entanto, de sua trivialidade, tornando-se uma instigante provocação intelectual, quando aplicado ao estudo de intelectuais que encarnam a antítese mesma do esquecimento.

É essa provocação que propulsiona Terms of Exchange: Brazilian Intellectuals and the French Social Sciences, primeiro livro do historiador norte-americano Ian Merkel, publicado em 2022 pela University of Chicago Press.2 2 A obra é produto da tese de doutorado de Merkel, defendida na Universidade de Nova Iorque em 2018. Não seria, afinal, tarefa banal encontrar, entre os intelectuais brasileiros, nomes mais celebrados do que aqueles tocados pela investigação de Merkel – Caio Prado Jr., Gilberto Freyre, Mário de Andrade e Arthur Ramos. É, no entanto, em um aspecto específico da trajetória desses agentes que a obra diagnostica um processo de esquecimento: todos esses intelectuais, argumenta o autor, teriam exercido um papel decisivo no desenvolvimento das ciências sociais francesas no século XX por meio de sua influência sobre nomes como Roger Bastide, Pierre Monbeig, Fernand Braudel e Claude Lévi-Strauss. Essas contribuições teriam escapado, no entanto, à história intelectual dos dois países, e aí reside a provocação que serve, tacitamente, de mote ao livro: ao defender a existência de um protagonismo brasileiro esquecido no sistema de trocas que analisa, o que Merkel propõe é uma subversão do que enxerga como as lógicas tradicionais de poder em história intelectual, procedimento que ganha impacto em função do peso dos nomes envolvidos. Nem mesmo figuras com assento pétreo no cânone brasileiro, unanimemente reconhecidas em seu país de origem como seminais para suas respectivas áreas de especialidade, teriam logrado, afinal, escapar desse apagamento – eis o estado de coisas que Terms of Exchange se propõe a reverter.

A natureza da proposta torna claro, já de partida, o tipo de história intelectual à qual se opõe: como afirma o próprio autor em sua introdução (MERKEL, 2022, p. 9), trata-se de uma resposta direta ao difusionismo, perspectiva que apreende as trocas intelectuais transnacionais unilateralmente, confinando os países periféricos à condição de receptores passivos de bens culturais cuja produção é monopolizada pelos países centrais.3 3 Merkel alinha-se explicitamente, nesse ponto, às perspectivas da História Intelectual Global, sublinhando seu diálogo direto com dois trabalhos de Andrew Sartori: Bengal in Global Concept History (2008) e Liberalism in Empire (2014). Nesse aspecto, a pertinência da crítica de Merkel e o consequente interesse a ser suscitado por sua obra são evidentes. A formulação de seu problema de pesquisa, no entanto, ao materializar as potencialidades da perspectiva de análise à qual se alinha, também lança luz sobre seus limites. Buscar as “influências esquecidas” da periferia sobre o centro, invertendo-se os termos da perspectiva difusionista, seria, afinal, o suficiente para romper com os princípios de visão do mundo intelectual que a sustentam? Ao fim da obra, o leitor pode se ver hesitante em responder seguramente à pergunta. Isso não o impedirá, no entanto, de reconhecer os méritos de Terms of Exchange, nem de identificar sua contribuição decisiva para a área de estudos em que se insere.

O livro é composto por seis capítulos, que o autor organiza em uma espécie de escala crescente do poder de influência dos intelectuais brasileiros sobre seus pares franceses. Partindo de um ponto que caracteriza pela “dependência” intelectual do Brasil em relação à França, Merkel propõe reconstituir, cronologicamente, um processo simultâneo de emancipação e de ganho de “agência” do polo brasileiro, que culminaria na popularidade do Brasil e da América Latina (diversas vezes tratados como intercambiáveis) como temas de debate e pesquisa na França, bem como na institucionalização desse interesse por meio de suportes como a revista dos Annales e a VI seção da École pratique des hautes études. Para demonstrar esse argumento, a obra propõe articular uma abordagem “informada pela sociologia” (MERKEL, 2022, p. 4) a procedimentos de exegese textual mais “propriamente histórico-intelectuais” (MERKEL, 2022, p. 96) – escolha metodológica, como se discutirá à frente, mais bem-sucedida em algumas seções do que em outras. Para além de seus ocasionais problemas de execução, no entanto, o argumento do livro também tem sua solidez comprometida pela dificuldade de demonstrar aquilo que chama de uma “agência” dos brasileiros, o que se faz especialmente visível nos capítulos finais, que dependem dessa demonstração para sustentar o desenho da obra.

Esse problema na concepção do argumento é menos presente no primeiro capítulo, o que se deve em parte à natureza sintética dessa seção. Centrado em temas extensamente estudados pela historiografia brasileira (a fundação da Universidade de São Paulo e o papel das ditas missões francesas nesse processo), Merkel procede, aqui, a uma narração amparada por um trabalho arquivístico amplo e diligente, que reforça com solidez a bibliografia preexistente. Tem-se, com isso, um esforço sintético robusto; um desenho claro e abrangente, ainda que não inédito, da fundação da Faculdade de Filosofia da USP e do papel aí exercido pelos primeiros professores franceses. Há, decerto, ressalvas a serem feitas a essa síntese a despeito de sua qualidade, sobretudo nos momentos em que o capítulo busca ultrapassar a literatura que o precede, ocupando-se de processos menos densamente explorados por ela. Ao sublinhar, por exemplo, a centralidade da sociologia durkheimiana para as figuras de Fernando de Azevedo e Júlio de Mesquita Filho, a análise se atém ao enquadramento oferecido por relatos datados do fim do século XX. Nesse caso, uma atenção mais detida a documentos apenas brevemente mencionados (como os próprios manuais didáticos publicados por Azevedo) poderia agregar à análise uma perspectiva mais nuançada dessas alianças intelectuais e de suas implicações no sistema de relações que se constituía, então, entre as frações da elite paulista estudadas.

No geral, no entanto, os problemas relativos às estratégias metodológicas do livro tornam-se mais claros no segundo capítulo, no qual a “inspiração sociológica” se faz ver de forma mais explícita. Debruçando-se sobre a “segunda geração” de professores franceses atuantes na FFCL-USP, Merkel analisa, de início, as condições de chegada desses intelectuais ao Brasil, citando as conexões que viabilizaram suas contratações e destacando tanto seus respectivos estágios de carreira no momento da viagem quanto sua produção intelectual prévia. Em um segundo momento, propõe-se a descrever as contribuições do Brasil para a acumulação de “capital social e cultural”4 4 Apesar de os dois tipos de capital constarem no título da segunda subseção do capítulo, apenas o primeiro (o capital social) é contemplado em seu conteúdo, a não ser que se considere como “aquisição de capital cultural” a coexistência com a elite letrada paulistana, o que exigiria uma interpretação excessivamente laxa do conceito. dos personagens em tela, para, em seguida, analisar o programa de ensino proposto por cada um deles para seus primeiros anos de atuação.

Esse encadeamento expositivo é coeso e plenamente dotado de sentido. O modo como o instrumental sociológico é manejado na análise, no entanto, não permite que o autor ultrapasse de forma substancial a descrição dos processos que narra, dos quais, como resultado, extraem-se poucas consequências analíticas. Ao descrever o acesso dos professores franceses a espaços de sociabilidade da elite paulistana (jantares de gala e propriedades familiares, por exemplo) e sua circulação por esses espaços, ou ao reconstruir em cores vivas o ambiente das viagens transatlânticas que trouxeram esses homens ao Brasil, Merkel acena para mecanismos sociais de inegável interesse para a história intelectual de matriz sociológica. A reconstituição desses mecanismos, no entanto, não chega a dar lugar a uma investigação de sua manifestação na atividade intelectual dos agentes – a análise de programas de ensino que fecha o capítulo, por exemplo, é empreendida, sobretudo, à luz de tensões intelectuais intestinas das ciências sociais francesas, procedimento que não é, em si, inválido, mas que pouco ou nada extrai da incursão sociológica que o precede.5 5 De fato, o único papel atribuído aí ao Brasil é o de permitir a Braudel, Lévi-Strauss, Monbeig e Bastide uma liberdade quase irrestrita na elaboração de seus respectivos programas de ensino, argumento que não se sustenta à luz de trabalhos anteriores a respeito do mesmo tema, nos quais se demonstram solidamente as constrições impostas ao trabalho dos franceses pelo tipo de relação por eles estabelecidas com as elites paulistas (RODRIGUES, 2012). Nessas condições, a mobilização do aparato sociológico torna-se mais nominal do que operacional, com o recurso a termos como capital e habitus não sendo acompanhado, necessariamente, de uma incorporação das estratégias de análise que essas palavras, enquanto conceitos, nomeiam.

A abordagem metodológica proposta por Merkel mostra-se, por outro lado, sensivelmente mais eficaz no capítulo 3. Ali, analisam-se, sobretudo, os impactos que as viagens pelo Brasil (literais ou mediadas por obras de autores brasileiros) surtiram sobre a produção intelectual de Monbeig, Lévi-Strauss, Braudel e Bastide, destacando-se, quando pertinente, de que modo essas expedições foram viabilizadas pelas relações estabelecidas entre esses intelectuais e as elites paulistas pelas quais foram acolhidos. Trata-se do capítulo mais estimulante da primeira parte do livro, rico em sugestões instigantes a respeito, por exemplo, da incorporação, por parte dos estrangeiros, de certas categorias de pensamento caras aos grupos sociais aos quais se integraram (notadamente o excepcionalismo paulista calçado em uma interpretação particular do fenômeno do bandeirantismo). Esse fenômeno é bem demonstrado, sobretudo, para o caso de Monbeig – dentre os franceses, o professor mais bem integrado, como demonstra o próprio autor, aos espaços de socialização da elite paulista.

A seção dedicada a Lévi-Strauss, por outra via, também faz bom uso dos mecanismos descritos no segundo capítulo, demonstrando as dificuldades enfrentadas pelo antropólogo em sua viagem à Serra do Norte6 6 Quando se fala nas condições de possibilidade da viagem de Lévi-Strauss e da elaboração de sua etnografia a respeito dos Bororo, chama atenção o relativo silêncio do livro a respeito da primeira viagem à Serra do Norte e da emblemática figura de Edgard Roquette-Pinto, citadas apenas uma vez, brevemente, na página 78. A respeito da centralidade de Roquette-Pinto para a configuração da antropologia brasileira da qual beberia Lévi-Strauss, ver o estudo de Vanderlei Souza (SOUZA, 2017). e a importância das relações por ele estabelecidas no Brasil para contornar esses contratempos.7 7 Como lembra o próprio Merkel, essas dificuldades foram analisadas com profundidade por Emmanuelle Loyer em sua biografia de Lévi-Strauss (LOYER, 2015). Para Braudel e Bastide, no entanto, a análise torna-se mais descritiva – tendo sido as viagens de ambos menos extensas e menos emblemáticas, o autor busca sublinhar aquilo que a experiência brasileira, em termos mais vagos, teria despertado nos trabalhos dos franceses, enfatizando, sobretudo, suas leituras e escritos sobre o país. Como consequência, a segunda metade do capítulo nutre relações menos claras (e menos estimulantes) com o capítulo anterior, e, nesse ponto, revela-se outro problema colocado pelas opções analíticas de Terms of Exchange: seu relativo silêncio a respeito da heterogeneidade do grupo de personagens que acompanha. Relativo, pois o livro dá indícios, a todo o tempo, dessa heterogeneidade – é o que faz, por exemplo, ao sublinhar diferenças de idade entre os professores franceses; ao afirmar que Monbeig e Braudel eram mais próximos da família Mesquita do que os colegas ou ao destacar os conflitos entre Lévi-Strauss e os representantes do grupo ligado ao Estado. Optando por priorizar os elementos que aproximavam os membros da “missão”, no entanto, a obra tende a tratá-los, nos pontos cruciais da análise, como uma unidade, o que significa, por vezes, submetê-los a estratégias críticas que funcionam bem para alguns, mas, para outros, exigem adaptações nem sempre convincentes.

No capítulo 4, por exemplo, que se apresenta como o mais propriamente “internalista” da obra, propondo a análise dos “trabalhos mais maduros” dos intelectuais em questão, Merkel afirma: “Nem Bastide nem Monbeig produziram nada tão amplamente difundido como O Mediterrâneo de Braudel ou As Estruturas Elementares do Parentesco de Lévi-Strauss, mas aqui eu exploro seus trabalhos na mesma proporção” (MERKEL, 2022, p. 96). Em um só movimento, reconhece-se, nessa afirmação, a desproporcionalidade do prestígio alcançado pelos quatro intelectuais, mas se mantém a estratégia de aplainar essas diferenças, deixando-se de explorar o fato, por exemplo, de que os dois autores reconhecidos como os mais poderosos no sistema universitário francês são também aqueles que passaram menos tempo no Brasil. Uma das consequências mais danosas desse enquadramento de análise parece ser, com efeito, o silêncio da obra a respeito do impacto exercido pela pertença disciplinar, tanto da França quanto no Brasil, sobre as tomadas de posição intelectuais e as estratégias de carreira dos agentes analisados. Deixa-se assim de equacionar, por exemplo, as posições relativas ocupadas pela História, a Etnologia, a Geografia e a Sociologia no sistema de ensino francês (e no brasileiro), elemento indispensável para o entendimento das dinâmicas de aliança e disputa em jogo.

Mais do que por seus silêncios, no entanto, o quarto capítulo deve ser avaliado por sua proposta: a de identificar, por meios da análise das obras principais dos personagens franceses que acompanha, influências de interlocutores brasileiros (Freyre, Caio Prado, Arthur Ramos) durante o período da guerra. Na perseguição desse objetivo, as escolhas metodológicas que estruturam a obra voltam a impor problemas de mesma natureza daqueles encontrados na primeira parte do livro, ainda que por outra via. Afastando-se das incursões de inspiração sociológica, o autor se vale, nesta seção, de uma análise de conteúdo mais cerrada como forma de documentar as influências que procura. Esse esforço exegético, no entanto, não chega a apresentar evidências tangíveis dessas influências, de modo que a incorporação de ideias de autores brasileiros por parte dos franceses permanece mais aludida do que demonstrada. Nesse ponto, o caso de Monbeig é emblemático: centrada na figura do geógrafo, a primeira subseção do capítulo dedica-se a demonstrar que seu trabalho de campo nas cidades de Barão de Antonina e Marília, no interior paulista, foi central para a elaboração de duas de suas investigações mais importantes: Pionniers et planteurs de São Paulo (1952) e La croissance de la ville de São Paulo (1953). O argumento é, evidentemente, tão incontestável quanto tautológico. Ao tentar documentar o impacto efetivo que intelectuais brasileiros surtiram sobre esses trabalhos, no entanto, o autor recorre a uma listagem simples de alguns dos principais contatos do geógrafo francês no Brasil, imediatamente seguida pela afirmação de que “todas essas concepções ajudaram Monbeig a repensar o futuro da geografia humana, encorajando a intensificação da colaboração interdisciplinar” (MERKEL, 2022, p. 101).

Tem-se, nesse caso, um exemplo claro de um problema que atravessa todo o livro: seu argumento não parece fazer distinção entre o impacto exercido pelo Brasil na produção intelectual dos franceses (que é, em muitos casos, evidente) e a “influência” de pensadores brasileiros sobre essa produção, que nunca chega a ser solidamente demonstrada. O sentido dessa observação pode ficar mais claro no capítulo 5, que se propõe a demonstrar o papel desempenhado pelo Brasil na consolidação de um cluster intelectual do qual dependeria, segundo Merkel, a reinserção institucional de Braudel, Bastide, Monbeig e Lévi-Strauss na França do pós-guerra. Mais uma vez, o trabalho empreendido nesse sentido é eficiente e rigoroso, apoiando-se em um amplo leque de fontes bem exploradas para demonstrar como a experiência brasileira inspirou temas e problemas de pesquisa estrategicamente adaptados aos interesses intelectuais então dominantes na França. Demonstra-se competentemente, também, como o acionamento de redes de relação estabelecidas na América Latina contribuiu para o avanço de projetos pessoais dos franceses, viabilizando, por exemplo, a expansão da clientela internacional da revista dos Annales. Nos dois casos, no entanto, o que se parece constatar não é a “agência”, nos termos do livro, de intelectuais brasileiros, mas o manejo habilidoso, por parte dos franceses, de sua posição dominante para preservar, mesmo após seu retorno à Europa, a rentabilidade material e simbólica de relações estabelecidas no Brasil.

A relações brasileiras que Braudel se esforça em manter, por exemplo, são descritas pelo próprio autor como uma “rede clientelista” (MERKEL, 2022, p. 144) que teria não apenas criado oportunidades editoriais e de autopromoção, mas também construído um espaço de inserção profissional para alunos e colegas do “mestre francês”. No caso específico da passagem de Lucien Febvre pelo Brasil, em 1949, o livro sublinha o entusiasmo da recepção oferecida pelos brasileiros ao cofundador dos Annales, destacando não apenas a acirrada disputa por suas palestras, mas a série de honrarias a ele oferecidas durante sua estadia, entre elas a entrega das chaves da cidade de São Paulo. Todos esses elementos registram, de fato, o papel ocupado pelo Brasil nas estratégias de carreira dos franceses em tela, mas não comprovam, em nenhum momento, a “agência” brasileira que a obra se propõe a perseguir. Pelo contrário, registram-se nesses achados, de forma nítida, dinâmicas de dominação que, pelas escolhas analíticas do livro, são apreendidas apenas naquilo que têm de rentável para o centro do sistema, de modo que o “protagonismo” brasileiro fica limitado à viabilização de lucros para os professores franceses. Isso não significa, bem entendido, negar que intelectuais brasileiros tenham se engajado ativamente nessas trocas, tampouco que tenham delas extraído lucros importantes. Significa, no entanto, reconhecer que os termos do engajamento do polo dominado do sistema são condicionados pela própria dinâmica de dominação em jogo, o que os torna inapreensíveis caso se calibre a análise para detectar como “agência” apenas os tipos de engajamento típicos do polo dominante, como a capacidade de “influência”.

É justamente isso que se parece, novamente, observar no sexto e último capítulo do livro. Ali, Merkel busca, acompanhando os debates sobre mestiçagem e relações raciais na França do pós-guerra, demonstrar como a obra de autores brasileiros (sobretudo a de Gilberto Freyre) ganhou destaque em função das demandas intelectuais francesas, ligadas aos processos de descolonização. Nos círculos de pensadores fiéis aos princípios republicanos, argumenta o autor, as análises otimistas de Freyre a respeito das relações raciais nas colônias portuguesas ofereceriam uma alternativa pacífica de solução às próprias relações coloniais francesas, então em plena convulsão. O argumento é instigante e documentado de forma competente: o processo de recepção e crítica da obra de Freyre, sobretudo por parte de autores ligados às redes intelectuais franco-brasileiras, é analisado com minúcia, e a presença tensionada do sociólogo na pesquisa da Unesco sobre as relações raciais no Brasil (1951-1952) é examinada de forma particularmente inspirada. Novamente, o que esse ótimo trabalho documental permite ver são os mecanismos por meio dos quais os franceses acompanhados pela obra logram extrair lucros materiais e simbólicos de sua relação com o Brasil, reconvertendo essas relações em práticas intelectuais rentáveis em seu próprio contexto nacional. O livro insiste em tomar, no entanto, esses mecanismos como indício dos protagonismos que busca; como evidência de que os brasileiros teriam logrado exercer influência sobre os franceses a despeito da flagrante assimetria que caracteriza as trocas entre os dois países. Em termos de formulação do objeto, isso significa conceber essa desigualdade como obstáculo a ser transposto, e não como elemento constitutivo do sistema de relações em análise. Subentende-se, aí, que esse sistema é compreensível, ao menos parcialmente, abstraindo-se dele sua assimetria, o que abre espaço para distorções óticas de naturezas diversas, como tomar efeitos de dominação por evidências de simetria.

Nesse ponto, parece se fazer ver, de forma particularmente clara, um dos principais limites do programa de pesquisa avançado pelo livro: o de buscar compreender a despeito de suas desigualdades sistemas de relações apenas compreensíveis em função delas. Ao se inverter nesses termos o sinal do difusionismo, o risco que se corre é o de distensionar artificialmente essas dinâmicas, o que tem por consequência reforçar os princípios difusionistas ao invés de subvertê-los. A “agência” do dito “sul global” segue dependendo, nessa perspectiva, de sua capacidade de produção de bens intelectuais de exportação, e os processos de recepção “no sul” seguem sendo interpretados como atos de submissão inerentemente passivos, não restando opção, caso se queira recuperar os méritos da periferia, a não ser encontrar suas contribuições esquecidas para o centro – o que por vezes significa dobrar a matéria histórica àquilo que se precisa que ela mostre. Inadvertidamente, preservam-se aí, exploradas pelo avesso, as lógicas difusionistas de entendimento do mundo intelectual, sem que se considere que esquecer e lembrar são procedimentos que só adquirem sentido à luz de suas condicionantes históricas e sociais; que as “influências” que um autor escolhe ensombrar ou celebrar são indicativos de sua posição em um sistema de relações historicamente localizado; e que, portanto, resgatar “influências esquecidas” na intenção de equilibrar relações historicamente desiguais implica apagar artificialmente as condições sociais de produção do esquecimento – tão relevantes, afinal, quanto as condições sociais de produção da consagração.

Diante das reflexões que inspira e dos debates que suscita, a leitura de Terms of Exchange: Brazilian Intellectuals and the French Social Sciences revelará, em suma, méritos que em muito ultrapassam o enquadramento provocador que o livro propõe para suas questões, a extensão de seu trabalho documental ou as instigantes interpretações que costuram sua narrativa fluida, coesa e bem conduzida. Sua contribuição é, também, a de abrir caminhos; de levar à fronteira uma perspectiva de análise claramente anunciada e permitir que o leitor reflita sobre suas potencialidades e seus limites. Nesse movimento, abre seus flancos a críticas, mas também assegura seu lugar central em um domínio de estudos em franca expansão, que não saberá e nem poderá ignorar suas contribuições.

  • 2
    A obra é produto da tese de doutorado de Merkel, defendida na Universidade de Nova Iorque em 2018.
  • 3
    Merkel alinha-se explicitamente, nesse ponto, às perspectivas da História Intelectual Global, sublinhando seu diálogo direto com dois trabalhos de Andrew Sartori: Bengal in Global Concept History (2008)SARTORI, Andrew. Bengal in global concept history: culturalism in the age of capital. Chicago: University of Chicago Press, 2008. e Liberalism in Empire (2014)SARTORI, Andrew. Liberalism in empire: an alternative history. Oakland: University of California Press, 2014..
  • 4
    Apesar de os dois tipos de capital constarem no título da segunda subseção do capítulo, apenas o primeiro (o capital social) é contemplado em seu conteúdo, a não ser que se considere como “aquisição de capital cultural” a coexistência com a elite letrada paulistana, o que exigiria uma interpretação excessivamente laxa do conceito.
  • 5
    De fato, o único papel atribuído aí ao Brasil é o de permitir a Braudel, Lévi-Strauss, Monbeig e Bastide uma liberdade quase irrestrita na elaboração de seus respectivos programas de ensino, argumento que não se sustenta à luz de trabalhos anteriores a respeito do mesmo tema, nos quais se demonstram solidamente as constrições impostas ao trabalho dos franceses pelo tipo de relação por eles estabelecidas com as elites paulistas (RODRIGUES, 2012RODRIGUES, Lidiane Soares. A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e “um seminário” (1958-1978). Tese de Doutorado em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.).
  • 6
    Quando se fala nas condições de possibilidade da viagem de Lévi-Strauss e da elaboração de sua etnografia a respeito dos Bororo, chama atenção o relativo silêncio do livro a respeito da primeira viagem à Serra do Norte e da emblemática figura de Edgard Roquette-Pinto, citadas apenas uma vez, brevemente, na página 78. A respeito da centralidade de Roquette-Pinto para a configuração da antropologia brasileira da qual beberia Lévi-Strauss, ver o estudo de Vanderlei Souza (SOUZA, 2017SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935). Rio de Janeiro: Ed. FGV; Fiocruz, 2017.).
  • 7
    Como lembra o próprio Merkel, essas dificuldades foram analisadas com profundidade por Emmanuelle Loyer em sua biografia de Lévi-Strauss (LOYER, 2015LOYER, Emmanuelle. Lévi-Strauss. Paris: Flammarion, 2015.).

Referências bibliográficas

  • LOYER, Emmanuelle. Lévi-Strauss Paris: Flammarion, 2015.
  • RODRIGUES, Lidiane Soares. A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e “um seminário” (1958-1978). Tese de Doutorado em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
  • SARTORI, Andrew. Bengal in global concept history: culturalism in the age of capital. Chicago: University of Chicago Press, 2008.
  • SARTORI, Andrew. Liberalism in empire: an alternative history. Oakland: University of California Press, 2014.
  • SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935) Rio de Janeiro: Ed. FGV; Fiocruz, 2017.

Editado por

Editores Responsáveis

Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2022
  • Aceito
    25 Abr 2023
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