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“ACIMA DE TUDO, JOSÉ DE ACOSTA MERECE SER LIDO E RECOMENDADO”: A APROPRIAÇÃO DA IDEIA DE MISSÃO PELO TEÓLOGO REFORMADO HOLANDÊS JOHANNES HOORNBEECK1 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e a bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Meus sinceros agradecimentos aos pareceristas anônimos da Revista de História, cujas considerações foram essenciais para a melhoria deste artigo. Agradeço também a leitura crítica feita por Maria Cristina Bohn Martins.

Resumo

O artigo discute a relação entre o jesuíta espanhol José de Acosta (1540-1600) e o teólogo holandês reformado Johannes Hoornbeeck (1617-1666). Distantes pelo tempo em que viveram, pelos espaços onde desenvolveram suas ações e pelo próprio credo que professavam, esses dois religiosos realizaram uma importante reflexão sobre o papel da missão cristã em territórios de “bárbaros” e “pagãos”. Em um período de fortes disputas políticas e religiosas entre católicos e protestantes, a análise do principal texto de Hoornbeeck permite entender melhor um delicado processo de apropriação e reelaboração da ideia de missão dentro dos parâmetros do dogma holandês reformado, realizada a partir da problemática peruana pelo jesuíta Acosta.

Palavras-chave
José de Acosta; Johannes Hoornbeeck; missão; Peru; Países Baixos

Abstract

The article discusses the relation between the Spanish Jesuit José de Acosta (1540-1600) and the Dutch Reformed theologian Johannes Hoornbeeck (1617-1666). Distant for the time they lived, for the spaces where they developed their action and for the very creed they professed, these two religious achieved an important reflection on the role of the Christian mission in territories of barbarians and pagans. In a period of strong political and religious disputes between Catholics and Protestants, the analysis of Hoornbeeck’s main text allows us to better understand a delicate process of appropriation and re-elaboration of the idea of mission within the parameters of the Dutch reformed dogma carried out from the Peruvian problematic by the Jesuit Acosta.

Keywords
José de Acosta; Johannes Hoornbeeck; mission; Peru; Netherlands

Introdução

Em um estudo sobre o conceito de “missão” na obra do jesuíta José de Acosta (1540-1600), Johan Leuridan Huys, um teólogo belga dominicano, afirmava que os primeiros teólogos protestantes do século XVII que se interessaram pela temática da “missão” consultaram com frequência os livros de Acosta. Huys, no entanto, não oferecia maiores informações sobre os autores aos quais ele se referia (HUYS, 1997HUYS, Johan Leuridan. José de Acosta y el origen de la idea de misión. Perú, siglo XVI. Cuzco: CBC, 1997., p. 7).

Jorge Cañizares-Esguerra, em ensaio recente (José de Acosta, a Spanish Jesuit-Protestant Author: Print Culture, Contingency, and Deliberate Silence in the Making of the Canon, de 2018), desenvolve uma argumentação importante que pode ser dividida em três partes. Na primeira, Cañizares-Esguerra chama a atenção para o fato de que a obra de Acosta rapidamente se tornou importante na Europa, no início do século XVII. Em especial, destacava a Historia natural y moral de las Indias (1590), publicada em diversos países e idiomas. Entre o ano de sua publicação e 1624, é possível identificar nove edições em idiomas como espanhol, italiano, francês, holandês, inglês e alemão (CAÑIZARES-ESGUERRA, 2018CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. José de Acosta, a Spanish Jesuit-protestant author: print culture, contingency, and deliberate silence in the making of the canon. In: CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge et al. Encounters between Jesuits and protestants in Asia and the Americas. Leiden: Brill, 2018., p. 185-186). Havia, também, o livro De procuranda indorum salute, escrito em latim, em 1577, período em que Acosta desempenhava o papel de provincial da Companhia de Jesus no Peru, mas que somente foi publicado em 1588. Com a finalidade de contextualizar a temática das missões nas Índias, e por recomendação de membros importantes da Companhia, o livro foi publicado acompanhado de dois capítulos ou libros que serviam como uma introdução e realizavam uma descrição física e natural do Novo Mundo3 3 Com o título De natura Novi Orbis libri duo, foi publicado em latim junto ao De procuranda. Os dois capítulos tratavam principalmente dos fenômenos geográficos que se destacavam nas Índias e que coadunavam com o conhecimento aceito sobre o mundo, destacando-se os tópicos sobre a habitabilidade do Equador e das zonas tórridas e sobre as antípodas. Posteriormente, esses capítulos foram traduzidos para o castelhano e publicados como parte da sua Historia. . O De procuranda teve três edições em latim até finais do século XVI e uma tradução para o alemão, em 1598 (PEASE, 1995PEASE, Franklin. Las crónicas y los Andes. Lima: FCE/PUC Perú, 1995.).

A segunda argumentação de Cañizares-Esguerra se refere ao fato de que o conjunto da obra de Acosta teve recepção diferenciada em círculos variados. Ele ressalta que, dentro de círculos de impressores e leitores protestantes, sua Historia foi recebida com sumo interesse, em especial as informações que tratavam sobre a história, o governo, os costumes e as crenças religiosas dos astecas e incas (ACOSTA, 2006ACOSTA, José de. Historia natural y moral de las Indias. Edição de Edmundo O’Gorman. 3. ed. México D.F.: FCE, 2006 [1590]. [1590]; CAÑIZARES-ESGUERRA, 2018CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. José de Acosta, a Spanish Jesuit-protestant author: print culture, contingency, and deliberate silence in the making of the canon. In: CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge et al. Encounters between Jesuits and protestants in Asia and the Americas. Leiden: Brill, 2018., p. 189). Também se destacavam os questionamentos sobre a origem dos indígenas, a partir de uma interpretação da Bíblia, sobre como esses tinham conseguido chegar ao Novo Mundo depois do dilúvio.

Um indicador do interesse dos leitores protestantes foi a publicação de uma edição da Historia em holandês, em 1598, a qual foi reeditada mais duas vezes em 1624 (BEGHEYN, 2014BEGHEYN, Paul. Jesuit books in the Dutch republic and its generality lands, 1567-1773: a bibliography. Leiden: Brill, 2014., p. 41)4 4 A tradução da Historia, de Acosta, para o holandês foi realizada por Jan Huygen van Linschoten, um exímio explorador e cartógrafo, que escreveu Relato de uma viagem pelas navegações dos portugueses no Oriente, em 1595, e Itinerário, em 1596. . Já no universo católico, a obra de Acosta teve um impulso significativo até a primeira metade da década de 1590 para em seguida mergulhar num importante silêncio e esquecimento. Além da sua Historia, que seria publicada até 1608, duas obras suas escritas em latim foram publicadas no ano de 1590, em Roma: De Christo Revelato Novissimis e De Temporibus Novissimis. A esses textos se devem somar os documentos do Concilium Provinciales Limense, os quais foram publicados em Madri, em 1590 e 1591, sob a supervisão do próprio Acosta – uma edição adicional teria sido publicada em 1614. Cañizares-Esguerra destaca esse silêncio seletivo dos católicos e, especialmente, dos próprios jesuítas, sobre parte da obra de Acosta, e explica que isso se deveu, principalmente, a disputas pelo controle sobre a direção da Companhia de Jesus, um controle que os jesuítas espanhóis ansiavam manter (MARYKS, 2010MARYKS, Robert Aleksander. The Jesuit order as a synagogue of jews: Jesuits of Jewish ancestry and purity-of-blood laws in the early Society of Jesus. Leiden: Brill, 2010., p. 125-128; CAÑIZARES-ESGUERRA, 2018CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. José de Acosta, a Spanish Jesuit-protestant author: print culture, contingency, and deliberate silence in the making of the canon. In: CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge et al. Encounters between Jesuits and protestants in Asia and the Americas. Leiden: Brill, 2018., p. 214).

Por último, a terceira parte da sua argumentação se refere à ideia de que a recepção de Acosta por parte dos protestantes se viu restrita principalmente ao campo da história das sociedades indígenas. Esse interesse se desenvolvia em paralelo a um aumento do fluxo de informações sobre diversos territórios e populações extraeuropeias e que alimentava o interesse acadêmico por conhecimentos geográficos e por temáticas relacionadas a essas “novas” populações e sua relação com a história bíblica.

O artigo se propõe a descrever – a partir do livro De conversione indorum et gentilium (1669), do teólogo calvinista da Igreja Reformada da Holanda, Johannes Hoornbeeck (1617-1666) – a forma como esse teólogo se apropriou da ideia de “missão”, desenvolvida por Acosta a partir de sua experiência missionária no Peru. Essa apropriação permite entender que, para Hoornbeeck, existiam elementos dentro da experiência da ideia de “missão” católica que poderiam ser utilizados por parte dos reformados holandeses. Portanto, a partir da apropriação da ideia de “missão” de Acosta por Hoornbeeck, podemos entender melhor que esse interesse de leitores e impressores protestantes na obra de Acosta não se restringia a aspectos históricos sobre as sociedades indígenas, mas, também, existia um interesse pelas suas reflexões a respeito de questões religiosas e da maneira mais apropriada para evangelizar os “bárbaros” e os “pagãos”.

José de Acosta e o contexto da doutrinação dos indígenas no Peru

Existe uma extensa bibliografia no que se refere à vida e à obra de José de Acosta. O livro de Leon Lopetegui (1942)LOPETEGUI, León. El padre José de Acosta s.j. y las misiones. Madrid: CSIC, 1942. continua sendo um dos escritos mais completos sobre o jesuíta, com informações importantes sobre seu trabalho organizativo no território peruano e o papel no Terceiro Concílio de Lima. Também é importante mencionar o livro de Claudio Burgaleta (1999)BURGALETA, Claudio. José de Acosta, S.J. (1540-1600). His life and thought. Chicago: Loyola Press, 1999., que traz informações sobre a formação como jesuíta e sobre o contexto intelectual da época. Há que se destacar, ademais, sua reflexão sobre o que Burgaleta denomina “humanismo teológico jesuíta” presente nas ideias de Acosta.

Para entender a ideia de “missão” de Acosta, é importante destacar que ela foi desenvolvida em um contexto atrav essado pelo aparecimento da Companhia de Jesus, a reforma da Igreja proposta pelo Concílio de Trento e o desafio do trabalho de evangelização no território do Vice-reino do Peru. Também há que se dar destaque às discussões e propostas no âmbito da administração metropolitana em torno da Junta Magna de 1568 e que resultariam em um conjunto de propostas de reforma política, econômica, administrativa, militar e eclesiástica. Para levá-las adiante, foi escolhido, como vice-rei do Peru, Francisco de Toledo (MERLUZZI, 2014MERLUZZI, Manfredi. Gobernando los Andes. Francisco de Toledo virrey del Perú (1569-1581). Lima; Roma: PUC Perú/Tre, 2014 [2003]. [2003], p. 96-105).

A Companhia de Jesus chegou ao Peru em 1568. Os primeiros anos da Companhia no território caracterizam-se por um esforço de adaptação em torno dos centros urbanos, o que anunciaria alguns elementos de conflitos com as autoridades de governo (COELLO DE LA ROSA, 2006COELLO DE LA ROSA, Alexandre. Espacios de exclusión, espacios de poder: el cercado de Lima colonial (1568-1606). Lima: IEP/ PUCP, 2006., p. 71-84). Da experiência da Companhia em suas missões nas cidades europeias e, em especial, nas áreas rurais das penínsulas Ibérica e Itálica, os jesuítas demonstraram prontamente uma preferência por ações encaminhadas ao setor educacional em espaços urbanos (MESNARD, 2014MESNARD, Pierre. La pedagogía de los jesuitas (1548-1762). In: CHÂTEAU, Jean (ed.). Los grandes pedagogos. Ciudad de México: FCE, 2014 [1956]. [1956], p. 58-64). Essa preferência se manifestaria também no Peru, mas entraria em conflito com as reformas discutidas na Junta e que o vice-rei Toledo zelosamente procurava levar adiante. Os conflitos entre Toledo e os jesuítas em torno de que os missionários assumissem o trabalho de conversão nas doctrinas de indios levaria a que discutissem a melhor maneira de realizar o trabalho de evangelização (ECHANOVE, 1955ECHANOVE, Alfonso. Origen y evolución de la idea jesuítica de «Reducciones» en las Misiones del Virreinato del Perú. Madrid: Jura, 1955., p. 15-17). A partir desse momento, a Companhia de Jesus teve que se dedicar à evangelização dos nativos e elaborar uma política para questões como o tributo e trabalho indígenas (MALDAVSKY, 2012MALDAVSKY, Aliocha. Vocaciones inciertas. Misión y misioneros en la provincia jesuita del Perú en los siglos XVI y XVII. Sevilla; Lima: CSIC/IFEA & UARM, 2012., p. 35-42).

Acosta nasceu em Medina del Campo, em 1540. Ingressou no colégio jesuítico dessa cidade em 1552, completando depois sua formação em diferentes lugares: “Que he estado primeramente en Salamanca un mes, en Medina cinco años, en Plasencia un mes, en Portugal, scilicet Lisboa, cuatro meses; en Coimbra cinco, en Valladolid un año, en Segovia siete meses. En Alcalá dos años. Todo este tiempo he ocupado en leer gramática u oírla, salvo estos dos años en Artes” (LOPETEGUI, 1942LOPETEGUI, León. El padre José de Acosta s.j. y las misiones. Madrid: CSIC, 1942., p. 26). Depois, passou nove anos na universidade de Alcalá de Henares, até 1567, estudando filosofia e teologia, em especial as obras de Aristóteles e Tomás de Aquino.

A Companhia de Jesus tinha o ministério da palavra como uma de suas tarefas obrigatórias e era praticado nos pequenos povoados que rodeavam a cidade de Alcalá. As missões eram realizadas em comunidades rurais que rodeavam os colégios e residências da região de Toledo, onde os jesuítas saíam divididos em pequenos grupos, organizando um trabalho intensivo e desenvolvendo atividades de pregação, catequese, confissão, caridade e fundação de confrarias (BURGALETA, 1999BURGALETA, Claudio. José de Acosta, S.J. (1540-1600). His life and thought. Chicago: Loyola Press, 1999., p. 22-23). Essa experiência proporcionou a Acosta um conhecimento maior da situação dos camponeses castelhanos e das possibilidades de que, por meio da educação, mudassem seus costumes, como ele constantemente mencionava:

[…] vemos incluso en nuestra misma España hombres nacidos en plena Cantabria o en Asturias a quienes se tiene por ineptos y paletos cuando se quedan entre sus paisanos; se les pone en escuelas o en la corte o en mercados, y sobresalen por su admirable ingenio y destreza, sin que nadie les aventaje

(ACOSTA, I, 1984ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]. [1588], p. 151).

José de Acosta chegou ao Peru em 1572. Caracterizado por seu professor, Alonso de Deza, como de “letras e ingenio muy raro; para leer muestra gran talento[…] Tiene talento para predicar y gobierno” (LOPETEGUI, 1942LOPETEGUI, León. El padre José de Acosta s.j. y las misiones. Madrid: CSIC, 1942., p. 32), assumiria a cadeira de Teologia no Colégio de San Pablo, em Lima. O prestígio que ganhou, tanto na cátedra quanto no ofício de pregador, fez com que fosse escolhido para pertencer a um pequeno grupo de consultores do vice-rei Toledo, acompanhando-o na visita general, entre 1573 e 1574, conhecendo os territórios de Huamanga, Cuzco, Charcas e Arequipa (BURGALETA, 1999BURGALETA, Claudio. José de Acosta, S.J. (1540-1600). His life and thought. Chicago: Loyola Press, 1999., p. 36-39).

A obediência da Companhia a suas normas internas ou Instituto ocasionou conflitos com a política que procurava implantar o vice-rei Toledo em relação à aceitação de doctrinas de indios. A negativa dos jesuítas levou a que o vice-rei fechasse o colégio de Arequipa em 1574. A dificuldade de estabelecer laços apropriados com o governo e alterações internas da Companhia, relacionadas a problemas de disciplina e de sujeição ao espírito inaciano, levaram a que se decidisse por realizar uma “visita” à província jesuítica em junho de 1575 (ARMAS ASIN, 1999ARMAS ASIN, Fernando. Los comienzos de la Compañía de Jesús en el Perú y su contexto político y religioso: la figura de Luis López. Hispania Sacra, v. 51, n. 104, p. 573-609, 1999., p. 579-588).

Em 1576, Acosta foi escolhido provincial dos jesuítas peruanos. Nesse mesmo ano se organizaram as duas primeiras congregações da Companhia, uma na cidade de Lima e a outra, meses depois, na cidade de Cuzco. Nelas se fez um balanço das ações realizadas pela Companhia no território peruano e um levantamento das dificuldades encontradas nesse novo espaço. Principalmente, estabeleceu-se a política da Companhia em relação à missão evangelizadora para os indígenas, decidindo assumir as doctrinas de indios em condições que lhes permitisse respeitar as normas de seu Instituto (ECHANOVE, 1955ECHANOVE, Alfonso. Origen y evolución de la idea jesuítica de «Reducciones» en las Misiones del Virreinato del Perú. Madrid: Jura, 1955., p. 31-33; MALDAVSKY, 2012MALDAVSKY, Aliocha. Vocaciones inciertas. Misión y misioneros en la provincia jesuita del Perú en los siglos XVI y XVII. Sevilla; Lima: CSIC/IFEA & UARM, 2012., p. 41).

Em fevereiro de 1577, Acosta tinha já escrito o De procuranda indorum salute. O livro era o resultado da reflexão em torno de como deveria ser realizada a “missão” com os indígenas a partir da sua experiência direta no Peru e resultaria no tratado de missiologia mais completo escrito fora da Europa, em um tempo que ainda se estava constituindo o próprio sentido do conceito de “missão” (HUYS, 1997HUYS, Johan Leuridan. José de Acosta y el origen de la idea de misión. Perú, siglo XVI. Cuzco: CBC, 1997., p. 84; O’MALLEY, 2004 [1993]O’MALLEY, John William. Os primeiros jesuítas. Tradução de Domingos Armando Donida. São Leopoldo; Bauru: Unisinos/Edusc, 2004 [1993]., p. 198-200). Seu livro relacionava a evangelização com a constituição de um quadro de religiosos preparados e honestos, com o intuito de que os indígenas percebessem que eles tinham como única preocupação a sua salvação (ACOSTA, I, 1984 [1588]ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]., p. 191-199). O segundo objetivo destacava a necessidade de mudar os métodos até aquele momento utilizados para evangelizar os indígenas e esforçar-se por encontrar novas maneiras, destacando a necessidade de ajustar tais práticas aos diferentes tipos de “nações” pagãs encontradas nos “tempos modernos” (ACOSTA, I, 1984ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]. [1588], p. 59-71).

A ideia de “missão” para Acosta

A experiência adquirida pela Companhia no território peruano, junto com o conhecimento das peculiaridades do trabalho de doutrinação dos jesuítas, levaria Acosta a definir a “missão”: “entiendo por misiones esas salidas y giras que se emprenden pueblo tras pueblo para predicar la palabra de Dios. Su práctica y su buena fama es mucho mayor y está más extendida de lo que cree la gente” (ACOSTA, II, 1987ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1987 [1588]. [1588], p. 331). Essa concepção era uma ideia instrumental da missão e realizada para solucionar o problema dos jesuítas no Peru de ter que assumir doctrinas de indios para realizar tarefas de evangelização.

A definição de “missão”, por parte de Acosta, o leva a afirmar que na Igreja existiam duas formas diferentes e complementares de realizar a evangelização desde os tempos antigos. Uma seria a chamada missão “fixa”, que consistia em um trabalho de evangelização e educação das populações, de forma a estabelecer-se permanentemente no local e que poderia ser identificada no contexto peruano com os “párocos” de índios. A outra forma, conhecida posteriormente como missão “volante”, se caracterizaria por estar constituída por religiosos que não tinham uma residência fixa e que se deslocavam por territórios que não se encontravam próximos de suas residências, sendo que não permaneciam muito tempo nos locais de doutrinação. Devido à necessidade que existia de conhecer a forma de vida, cultura e idioma dos indígenas e às dificuldades do território em que habitavam, Acosta propõe que a missão deveria permanecer por um período mais longo (ACOSTA, II, 1987ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1987 [1588]. [1588], p. 331-333).

Como jesuíta, Acosta parte de fundamentos inacianos para definir o sentido da “missão”: Deus quer a salvação dos indígenas, e para isso os cristãos precisam anunciar a Jesus Cristo, pois, do fato de conhecê-lo depende a própria salvação de todos os homens e, portanto, dos próprios indígenas (TORRES-LONDOÑO, 2019TORRES-LONDOÑO, Fernando. Missão, situação e método em De Procuranda Indorum Salute de José de Acosta. In: RODRIGUES, Luiz Fernando Medeiros; MARTINS, Maria Cristina Bohn (org.). A experiência da missão jesuítica na primeira modernidade. São Leopoldo: Oikos, 2019., p. 63-64). A ideia de “missão” em Acosta pode ser caraterizada por três elementos. Primeiro, a missão é universal no sentido de que também os índios, como homens racionais e plenos, tinham sido chamados à salvação (LOPETEGUI, 1942LOPETEGUI, León. El padre José de Acosta s.j. y las misiones. Madrid: CSIC, 1942., p. 273-276). Assim, sua missiologia o levava a realizar uma reflexão sobre a “antropologia” do homem, convertendo-se sua classificação dos bárbaros “modernos” em três grupos, em um imperativo da nova missão (ACOSTA, I, 1984ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]. [1588], p. 59-71).

O segundo elemento refere-se ao conteúdo que os indígenas deveriam saber para poder obter a salvação. Acosta afirmava que os indígenas, mesmo rudes e ignorantes, deveriam conhecer os mistérios do dogma cristão (ACOSTA, II, 1987ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1987 [1588]. [1588], p. 219-221). Acosta percebia o perigo que existia em relaxar no assunto da fé explícita e tinha aprendido por meio do “escândalo” do dominicano Francisco de la Cruz (1529-1578).5 5 O dominicano espanhol Francisco de la Cruz chegou ao Peru em 1561. Formado em Teologia na Universidade de Valladolid, assumiu a cátedra de Teologia da Universidade de Lima. Posteriormente, exerceria o cargo de reitor da universidade e seria colaborador próximo do arcebispo de Lima, Jeronimo de Loayza. O dominicano passaria a desempenhar-se como confessor de Maria Pizarro, jovem que a finais de 1570 deu sinais de encontrar-se possuída pelo demônio. A partir da investigação aberta em 1571 pelo Tribunal da Inquisição de Lima sobre esse caso, Francisco de la Cruz passaria a ser investigado, devido a afirmações de cunho herético em que se denominava rei e papa das Índias, anunciando uma destruição da Europa e um governo nas Índias de espanhóis e indígenas. Resultado das duras condições da prisão da Inquisição, De la Cruz passaria a sofrer desequilíbrios psíquicos que o levariam a afirmar que Maria Pizarro era o meio através do qual o arcanjo Gabriel se expressava e ele era seu profeta. Foi condenado por heresia pertinaz, dogmatizador e predicador de uma nova seita. Seria condenado a morrer na fogueira no auto de fé de 1578. Esse religioso havia sido condenado à fogueira pelo Tribunal da Inquisição, em Lima, por afirmar que os índios não precisavam acreditar em Deus devido a sua imperfeita razão natural, fazendo com que o pecado da idolatria fosse visto pelo dominicano como um pecado simples ou venial (ACOSTA, II, 1987ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1987 [1588]. [1588], p. 213-215).

O terceiro elemento relaciona-se ao papel da idolatria dos indígenas, determinando, assim, o teor de suas crenças religiosas. A caracterização da idolatria como uma “peste” ou “doença” – imagem apropriada para destacar o perigo do contágio e “veneno” que matava a alma do homem – tinha como objetivo estabelecer uma política para enfrentar essas mesmas crenças indígenas. Acosta associava, assim, a noção de idolatria à necessidade de medidas de contenção, de isolamento e de extirpação como remédios apropriados ao paciente (ACOSTA, II, 1987ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1987 [1588]. [1588], p. 255-271). Essas associações se concretizavam institucionalmente mediante a abertura de colégios para filhos de curacas, de cárceres contra idólatras, de visitas de extirpação e de missões e doctrinas de indios (MONUMENTA PERUANA, II, 1958MONUMENTA XAVERIANA I. Edição de Alexandro Valignano. Madrid: Augustini Avrial, 1899., p. 59-60; COELLO DE LA ROSA, 2006COELLO DE LA ROSA, Alexandre. Espacios de exclusión, espacios de poder: el cercado de Lima colonial (1568-1606). Lima: IEP/ PUCP, 2006., p. 83-84).

Johannes Hoornbeeck

Johannes Hoornbeeck nasceu na cidade de Haarlem em 16176 6 As informações sobre a vida de Johannes Hoornbeeck foram retiradas da introdução da versão em inglês de seu De conversione indorum et gentilium, escrita por Joke Spaans. . Sua família tinha fugido para os territórios do norte da atual Holanda devido às guerras e persecuções religiosas que enfrentavam os espanhóis contra os holandeses protestantes. Tanto seu avô quanto seu pai eram comerciantes e membros de igrejas calvinistas. A cidade de Haarlem era um importante centro comercial localizado ao norte da atual Holanda, mas, devido ao conflito com a Espanha, tinha sido destruída parcialmente. A cidade sofreu um cerco de sete meses, em 1573, realizado pelos tercios espanhóis e por tropas holandesas provenientes de Amsterdã. Depois da rendição, os defensores da cidade foram massacrados, expropriaram os pertences dos cidadãos e a cidade se viu sujeita à obrigação de um pagamento milionário (WILSON, 1968WILSON, Charles. Los Países Bajos y la cultura europea en el siglo XVII. Madrid: Guadarrama, 1968., p. 11).

Com quinze anos, Johannes começaria seus estudos de Teologia na Universidade de Leiden. A cidade contava com uma instituição que tinha sido aberta como recompensa outorgada pelo estatuder7 7 Do holandês stadhouder, era um cargo político das províncias do norte da Holanda que, ao serem unificadas posteriormente pela “União de Utrecht” dentro das Províncias Unidas, ocuparia a posição suprema, sendo escolhido pela assembleia legislativa e reunindo a função de governo e de capitão geral do exército. Guillermo I de Orange, devido à resistência contra os espanhóis. Tanto a cidade de Leiden quanto sua universidade se beneficiaram das medidas de governo que procuravam estabelecer uma política de tolerância religiosa, trazendo pessoas de diversos dogmas reformados, assim como membros de comunidades de judeus oriundos de Espanha e Portugal.

No período em que Johannes Hoornbeeck ingressou na universidade, Leiden tinha se convertido num relevante centro comercial internacional com importantes manufaturas têxteis. As Províncias Unidas encontravam-se conectadas com o resto do mundo, por meio de estabelecimentos comerciais que possuíam em diversas partes da Ásia, África e Américas. Um reflexo importante desse novo panorama foi a abertura do Seminarium Indicum, instituição criada por Antonius Walaeus (1573-1639) que funcionou na cidade de Leiden entre 1622 e 1632. A finalidade do seminário era a formação de “ministros” de excelência acadêmica e elevada piedade para que pudessem desempenhar atividades missionárias em qualquer lugar do mundo. Walaeus, um importante teólogo da Igreja Reformada, partia da ideia de que religiões como o islamismo se encontravam numa posição de inferioridade em relação ao dogma cristão. Para o teólogo, o islamismo tinha distorcido o ensinamento de Cristo, negando-lhe sua natureza divina e reconhecendo-o somente como um profeta. Sua postura partia de uma comparação entre o cristianismo – principalmente em sua versão reformada – com as crenças dos pagãos e infiéis, sendo o cristianismo o único parâmetro verdadeiro e humano possível (VINK, 2015VINK, Marcus. Encounters on the Opposite Coast: the Dutch East India Company and the Nayaka State of Madurai in the Seventeenth Century. Leiden: Brill, 2015., p. 130-131).

Ao terminar seus estudos em Leiden, Hoornbeeck passaria a desempenhar o papel de ministro da Igreja Reformada Holandesa nessa cidade, em 16388 8 A denominação de “Igreja Reformada” é um uso que se deu a posteriori da instalação das comunidades protestantes no território holandês. Dentro das igrejas luteranas e calvinistas, o lema ecclesia reformata, quia semper reformanda (“a igreja reformada, porque ela deve sempre ser reformada”) ganhou importância dentro das comunidades que se desenvolveram nas Províncias Unidas. Ainda que a origem e a paternidade da denominação de Igreja Reformada Holandesa não sejam conhecidas, alguns estudiosos afirmam que a autoria foi do próprio Hoornbeeck e tinha como objetivo diferenciar a interpretação que as igrejas das Províncias Unidas estariam realizando do dogma luterano e, principalmente, do calvinismo, entendido como uma Zweite Reformation ou “Segunda Reforma” (LIEBURG, 2014, p. 43-46). . Cinco anos depois, obteria o doutorado em Teologia e passou a ser professor da recém-fundada Universidade de Utrecht, onde lecionou junto com Gisbertus Voetius (1589-1676), de quem tinha sido aluno. Voetius foi um importante teólogo calvinista que começou como professor de Teologia e orientalismo em Utrecht e foi empossado como primeiro reitor da Universidade (GOUDRIAAN, 2006GOUDRIAAN, Aza. Reformed Orthodoxy and Philosophy, 1625-1750: Gisbertus Voetius, Petrus Van Mastricht, and Anthonius Driessen. Leiden: Brill, 2006., p. 7-14). Seu interesse estava centrado na administração da Igreja e, quando tocava o tema das missões em terras de “pagãos”, o que procurava era a adequação desses pastores missionários e as igrejas que eles tinham erguido dentro de um quadro organizativo maior. Já em relação à metodologia a ser usada para convertê-los, Voetius endossava plenamente as reflexões de Hoornbeeck (GOMMANS; LOOTS, 2015GOMMANS, Jos; LOOTS, Ineke. Arguing with the heathens: the further reformation and the ethnohistory of Johannes Hoornbeeck (1617-1666). Itinerario, v. 39, n. 1, p. 45-68, 2015., p. 51-52; SPAANS, 2018SPAANS, Joke. Introduction. In: HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and Heathens: an Annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium (1669). Leiden: Brill, 2018 [1669]., p. 13-15).

Posteriormente, Hoornbeeck passou a trabalhar, em 1654, na Universidade de Leiden, lecionando Teologia. Ali, encontraria um ambiente mais “turbulento” que em Utrecht, devido às disputas em torno da influência das ideias cartesianas em questões relativas à teologia, filosofia e ciências naturais. Também é desse período, exercendo a cátedra de Teologia em Leiden, que se pode identificar com disputas em torno de uma ortodoxia do dogma reformado. Segundo os historiadores Gommans e Loots, Hoornbeeck seria relacionado à Nader Reformatio ou “Reforma Avançada”. Para os autores, essa Reforma Avançada era um movimento que tinha influências do movimento puritano inglês do século XVII, com ênfase no estilo de vida e governo. Dessa maneira, se se aproximava de tendências pietistas devido à ênfase no papel da família em questões da vida moral da comunidade, se diferenciava dessas correntes devido à procura por envolver as autoridades de governo no combate aos pecados e no controle das normas estabelecidas pela comunidade religiosa. Esse elemento levaria a que se associasse às reflexões de Hoornbeeck sobre a missão dos pagãos com os grupos partidários da Reforma Avançada (GOMMANS; LOOTS, 2015GOMMANS, Jos; LOOTS, Ineke. Arguing with the heathens: the further reformation and the ethnohistory of Johannes Hoornbeeck (1617-1666). Itinerario, v. 39, n. 1, p. 45-68, 2015., p. 47-48).

Essa identificação de Hoornbeeck com o grupo da Reforma Avançada foi questionada por outros historiadores. Spaans afirma que no período em que Hoornbeeck trabalhava como professor em Leiden, existia uma diversidade de grupos e correntes que influenciavam os reformados holandeses e que no caso dele possuía uma extensa relação com diversos acadêmicos e teólogos das Províncias Unidas e do exterior. Assim, afirmar que Hoornbeeck era próximo da Nader Reformatio, tida como uma corrente ortodoxa e ainda mais renovadora, seria reducionista, principalmente a partir da importância que conferia, na sua principal obra, a autores católicos (SPAANS, 2018SPAANS, Joke. Introduction. In: HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and Heathens: an Annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium (1669). Leiden: Brill, 2018 [1669]., p. 25-26). Hoornbeeck morreu em 1666, aos 48 anos, devido ao mal de gota e a cálculos renais.

O contexto holandês e a ideia de missão

O interesse da Igreja Reformada Holandesa no tema da missão sobre os povos “pagãos” encontra-se diretamente relacionado à expansão territorial e comercial das Províncias Unidas em torno de finais do século XVI. A criação dos mecanismos de comércio e de colonização dos holandeses, por meio da Vereenigde Oostindische Compagnie (VOC, 1598) e da West Indische Compagnie (WIC, 1621), permitiram que os holandeses se defrontassem com o desafio de como se aproximar dos nativos dos territórios onde realizavam seu comércio, primeiro por meio do estabelecimento de feitorias e depois, procurando colonizar esses territórios (BOXER, 1977BOXER, Charles Ralph. The Dutch seaborne empire. 1600-1800. 4. ed. London: Hutchinson, 1977 [1965]. [1965]; KLOOSTER, 2016KLOOSTER, Wim. The Dutch moment: war, trade, and settlement in the Seventeenth-Century Atlantic World. Ithaca: Cornell U. P., 2016.). A tentativa de conquista e colonização dos territórios que se encontravam nos litorais do Atlântico a partir de 1630, como seriam os casos de Brasil e de Angola, respondia a planos comerciais que tinham sido estabelecidos pelas duas companhias (KLOOSTER, 2016KLOOSTER, Wim. The Dutch moment: war, trade, and settlement in the Seventeenth-Century Atlantic World. Ithaca: Cornell U. P., 2016., p. 35).

A fase de expansão territorial das Províncias Unidas chegaria a seu limite na segunda metade do século XVII, abarcando territórios insulares de Java, Malaca e Molucas, as ilhas de Formosa e Ceilão, a administração do entreposto comercial de Dejima em Japão e territórios do Cabo da Boa Esperança. As companhias comerciais tinham as atribuições de monopolizar o comércio com as Índias, governar e administrar justiça, estabelecer alianças com os governos nativos – elemento importante para o estabelecimento das feitorias – e manter um exército e uma frota. Mas também se encontrava a de contratar e manter pastores da Igreja Reformada para servir de apoio para os próprios soldados holandeses e a fim de iniciar as atividades de doutrinação dos nativos (SPAANS, 2018SPAANS, Joke. Introduction. In: HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and Heathens: an Annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium (1669). Leiden: Brill, 2018 [1669]., p. 11-13).

Johannes Hoornbeeck afirma que os próprios holandeses se viram compelidos a realizar navegações até lugares ainda pouco conhecidos e que se encontravam além de territórios em posse dos reis de Espanha e de Portugal – com os quais estavam em guerra – e, ainda, que tinham sido outorgados de forma “arbitrária” pelo papa (HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 49-52)9 9 Klooster introduz, na sua obra, uma apreciação retirada de um panfleto de 1630 em que um holandês afirmava que “Os reis da Espanha não conhecem a maioria das Índias Orientais e Ocidentais, então que direito os espanhóis podem ter de proibir os holandeses de negociar, traficar e navegar por lá?”, comentando que seria frívolo apelar à dispensa papal porque o papa “tem tanto direito de decidir sobre o assunto quanto o burro que ele monta ou o menino mais novo em sua cozinha” (KLOOSTER, 2016, p. 37). .

A obra de Hoornbeeck realiza uma “prospecção” de autores que escreveram sobre a conquista e a colonização de territórios então recentemente conhecidos pelos europeus. Desfilam autores espanhóis, portugueses e franceses que escreveram sobre as navegações e a conquista de Índia, Brasil e Caribe, da África, China e Japão10 10 A lista de autores citados por Hoornbeeck é longa e expressa o interesse que despertava na Holanda a expansão da geografia do mundo e da descrição de novas nações. Menciona autores que descreviam as possessões espanholas, como Girolamo Bertoni, Bartolomé de las Casas, Antônio de la Calancha, Francisco López de Gómara, Garcilaso de la Vega e José de Acosta, assim como outros que relatavam os territórios em posse dos portugueses, como o Itinerário de Jan Huygen van Linschoten e Jean de Léry. Encontram-se, também, na sua obra, informações sobre a China e o Japão, retiradas de missionários católicos enviados em missão, tais como o agostiniano Juan González de Mendoza, os jesuítas Martino Martini, Matteo Ricci e Nicolas Trigault. . Existe um interesse do reformista em coletar e apresentar informações sobre o governo e costumes dessas populações e que pudessem servir a interesses comerciais, mas esse não era o objetivo de Hoornbeeck11 11 A importância das informações sobre territórios que poderiam ser explorados comercialmente por parte dos holandeses pode ser percebida ao se deparar com o caso de J. H. van Linschoten (1563-1611), que pertencia a uma família de comerciantes holandeses que negociavam na Espanha. Estabeleceu-se em 1576 em Sevilha, com a finalidade de aprender melhor sobre as atividades mercantis. Devido ao controle mais rigoroso da Inquisição, decidiu mudar-se para Lisboa onde, mesmo sendo calvinista, conseguiu o cargo de escrivão do novo arcebispo português de Goa, frei Vicente de Fonseca. Sua estadia em Goa, entre 1583 e 1589, a serviço do arcebispo, lhe permitiram recolher, de forma sigilosa, informações náuticas e comerciais sobre as atividades dos portugueses. Na sua volta a Amsterdã, em 1593, começou uma agitada atividade editora, publicando diversos livros sobre a exploração de territórios e a possibilidade de realizar atividades comerciais nesses lugares (TIELE, 2016 [1596], I, p. XXIII-XXIX). . Ele procura estabelecer um panorama amplo sobre o lugar que ocupavam esses territórios e populações dentro de uma compreensão cristã sobre o mundo, entendida de forma ampliada e dentro de um marco de uma “história universal” que se ia constituindo paulatinamente como uma área de conhecimentos (KOSELLECK, 2010KOSELLECK, Reinhart. historia/Historia. Madrid: Trotta, 2010 [1975]. [1975], p. 98)12 12 No livro de Hoornbeeck, existe uma dinâmica na sua própria estruturação que responde a seus elementos constitutivos. Por um lado, a presença de uma história sagrada e bíblica que procura ser imposta como o arcabouço e que teria a finalidade de organizar, dentro da autoridade das Escrituras, a existência de novas nações de “pagãos” que tinham que ser ressignificadas à luz dos novos conhecimentos. Por outro, a expansão do conhecimento do mundo levava a procurar uma reflexão da sua história em termos universais, a qual só era possível, nesse período, tomando como base o próprio cristianismo. . As informações que Hoornbeeck procurava disponibilizar a seus leitores estavam relacionadas às manifestações e crenças religiosas dessas nações “pagãs” – como descrições sobre as idolatrias dos americanos, os cultos xamânicos dos siberianos ou as perseguições que os “civilizados” japoneses realizavam contra cristãos – e como elas poderiam ser “situadas” ou organizadas em torno do cristianismo (SPAANS, 2018SPAANS, Joke. Introduction. In: HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and Heathens: an Annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium (1669). Leiden: Brill, 2018 [1669]., p. 9-10).

O contexto está marcado pela necessidade de repensar o mundo que se abria para a exploração da Europa, tanto ao Oriente quanto ao Ocidente Abertura, que não era só em expansão geográfica, mas também para uma “cosmografia”. A cosmografia não era simplesmente uma ciência física sobre o universo, mas partia da Bíblia e, ao fim, voltava a ela (SPAANS, 2018SPAANS, Joke. Introduction. In: HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and Heathens: an Annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium (1669). Leiden: Brill, 2018 [1669]., p. 4). Dessa maneira, Sebastian Münster (1488-1522), em sua Cosmographia Universalis (1544), começava a obra seguindo a trilha traçada nas Escrituras por diversas genealogias de personagens bíblicos e que logo se desenvolvia por meio do “conhecimento científico” coletado em diversas navegações e explorações mundo afora com a finalidade de estabelecer um complemento apropriado sobre o conhecimento do mundo físico para as Escrituras (McLEAN, 2007McLEAN, Matthew. The cosmographia of Sebastian Münster: describing the world in the reformation. New York: Routledge, 2007., p. 57-58; 66-68). Se um destaque pode se conferir a sua obra como produto do conhecimento científico, matemático e cartográfico da época, pode também constituir um importante expoente de uma geografia “moralizada”, ou seja, um esforço de um conhecimento cristão e providencial em que se procurou atualizar a ingente quantidade de conhecimentos adquiridos a partir das explorações do século dentro de uma compreensão cristã (McLEAN, 2007McLEAN, Matthew. The cosmographia of Sebastian Münster: describing the world in the reformation. New York: Routledge, 2007., p. 281-282).

As características “moralizadoras” e providencialistas da obra de Münster poderiam ser encontradas em linhas gerais em importantes trabalhos no contexto holandês. Um exemplo relevante constitui Gerard Johannes Vossius (1577-1649), com seu livro Da Theologia Gentili (1641). Sua monumental enciclopédia sobre as crenças e rituais “pagãos” tinha como objetivo apresentar as diversas manifestações de idolatria recolhidas e catalogadas a partir da ampliação do conhecimento geográfico sobre o mundo e procurar e identificar os elementos nessas crenças idolátricas que eram caracterizados como resultado de um conhecimento natural sobre Deus. Partindo da ideia de que os homens tinham tido primeiro um conhecimento da existência de Deus e que, devido ao Demônio, ao pecado e à ignorância, passaram a adorar diversos deuses (politeísmo), Vossius entrelaçava fortemente a pluralidade de crenças e deuses pagãos com o paulatino distanciamento temporal e espacial em relação ao mundo cristão. Dessa maneira, o conhecimento sobre a idolatria “pagã” adquiria também um caráter geográfico “moral”, na medida em que se correlacionava o maior distanciamento espacial e temporal com o distanciamento do mundo cristão (POPKIN, 1990POPKIN, Richard. The crisis of polytheism and the answers of Vossius, Cudworth, and Newton. In: Essays on the context, nature, and influence of Isaac Newton’s Theology. Archives Internationales D’Histoire Des Idées/International Archives of the History of Ideas, v. 129, p. 9-25, 1990., p. 10-11; BEN-TOV, 2013BEN-TOV, Asaph. Pagan Gods in Late Seventeenth and Eighteenth-Century German Universities: a Sketch. In: BEN-TOV, Asaph et al. (org.). Knowledge and religion in early modern Europe: studies in honor of Michael Heyd. Leiden: Brill, 2013., p. 157-160).

Esse interesse pela descrição do mundo e de seus habitantes seria alimentado e potencializado ao mesmo tempo por um boom editorial nas Províncias Unidas. Em cidades como Amsterdã e Leiden, desenvolveu-se uma importante indústria editorial, com inúmeras editoras que produziam livros tanto para o mercado local quanto para a exportação (WILSON, 1968WILSON, Charles. Los Países Bajos y la cultura europea en el siglo XVII. Madrid: Guadarrama, 1968.). Os livros do gênero, ligados à exploração e às viagens, assim como os tópicos relativos às nações “pagãs”, tinham um público cativo devido à demanda de holandeses ávidos de informações sobre o mundo. Um exemplo desse desenvolvimento do livro, desde um aspecto tanto industrial quanto cultural, pode ser evidenciado por meio de Willem J. Blaeu (1571-1638) que, em 1599, criou uma editora especializada em mapas e cartas de navegação. Com o tempo, a editora viria a especializar-se na edição de mapas e atlas, mas também não fecharia espaço para a publicação de livros, como a Da Theologia Gentili de Gerard Johannes Vossius. A importância do trabalho da editora, que contava com o conhecimento de Willem, e depois de seu filho Joan (1596-1673), seria reconhecida oficialmente com a nomeação dos dois como cartógrafos da Companhia Oriental das Índias. Entre 1662 – quatro anos antes da morte de Hoornbeeck – e 1665, seriam publicados em latim, pela editora Blaeu, os onze volumes do Atlas maior, sive Cosmographia Blaviana, qua Solum, Salum, accuratissima describuntvr, a mais importante obra até então sobre cartografia e geografia do mundo (DE LA FONTAINE, 1973DE LA FONTAINE, Herman. Willem Jansz Blaeu as a publisher of books. Quaerendo 3, p. 141-146, 1973.; 1981DE LA FONTAINE, Herman. Dr. Joan Blaeu and his sons. Quaerendo, v. 11, n. 1, p. 5-23, 1981.; CLAIR, 2007CLAIR, Colin. Historia de la imprenta en Europa. Madrid: Ollero & Ramos, 2007 [1976]. [1976], p. 362).

O contexto cultural das Províncias Unidas, em relação ao interesse pela exploração e navegação, assim como por um conhecimento das crenças religiosas das nações extraeuropeias, pode ser destacado a partir da obra de Vossius e do empreendimento editorial Blaeu. Esse mesmo contexto é aquele que se relaciona à obra de Hoornbeeck. O interesse por conhecimentos cartográficos e geográficos e pela história das religiões dessas nações se associava intrinsecamente à obra de Hoornbeeck para suas reflexões que apontavam a elaboração de uma noção de missão apropriada dentro do dogma proposto pela Igreja Reformada da Holanda.

Definido o contexto que explica a relação entre a expansão da Holanda e a necessidade de compreender esse novo mundo, faz-se necessário entender o propósito do livro de Hoornbeeck. Se, na primeira parte da obra, o autor analisava as crenças religiosas das nações “pagãs” contemporâneas, na segunda, focaria na finalidade da missão como forma de converter os “pagãos”. Para isso, realiza uma avaliação das experiências anteriores de missões bem-sucedidas e por que motivo se detém na obra de José de Acosta.

A missão como espaço de experiências globais

O objetivo principal do livro de Hoornbeeck era esclarecer a obrigação que a Igreja Reformada da Holanda tinha de pregar o Evangelho para aqueles que eram considerados “pagãos”. A finalidade era esforçar-se pela conversão dos indígenas e “pagãos” que começaram a ser contatados pelos holandeses a partir da expansão comercial e da conquista de novos territórios fora da Europa. Seu livro tinha a intenção de se converter em ferramenta daqueles destinados a pregar o Evangelho, sendo que deveriam ser preparados especialmente para discutir com os “pagãos”. Ainda que considerasse principalmente os católicos como concorrentes no tema da conversão, afirmava sabiamente que era mais proveitoso converter um “pagão” em cristão, do que tentar converter alguém já cristão para outra denominação diferente:13 13 Todas as traduções do inglês para o português neste artigo foram feitas pelo autor. “É mais vantajoso e mais útil ter convertido um pagão em cristão do que ter convertido um cristão em membro de uma denominação cristã diferente, independentemente de ser melhor” (HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 42).

Na apresentação do livro, Hoornbeeck enuncia três finalidades. A primeira é trazer informações sobre a religião e as crenças dos “pagãos”, tanto dos antigos quanto dos modernos. As observações registradas em sua obra recolhem informações sobre nações “pagãs” de territórios que recém estavam sendo conhecidos pelos europeus, mas dando destaque àqueles que tinham um contato mais frequente com os holandeses. Dessa maneira, foram registradas informações sobre a “religião” na Ásia de hindus, de malaios, de chineses e japoneses, de alguns povos africanos, de siberianos, de lapões e de esquimós, assim como de indígenas americanos. No caso dos indígenas peruanos, Hoornbeeck utiliza como principais fontes López de Gómara, Girolamo Benzoni, José de Acosta, Garcilaso de la Vega e Antônio de Calancha. A segunda é esclarecer as disputas que se deram entre os cristãos e os “pagãos” em temas como a ideia de mundo criado por um único Deus, a negação da existência de diversos deuses e sobre o erro da adoração de ídolos.

Ao analisar as disputas que foram realizadas pelos primeiros cristãos e os padres da Igreja contra os “pagãos”, Hoornbeeck destaca os elementos que permitiram que os cristãos se impusessem sobre eles no período do Império de Roma, tais como as disputas sobre a falsidade de seus deuses e o erro da sua sabedoria. Por último, e principalmente, o esforço para levar adiante a conversão e a salvação desses “pagãos”. Nesta última finalidade, pode-se encontrar uma aproximação mais completa da obra de José de Acosta. A escolha de suas palavras em latim são uma referência clara: “Consilium, pro curanda ipsorum & promovenda, qui disputationis finis semper esse debet, conversione ac salute” (HOORNBEECK, 1669HOORNBEECK, Jonannes. Conversione indorum et gentilium. Leiden: Elsevier, 1669., p. 4)14 14 “Um conselho para o seu cuidado e promoção, que deve ser sempre o objetivo do debate: a conversão e salvação”. .

Essa terceira finalidade, enunciada por Hoornbeeck a partir do paralelo que estabelece com Acosta, entrelaçava firmemente o processo de expansão territorial com a própria evangelização. Acosta explicava que a existência de grandes quantidades de ouro e prata que se encontravam escondidas nas recônditas e escabrosas terras dos indígenas se devia ao plano divino com a finalidade de atrair os espanhóis a esses territórios, que, em seu desejo de enriquecer, também realizariam o esforço de converter os indígenas (ACOSTA, I, 1984ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]. [1588], p. 531-533). Hoornbeeck afirmava que a própria providência tinha levado, também, os holandeses para terras longínquas e extensas, não só para enriquecimento e glória da nação holandesa, mas, principalmente, para compartilhar a maior riqueza da nação, que era a fé reformada:

Pois quem acreditaria que pela singular providência e dom de Deus estas coisas aconteceram ao nosso povo apenas para o fazer explorar e ocupar estas regiões e para tirar as riquezas da terra e obter uma quantidade maior e supérflua de coisas materiais, para a glória e o vão triunfo do nome holandês. Em vez de isso, elas aconteceram para levar o conhecimento e a adoração de Deus e Criador de Tudo às terras que até agora eram estranhas à comunidade da humanidade e da religião e ao povo que não conhece nada do mundo e de assuntos terrenos

(HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 39-40).

Para Hoornbeeck, é evidente não ser possível discutir com os “pagãos” e indígenas temas sobre religião a partir de seus próprios fundamentos e dos escritos que eles produziram. Também, ao realizar uma revisão dos escritos dos Padres da Igreja e daqueles que lhes deram continuidade, depois da queda do Império de Roma, como, por exemplo, Tomás de Aquino, Hoornbeeck encontra um conjunto de argumentos que poderiam ser utilizados para tentar converter os “pagãos”. Assim, introduz a experiência contemporânea de conversão das nações “pagãs” e indígenas, em especial, a experiência do jesuíta José de Acosta com os indígenas peruanos. Desse conjunto de fontes bibliográficas, Hoornbeeck estabelece que o primeiro tema a desenvolver é sobre Deus, que ele é único e sobre quem Ele é.

A ideia de seu escrito era a de transmitir a seus leitores – principalmente para os estudantes de teologia e futuros pastores – os conteúdos necessários para levar adiante a evangelização dos “pagãos”. Explicar sobre o conceito de Deus, o porquê Ele era único e seus atributos – como ser perfeito, eterno e onipotente –, partia do fundamento de que todos os povos do mundo tinham uma ideia primeira sobre Deus (HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 220). Ao destacar que Deus era único, Hoornbeeck procurava associar a enunciação dessa verdade com o seu caráter de ser um ser perfeito. A própria ideia que os “pagãos” tinham da existência de diversos deuses se fundamentava no absurdo de que eles eram perfeitos num atributo determinado, mas não em outros e por isso a ideia da necessidade de que existissem vários deuses para cobrir o espectro da realidade. Dessa imperfeição, Hoornbeeck aproveitou para ressaltar que Deus é único por Ele ser um Ser perfeito. Assim, procurou transmitir, para os futuros missionários, os elementos indispensáveis da sua prédica acomodada à maneira como “pagãos” e indígenas entendiam a religião.

A seguir mostramos que o mesmo Deus é um, e nada mais. Isto é provado em primeiro lugar pela natureza de Deus que por ser Ele muito perfeito, pode ser apenas um. Isto é provado primeiro pela natureza de Deus que devido a ser a mais perfeita, Ele não pode ser mais de que um. Suponha que existem vários deuses, eles terão todas ou algumas formas de perfeição, ou uma única ou diferentes formas de perfeição. Se cada um deles tem alguma perfeição, então nenhum deles é Deus porque ele não é perfeito em todos os aspectos. Ele tem tudo e é a perfeição mais absoluta. Nem todos os deuses podem ter a mesma perfeição, a menos que este seja a própria perfeição. A sua natureza é a mesma perfeição e, portanto, não haverá vários deuses, mas só um que tenha a mesma natureza de toda a perfeição. Se eles tiverem diversas formas de perfeição, enquanto um tem uma perfeição que falta ao outro, nenhum deles será Deus. Porque Deus significa um ser em todos os aspectos e absolutamente perfeito (HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 220-221).

Se, no primeiro capítulo expositivo sobre os elementos indispensáveis para a formação dos pastores reformados Hoornbeeck tinha iniciado com a explicação de como deveria ser dado a entender Deus para os “pagãos”, nos capítulos seguintes passaria a expor temáticas relacionadas a como esses tinham uma noção da existência de um único Deus que era criador e governante de tudo, sem ter tido acesso à revelação pela graça divina. Um exemplo trazido é a referência sobre o culto ao deus Pachacámac por indígenas peruanos, caracterizado como um deus invisível e que os incas procuraram impor ao povo o culto ao Sol e à Lua,

através das montanhas peruanas, havia uns índios chamados de Coca que não adoravam o sol, a lua ou qualquer coisa mais baixa que isso, mas adoravam a alguém que eles diziam ser superior a todas essas outras coisas e queixavam-se de terem sido forçados pelo poder e pelas ordens dos Incas a adorar o sol e a lua

(HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 232).

A esses elementos, se somaria mais um, que Hoornbeeck consideraria importante para construir os conteúdos e argumentos que seriam apropriados para transmitir entre os indígenas: a existência da alma e a crença de vida além da morte. O teólogo reformado apontaria que a ideia da existência da alma entre os “pagãos” era uma crença generalizada, sendo que alguns acreditavam que ela era imortal; mas também que não existia um consenso sobre o destino da alma depois da morte e se o corpo e a alma ressuscitariam ou não.

Posteriormente, Hoornbeeck desenvolve temas que estão relacionados com os costumes e as formas de vida, com a finalidade de introduzir os elementos de uma vida cristã. O teólogo recupera de José de Acosta uma ideia atribuída ao “especialista” em temas indígenas, o licenciado Polo de Ondegardo (1500-1575), o qual afirmava que “primero hay que cuidar que los bárbaros aprendan a ser hombres, y después, a ser cristianos” (ACOSTA, I, 1984ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]. [1588], p. 539). A valoração positiva que o holandês confere a Acosta se deve a de ter uma experiência direta na evangelização dos indígenas “pagãos” e a de ter produzido uma forte reflexão sobre a missão. Oferecendo informações sobre a história, o governo e a religião de incas e astecas, retiradas de seu livro Historia natural y moral de las Indias, Hoornbeeck afirmava que o jesuíta também “merece ser lido e recomendado”, principalmente por seu livro De procuranda indorum salute. Para ele, Acosta apresentava um “manual” de como se deveria proceder para converter os indígenas. Assim, o De procuranda de Acosta se convertia num manual de missiologia que não deveria ser lido apenas por católicos, mas, também, os reformistas holandeses poderiam obter informações úteis para suas missões. Para Hoornbeeck, o jesuíta estabelecia uma metodologia, enunciava as dificuldades e obstáculos que os missionários encontrariam na conversão e apontava os cuidados que se devia ter ao conviver e trabalhar com eles:

Ele se dedica a esse assunto e continua diligentemente, descartando velhas opiniões que não são úteis nas atuais circunstâncias e oferecendo também coisas que podem ajudar no trato com os índios, especialmente os peruanos, assim como maneiras para convertê-los à fé de Cristo. Ele explica que obstáculos dificultam o trabalho, a que tipo de escândalos se deve estar atento e qual é a melhor maneira de viver e trabalhar com eles. Ele faz isso de forma que as pessoas envolvidas na mesma discussão possam usar o seu trabalho e suas observações e beneficiar-se de elas

(HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 185).

O conhecimento que Acosta possuía sobre os indígenas peruanos e seu esforço em estabelecer um quadro comparativo com outras nações “pagãs”, lhe permitiam afirmar que “siempre me han parecido estos indios una especie de punto medio entre los demás: a partir de ellos es posible llegar más fácilmente a un juicio de los extremos, por así decir” (ACOSTA, I, 1984 [1588]ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]., p. 59-61). Ao mesmo tempo, destacava que, para que os indígenas primeiro “aprendessem a ser homens”, era necessário que se impusesse a autoridade de um “príncipe cristão” sobre a sua natureza inclinada ao vício (ACOSTA, I, 1984 [1588]ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]., p. 571). Hoornbeeck destacava as páginas de Acosta sobre o vício da embriaguez nos indígenas. Sabedor do estrago que causava a ingestão de diversas bebidas alcoólicas entre os indígenas, o jesuíta recomendava que não deveria ser proibida a produção de uva e milho – com os quais se faziam essas bebidas no Peru –, mas se deveria aumentar o controle público nos eventos e nas festividades em que se consumiam tais produtos. Sua sugestão apresentava uma crítica e um apelo a terminar com os abusos que os próprios espanhóis, incluindo o clero, cometiam contra os indígenas em seu afã de enriquecer (HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 282; ACOSTA I, 1984 [1588]ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]., p. 567-569).

Para Acosta, a embriaguez dos indígenas era sumamente prejudicial, devido ao fato de que sua inteligência ou ingenio era de natureza servil e seus costumes eram diferentes (ACOSTA, I, 1984 [1588], p. 571). Essa natureza incidia na forma como deveria ser combatida a embriaguez: por meio do uso do poder público. A embriaguez facilitava que se cometessem outros delitos e faltas por parte dos indígenas: incesto, sodomia, práticas libidinosas, atos violentos e outros, principalmente, a prática da idolatria, que era a raiz de todos os males (ACOSTA, I, 1984 [1588]ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]., p. 573). Assim, Acosta estabelece, a partir de sua vivência com os indígenas, uma relação entre a idolatria (como raiz de todos os males) com costumes e práticas indígenas. Com essa relação, Hoornbeeck se guiará nas posteriores descrições sobre os costumes dos japoneses, dos chineses e de outras nações “pagãs”, com a finalidade de estabelecer a relação de hábitos diferentes e escandalosos aos olhos dos cristãos (HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 282-284).

Se uma atitude deve se destacar na obra de Hoornbeeck é a de querer realizar um juízo crítico sobre a ação da missão com os indígenas, partindo primeiro de uma leitura das experiências anteriores, como seria a evangelização dos indígenas levada adiante pelos espanhóis e, em especial, pelos jesuítas, em que procurava destacar os elementos que deveriam ser assimilados ou seguidos pelos holandeses reformados (GOMMANS; LOOTS, 2015GOMMANS, Jos; LOOTS, Ineke. Arguing with the heathens: the further reformation and the ethnohistory of Johannes Hoornbeeck (1617-1666). Itinerario, v. 39, n. 1, p. 45-68, 2015., p. 52). Assim, reconhece a importância da Congregação de Propaganda Fide criada pela Igreja Católica em 162215 15 A Propaganda Fide foi criada pelo papa Gregorio XV em 1622, em Roma. O objetivo da Congregação foi organizar e coordenar a atividade missionaria da Igreja por todo o mundo. A importância que a Congregação adquiriu como instituição supervisora da ação missionaria da Igreja pode ser destacada pela participação constante do papa, responsável pelo estabelecimento das orientações básicas da política missionária a ser implantada. e aconselha que a Igreja Reformada deveria estabelecer uma instituição parecida

Mas agora eu peço a cada um de nosso povo que tenha sabedoria e juízo suficientes, que seja notável por sua doutrina assim como por sua piedade e que seja tocado pelo zelo de promover Cristo e seu reino, que pondere diligentemente se não é útil que uma congregação semelhante à “Congregação para Propaganda Fide” seja fundada entre os protestantes reformados, ainda mais porque existe e é praticada por eles uma doutrina e um culto a Deus mais puros

(HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 339).

Destaca a ação dos seminários católicos que foram abertos para a conversão de infiéis, pagãos, heréticos e cismáticos, com o intuito de formar religiosos que se dedicassem integralmente à conversão dessas nações e povos que estavam afastados da fé, recomendando aos reformados que estabeleçam, também, instituições para cumprir a mesma finalidade:

Além disso, contribuirá muito para este objetivo se houver um seminário daqueles que estão sendo devidamente preparados para todo tipo de estudos e exercícios para levar adequadamente adiante uma missão entre as nações. Um seminário como esse existe entre os católicos romanos e costumava existir conosco em outros tempos

(HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 341).

Hoornbeeck compara os seminários católicos com o Seminarium Indicum que foi estabelecido por Antonius Walaeus na cidade de Leiden em 1622. Esse seminário tinha o objetivo de formar pastores para que desempenhassem ações de missão nas Índias Orientais, motivo pelo qual os candidatos eram instruídos, além do ensino do latim e do dogma reformado, na aprendizagem das línguas faladas na Índia e nas ilhas da Malásia, assim como sobre o islamismo e o hinduísmo (VINK, 2015VINK, Marcus. Encounters on the Opposite Coast: the Dutch East India Company and the Nayaka State of Madurai in the Seventeenth Century. Leiden: Brill, 2015., p. 129-133).

A apreciação de Hoornbeeck sobre o cuidado que se deveria dar à formação dos missionários e da forma como deveriam realizar o seu trabalho de evangelização repousava sobre a avaliação da experiência de conversão levada adiante pelos espanhóis. A partir das informações e denúncias contidas na Brevísima relación de la destrucción de las Indias (1552), do frei dominicano Bartolomé de las Casas (1484-1566)16 16 Bartolomé de las Casas escreveu a Brevísima relación por volta de 1542. Seu livro se encontra dentro de um contexto de intensa luta do dominicano em torno dos esforços pela defesa dos direitos dos indígenas e que seria coroado com as Leyes Nuevas de 1542 de Filipe II. Publicado o manuscrito em Sevilha em 1552, sem autorização da Coroa, procurou dar a conhecer ao rei e a seus leitores, os males que sofriam as Índias e as atrocidades cometidas pelos espanhóis na sua conquista. As “histórias” cruéis dos espanhóis trazidas por Las Casas servem não só para produzir uma rejeição ética da conquista armada, mas também para denunciar que os espanhóis, ao exercer a violência, abandonaram o mandado recebido dos papas para evangelizar cristãmente os indígenas. , Hoornbeeck afirma que as pessoas escolhidas para tratar da conversão dos “pagãos” necessitavam ser virtuosas, sem vícios e escândalos, piedosas e de bom comportamento; os melhores e não aqueles que só atravessavam o oceano em procura de bem-estar e riquezas.

Em particular, devemos ter o cuidado de quem quer que seja enviado para esse fim esteja livre da ganância. Por um lado, isso tem grande força e energia para desviar alguém de seu plano, não lhe permitindo fazer mais nada. Com certeza, não é um trabalho tão santo e difícil que diz para voltar a mente para coisas mais elevadas e para longe da ganância, bem como de outras faltas. E isso evita que um homem seja quem ele é, mas o torna alguém completamente diferente, alguém completamente indigno de seu ser. Eu silencio os crimes indescritíveis, as crueldades e todo tipo de maldade e esse desejo único de ter a “maldita fome de ouro” que não apenas estimula, mas também obriga as pessoas

(HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 359).

Las Casas e outros escritores seriam os responsáveis por trazer à superfície as histórias trágicas dos indígenas submetidos à conquista espanhola – matéria-prima da posterior Leyenda negra17 17 A leyenda negra é um conjunto de imagens construído em torno da nação espanhola desde o século XVI, que teve como finalidade associar à Espanha uma série de afirmações que a caracterizavam de forma grotesca, cruel e sanguinária. Essas afirmações se viram impulsionadas por uma política propagandística e editorial antiespanhola organizada e supervisionada tanto por governos contrários à Monarquia Hispânica, como seria o caso das Províncias Unidas, quanto por membros das igrejas protestantes, como seria a Igreja Reformada. Dentro dessas imagens construídas em torno da Espanha, a obra de Bartolomé de las Casas constitui um elemento importante, porque as informações sobre os conquistadores nas Índias serviram para engrossar as denúncias de comportamento selvagem, sanguinário e feroz contra os espanhóis. – e que, para Hoornbeeck, teve como principal consequência negativa a de manchar de sangue e violência a ação de levar para os não crentes o Evangelho.

Essa mesma atitude, de crítica e valorização de elementos de experiências anteriores, também se repetirá em relação ao trabalho de José de Acosta. O jesuíta não só denunciava os escândalos cometidos pelos espanhóis como procurava avaliar os erros e constituir uma nova maneira de doutrinar os indígenas. Acosta tinha entendido que a primeira experiência espanhola tinha associado a difusão do Evangelho com a violência e levado a crer que “En consecuencia, juzgan de nuestra fe por nuestra conducta. Porque hay mayor tendencia a creer por lo que se ve que por lo que se oye. Rara vez llega a persuadir una palabra que está en contradicción con los hechos” (ACOSTA, I, 1984 [1588]ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]., p. 179).

Para Hoornbeeck, a seleção dos missionários que deveriam converter “pagãos” e infiéis deveria estar pautada, principalmente, pela capacidade de que os escolhidos pudessem levar uma vida em consonância com aquilo que pregavam como exemplo de vida cristã. Já a separação das atitudes da mensagem levava os indígenas a desacreditarem nas palavras dos espanhóis. Acosta afirmava que a responsabilidade maior de que os indígenas não avançassem na conversão não se encontrava neles, mas nos próprios espanhóis que, por meio do exemplo, ensinavam aos índios a roubar, a mentir, a ter concubinas e outros vícios (ACOSTA, I, 1984ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]. [1588], p. 371). Acosta demostrava sua confiança em que a evangelização dos indígenas peruanos avançaria com o tempo, mesmo com a oposição e a violência de espanhóis que se comportavam como mercenários vulgares. Os indígenas que tinham se convertido demonstravam que a própria conquista obtida na evangelização já era um exemplo positivo dos possíveis resultados a serem obtidos se se procedesse da forma correta: “lo conseguido hasta el momento con ellos es una prueba cierta de que en modo alguno debemos desesperar de la salvación de tantos pueblos” (ACOSTA, I, 1984 [1588], p 231). Hoornbeeck sabia que o erro dos espanhóis, na conversão dos indígenas, não se encontrava restrito somente a eles, mas que, também, poderia ser cometido por outros, como os reformados holandeses: “As pessoas não devem pensar que essas declarações foram feitas apenas por católicos romanos ou sobre católicos romanos e não podem e não se devem aplicar por igual ao nosso próprio povo” (HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 356).

Uma preocupação que Acosta resgata é a de que os indígenas não deveriam se converter em inimigos de Deus e dos cristãos. Hoornbeeck entende que o erro dos espanhóis foi ter iniciado inúmeras guerras contra os nativos com a finalidade de conquistá-los e convertê-los e que, para isso, os submeteram por meio da violência. Essa situação levou Hoornbeeck a discutir o problema dos justos títulos para levar ou não adiante a guerra contra indígenas, tendo como um de seus principais guias o próprio Acosta. O holandês reformado conhecia as opiniões sobre a justa causa da guerra de Francisco de Vitória (1483-1546) e as derivações posteriores que se fizeram a partir de suas Relecciones18 18 O dominicano e teólogo Francisco de Vitoria é matéria de destaque de Hoornbeeck, devido a seu claro posicionamento em relação à jurisdição do papa e da Coroa espanhola em relação às Índias. Para Vitoria, o papa não possuía jurisdição sobre o governo político dos indígenas e não tinha o direito de conceder a outros, nesse caso, espanhóis e portugueses, o governo secular sobre os indígenas. Da mesma maneira, reconhece que os indígenas se governavam de maneira apropriada e que tinham suas propriedades e negócios. Portanto, independentemente de suas crenças e pecados, reconhece que eles eram senhores legítimos de suas terras e governos. , mas existe um elemento principal ao qual ele confere prioridade (HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 363-364).

As opiniões de Acosta não eram só produto da experiência acadêmica e reflexão filosófica, mas partiam de um conhecimento direto da situação dos espanhóis nas Índias e de uma convivência com os indígenas em torno do esforço de conversão. Acosta afirmava que os espanhóis não tinham o direito de realizar uma guerra contra eles se esses simplesmente não aceitavam se converter em cristãos, “Pues por el hecho de su infidelidad y por ignorar a Cristo o porque lo rechazan después de habérselo anunciado, ningún derecho ni ninguna causa justa tenemos nosotros para declararles la guerra” (ACOSTA, I, 1984ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]. [1588], p. 259).

Hoornbeeck destacava que, para o jesuíta, não existiam causas justas para a guerra contra indígenas, seja para penalizá-los por graves pecados e faltas que cometiam – já que esse direito não correspondia aos espanhóis, mas, sim, às autoridades indígenas legítimas – ou por motivo da sua idolatria. Qualquer que possa ter sido a justificativa para Acosta, o dano que a guerra ocasionava aos indígenas e à conversão era muito maior. Esse dano não era simplesmente o grande número de mortos e os contingentes enormes de escravizados ou suas propriedades destruídas, mas, principalmente, o ódio crescente que os indígenas passavam a sentir de Deus e dos cristãos

Esta é a extensão do dano que os espanhóis causaram com sua enorme crueldade e ganância. Eles causaram esse dano não só a si próprios, mas também criaram uma ligação entre o comportamento detestável e a religião mais sagrada e o seu Pai Fundador, Cristo. Todos os outros cristãos fazem o mesmo, quando insistem no mesmo comportamento e levam uma vida indigna de sua confissão e a expõem ao ódio e abuso de todas as pessoas. Os pagãos, por mais bárbaros e incivilizados que sejam, julgam as pessoas e suas crenças por seu comportamento

(HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 363).

Aquilo que Hoornbeeck reconhecia em Acosta como uma postura reflexiva e justa em torno do problema da justificação da guerra contra os indígenas partia da aceitação de que só era possível realizar uma guerra defensiva – e não ofensiva – por parte dos espanhóis ou qualquer outra nação que procurasse se estabelecer junto aos “pagãos” e indígenas. Portanto, partindo das ideias de Acosta, Hoornbeeck postula que os indígenas – e todo tipo de “pagão” – deviam ser ensinados naquilo que é justo e salutar, assim como na vida civilizada e na religião. Lembrando, assim, a máxima usada por Acosta sobre os indígenas primeiramente serem ensinados a ser homens para, depois, ensinados a ser cristãos (ACOSTA, I, 1984ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]. [1588], p. 539).

Sendo favorável a realizar uma guerra justa, somente quando ela tivesse um caráter eminentemente defensivo, Hoornbeeck detalhava que, na defesa dos missionários que iam pregar entre os indígenas e que levavam uma vida honrada e virtuosa, sem fazer mal a ninguém, essa guerra não deveria constituir o primeiro passo da evangelização, mas levar a doutrina para aqueles constituiria o primeiro passo. A guerra só seria uma opção de extrema necessidade: “Certamente para ser justa, toda guerra tem que resultar de uma injustiça cometida pela outra parte e tem que ser necessária para sua própria defesa, de modo que a guerra seja defensiva e não ofensiva” (HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 365).

Dessa maneira, Hoornbeeck reconhecia que a violência praticada pelos espanhóis tinha gerado um grande ódio entre os indígenas, o que dificultava a ação missionária dos religiosos católicos, e que o esforço analítico de Acosta estava encaminhado a destravar as dificuldades que existiam também por parte dos indígenas. Para isso, o teólogo identificava que os indígenas tinham “preconceitos” que eram contrários ao cristianismo e que expressavam a dificuldade de abandonar suas crenças tradicionais e aceitar o cristianismo como única religião.

Esses preconceitos são dirigidos contra a doutrina da verdade e os ensinamentos de Cristo. Uma vez que os preconceitos são de natureza variada, eles devem ser eliminados um a um. Em particular, devem ser refutados, seja por terem a sua origem na condição atual dos pagãos e que por isso eles preferem ficar como pagãos, seja pela dificuldade e inconveniência de mudar de religião para a religião cristã

(HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 367).

A reverência que os “pagãos” tinham para com seus ancestrais, assim como seus modos de vida e costumes herdados, tinha levado ao fato de que a superstição e a idolatria se alojassem profundamente em seu ser. Hoornbeeck procurou reforçar, em seu ensinamento aos futuros pastores, a atenção que deviam prestar à renúncia dos pagãos para converter-se e ao esforço de conscientizá-los da importância de assumir um novo pacto com o verdadeiro Deus (HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 370). Essa ação de assumir o novo deveria ser conduzida por missionários exemplares que praticassem o que pregavam e tomava em consideração a lição de Acosta: “Por lo que toca a los nuestros, Suelen retardar muchísimo la conversión de los indios; sus costumbres de pésimo ejemplo, como la avaricia, la violencia y la tiranía, porque aunque ellos confiesen que conocen a Cristo, sin embargo lo niegan con sus hechos radicalmente” (ACOSTA, I, 1984ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1984 [1588]. [1588], p. 371).

Acosta e os jesuítas convertem-se, assim, no modelo a ser seguido pelo teólogo reformado Hoornbeeck. Distingue que entre os infiéis existiam pessoas que possuíam uma inteligência mais favorecida e outros que eram mais rudes. Essa diferença era necessária porque era importante adequar a mensagem cristã a seus ouvintes:

Devem instruí-los nos primeiros e revelados capítulos do cristianismo e sabiamente evitar ou ocultar os pontos de discussão tanto quanto seja possível. Também deve-se prestar atenção aos pontos de discussão relevantes para os pagãos em vez de aqueles que estão em discussão entre os cristãos, colocando a ênfase em questões simples e não tanto em questões mais sutis

(HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 373).

Hoornbeeck trazia à tona uma discussão levantada pelo jesuíta Francisco Xavier (1506-1552)19 19 Um dos fundadores da Companhia de Jesus junto a Ignácio de Loyola, Francisco Xavier foi o primeiro jesuíta que partiu em misión. Em abril de 1541, partiu para a Índia, acompanhando a expedição portuguesa que levava ao governador, Martim Afonso de Sousa, chegando ao território de Goa, capital dos territórios portugueses, em maio de 1542. É dos primeiros anos da sua estadia em torno de Goa e da Costa da Pescaria e em convivência próxima com os indígenas paravás que começa a desenvolver uma reflexão sobre a missão entre os “pagãos”. Na epístola de 1544, Xavier detalha a necessidade de traduzir para as línguas nativas todo o relacionado à doutrina cristã e que pudesse ser ensinado de forma simples. Também aparecem suas impressões sobre os brâmanes e como deveria adequar-se o conteúdo da doutrina para aproximá-los ao cristianismo. sobre os conteúdos que deveriam ser oferecidos aos “pagãos”, tendo em vista sua natureza e ingenio. Para tanto, o missionário descrevia as atividades cotidianas que realizava com os nativos e, em especial, com a ajuda de alguns indígenas, procurou traduzir na sua língua as orações e os mandamentos cristãos com a finalidade de recitá-los diariamente dentro das pequenas rodas de fiéis e curiosos que estavam se formando. Francisco Xavier afirmava numa epístola de janeiro de 1544, ao falar dos habitantes do cabo de Comorin, no extremo sul da Índia, que “Las razones que a esta gente idiota se han de dar, no han de ser tan sutiles como las que están escritas en doctores muy escolásticos” (MONUMENTA XAVERIANA, I, 1899MONUMENTA XAVERIANA I. Edição de Alexandro Valignano. Madrid: Augustini Avrial, 1899., p. 291). A discussão sobre as capacidades dos indígenas seria depois retomada por Acosta:

¿Cómo enseñarán los catequistas y aprenderán los indios todas estas materias con facilidad? Para ello se necesita, en primer lugar, un doble tipo de catecismo. Uno, sintético y breve para que, si es posible, lo aprendan los indios incluso de memoria, y en el que se resuman todos los puntos que son necesarios para un cristiano respecto a la fe y a la moral. Otro, más desarrollado, en el que esos mismos puntos se expliquen con mayores detalles y pormenores y se recalquen con más razones. El primero estaría destinado más bien para que lo usen los discípulos; el segundo, para los maestros

(ACOSTA, II, 1987ACOSTA, José de. De procuranda indorum salute. Edição de Luciano Pereña. Madrid: CSIC, 1987 [1588]. [1588], p. 293).

A necessidade de produzir material a ser usado com os indígenas e que fosse escrito nas próprias línguas que eles falavam levou Hoornbeeck a reconhecer a necessidade de que os missionários deveriam conhecer a língua dos nativos. Os exemplos trazidos pelo reformador provinham principalmente dos jesuítas: Juan Fernández de Oviedo (1526-1567), Matteo Ricci (1552-1610), Martino Martini (1614-1661), Pierre Pelleprat (1606-1667), entre outros mais (HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 374). Mas essa plêiade de figuras jesuíticas tinha também sua contrapartida holandesa reformada na figura de Antonius Walaeus e seu Seminarium Indicus.

Conhecer a língua dos indígenas servia para predicar e fazer orações em seus próprios termos. Hoornbeeck toma diversos exemplos sobre a pregação aos nativos, principalmente dos jesuítas. O êxito das missões dos jesuítas no Oriente, na Índia e nas Américas era reconhecido por Hoornbeeck e o levou a procurar estabelecer um modelo a ser aplicado pela Igreja Reformada da Holanda nos territórios da Companhia das Índias Orientais. A inutilidade de pregar aos indígenas em latim ou em castelhano, como era reconhecido pelo Terceiro Concílio de Lima, de 1582-1583 (ACOSTA, II, 1987 [1588], p. 63-65; HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 376), e a necessidade de memorizar os conteúdos do catecismo e da doutrina, usando diversos artifícios, como a música (ACOSTA, II, 1987 [1588], p. 339; HOORNBEECK, 2018HOORNBEECK, Johannes. Johannes Hoornbeeck (1617-1666), on the conversion of Indians and heathens: an annotated translation of De Conversione Indorum et Gentilium. Edição de Ineke Loots & Joke Spaans. Leiden: Brill, 2018 [1669]. [1669], p. 385), constituiriam lições adicionais que Hoornbeeck procuraria transmitir aos futuros predikant.

Conclusões

O teólogo holandês reformado Johannes Hoornbeeck escreveu seu livro De conversione indorum et gentilium, tendo como modelo a obra do jesuíta José de Acosta, De procuranda indorum salute. A obra de Acosta não constituía unicamente uma fonte de informações sobre os indígenas das Índias Ocidentais. Para isso, havia a Historia natural y moral de las Indias do próprio, além de outros livros da mesma temática. O De procuranda constituiu a principal inspiração e o modelo de como deveria ser a missão entre nações “pagãs” dentro da proposta elaborada por Hoornbeeck. Dessa maneira, a missão na sua versão reformada holandesa, passaria a ter características inspiradas pela Companhia de Jesus e pela reflexão de Acosta. Longe das representações comuns que antagonizavam católicos e protestantes, Hoornbeeck propôs uma prática missioneira reformada que partia de um exercício de apropriação e assimilação da experiência jesuítica e das ideias de Acosta.

  • 1
    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e a bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Meus sinceros agradecimentos aos pareceristas anônimos da Revista de História, cujas considerações foram essenciais para a melhoria deste artigo. Agradeço também a leitura crítica feita por Maria Cristina Bohn Martins.
  • 3
    Com o título De natura Novi Orbis libri duo, foi publicado em latim junto ao De procuranda. Os dois capítulos tratavam principalmente dos fenômenos geográficos que se destacavam nas Índias e que coadunavam com o conhecimento aceito sobre o mundo, destacando-se os tópicos sobre a habitabilidade do Equador e das zonas tórridas e sobre as antípodas. Posteriormente, esses capítulos foram traduzidos para o castelhano e publicados como parte da sua Historia.
  • 4
    A tradução da Historia, de Acosta, para o holandês foi realizada por Jan Huygen van Linschoten, um exímio explorador e cartógrafo, que escreveu Relato de uma viagem pelas navegações dos portugueses no Oriente, em 1595, e Itinerário, em 1596.
  • 5
    O dominicano espanhol Francisco de la Cruz chegou ao Peru em 1561. Formado em Teologia na Universidade de Valladolid, assumiu a cátedra de Teologia da Universidade de Lima. Posteriormente, exerceria o cargo de reitor da universidade e seria colaborador próximo do arcebispo de Lima, Jeronimo de Loayza. O dominicano passaria a desempenhar-se como confessor de Maria Pizarro, jovem que a finais de 1570 deu sinais de encontrar-se possuída pelo demônio. A partir da investigação aberta em 1571 pelo Tribunal da Inquisição de Lima sobre esse caso, Francisco de la Cruz passaria a ser investigado, devido a afirmações de cunho herético em que se denominava rei e papa das Índias, anunciando uma destruição da Europa e um governo nas Índias de espanhóis e indígenas. Resultado das duras condições da prisão da Inquisição, De la Cruz passaria a sofrer desequilíbrios psíquicos que o levariam a afirmar que Maria Pizarro era o meio através do qual o arcanjo Gabriel se expressava e ele era seu profeta. Foi condenado por heresia pertinaz, dogmatizador e predicador de uma nova seita. Seria condenado a morrer na fogueira no auto de fé de 1578.
  • 6
    As informações sobre a vida de Johannes Hoornbeeck foram retiradas da introdução da versão em inglês de seu De conversione indorum et gentilium, escrita por Joke Spaans.
  • 7
    Do holandês stadhouder, era um cargo político das províncias do norte da Holanda que, ao serem unificadas posteriormente pela “União de Utrecht” dentro das Províncias Unidas, ocuparia a posição suprema, sendo escolhido pela assembleia legislativa e reunindo a função de governo e de capitão geral do exército.
  • 8
    A denominação de “Igreja Reformada” é um uso que se deu a posteriori da instalação das comunidades protestantes no território holandês. Dentro das igrejas luteranas e calvinistas, o lema ecclesia reformata, quia semper reformanda (“a igreja reformada, porque ela deve sempre ser reformada”) ganhou importância dentro das comunidades que se desenvolveram nas Províncias Unidas. Ainda que a origem e a paternidade da denominação de Igreja Reformada Holandesa não sejam conhecidas, alguns estudiosos afirmam que a autoria foi do próprio Hoornbeeck e tinha como objetivo diferenciar a interpretação que as igrejas das Províncias Unidas estariam realizando do dogma luterano e, principalmente, do calvinismo, entendido como uma Zweite Reformation ou “Segunda Reforma” (LIEBURG, 2014LIEBURG, Fred van. Dynamics of Dutch Calvinism: early modern programs for further reformation. In: BRINK, Gijsbert van den; HÖPFL, Harro M. Calvinism and the making of the European mind. Leiden: Brill, 2014., p. 43-46).
  • 9
    Klooster introduz, na sua obra, uma apreciação retirada de um panfleto de 1630 em que um holandês afirmava que “Os reis da Espanha não conhecem a maioria das Índias Orientais e Ocidentais, então que direito os espanhóis podem ter de proibir os holandeses de negociar, traficar e navegar por lá?”, comentando que seria frívolo apelar à dispensa papal porque o papa “tem tanto direito de decidir sobre o assunto quanto o burro que ele monta ou o menino mais novo em sua cozinha” (KLOOSTER, 2016KLOOSTER, Wim. The Dutch moment: war, trade, and settlement in the Seventeenth-Century Atlantic World. Ithaca: Cornell U. P., 2016., p. 37).
  • 10
    A lista de autores citados por Hoornbeeck é longa e expressa o interesse que despertava na Holanda a expansão da geografia do mundo e da descrição de novas nações. Menciona autores que descreviam as possessões espanholas, como Girolamo Bertoni, Bartolomé de las Casas, Antônio de la Calancha, Francisco López de Gómara, Garcilaso de la Vega e José de Acosta, assim como outros que relatavam os territórios em posse dos portugueses, como o Itinerário de Jan Huygen van Linschoten e Jean de Léry. Encontram-se, também, na sua obra, informações sobre a China e o Japão, retiradas de missionários católicos enviados em missão, tais como o agostiniano Juan González de Mendoza, os jesuítas Martino Martini, Matteo Ricci e Nicolas Trigault.
  • 11
    A importância das informações sobre territórios que poderiam ser explorados comercialmente por parte dos holandeses pode ser percebida ao se deparar com o caso de J. H. van Linschoten (1563-1611), que pertencia a uma família de comerciantes holandeses que negociavam na Espanha. Estabeleceu-se em 1576 em Sevilha, com a finalidade de aprender melhor sobre as atividades mercantis. Devido ao controle mais rigoroso da Inquisição, decidiu mudar-se para Lisboa onde, mesmo sendo calvinista, conseguiu o cargo de escrivão do novo arcebispo português de Goa, frei Vicente de Fonseca. Sua estadia em Goa, entre 1583 e 1589, a serviço do arcebispo, lhe permitiram recolher, de forma sigilosa, informações náuticas e comerciais sobre as atividades dos portugueses. Na sua volta a Amsterdã, em 1593, começou uma agitada atividade editora, publicando diversos livros sobre a exploração de territórios e a possibilidade de realizar atividades comerciais nesses lugares (TIELE, 2016TIELE, Pieter Anton. Introduction. In: BURNELL, Arthur (ed). The voyage of John Huyghen Van Linschoten to the East Indies. New York: Routledge, 2016 [1596]. [1596], I, p. XXIII-XXIX).
  • 12
    No livro de Hoornbeeck, existe uma dinâmica na sua própria estruturação que responde a seus elementos constitutivos. Por um lado, a presença de uma história sagrada e bíblica que procura ser imposta como o arcabouço e que teria a finalidade de organizar, dentro da autoridade das Escrituras, a existência de novas nações de “pagãos” que tinham que ser ressignificadas à luz dos novos conhecimentos. Por outro, a expansão do conhecimento do mundo levava a procurar uma reflexão da sua história em termos universais, a qual só era possível, nesse período, tomando como base o próprio cristianismo.
  • 13
    Todas as traduções do inglês para o português neste artigo foram feitas pelo autor.
  • 14
    “Um conselho para o seu cuidado e promoção, que deve ser sempre o objetivo do debate: a conversão e salvação”.
  • 15
    A Propaganda Fide foi criada pelo papa Gregorio XV em 1622, em Roma. O objetivo da Congregação foi organizar e coordenar a atividade missionaria da Igreja por todo o mundo. A importância que a Congregação adquiriu como instituição supervisora da ação missionaria da Igreja pode ser destacada pela participação constante do papa, responsável pelo estabelecimento das orientações básicas da política missionária a ser implantada.
  • 16
    Bartolomé de las Casas escreveu a Brevísima relación por volta de 1542. Seu livro se encontra dentro de um contexto de intensa luta do dominicano em torno dos esforços pela defesa dos direitos dos indígenas e que seria coroado com as Leyes Nuevas de 1542 de Filipe II. Publicado o manuscrito em Sevilha em 1552, sem autorização da Coroa, procurou dar a conhecer ao rei e a seus leitores, os males que sofriam as Índias e as atrocidades cometidas pelos espanhóis na sua conquista. As “histórias” cruéis dos espanhóis trazidas por Las Casas servem não só para produzir uma rejeição ética da conquista armada, mas também para denunciar que os espanhóis, ao exercer a violência, abandonaram o mandado recebido dos papas para evangelizar cristãmente os indígenas.
  • 17
    A leyenda negra é um conjunto de imagens construído em torno da nação espanhola desde o século XVI, que teve como finalidade associar à Espanha uma série de afirmações que a caracterizavam de forma grotesca, cruel e sanguinária. Essas afirmações se viram impulsionadas por uma política propagandística e editorial antiespanhola organizada e supervisionada tanto por governos contrários à Monarquia Hispânica, como seria o caso das Províncias Unidas, quanto por membros das igrejas protestantes, como seria a Igreja Reformada. Dentro dessas imagens construídas em torno da Espanha, a obra de Bartolomé de las Casas constitui um elemento importante, porque as informações sobre os conquistadores nas Índias serviram para engrossar as denúncias de comportamento selvagem, sanguinário e feroz contra os espanhóis.
  • 18
    O dominicano e teólogo Francisco de Vitoria é matéria de destaque de Hoornbeeck, devido a seu claro posicionamento em relação à jurisdição do papa e da Coroa espanhola em relação às Índias. Para Vitoria, o papa não possuía jurisdição sobre o governo político dos indígenas e não tinha o direito de conceder a outros, nesse caso, espanhóis e portugueses, o governo secular sobre os indígenas. Da mesma maneira, reconhece que os indígenas se governavam de maneira apropriada e que tinham suas propriedades e negócios. Portanto, independentemente de suas crenças e pecados, reconhece que eles eram senhores legítimos de suas terras e governos.
  • 19
    Um dos fundadores da Companhia de Jesus junto a Ignácio de Loyola, Francisco Xavier foi o primeiro jesuíta que partiu em misión. Em abril de 1541, partiu para a Índia, acompanhando a expedição portuguesa que levava ao governador, Martim Afonso de Sousa, chegando ao território de Goa, capital dos territórios portugueses, em maio de 1542. É dos primeiros anos da sua estadia em torno de Goa e da Costa da Pescaria e em convivência próxima com os indígenas paravás que começa a desenvolver uma reflexão sobre a missão entre os “pagãos”. Na epístola de 1544, Xavier detalha a necessidade de traduzir para as línguas nativas todo o relacionado à doutrina cristã e que pudesse ser ensinado de forma simples. Também aparecem suas impressões sobre os brâmanes e como deveria adequar-se o conteúdo da doutrina para aproximá-los ao cristianismo.

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Editado por

Editores Responsáveis

Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2022
  • Aceito
    03 Maio 2023
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