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Irmãos na Terra Prometida: crime, igreja e regularização fundiária em São Paulo

Brothers in the Promised Land: crime, church, and land regularization in São Paulo

RESUMO

A tese que desenvolvemos neste artigo é que crime, igreja, empresas e movimentos sociais operam prolongamentos da violência da urbanização nas periferias de São Paulo. Essa violência é mediada, primeiro, pela propriedade privada como fundamento do habitar na cidade capitalista; segundo, pelo Estado e pelo planejamento urbano como operadores e reprodutores da valorização imobiliária e da segregação socioespacial; terceiro, pelo dano de uma vida cotidiana transpassada pela privação do urbano que se manifesta na proliferação de estratégias do empreendedorismo popular. Nessa mediação, concretiza-se uma hegemonia compartilhada da cotidianidade, articulada pela problemática fundiária no centro das disputas pela ordem. Tal hipótese surge de pesquisa etnográfica realizada desde 2017 em favelas da Zona Leste de São Paulo.

PALAVRAS-CHAVE
Hegemonia compartilhada; etnografia; segregação socioespacial

ABSTRACT

The argument we develop in this article is that crime, church, private companies, and social movements are the main subjects that operate extensions of the violence of urbanization in the periphery of São Paulo. This violence is mediated, first, by private property as the foundation of living in the capitalist city; second, by the State and urban planning as reproducers of real estate valorization and socio-spatial segregation; and third, by the damage of everyday life permeated by the urban deprivation. Therefore, a shared hegemony of everyday life takes shape, articulated by the land issue at the center of disputes for order. This hypothesis arises from ethnographic research carried out since 2017 in favelas in the East Zone of São Paulo.

KEYWORDS
Shared hegemony; ethnography; socio-spatial segregation

Muito trabalho, pouca carne, suficiente todavia para que cada um tivesse seu quinhão. (Jorge Amado, Tocaia grande, p. 174).

Caminhadas entre o altar, a Associação e a biqueira

A igreja estava cheia, mas saberíamos disso apenas mais tarde. Ivone3 3 Para garantir a segurança e reafirmar os pactos realizados entre pesquisadores e interlocutores, todos os nomes próprios são fictícios, assim como a denominação dos lugares e da empresa retratada. Além disso, nossos interlocutores leram o presente artigo e concordaram com o conteúdo aqui apresentado. havia enviado duas fotografias para nos alertar, gentilmente, de que a celebração já começara. Na primeira imagem, estavam expostas as ofertas de diversos alimentos da cesta básica recolhidos nos dois primeiros dias da novena. Os mantimentos se encontravam na sacristia e seriam posteriormente distribuídos na comunidade e também utilizados para a produção de marmitas entregues por um grupo de voluntários da igreja. Já na segunda, apareciam vários fiéis, sobretudo mulheres de meia-idade e mais velhas, com máscara de tecido e respeitando certo distanciamento social nos longos bancos de madeira enfileirados. Dava para ver também na foto dois padres no altar e uma banda, ao fundo, com dois violões empunhados, uma bateria e uma vocalista animada com uma “pandeirola” nas mãos. Chegamos com meia hora de atraso naquele terceiro dia de novena, depois de encarar o trânsito caótico da hora do rush. Eram 20h30 de uma noite abafada de janeiro, pós-chuva de verão em uma favela - chamemos de Boa Esperança - na Zona Leste de São Paulo.

Estacionamos o carro em frente ao cemitério mal iluminado. Nas diversas vezes em que passamos em frente ao terreno, Eder sacou com um quê de sarcasmo a frase “um espectro ronda a Boa Esperança - o espectro da morte”. Mirando a quebrada4 4 Grafamos em itálico as noções apreendidas em campo. Comumente associadas às gírias, as expressões da malandragem ou linguagem de ladrão são fartamente utilizadas na vida cotidiana periférica de São Paulo para descrever lugares, situações, regimes normativos, distinções ou critérios de verdade. A utilização dessas noções ao longo do texto é uma estratégia para manter a fluidez narrativa a partir da perspectiva e da linguagem utilizada por nossos interlocutores. , vemos que a escola privada ao lado da igreja estava fechada e com ares de abandonada; o imenso galpão de telemarketing, duas quadras para baixo, em que trabalhavam dia e noite milhares de infoproletários jovens, estava vazio e com as luzes apagadas; a oficina mecânica de esquina, especializada em consertos de carretas e caminhões - que também era um desmanche de carros -, não tinha nenhum veículo parado em frente; o bar e restaurante de comida self-service no almoço tinha uma lona preta encobrindo o letreiro, e no muro envidraçado havia uma enorme placa de “passa-se o ponto”; a padaria ao lado também cerrou suas portas. Todos sucumbiram “à confluência de uma economia destruída, um universo societal destroçado e uma crise política inqualificável” (ANTUNES, 2022ANTUNES, R. Capitalismo pandêmico. São Paulo: Boitempo, 2022., p. 23) e ao encolhimento, modulação e destituição de benefícios e direitos radicalizados pelo governo de Jair Bolsonaro (RIZEK, 2022RIZEK, C. Periferias - revisitando fraturas e crises. In: CARLOS, A. F. A.; RIZEK, C. (Org.). Direito à cidade e direito à vida: perspectivas críticas sobre o urbano na contemporaneidade. São Paulo: IEA/USP, 2022, p. 44-71.). Nós tínhamos passado, próximo à Boa Esperança, por dois templos neopentecostais (Assembleia de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus), ambos repletos de fiéis entoando louvores e respondendo “aleluias” com entusiasmo. Se a escola, o telemarketing, a oficina, o bar e a padaria estavam mortos, as igrejas estavam vivas e lotadas.

Vendo tantos lugares ermos, estávamos confusos se havíamos anotado corretamente o endereço passado por Eder, ou se devido à tempestade e ao surto de gripe H3N2, a celebração daquele dia fora tão rápida que já havíamos perdido toda a pregação. Silêncio na quebrada nunca é um bom sinal: ou você está no lugar errado, ou não está correndo pelo certo.

Nós nos posicionamos diante de uma fachada em ruínas. Observando com alguma atenção, era possível ver uma igreja em construção com a programação da Novena de São Sebastião afixada. Era ali. As paredes sem reboco com tijolo baiano à mostra não destoavam da morfologia das casas, da Associação de Moradores e da pizzaria vizinha. Eder já tinha nos contado sobre os dilemas da construção da capela. Ele detalhou que o pároco anterior era uma figura reacionária e que, inclusive, levava membros da Opus Dei e de outros grupos conservadores para a igreja. Surgiram denúncias de assédio sexual e de talaricagem contra o padre. Havia também uma fofoca, contada por alguns moradores, de que parte do dinheiro das obras desapareceu depois que ele deixou a comunidade; outros fuxicavam que as festas, dízimos e quermesses davam muito mais lucro do que os informes de rendimentos do caixa da igreja. Um irmão do Primeiro Comando da Capital (PCC) também se prontificou em ajudar na construção do templo antes de aparecerem os vacilos do sacerdote. O disse me disse sobre as intenções do movimento eram variadas, passando da tentativa de lavagem de dinheiro à consideração com o trabalho de entrega de marmitas, por parte de alguns fiéis da igreja, para os pobres e moradores em situação de rua que acontece todos os sábados em avenidas, postos de gasolina, ocupações, barracas improvisadas e favelas da Zona Leste de São Paulo. Fato é que muitos abandonaram a comunidade católica, mantendo ora uma fé privada, ora procurando igrejas em outros bairros e, mais recorrentemente, se convertendo às diversas denominações evangélicas presentes no lugar.

Eder fez uma trajetória diferente: se afastou da igreja e se reaproximou da Associação de Moradores da Boa Esperança junto com outros dois companheiros, Rafael e Mansur, em 2012. Maura e Gilberto, duas lideranças históricas do bairro, toparam retomar o trabalho da Associação que faziam na década de 1980, ela garantindo a zeladoria do espaço e ele, dono de um bar e muito respeitado pelas diversas correntes políticas da comunidade, saindo nominalmente como presidente da chapa. Eder recosturava o fio que atava em um único nó a Associação de Moradores, a igreja católica e o movimento de bairro, todos criados no chão de terra batida da capela de São Sebastião, em 1982.

O trabalho de Eder, Rafael e Mansur foi essencial para um reavivamento associativo e comunitário. Inicialmente, arrecadavam dinheiro com festas, bingos e rifas na própria quebrada, e não aceitavam recursos nem de partidos políticos, nem de organizações não governamentais (ONGs) ou empresas, nem do Partido. A laje do espaço da Associação foi refeita e eles conseguiram equipar o lugar com um aparelho de som e computadores. Os amigos também lideraram a retomada de diversas atividades, como alfabetização de jovens e adultos, cursinho pré-universitário, participação em conselhos de saúde e meio ambiente e projetos de extensão em parceria com universidades envolvendo regularização fundiária e assessoria técnica para implementação de um plano de bairro, o que fez o trabalho realizado na Boa Esperança ser reconhecido em outras quebradas. A presença da Associação de Moradores nos atos de junho de 2013 foi decisiva para a formação política do trio: eles conheceram diversas lutas e estratégias e se fizeram conhecer também. Para Eder, a “rua foi uma verdadeira escola de política”. A conquista de uma Unidade Básica de Saúde, a manutenção de uma linha de ônibus que seria suprimida, as tarifas sociais de água e esgoto implementadas e as parcerias com movimentos sociais por mobilidade urbana e moradia colocaram a Associação como uma das de maior destaque na Zona Leste de São Paulo. Eles também realizaram inúmeras ações diretas no centro e nas periferias metropolitanas: trancaços de avenidas, ocupações de secretarias e subprefeitura, fortalecimento de movimentos sociais e de associações de moradores vizinhas, escrachos de políticos, mutirões de tapa-buracos, oficinas de grafite, festas e bailes comunitários e a criação de uma perua em formato passe livre que ligava a Boa Esperança à estação de trem mais próxima.

No entanto, a partir de meados de 2018, uma crise generalizada se instalou naquela quebrada. Inicialmente, ocorreu a morte trágica de Rafael em um acidente de moto, o que gerou inclusive uma situação que desencadeou um debate reivindicado por um primo correria dele. Os debates no mundo do crime são agonísticos, ou seja, possibilitam ampla argumentação, aparecendo múltiplos lados, visões e ideias de uma situação, e são instituídos para a realização de deliberações (FELTRAN, 2018FELTRAN, G. Irmãos: uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.; BIONDI, 2018BIONDI, K. Proibido roubar na quebrada: território, hierarquia e lei no PCC. São Paulo: Terceiro Nome, 2018.) e para a diferenciação dos sujeitos em termos morais, populacionais e espaciais (MARQUES, 2014MARQUES, A. Crime e proceder: um experimento antropológico. São Paulo: Alameda, 2014.) na prisão e na rua (GODOI, 2017GODOI, R. Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2017.). Os debates tornaram-se instituições legítimas nas periferias de São Paulo, sobretudo a partir da década de 2000, ocupando espaços de mediação de conflitos e deliberação sobre o uso da violência (FELTRAN, 2020FELTRAN, G. Das prisões às periferias: coexistência de regimes normativos na “Era PCC”. Revista Brasileira de Execução Penal, v. 1, n. 2, 2020, p. 45-71.). As consequências não são prescritivas, mas autorizativas. Eder teve que participar como testemunha. Suspeitava-se que Rafael tivesse sido assassinado devido à sua atuação política e a um arranca-rabo com um irmão que vendia lotes na Vila da Vitória, quebrada vizinha da Boa Esperança, hipótese enterrada nas ideias.

Mansur, que tem transtorno bipolar, teve diversos problemas de saúde mental em decorrência da morte de Rafael, seu grande amigo, conselheiro e protetor. Ele se envolveu em conflitos com Eder e ramelou em uma série de situações. Os antigos parceiros acabariam não mais somando lado a lado devido ao sumiço de cestas básicas doadas que estavam estocadas na Associação, ao beneficiamento direto de amigos em determinados serviços prestados pela Associação de Moradores, às decisões autônomas em espaços de representação externa, a uma briga com um cadeirante membro da diretoria da Associação e, finalmente, ao fato de que Mansur cedeu à pressão do dono da biqueira da Boa Esperança e se associou com a malandragem da quebrada. Várias fitas começaram a rolar no interior do espaço associativo. Os entreveros não pararam por aí: um projeto de regularização fundiária e a possível desapropriação de casas para a realização de uma obra de saneamento proposta simultaneamente por uma assistência jurídica e por uma assessoria técnica geraram fofocas na comunidade e temor de remoções de moradores que ocupam uma área na beira de um córrego. Além disso, Maura morreu depois de um ataque cardíaco em 2020, e Gilberto faleceu em decorrência de covid-19 em 2021. A gota d’água ocorreu no primeiro turno das eleições presidenciais, em outubro de 2022, quando atividades políticas ligadas a candidatos bolsonaristas ocorreram no interior da Associação. Eder ficou enfurecido, entregou as chaves e os documentos da entidade e retornou às atividades da Pastoral Social da igreja.

O novo padre da comunidade é diferente do austero pároco anterior. Aquela era a sua primeira novena de São Sebastião, o santo padroeiro da Boa Esperança. A expectativa de sua chegada era um dos motivos do aumento de fiéis. Conhecido como Pingo, ele é jovem, negro, nascido e criado na Vila da Vitória. Pingo morou em um barraco de madeira e lona e conheceu na infância o trabalho político da igreja e da Teologia da Libertação na Zona Leste, que alimentava os pobres, evangelizava a comunidade e lutava para que os moradores permanecessem nos lugares das ocupações.

O jovem padre compreende bem o proceder e a caminhada de diversos irmãos desde pequeno, quando era conhecido como “pingo de gente”. A pobreza e a violência eram suas companheiras desde menino. Seus amigos de infância, os que estão vivos e no corre, são hoje os operadores do tráfico e de um conjunto de negócios imobiliários, inclusive na Vila da Vitória, onde mora sua mãe. Dona Dilma não aceitou bem a vocação do filho, “queria netos e que ele formasse uma família”, mas assentiu ao final vendo o destino e as consequências da vida loka dos amigos da quebrada: caminhadas entre a prisão e a morte.

Pingo é um bom orador e está na disputa de corações e mentes na quebrada. Ele, tal como Eder e Mansur, e também Kelly e padre Gonçalo, como veremos adiante, parece empenhado nas disputas políticas candentes na vida cotidiana do fundão da Zona Leste e em parte expressiva das periferias brasileiras. As tretas na Boa Esperança e na Vila da Vitória são produto das relações e tensões entre o crime (a ética do Comando e a estabilidade financeira dos ladrões), as igrejas (o governo das moralidades e as disputas entre os fiéis/católicos e os crentes/evangélicos), a regularização fundiária (operada por assessorias técnicas e empresas privadas nos descaminhos entre remoções e venda de mercadorias fundiárias) e as associações de moradores (em suas práticas políticas frente à produção social do espaço urbano e sua redução ao assistencialismo ou fachada para o crime, partidos políticos, ONGs ou empresas). Essa constelação de sujeitos/grupos/instituições produz, a partir de coerção e consensos - provisórios e enfeixados de conflitos e compartilhamento de hegemonias -, novas camadas de disputa pela ordem, que se concretiza em diferentes práticas socioespaciais e processos de produção do espaço.

A hegemonia compartilhada da produção do espaço remete à compreensão de que há conflitos e contradições entre diferentes agentes para o exercício de poder, disputas econômicas e lutas pelo espaço. Força e consenso, persuasão e coerção, vida e capital ora se articulam, ora se afastam. Entender a produção do espaço urbano mediado pela dimensão da morfologia do canteiro de obra, do planejamento urbano na presença-ausência do Estado e da vida cotidiana emaranhada por tensões e novos arranjos econômicos, políticos e culturais sugere o questionamento de como forças sociais diferentes se combinam, conjunturalmente, para criar um novo terreno sobre o qual uma forma diferente de política se erige (GRAMSCI, 2007GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.; WILLIAMS, 1973WILLIAMS, R. Base and superstructure in marxist cultural theory. New Left Review, n. 82, 1973, p. 3-16.; HALL, 2022HALL, S. Gramsci e nós. Tradução: Vila Vudu. Jacobin Brasil, 10 fev. 2022. Disponível em: https://jacobin.com.br/2022/02/gramsci-e-nos. Acesso em: abr. 2023.
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). Essa política modifica a vida cotidiana, especialmente daqueles que têm de calcular como sobreviver, como cuidar da família, como chegar vivo ao fim do dia e ao fim do mês e onde vão morar e se vão permanecer naquele lugar. A hegemonia compartilhada não prefigura a ausência do Estado, mas sim a reestruturação estatal em contexto neoliberal que produz uma trama de agentes que são figurações do Estado, em especial, nas periferias. Além disso, buscamos compreender como os sujeitos entendem seus próprios interesses (em “articulação” com lugares e situações concretas) e como eles são tensionados por diferentes regimes normativos, gramática moral, posições de classe e forças sociais em constante fluxo, articulado e rearticulado num constante processo de contestação, coerção e consentimento (HART, 2004HART, G. Geography and development: critical ethnographies. Progress in Human Geography, v. 28, n. 1, 2004, p. 91-100.; LEVENSON, 2022LEVENSON, Z. Make “articulation” Gramscian again. In: CHARI, S.; HUNTER, M.; SAMSON, M. (Ed.). Ethnographies of power: working radical concepts with Gillian Hart. Johannesburg: Wits University Press, 2022, p. 187-215.).

A tese que desenvolvemos neste artigo é que crime, igreja, empresas e movimentos sociais operam prolongamentos e modulações da “violência da urbanização” (SAMPAIO, 2015SAMPAIO, R. A violência do processo de urbanização. In: CARLOS, A. F. A. (Org.) Crise urbana. São Paulo: Contexto, 2015, p. 55-84.) das quebradas de São Paulo, violência essa mediada, primeiro, pela propriedade privada como fundamento do habitar na cidade capitalista; segundo, pelo Estado e pelo planejamento urbano como operadores e reprodutores da valorização imobiliária e da segregação socioespacial; terceiro, pelo dano de uma vida cotidiana transpassada pela privação do urbano que se manifesta na multiplicidade de formas do empreendedorismo popular5 5 Costa (2022) considera que o empreendedor é um fenômeno que atravessa todas as classes sociais, corporificando as contradições do discurso do investimento no próprio capital humano, o que, a nosso ver, ganha conteúdos específicos no atual contexto neoliberal pós-pandêmico: somente até junho de 2020, 715 mil pequenas empresas fecharam as portas no país, enquanto, entre março e julho do mesmo ano, foram registrados novos 600 mil microempreendedores individuais (MEIs) (COSTA, 2022). , visto, aqui, como as diversas estratégias de autogerenciamento do trabalho que, na contemporaneidade, têm como denominador comum a necessidade de gerar renda por parte da população precariamente inserida do mercado formal de trabalho. A imersão em campo, realizada por pesquisa de caráter etnográfico, revela o recrudescimento, nas periferias paulistanas, de novas formas de empreendedorismo popular intimamente imbricadas com o mundo do crime e com a regularização fundiária. Assim, compreender a especificidade da violência urbana brasileira demanda reconhecer que a natureza desse fenômeno não parece decorrer apenas da mudança do patamar quantitativo de incidência criminal na sociedade.

A sociabilidade violenta é um princípio de coordenação das práticas (SILVA, 2010SILVA, L. A. M. da “Violência urbana”, segurança pública e favelas: o caso do Rio de Janeiro atual. Caderno CRH, v. 23, n. 59, 2010, p. 283-300.), o elemento novo da violência urbana brasileira que está conectado não apenas a uma suposta fraqueza das instituições (como o tema da ausência, ineficácia ou deficiência do Estado), mas à transformação do padrão de uso da força física por parte dos agentes criminosos. Isto é, está em curso um processo de transformação qualitativa da violência, de meio socialmente regulado de obtenção de interesses para o centro de uma ordem de sociabilidade em formação. Em outras palavras, habitamos um regime de urgências que implica a adoção, por parte do Estado e de suas figurações e agentes associados, de uma gestão securitária para a administração do colapso urbano (CANETTIERI, 2020CANETTIERI, T. A condição periférica. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.) em cidades sitiadas (GRAHAM, 2010GRAHAM, S. Cities under siege: the new military urbanism. Londres: Verso, 2010.) onde a vida está sob cerco (SILVA; LEITE, 2008SILVA, L. A. M. da; LEITE, M. Violência, crime e polícia: o que favelados dizem quando falam desses temas?. In: SILVA, L. A. M. da. (Org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 47-76.). Trata-se, afinal, de um conjunto de novos agentes coletivos que alteram as condições de reprodução da ordem pública (SILVA, 2004SILVA, L. A. M. da. Sociabilidade violenta: por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano. In: RIBEIRO, L. C. de Q. (Org.). Metrópoles: entre a coesão e a fragmentação, a cooperação e o conflito. São Paulo: Perseu Abramo, 2004, p. 291-351.). Estes não apenas operam a violência como sinônimo de criminalidade, mas são sujeitos centrais da reprodução do espaço urbano contemporâneo e instituem moralidades e regimes normativos, entre articulações e dissensos, na vida cotidiana periférica (BERALDO, 2022BERALDO, A. Negociando a vida e a morte: Estado, igreja e crime nas margens urbanas. São Carlos: Ed. UFSCar, 2022.), assim constituindo e ampliando mercados com a produção do espaço no centro dos negócios. Em síntese, estamos diante da instauração de uma sociabilidade que produz uma espacialidade violenta como expressão concreta dos efeitos de relações conflitivas de poder (HIRATA, 2022HIRATA, D. Sobrevivendo na adversidade: mercados e forma de vida. São Carlos: UFSCAR, 2022.) em um sistema de gestão compartilhado da segurança pública (SIMONI-SANTOS, 2022). No caso das quebradas de São Paulo, concretiza-se uma hegemonia compartilhada da cotidianidade mediada entre crime, igreja, empresas e movimentos sociais com a problemática fundiária no centro das disputas pela ordem e pela prática socioespacial.

Uma empresa social de regularização fundiária privada

Ao encontrar a igreja, tentamos abrir sem sucesso uma imensa porta de ferro. Depois de dar a volta no templo, achamos a entrada improvisada. Ocupamos um lugar ao fundo da capela quando um canto se iniciava e acenamos para Ivone, que fez um coração com as mãos. Pegamos duas folhas com as canções e ouvimos: “Senhor, o Deus dos pobres, do povo sofredor, aqui nos reuniu para cantar o seu louvor!”. As folhas estavam numeradas: 97 e 98 em caneta marca-texto verde fluorescente. No final da missa, os números funcionaram para o sorteio de uma imagem do santo padroeiro e um terço. Não ganhamos, mas recebemos a estátua de São Sebastião de lembrança pela visita. Quem conduzia o sermão era um padre mais velho: altivo, branco e com barba e cabelos grisalhos. O padre Gonçalo é figura mítica da periferia paulistana. Sua verve comunista estava afiada naquela noite: ele exaltou os cientistas que produzem vacinas, conhecimento crítico e saberes técnicos e políticos para o povo que necessita de “terra, trabalho e pão”, e dedicou a missa e aquela novena “contra a servidão voluntária” e “contra a opressão”. Também saudou a ordenação de padre Pingo, que estava fazendo cinco meses naquela semana.

Após a comunhão, o padre pediu para que as pessoas fizessem suas preces, pedidos de proteção e bênçãos em voz alta. O público deveria responder dizendo “Obrigado, Senhor”. Uma senhora pediu “saúde”, outra demandou “paz para as famílias”, e uma terceira, visivelmente emocionada, rogou por “casa e comida para os desabrigados e para os que têm fome”. Muitos assentiram com a cabeça. Essas preces ecoavam com os dados: de acordo com o Cadastro Único para Programas Sociais, a extrema pobreza aumentou exponencialmente em São Paulo no último biênio. Em janeiro de 2021, 473.814 famílias estavam nessa situação e, em janeiro de 2022, já eram 619.869, um aumento de 30,82% (VERDI, 2022VERDI, E. F. A privação tem rosto de mulher: gestão da pobreza e segregação socioespacial na periferia de São Paulo. Tese (Doutorado em Geografia Humana). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2022, 238f.). O crescimento da venda de ossos, peles, carcaças, sambiquira e miúdos no comércio da Boa Esperança, e da quantidade de caminhões que comercializam cartelas de ovos, conhecidos como “carro do ovo”, revela as alternativas para se comer algum tipo de mistura, ou melhor, proteína. Entretanto, o que se constata é o aumento generalizado da fome. Em termos de insegurança alimentar, se considerados todos os três níveis (leve, moderada e grave), 58,7% da população brasileira encontrava-se em alguma dessas categorias em 2022 (REDE PENSSAN, 2022REDE PENSSAN - Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert/Rede PENSSAN, 2022.). Na vida cotidiana, é pobre quem passa fome, não tem onde morar ou mora em condições precárias (com possibilidade de alagamento, desabamento ou remoção) e sofre discriminação por isso.

Vê-se que padre Gonçalo é próximo da comunidade e conhece os problemas urgentes do bairro. Ele brincou com algumas crianças que batizou e que já são grandes (um rapaz pré-adolescente e uma jovem mãe), valorizou a esforçada banda, criticou os poderosos que não se preocupam com os pobres, demonstrou preocupação com as enchentes na Boa Esperança e convidou Eder, Ivone e Kelly, além do padre Pingo, para os rituais. Eles distribuíram as hóstias e fizeram leituras da Bíblia.

Terminada a missa, fomos convidados para a sacristia da igreja junto com Eder, Ivone, o padre e Kelly. Pingo saiu acelerado, porque tinha uma atividade em uma ocupação perto da Boa Esperança. Dois coroinhas, um membro da Pastoral Carcerária e o outro da Pastoral LGBTQIA+, trocaram suas vestes por ali. Passada cerca de meia hora de conversa regada a um refrigerante popular tipo cola, um chá de ervas açucarado, uma tortinha de liquidificador com recheio de frango e um bolo de baunilha, o padre disse que estava cansado e que iria embora. Já eram quase 22h. Eder nos convidou para uma cerveja. Kelly, que pensou em pegar carona com o padre, resolveu nos acompanhar para a mesa de bar. Nós nos entreolhamos felizes, porque Kelly parecia conhecer bastante sobre a igreja, as lutas por moradia na Zona Leste e a ética do Comando. Com nome de princesa, ela é loira de cabelo tingido, alta e magra. Na sacristia, Kelly estava atenta às discussões, mas fitava desconfiada. Ela é presidenta da Associação de Moradores da Vila da Vitória e já viu muito dessa conversa entre intelectuais e o padre. Já tínhamos ouvido falar que ela debatia com o movimento e que não deixava os irmãos entrarem em sua mente. Fazia política no chão da luta e tinha muita consideração, adquirida nos mais diversos agrupamentos políticos.

Saímos conversando pelas vielas da favela na noite quente. Eder sugeriu uma adega perto da igreja. O lugar estava lotado de atletas de meia-idade em um pós-jogo de futebol de várzea, pois é uma espécie de sede social do time da Boa Esperança. Resolvemos recuar e caminhar um pouco mais, rumo a uma outra birosca menos cheia e que vendia costelinha no bafo. O segundo bar tinha lugares disponíveis. Os frequentadores estavam animados e se esparramavam pela calçada estreita ao som de escapamentos de motos e dos sucessos da dupla Marcos e Belutti. Sentamos do lado de fora em mesas e cadeiras de plástico, onde nos abastecemos com litrões de Skol.

Eder e Kelly são lideranças respeitadas em suas comunidades. Durante a pandemia, dedicaram boa parte do seu tempo de atuação política à distribuição de cestas básicas e roupas que receberam como doação. Ambos relataram que o desemprego, a fome e a pobreza no geral aumentaram desde 2020. Muitas famílias que eles conhecem dependiam das doações de alimentos para garantir, ao menos nas primeiras semanas do mês, que o arroz com feijão estivesse na mesa.

Kelly falou bastante. Iniciou contando sobre seu projeto de instalar energia solar na Vila da Vitória. Ela estava particularmente indignada com uma reunião frustrante entre a Associação de Moradores da comunidade e um órgão do estado de pesquisas tecnológicas. Participaram da atividade “vários especialistas sérios, mas que no final das contas não deu em nada”. Eles acharam impossível produzir energia em um sistema fotovoltaico naquela favela, visto que exigiria muita organização comunitária e recursos financeiros. Kelly se decepcionou com a resposta dos engenheiros e arquitetos, pois para ela as razões não eram nem técnicas, nem orçamentárias.

As conexões entre a moradia e o PCC surgiram pela primeira vez nessa conversa. Kelly acendeu um cigarro Eight, contrabandeado do Paraguai, e contou sobre o receio dos técnicos de produzir energia solar em casas com atividades ligadas ao crime, especialmente nas ruas próximas à Associação de Moradores que são reguladas pelos ladrões. A venda de terrenos e a expansão para algumas áreas vizinhas têm acontecido frequentemente. Além disso, a rua principal da quebrada ainda é popularmente conhecida pelo nome do irmão que fez os primeiros corres na ocupação. Apesar da indignação com os doutores, Kelly tinha outros BOs para resolver nos meses seguintes, porque os pepinos não paravam de chegar.

Kelly vive em uma rua íngreme e esburacada na Vila da Vitória, sombreada por 18 torres, com dezenas de andares, divididas em quatro condomínios do Programa Casa Verde e Amarela, construídas por uma empresa com sede em uma avenida moderna do vetor sudoeste da metrópole paulistana e cujo foco é em prédios de padrão médio e econômico. A porta da casa dela, de ferro amarrada por arames, abre para um pequeno corredor, que a parede do lado direito divide da garagem do vizinho. Logo depois desse corredor, a sala e a cozinha contíguas são separadas por um sofá, que fica de costas para a televisão. As paredes não têm reboco, mas são pintadas mesmo assim, de um lilás já desgastado. A geladeira de uma porta só fica na sala, do lado esquerdo de quem entra. Ao lado da geladeira, há uma estante cheia de objetos de decoração: fotos de primeira comunhão e reuniões de família, uma Bíblia, terços e latinhas de cervejas especiais. Não tem mesa de jantar com cadeiras ao redor: não há, na casa, um lugar evidente para sentar e fazer uma refeição. Num canto da sala, em cima de uma cadeira, ficam empilhados os sacos pretos de lixo, com capacidade de 100 litros cada, cheios de roupas para doação. Uma das tarefas de Kelly, como presidente da Associação de Moradores, é organizar essas doações: separar as peças inutilizáveis, dividir as roupas masculinas das femininas, encontrar os pares de todos os sapatos. Segundo a própria Kelly, as doações de cestas básicas e roupas foram fundamentais para evitar uma piora ainda maior da pobreza no bairro.

A Vila da Vitória começou como uma ocupação em 2001. Kelly foi uma das primeiras dez moradoras: comprou o terreno da casa em que vive hoje por R$ 750,00 em 2002. Fez dívida para adquirir o material e construiu um barraco de madeira, onde foi morar com o marido (hoje ela é separada), o filho mais velho e a filha do meio. Ela conta que viveu por 16 anos sem água, que em toda a vila tinha apenas uma mangueira que os moradores utilizavam para encher baldes e garrafas pet. Atualmente, na Vila da Vitória vivem 230 famílias que se dividem em 169 lotes. No entanto, nesses 20 anos, essas famílias passaram por muitas ameaças de remoção, que causavam medo cotidianamente. Nas palavras de Kelly, “todos os dias a gente dormia e sabia que poderia acordar no outro dia com a casa levantada”.

A casa de Kelly ficou sem telhado com as chuvas intensas de fevereiro de 2020. O padre Gonçalo e ela fizeram uma arrecadação de dinheiro para reconstruir uma parte da laje dessa casa onde ela vive com uma das filhas (a mais nova, que ainda está em idade escolar) e um sobrinho distante, recentemente saído da prisão, que veio de Goiás à procura de trabalho.

No bar, passado aquele primeiro momento de revolta, Kelly relatou os desafios da chegada da empresa Nova Vida na Vila da Vitória. A Nova Vida é uma regularizadora privada de terras que opera na mediação e negociação de conflitos fundiários entre moradores e proprietários. Trata-se de uma modalidade de negociação privada que não passa diretamente pelo Estado (mas se estrutura fundamentalmente a partir da negociação estatal), com poder de atuação ampliado pela legislação fundiária implementada pelo governo de Michel Temer, em 20176 6 A empresa se respalda na assim chamada desapropriação judicial, com previsão nos parágrafos 4º e 5º do Artigo 1.228 do Código Civil Brasileiro, estabelecida como um instrumento de Regularização Fundiária Urbana no Art. 15 - III da Lei Federal n. 13.465, de 11 de julho de 2017. . A empresa se propagandeia como aquela que vende soluções para “evitar dor de cabeça”, com economia de tempo e dinheiro para os proprietários (com a recuperação do valor do seu imóvel) e para deixar “tudo regularizado” e “tranquilo” (“sabendo que a terra é sua e de mais ninguém”) para aqueles que realizam as ocupações chamadas de irregulares. A Nova Vida está presente em 30 comunidades, quatro estados, atende cerca de 40 mil pessoas e está envolvida na regularização de mais de 3 milhões de m2 de áreas urbanas particulares.

A ocupação da Vila da Vitória, no início dos anos 2000, aconteceu em um terreno privado próximo a uma importante avenida da Zona Leste e ao lado de uma empresa de concreto usinado com caminhões gigantescos que transitavam pelas estreitas ruas sem grandes cuidados. Entre a ocupação e a regularização, a área passou por uma série de ameaças de reintegração de posse - expressão concreta da violência da propriedade privada - que produziram um terror na vida cotidiana dos moradores da ocupação. A tensão da possível destruição das casas, o medo da impossibilidade de reunir os pertences e o desespero em morar de favor ou em algum equipamento público ou privado coletivo por período indeterminado ou mesmo na rua tiravam o sono da comunidade. Em linhas gerais, se operou a instalação de um estado permanente de insegurança da posse para a maioria dos moradores em que o exercício dos poderes jurídicos da propriedade corresponde a um importante propulsor das perdas habitacionais (MILANO; SÁ, 2020MILANO, G. B.; SÁ, J. do N. de. Propriedade e violência: uma análise das remoções forçadas na Zona Leste de São Paulo (2017-2020) In: MOREIRA, F. A.; ROLNIK, R.; SANTORO, P. F. (Org.). Cartografias da produção, transitoriedade e despossessão dos territórios populares. São Paulo: LabCidades/USP, 2020, p. 365-388.) e da reprodução da segregação socioespacial como conteúdo central da produção do espaço urbano (ALVAREZ, 2015ALVAREZ, I. A produção e reprodução da cidade como negócio e segregação. In: CARLOS, A. F. A.; VOLOCHKO, D.; ALVAREZ, I. P. (Org.). A cidade como negócio. São Paulo: Contexto, 2015, p. 65-80.). Trata-se, assim, da segregação vivida como violência em todas as tessituras do cotidiano.

Em 2014, a Associação de Moradores iniciou o contato com a empresa Nova Vida, seguindo o conselho de um político atuante na periferia de São Paulo. A Nova Vida se apresenta como uma empresa social, vendendo diversas mercadorias fundiárias como forma de “pacificação” da situação entre proprietários e aqueles que ocupam a terra. A empresa opera a prospecção de territórios com conflitos imobiliários em articulação direta com o poder público, em especial com representantes dos poderes Legislativo e Executivo. A descoberta de terras em conflito é a alma do negócio. Em vídeos promocionais disponíveis on-line, a empresa se coloca como a mediadora por excelência das relações entre Associação de Moradores, poder público e proprietários para a regularização fundiária e a “garantia de direito de todos”. Em termos jurídicos, um dos principais negócios da empresa é o acordo judicial que impede o processo de reintegração de posse pelo dito proprietário. No que tange à dimensão urbanística e ambiental, a empresa vende o atendimento às legislações municipais para que os serviços e infraestruturas de água, esgoto, luz, cabeamentos e pavimentação possam ser realizados pelo Estado. A Nova Vida busca mercantilizar a privação do urbano e abocanhar nas margens do Estado (DAS; POOLE, 2004DAS, V.; POOLE, D. State and its margins: comparative ethnographies. In: DAS, V.; POOLE, D. (Org.). Anthropology in the margins of the State. Santa Fe: School of American Research Press, 2004, p. 3-33.) uma parcela da hegemonia periférica com a formalização da propriedade privada da terra. Ademais, capitaliza a gestão das precariedades como um ativo financeiro que não se reduz apenas à titulação, mas envolve uma série de mercadorias e negócios. O conflito fundiário e o papel, em si, de agente expulsor do próprio Poder Judiciário são condições necessárias para a expansão do mercado fundiário e imobiliário de regularização fundiária privada assentado na constituição plena da propriedade privada. Nos termos de um dos diretores da Nova Vida, “resolver um problema tem que ser um bom negócio para todos”.

A regularizadora privada vende também uma série de mercadorias ligadas à organização social da comunidade: cursos para o fortalecimento do protagonismo das lideranças, identificação e capacitação de agentes comunitários que realizam a cobrança de parcelas, cadastro censitário e diagnóstico socioeconômico das famílias, formalização jurídica da Associação de Moradores, quando necessário. Esse processo é vital para o negócio, visto que o presidente da entidade é quem: 1) assina o acordo judicial com o proprietário do terreno; 2) convence os moradores de que realizar a regularização fundiária privada é um negócio mais rápido do que a garantia do direito, pelo Estado, de pagamento justo, acessível (que cabe no bolso), tornando-se possível escapar de uma vida cotidiana de incertezas e insegurança jurídica; 3) atua como fiador diante da comunidade de que o poder público pode começar a construir infraestrutura e serviços urbanos imediatamente após o acordo entre as partes. O presidente é também responsável por parte da organização, negociação e operação de possíveis remoções das famílias que habitam áreas consideradas de risco. Em síntese, de acordo com Milano, Petrella e Pulhez (2021)MILANO, G.; PETRELLA, G.; PULHEZ, M. O anjo caído na terra prometida. Novos Estudos Cebrap, v. 40, n. 1, jan.-abr. 2021, p. 80-100. https://doi.org/10.25091/s01013300202100010003.
https://doi.org/10.25091/s01013300202100...
, a empresa regularizadora funciona como um agente conciliador em situações de irregularidade de ocupação. Tal conciliação, no fim, é um acordo de compra e venda mediado pela empresa.

Segundo o relato de Kelly, a Nova Vida medeia o pagamento da indenização ao proprietário da área a partir de parcelas mensais que os moradores pagam à empresa. Um aspecto central do negócio é a definição do preço do m2 com que cada família deverá arcar para a indenização do proprietário de acordo com a quantidade de solo urbano que está ocupando na área. O pagamento é definido respeitando-se - supostamente - a renda familiar, e as parcelas são pagas em um prazo que varia entre 5 e 10 anos. Por fim, para além da indenização aos proprietários, uma parte do dinheiro se realiza como lucro operacional de 20% do valor da regularização para a empresa garantir a sustentação da operação.

Após a quitação total das parcelas e a aprovação do loteamento da área, cada família recebe o título de propriedade da parte que ocupa. A empresa realiza, inclusive, eventos midiáticos de entrega de escrituras imobiliárias com a presença da imprensa, de representantes de prefeituras e das Câmaras dos Vereadores nas cidades onde vende o serviço de regularização. Em um vídeo promocional gravado em uma pequena cidade, um diretor argumenta que a casa tem que ser compreendida como um ativo financeiro que passaria a valer muito mais quando titulada em definitivo. O pagamento, então, deveria ser compreendido não como um gasto, mas sim como um investimento para o futuro. Seria fundamental capitalizar o bem mais precioso daqueles moradores: a casa. Emulando as teses de De Soto (2001)DE SOTO, H. O mistério do capital. Rio de Janeiro: Record, 2001., para a Nova Vida, a regularização fundiária cria as condições para a transformação de “ativos mortos” em capital, sendo, portanto, um grande mecanismo propulsor de desenvolvimento. A empresa investe em um modelo de negócio que envolveria a descoberta de uma grande oportunidade de expansão de mercado na base da pirâmide social: pagamento de impostos, mercantilização da propriedade privada e entrada de enormes frações de território no mercado imobiliário.

Além disso, a empresa se apresenta como aquela que estimula uma modalidade de microcrédito imobiliário. A Nova Vida tem chamado esse modelo de “financiamento da indenização” e do serviço de regularização para a população de baixa renda, mimetizando as ideias de Muhammad Yunus (2000)YUNUS, M. O banqueiro dos pobres. São Paulo: Ática, 2000., o “banqueiro dos pobres”. Um dos proprietários do negócio se considera um “regularizador social”, pertencente ao assim chamado “setor 2.5 da economia”, ou seja, é dono de uma empresa social que ajuda a reduzir “a pobreza no mundo”.

O acordo entre a Nova Vida, os moradores da Vila da Vitória e os proprietários da área foi homologado em 2016. Quando a proposta de regularização foi apresentada à comunidade pela Associação de Moradores, cerca de 90% da população aderiu à proposta. Para a Nova Vida, era necessário ter aprovação de 51% dos moradores para encaminhar o processo. Hoje, a área de aproximadamente 24 mil m2 está dividida em 169 lotes, de tamanhos diferentes, e cada família paga uma prestação proporcional ao tamanho do seu terreno. Kelly despende atualmente cerca de meio salário mínimo por uma casa de oito cômodos.

O crime, que mobilizou parte da ocupação inicial da Vitória há cerca de 20 anos, vendendo e negociando terrenos, não se opôs às tratativas entre a Associação de Moradores e a empresa regularizadora. O Partido utiliza diversos negócios imobiliários para a lavagem de dinheiro e para a diversificação do mercado, não apenas na periferia, mas em lugares elitizados da metrópole, capitalizando o direito à moradia em negócio importante para alguns irmãos e correrias, operando, assim, a reativação de dinâmicas expansionistas a partir de agenciamentos imobiliários (FELTRAN, 2018FELTRAN, G. Irmãos: uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.; SIMONI-SANTOS, 2022). E mais: as invasões mediadas pelo crime funcionam como válvula de escape em contexto de crise financeira, visto que os loteamentos são parte estratégica dos negócios. Os terrenos com potencial de valorização na pista ou ruas principais ficam para os empreendimentos do crime, enquanto meio e fundo são vendidos para os que necessitam de moradia. A terra é parte constitutiva do progresso dos irmãos.

No caso da Vila da Vitória, a regularização foi levada a cabo pela empresa privada e negociada diretamente entre a empresa e a população, com mediação da Associação de Moradores do bairro e a anuência dos irmãos, da igreja e de políticos próximos. Com a regularização fundiária, a Eletropaulo e a Sabesp começaram a construir a infraestrutura de luz, água e esgoto em 2017 e 2018, respectivamente. Conforme relato de moradores da Vila da Vitória, a segurança da propriedade do lote é um alento para quem vivia constantemente as ameaças de remoção. O político que trouxe a Nova Vida também capitalizou eleitoralmente com a negociação deixando claro que o título de propriedade foi parte da luta do movimento com a intervenção de sua assessoria jurídica em negociação com a empresa regularizadora.

No entanto, conforme ouvimos tanto na Boa Esperança, quanto na Vila da Vitória, a segurança da propriedade não muda a percepção de estar na periferia e de ser periférico. Dessa forma, os processos de privatização, mercantilização e financeirização do espaço urbano, envolvendo agentes públicos e privados, suas interações e a produção de regimes regulatórios, incidem diretamente sobre as metamorfoses do espaço e, consequentemente, sobre a gestão da vida cotidiana da população das periferias urbanas, o que reproduz processos violentos de permanência da segregação socioespacial e de estreitamento do horizonte político (CARLOS, 2020CARLOS, A. F. A. Segregação socioespacial e o “Direito à Cidade”. GEOUSP, v. 24, n. 3, 2020, p. 412-424.). Assim, nos deparamos com uma espacialidade de reprodução da violência da urbanização.

Ações, lutas, negócios e corres

A noite da novena seguia abafada, e a garrafa de cerveja parecia tão suada quanto o rosto de Eder. Kelly, batendo os dedos na mesa de plástico, falou que, conversando com outros presidentes de associações de moradores, foi a única que ainda não foi chamada para as ideias. Padre Gonçalo teve participação no fato de nenhum irmão ter dado um psicológico nela. Quando foi aventada uma situação sobre Kelly - ela estaria trazendo muita visibilidade para a Vitória com essa história de regularização fundiária -, padre Gonçalo mandou um recado: se ela fosse chamada para um debate, ele também deveria ser convocado. Os irmãos teriam assim recuado.

Por trás disso, reside a intenção do mundo do crime de dominar e controlar diretamente a Associação de Moradores para negociar, sem interlocutores, com algumas institucionalidades que surgiram da luta política da própria Associação, em especial com a Nova Vida, de modo a atuar na venda de lotes para a construção de prédios (o que de fato já está ocorrendo) e aumentar a área dos malandros da quebrada. Há uma tensão nos processos de triangulação normativa (BERALDO, 2022BERALDO, A. Negociando a vida e a morte: Estado, igreja e crime nas margens urbanas. São Carlos: Ed. UFSCar, 2022.) em que a hegemonia compartilhada pode ser rompida quando alguns dos grupos tendem a buscar a liderança absoluta. A situação na Vila da Vitória retoma elemento conexo relatado por uma interlocutora de Biondi (2018BIONDI, K. Proibido roubar na quebrada: território, hierarquia e lei no PCC. São Paulo: Terceiro Nome, 2018., p. 86), moradora do Parque Harmonia: “se antigamente o PCC cuidava da quebrada e de sua população, atualmente os irmãos só estariam interessados em dinheiro, ocupados com o tráfico de drogas” - e também com o mercado fundiário e imobiliário.

O movimento realiza a reprodução econômica do mundo do crime em muitas fitas. Uma delas é a dimensão fundiária, e pessoas como Kelly são ora pedras no sapato, ora a salvação. As situações, lados e visões vão se modificando. Até a chegada da Nova Vida, ela era vista com certa desconfiança, porque poderia atrapalhar a correria; depois, virou a mediadora central para o compartilhamento da hegemonia. Agora, ela estava com receio de ser descartável.

O mandato de Kelly na presidência da Associação termina em 2023. Ela pretende ficar no cargo até o fim, mas não sabe se vai se reeleger. Kelly já está há muitos anos na liderança da comunidade e, segundo ela, os irmãos tendem a colocar uma marionete em seu lugar. Eder e Ivone ressaltaram que Kelly “enfrenta tudo”, “é cabulosa”. Eder questionou a chegada da Nova Vida (disse que eles querem lucrar com a comunidade), mas enfatizou que Kelly tinha sido destemida e que era uma mulher de atitude por tomar a frente do processo de regularização fundiária com a empresa social como mediadora. Ele fala social com uma ironia indisfarçável. Kelly ficou incomodada com o questionamento de Eder, disse que ele sabe o tamanho dos problemas na Vila da Vitória e que ele tinha blindado a mente para a empresa, porque o contexto da Esperança era diferente da Vitória. Com infraestrutura ainda precária, os investimentos para a sua quebrada virão com o dinheiro captado pela regularizadora privada e com a possibilidade de pressionar o Estado por meio da intervenção da empresa, afirmou categórica. Kelly contou que um dos maiores problemas é ser chamada de “ladra” pelos próprios moradores da Vitória, que afirmam que “presidente de associação enriquece”. Kelly disse que vive de doação, de roupa da bolsa dos pobres e que de vez em quando tem que se alimentar com as cestas básicas que recebe. Com as chuvas torrenciais de verão em janeiro de 2022, a casa de Kelly destelhou novamente. Os padres Pingo e Gonçalo encabeçaram outra campanha de arrecadação e uma rifa para ajudá-la na reconstrução do telhado. A cobertura de telhas de plástico ficou pronta em dezembro.

Kelly emendou argumentando que os que mais precisam são duplamente humilhados: têm fome e casas precárias e ainda precisam pedir e expor suas famílias, suas moradias e sua condição de pobreza para a realização de uma infinidade de cadastros e para o constrangimento público com os vizinhos em filas, listas e reuniões. Por isso, os que mais precisam, em geral, não pedem. Muitos vão se virar e ganhar a vida, trabalhando para o Comando ou em atividades ligadas a toda sorte de ilegalismos. Vale ressaltar que as fronteiras que dividem categorias clássicas como trabalhadores e bandidos são bem menos rígidas e fragmentadas do que o dualismo aparente entre quem rala e quem rouba. Há um trânsito constante na vida cotidiana entre práticas legais, atividades ilícitas e inserções nas tramas dos ilegalismos, em infindáveis redes de mobilidades horizontais (TELLES; HIRATA, 2007TELLES, V.; HIRATA, D. Cidades e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. Estudos Avançados, v. 21, n. 61, 2007, p. 173-191.) do trabalho sem forma (OLIVEIRA, 2003OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo, Boitempo, 2003.) com a expansão do mundo do crime (FELTRAN, 2011FELTRAN, G. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Unesp, 2011.).

Oliveira (2003)OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo, Boitempo, 2003. aponta que o subdesenvolvimento é a forma da exceção permanente do sistema capitalista na sua periferia. Periferia em múltiplas escalas, tanto do sistema-mundo engendrado pelo modo capitalista de produção, quanto da produção da cidade. Assim, dentre a plêiade de exceções, o trabalho informal opera como exceção da mercadoria. Telles (2006)TELLES, V. Mutações do trabalho e experiência urbana. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 1, 2006, p. 173-195. prolonga essa reflexão ao argumentar que o “trabalho sem forma” se expande no próprio núcleo do que antes era denominado de mercado organizado/formal/legal e constata que os ilegalismos produzem um mundo urbano reestruturado por formas-conteúdos contemporâneas de uma economia política de riqueza, renda e patrimônio que ativam diversos circuitos da assim chamada economia informal, que, portanto, mobilizam o “trabalho sem forma”. Para Abílio (2021)ABÍLIO, L. C. Uberização, autogerenciamento e o governo da viração. Margem Esquerda - Revista da Boitempo, v. 31, 2021, p. 55-69., há uma multidão de trabalhadores que realiza trabalho sem a forma socialmente estabelecida do trabalho assalariado. A autora sugere que estamos frente à plena flexibilidade e maleabilidade do mundo do trabalho contemporâneo instituindo a plenitude do trabalho abstrato. Verificamos, na periferia da metrópole, o trânsito e o enredamento entre empreendedorismo popular, mundo do crime, atividades laborais associativas, militância e dinâmicas empresariais para a radicalização de trabalho com forma ultratemporária, efêmera e brutalmente precarizada para a sobrevivência imediata.

O sobrinho de Kelly, que mora com ela, pode fazer bico lavando pratos em uma churrascaria durante o dia, auxiliar no cadastro de famílias para receber cestas básicas doadas pela Nova Vida com Kelly à noite e ainda dolar cocaína para a biqueira de madrugada, sem necessariamente ser um “envolvido com o crime”, mesmo que em sua vida cotidiana a imagem de egresso do sistema prisional seja elemento de maledicências ou desconfianças em parte da favela.

Um desconforto súbito surgiu na conversa. Kelly começou a falar muito baixo, como se alguém pudesse nos ouvir, enquanto olhava fixamente para uma mesa, relativamente distante, em que jogadores opositores ao time da Boa Esperança estavam concentrados. Eram todos homens, peladeiros veteranos que já viveram dias melhores de preparação física e atlética, moradores do Jardim Selma e da Vila da Vitória. Estavam todos uniformizados, com meiões abaixados e uma quantidade de garrafas na mesa em que só havia duas opções: ou bebiam rápido demais ou já estavam ali havia bastante tempo. Ivone estava ligada no que estava acontecendo. Seu jeito sensível de assistente social tem um radar para situações de conflito em potencial, escutando mais do que falando. Ela sabia da fita completa. Naquela távola estava um desafeto de Kelly, um inimigo político: Zezão. Coisa séria: ele a ameaçou em uma assembleia da Associação de Moradores sobre a regularização fundiária dois anos antes. Primeiro, disse que ia bater e depois jogar uma cadeira na presidente. Ela não se esquivou, peitou o cara. A tática para não passar mais tanto aperto e medo nas reuniões foi começar a filmar as assembleias. O diagnóstico imediato foi machismo, que se articulou com o desentendimento de Zezão com o parcelamento do solo pela Nova Vida. O machão tinha se apropriado de terrenos em uma área de proteção ambiental e ficou inconformado com a recusa da presidente em aceitar o domínio territorial. Enquanto ela contava, o desafeto foi ao banheiro. De olhos para o chão, ele passou perto, mas não se atreveu a olhar para a nossa mesa bamba de plástico já abastecida de alguns litrões e porções. Kelly continuou a falar enquanto ele passava por nós. Zezão gostava, quando enchia a cara, de ameaçá-la pela comunidade, mas tinha medo das relações dela com a igreja, especialmente com padre Gonçalo. Ele também tinha receio do seu único filho homem. O padre sabe negociar com o PCC. O filho dela também e ainda mais diretamente. Zezão acenou para Eder e pagou a conta no balcão.

Kelly, bebericando cerveja, visivelmente mais relaxada e com as mãos lambuzadas de costelinha, retomou a importância política do padre nas lutas da região. Ela lembrou das reuniões organizadas para a permanência da Vitória, da articulação com o Poder Público, da presença em manifestações e atos e da defesa das ocupações de movimentos sociais por moradia. As recorrentes ameaças de expulsão dos moradores da Vila da Vitória são um trauma profundo para os moradores da favela. Kelly era alvo tanto de perseguições da polícia, quanto dos irmãos e dos que correm com o comando em seus negócios imobiliários na favela. Suas lutas são parte da hegemonia compartilhada que se estende por diversos grupos e sujeitos.

Já era mais de meia-noite. A garçonete do bar começou a recolher mesas e cadeiras enquanto cantava um feminejo sofrência. Combinamos as caronas, pagamos a conta e trocamos algumas fotos da novena e da bebedeira. Kelly veio conosco no carro. Ao entrar, ela perguntou se tínhamos filhos e sacou fotografias recentes no celular de três meninas, porém dizendo que era “mãe de quatro”. Uma delas é adolescente e mora com ela. Outra faz o curso de Geografia em uma universidade privada. A terceira é recepcionista. São fotos felizes em momentos de celebração.

Por último, ela mostrou uma foto antiga, em que aparece Maicon ainda criança. Ele apresenta alguma paralisia no braço esquerdo e brinca com carrinhos de polícia e bombeiro no chão de terra. Saberíamos semanas depois, em outra mesa de bar, da relação conturbada de ambos, especialmente depois que ele foi preso por tráfico internacional de drogas na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. Ele está encarcerado no Centro-Oeste, em um presídio federal de segurança máxima.

Kelly contou isso chorando. Bracinho, como é popularmente conhecido, é um irmão. Entrou para o partido para cobrar dívidas. Depois começou a traficar no interior do Estado. A mãe negou o filho quando foi preso, mas depois de muitas idas e vindas, eles se reconciliaram. Ela faz chamadas de vídeo com o filho ocasionalmente e envia remédios e comida com o auxílio de uma mãe de preso que mora mais próximo. Kelly se culpa pelos anos de militância. A luta pela moradia teria ausentado demais a mãe do lar. Maicon aprendeu a disciplina da rua, e não o certo em casa. O que ela queria mesmo era a paz e a tranquilidade de sua casa própria na quebrada que escolheu para viver e lutar.

Ela espera que o filho arranje um terreno ou quem sabe ocupe a laje da sua casa quando for solto. Nós nos despedimos combinando que nos veríamos no dia de São Sebastião e escolhendo as fotos que Kelly iria postar no status do WhatsApp. Ao descer do veículo, ela cantarolava afinada: “Uma flecha não bastou pra calar a sua voz. São Sebastião! São Sebastião, rogai por todos nós!”. E emendou: “Vão com Deus e voltem quando quiserem, abençoados. Acho que temos muito que conversar ainda”.

Kelly e Eder continuam em muitas lutas. A Nova Vida, em muitos negócios. Padre Gonçalo e Pingo, em muitas ações. O PCC, em muitos corres.

  • 3
    Para garantir a segurança e reafirmar os pactos realizados entre pesquisadores e interlocutores, todos os nomes próprios são fictícios, assim como a denominação dos lugares e da empresa retratada. Além disso, nossos interlocutores leram o presente artigo e concordaram com o conteúdo aqui apresentado.
  • 4
    Grafamos em itálico as noções apreendidas em campo. Comumente associadas às gírias, as expressões da malandragem ou linguagem de ladrão são fartamente utilizadas na vida cotidiana periférica de São Paulo para descrever lugares, situações, regimes normativos, distinções ou critérios de verdade. A utilização dessas noções ao longo do texto é uma estratégia para manter a fluidez narrativa a partir da perspectiva e da linguagem utilizada por nossos interlocutores.
  • 5
    Costa (2022)COSTA, H. Entre o “home office” e a vida loka: o empreendedorismo popular na pandemia. In: GODOI, R.; MOTTA, E.; MALLART, F. (Org.). Tempos sombrios: reflexões sobre a pandemia. Rio de Janeiro: Funilaria, 2022, p. 295-329. considera que o empreendedor é um fenômeno que atravessa todas as classes sociais, corporificando as contradições do discurso do investimento no próprio capital humano, o que, a nosso ver, ganha conteúdos específicos no atual contexto neoliberal pós-pandêmico: somente até junho de 2020, 715 mil pequenas empresas fecharam as portas no país, enquanto, entre março e julho do mesmo ano, foram registrados novos 600 mil microempreendedores individuais (MEIs) (COSTA, 2022COSTA, H. Entre o “home office” e a vida loka: o empreendedorismo popular na pandemia. In: GODOI, R.; MOTTA, E.; MALLART, F. (Org.). Tempos sombrios: reflexões sobre a pandemia. Rio de Janeiro: Funilaria, 2022, p. 295-329.).
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    A empresa se respalda na assim chamada desapropriação judicial, com previsão nos parágrafos 4º e 5º do Artigo 1.228 do Código Civil Brasileiro, estabelecida como um instrumento de Regularização Fundiária Urbana no Art. 15 - III da Lei Federal n. 13.465, de 11 de julho de 2017.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2023
  • Aceito
    14 Jun 2023
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