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Devorando o Manifesto Antropófago

Devouring the Anthropophagic Manifesto

BACHMANN, Pauline; MOREL, Dayron Carrillo; MASSSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021

RESUMO

A resenha discute diferentes leituras do Manifesto Antropofágico no contexto de revisões do Modernismo Brasileiro propiciadas pelo Centenário da Semana de 22 e coloca em perspectiva crítica as representações do negro e do indígena presentes na metáfora antropofágica.

PALAVRAS-CHAVE
Antropofagia; Oswald de Andrade; modernismo

ABSTRACT

The review discusses different readings of the Anthropophagic Manifesto in the context of revisions of Brazilian Modernism propitiated by the Centennial of the Semana de 22 and puts into critical perspective the representations of black and indigenous people present in the anthropophagic metaphor.

KEYWORDS
Anthropophagy; Oswald de Andrade; modernism.

Às vésperas das celebrações do centenário da Semana de 22, foi publicado pela editora suíça Peter Lang “Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade” (2021). Editado pelos pesquisadores da Universidade de Zurique Pauline Bachmann, Dayron Carrillo-Morel, André Massseno e Eduardo Jorge de Oliveira, com contribuições de autores latino-americanos e europeus, “Antropofagias” trata das ideias contidas no “Manifesto Antropófago” (1928) de Oswald de Andrade, figura marcante no Modernismo e na Semana de Arte Moderna de 1922, e suas repercussões nas mais diversas áreas da vida cultural e intelectual brasileira. Conforme o próprio título indica, ao se anunciar com um “livro manifesto”, a ênfase dos textos dez textos que compõem a obra recai sobre o texto de Andrade. Por outro lado, o caráter acadêmico dos artigos publicados pode frustrar o leitor que buscar por estilos de escrita vanguardista. No seu preâmbulo, o livro apresenta uma genealogia da metáfora antropofágica, desde a conceitualização da antropofagia cultural nos anos 1920, passando pelo revival tropicalista das ideias de Andrade, até sua inserção nos estudos culturais e discursos pós-coloniais dos anos 1990. A publicação soma-se assim às mais diversas “práticas da devoração” inspiradas por leituras das obras de Oswald de Andrade existentes dentro e fora do Brasil, propondo uma releitura do “Manifesto Antropófago” que tenha “em conta as variantes interpretativas e o lugar de enunciação teórica do texto” (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 27).

A primeira parte do livro, intitulada “Só a antropofagia nos une”, é constituída por um olhar retrospectivo sobre o Manifesto, situando-o nos debates sobre o papel da figura indígena na construção da identidade nacional dos anos 1920 e 1930. Nas décadas abordadas, os debates sobre a cultura brasileira se deslocaram para a valorização das influências africanas, arrefecendo os debates sobre o “indianismo romântico” do período imperial. De qualquer modo, a influência indígena sobre o modernismo brasileiro é notada sobretudo na escrita de Andrade, centro das atenções dos textos reunidos no capítulo. O “palimpsesto” do poeta modernista, “híbrido de ensaio polêmico, manifesto filosófico, paródia literária, revisão histórica, panfleto de provocação, estudo antropológico e roteiro fragmentado”, nas palavras de Beatriz Azevedo no artigo Antropófago Manifesto (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 38), é analisado em sua polissemia e polifonia, na qual confluem as vozes de Shakespeare, Freud, Vieira, Montaigne, Rousseau e Nietzsche, fazendo “contracenar figuras históricas, personagens da literatura, pensadores e filósofos, mitos e alegorias, em diálogos transversais, sem hierarquia, entre realidade e ficção, sem distinção entre giras do clero ou da tribo, sem divisas nacionais ou estrangeiras, sem fidelidade ao tempo cronológico” (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 47). Os aforismos do manifesto são lidos por Eduardo Jorge de Oliveira pelo viés da pregação em O Sermão está servido, no qual o autor ressalta o aspecto utópico do texto em sua fragmentação discursiva: “Sermão e Manifesto, por mais que sejam opostos quanto à forma, são dois gêneros textuais com frequência postos à prova pela eficácia social.” (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 109).

Embora Eduardo Sterzi, ao tratar da relação entre o político e o poético em Diante da lei - da gramática - da história, problematize as maneiras como os povos originários são objetivados pelo processo de colonização do Brasil - afinal, conforme a citação do filósofo franco-argelino Jacques Derrida: “Toda cultura é originariamente colonial” (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 93) -, as demais releituras presentes no livro ressaltam o fato de que o manifesto ainda opera em grande medida nas oposições entre civilização e barbárie, colonizador e colonizado, dentro e fora, o mesmo e o outro, etc. Entre os autores, são Alexandre Nodari e Maria Carolina de Almeida Amaral que questionam de forma instigante, no artigo A questão (indígena) do “Manifesto Antropófago”, essa concepção binária ao falar da referência aos Caraíba, “povos não-tupi, embora talvez não-tapuia (povos não-não tupi?)” (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 69).

O rescaldo do “indianismo” da virada do século XX no modernismo é retomado no artigo que Lena Bader escreve sobre o livro de artista “Algumas vistas de Paris” (1925) de Vicente do Rego Monteiro, abrindo a seção “Mecanismos de devoração e metabolismos históricos da antropofagia”. Aqui a narrativa que os artistas modernistas elaboram sobre a história cultural do Brasil, mais especificamente as interpretações do passado barroco e da cultura popular feitas a partir da visita ao interior em companhia do francês Blaise Cendrars, em 1924, é revista a partir das observações “privilegiadas” desse “brasileiro da França” retratando uma Paris “amazonizada”. Nas gravuras de Monteiro, inspiradas na cultura Marajó, notam-se aspectos que podem ser reconhecidos nos estilo decorativo das artes aplicadas e da arquitetura do período, muito distinto das curvas das obras de Oscar Niemeyer que, segundo Dayron Carrillo-Morell em Arquitetura (para) canibal: “esboçou um estilo baseado na assimilação das teorias de Le Corbusier sobre o funcionalismo, a tropicalização paisagística do International Style e a reivindicação plástica do Barroco colonial” (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 69). O arquiteto recorria à sinuosidade presente na tradição colonial, mas sobretudo no relevo local, para subverter a ortogonalidade euclidiana e a linha reta do modernismo europeu. Apesar de não adotar como referências a cultura indígena, ele assimilava do outro aquilo que lhe servia, como na lógica antropofágica de devoração de Oswald de Andrade, para a proposição de algo que encontrasse raízes locais.

Nos dois casos, há uma afirmação de que aquilo que foge das regras europeias seja automaticamente vinculado às nossas origens, sobretudo ao indígena, como assinala Carrillo-Morell ao falar sobre a arquitetura de Niemeyer:

A sua hesitação entre o respeito pela linha reta e desrespeito pelo ângulo impõe uma dialética que se aproxima inexoravelmente da versatilidade do espírito antropófago descrito por Oswald de Andrade, onde as duas forças que barbarizam a visão purista do conquistador e a estabilidade de seu pensamento colonial podem ser inscritas, a saber: o apetite voraz do índio selvagem e o aspecto transbordante de seu tropicalismo na selva (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 144).

Por outro lado, na referência que Bader ao falar sobre Quelques visages de Paris faz à Aracy Amaral, temos a inserção do indígena como símbolo nacional brasileiro na paisagem parisiense, “nesse duplo movimento de internacionalismo e de nacionalismo” (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 127). Em Paris, o indígena é representado como o oposto à civilização, tido como “primitivo”, alvo de interesse e curiosidade pelo seu exotismo. De qualquer forma, no caso de Monteiro, existe algo de desafiador na presença brasileira no ambiente cultural francês do início do século XX. Coexiste ao mesmo tempo uma lógica contra colonial nessa troca cultural, uma vez que a Europa não cessa de ser o ponto de referência para a cultura brasileira, enquanto esta afirma-se e questiona a colonialidade europeia, a ponto de colocar-se no mesmo lugar central de enunciação.

Exaltando a ideia de primitivo na figura dos indígenas, o Manifesto não destaca da mesma forma o elemento negro. Se Oswald de Andrade, na frase “Só a antropofagia nos une”, traz a ideia de unificação a partir da devoração das referências culturais - indígena, europeia e africana - presentes no país, a presença afrodescendente é colocada em segundo plano. No geral, o texto não faz referências diretas à presença e contribuição africana para a cultura brasileira, embora existam representações nas obras de artistas modernistas, como por exemplo, nas obras de Tarsila do Amaral, Antropofagia (1929), e A negra (1923), mesmo que tenha sido produzida antes da fase antropofágica de Tarsila.

No final dos anos 1960, afirma Pauline Bachmann em Processual, experimental, marginal, ocorre a conversão da antropofagia “de um método literário em uma intervenção crítica cultural”, segundo Bachmann (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 179). Na mesma linha, o texto Consumindo o consumo de André Masseno fala de um desejo de reescrita da história, por meio de uma “linguagem Brasil” nos dizeres de Hélio Oiticica, recuperado pela contracultura dos anos 1960, recolocando o debate sobre a identidade nacional em plena ditadura militar e momento de importação de produtos produzidos por uma indústria cultural estrangeira. O foco da análise do autor é Panamérica, de José Agrippino de Paula, cortejada por leitura de textos de Glauber Rocha e Oiticica. O consumo cultural é visto pelo autor, tanto na ficção de Paula como no ensaio “Brasil Diarreia”, de Oiticica, à maneira antropofágica. O autor atesta dessa forma uma novo momento da antropofagia oswaldiana:

Após noventa anos do surgimento do “Manifesto Antropófago”, é possível afirmar que o Brasil foi descobrindo (ou mesmo se dando conta de) que a porção estrangeira a ser devorada já estava introjetada na própria estrutura cultural do país e de sua sociedade. O banquete a ser devorado não estaria mais propriamente no outro, porém nas imagens e comportamentos gerados pelo próprio sujeito/cultura brasileira para o alheio e para si mesmo, limitando e restringindo, assim, supostas matrizes culturais e (outras tantas) consideradas desestabilizadoras do “decoro necessário” para a construção de uma imagem de si. (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 177).

Tal autoimagem do brasileiro carrega consigo questões ‘reveladoras de um moralismo estrutural presente na sociedade brasileira’ passíveis de serem trazidas para o debate atual, em que reivindicações de grupos subrepresentados na sociedade - LGBTQIA+, indígenas, negros e mulheres - ganham cada vez mais destaque e importância e os debates sobre anticolonialismo e decolonialidade estão no cerne do programa de importantes museus e instituições culturais, “o desejo oswaldiano da transformação do tabu em totem […] parece atual para a reflexão de um momento cada vez mais misógino, homofóbico, racista, revanchista e defensor de uma sede de justiça saciada pela própria sociedade.” (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 177).

As “traduções antropofágicas da cultura” que formam a terceira parte do livro nos permitem também repensar as trocas culturais entre os modernismos italiano e brasileiro, tomando o canibalismo como uma ponte metafórica proposta por Sara Ferrilli em Antropofagias simbólicas e canibalismos ausentes (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 215), que evidencia os efeitos da estadia no Brasil de Filippo Marinetti para a cultura italiana. Tendo em vista que a ideia de tradução só é possível a partir do encontro entre diferentes culturas e do recurso à alteridade, a tradução antropofágica visa a destituição da cultura do outro e de si mesmo, conforme a concepção do tradutor de Haroldo de Campos. Nas palavras de Melanie Strasse, no artigo O canibal triste: “o tradutor torna-se, em vez de melancólico e saudoso, um “usurpador” do original.” (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 228). Contudo, ao olhar com mais cuidado para este fato, é importante que lembremos que diversas culturas indígenas e africanas tiveram a sua história constantemente apagadas pela violência da colonização. Assim, a sua devoração pelos modernistas, mesmo com o intuito de positivá-las, ainda perpetuava uma perspectiva colonial em relação a esses grupos. Por isso, levando em consideração que a tradução provoca o apagamento do outro: “Não é possível negar a violência inerente ao conceito de uma tradução antropofágica.” (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 228).

Releituras do Manifesto Antropófago, como *Antroupofagia, “uma leitura-manifesto” feita pela artista argentina Julieta Hanono (BACHMANN; CARRILLO-MORELL; MASSENO; OLIVEIRA, 2021BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade. Lausanne: Peter Lang, 2021., p. 239-248), sobretudo no contexto do centenário da Semana de 22, são importantes pela possibilidade que nos fornecem de analisarmos e refletirmos sobre as diferentes perspectivas acerca da antropofagia, uma vez que tal noção remonta às profundas complexidades do Brasil, um país repleto de rachaduras e traumas deixados pela colonização e escravidão. Se hoje questionamos cada vez mais as estruturas da sociedade brasileira e percebemos em suas raízes problemas ainda a serem sanados, não seria diferente com o Manifesto Antropófago. Dificilmente pode-se sair isento de críticas. No geral o Manifesto é exaltado pela forma como subverte a lógica das influências europeias na formação da cultura brasileira e se coloca criticamente diante dos discursos nacionalistas da época. No entanto, seria igualmente importante, para além da relevância histórica do manifesto e das releituras reunidas no livro, revisitar tanto as origens da antropofagia como prática cultural quanto as raízes dos conflitos que acontecem nos dias de hoje, nos quais os grupos marginalizados pela sociedade - mulheres, negro/as/es, indígenas, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, entre outros - aceitam cada vez menos a forma como foram representados no passado. As reivindicações atuais por autorrepresentação apontam para o fato de que embora o Manifesto se posicionasse contra a lógica das influências europeias na formação da cultura brasileira, ele ainda perpetuava as hierarquias sociais nas quais artistas de uma elite urbana majoritariamente branca falavam pelo “outro”, sem ceder espaço e protagonismo para grupos excluídos do debate cultural. É mais do que urgente ir muito além das releituras e celebrações e atentar-se às narrativas contadas por outras vozes.

Referência

  • BACHMANN, Pauline; CARRILLO-MORELL, Dayron; MASSENO, André; OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. (Eds.). Antropofagias: um livro manifesto! Práticas da devoração a partir de Oswald de Andrade Lausanne: Peter Lang, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2022
  • Aceito
    07 Jun 2022
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