Acessibilidade / Reportar erro

Sobre a ausência e o surgimento da noção de regionalismo na literatura brasileira: notas para repensar o problema

On the absence and emergence of the notion of regionalism in Brazilian literature: notes to rethink the problem

RESUMO

O artigo examina a ausência da noção de regionalismo na crítica e na história literária brasileiras no século XIX, pois, ao contrário do que se entende, o conceito ingressou em nosso circuito crítico como modo de conceber a literatura brasileira somente no século XX. Nesse sentido, o ensaio investiga as razões dessa ausência, ainda que já houvesse produção literária que figurasse a vida rural/provincial, como também procura sinalizar o momento limiar do seu surgimento no pensamento literário.

PALAVRAS-CHAVE:
Regionalismo; literatura regional; crítica; história social

ABSTRACT

The article examines the absence of the notion of regionalism in Brazilian criticism and literary history in the 19th century. Because, contrary to what is understood, the concept entered our critical circuit as a way of conceiving Brazilian literature only in the 20th century. In this sense, the essay investigates the reasons for this absence, even though there was already a literary production that figured rural / provincial life; but also seeks to signal the threshold moment of its emergence in literary thought.

KEYWORDS:
Regionalism; regional literature; criticism; social history

Goste-se ou não do modo como ele tem abrigado conceitual e analiticamente certas obras e certos autores, goste-se ou não do lugar e do destino literário, social e ideológico a que ele remete tais obras e tais autores com relação ao conjunto da nossa produção, a noção de regionalismo se tornou um edifício conceitual sólido, grandioso e poderoso (inamovível?) à compreensão e explicação da literatura brasileira. E por isso mesmo não menos polêmico e por isso mesmo posto a questionamentos e debates, para qualquer lado que se olhe do feixe de problemas que o conceito suscita. Não são os debates e as polêmicas sobre o conceito que nos interessam diretamente aqui, mas a maneira e as condições com que a categoria ingressou na crítica e na história literárias. Trata-se de uma tentativa inicial, apenas exploratória da questão.

O conceito de regionalismo é tão forte e prevalecente nos estudos de literatura brasileira que não soa estranho pensar que “o termo regionalismo, cunhado no século XIX para caracterizar a literatura produzida fora do Rio de Janeiro, nas províncias, sobreviveu ao tempo” (LEONEL; SEGATTO, 2009LEONEL, Maria Célia; SEGATTO, José Antonio. O regional e o universal na representação das relações sociais. Cerrados, revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UnB, Brasília, n. 28, 2009, p. 135-156.). Tal formulação aparenta ter total pertinência se considerarmos a existência, ao longo do século XIX, de obras como Ermitão de Muquém e O garimpeiro, de Bernardo Guimarães; Til, O sertanejo, O gaúcho e Tronco do ipê, de José de Alencar; O vaqueiro, de Apolinário Porto Alegre; Inocência e A mocidade de Trajano, do Visconde de Taunay; O Cabeleira, de Franklin Távora; O cacaulista, de Inglês de Sousa; A carne, de Júlio Ribeiro; e Dona Guidinha do Poço, de Manuel de Oliveira Paiva2 2 Esse último romance teve apenas os seus primeiros capítulos publicados no século XIX, saindo na íntegra em 1952. , para ficarmos apenas no gênero romance. Ao que tudo indica, entretanto, a entrada da noção no circuito da crítica e da historiografia se deu um tanto mais tarde. Talvez não seja exagero e nem equivocado dizer que, ao longo do século XIX, o termo regional/regionalismo não tinha presença na crítica, ou se tinha era apenas pontual, e muito menos podia ainda se considerar que se tratasse de um conceito com estatuto e alcance que já buscasse sistematizar algum tipo de conhecimento sobre a literatura brasileira. A utilização da categoria, num ensaio como o mencionado, talvez expresse muito daquela força que apontamos no início e, também, de sua consequente naturalização no pensamento literário.

A intenção, a seguir, é tentar situar, perfazendo certo leque temporal, algo do debate que ocorreu no século XIX e no início do século XX no instante em que se esboçava possível reconhecimento das diferenças literárias no Brasil - mas, como se verá, trata-se do reconhecimento que não se pauta pela noção de regionalismo e pelo que ela veio a implicar logo depois - até o momento em que o conceito passa a ter vigência, entre nós, no sentido de ser a tomada de consciência explícita da particularidade e da diferença local a partir de determinadas condições histórias e sociais. O caminho aqui escolhido requereu a seleção de alguns escritores que, a nosso ver, estabelece uma espécie de veio próprio e “interno” ao problema, o qual todavia poderia ser realizado por outra trilha.

Sob a ótica dos escritores

Um dos casos incontornáveis quando se examina o tema é a carta-prefácio d’O Cabeleira (1876), de Franklin Távora, e também se poderia mencionar as suas Cartas a Cincinato (1871-1872), particularmente quanto à polêmica que Távora trava com José de Alencar sobre o romance O gaúcho. Cabe anotar, de saída, que em nenhum dos textos Franklin Távora se utiliza do termo regionalismo; nem parece haver neles sequer esboço argumentativo ou reflexivo que possa remeter à sua noção.

Na carta-prefácio, depois de descrever de modo encantado e extático o poder e a grandiosidade da floresta amazônica - a que gostaria de ver, todavia, num futuro não muito remoto, transformada numa Manchester ou numa New York brasileira -, Távora assinala que as letras têm, assim como a política, certo caráter geográfico, e mais do Norte do que do Sul “abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira, filha da terra” (TÁVORA, 2014_____. Carta-prefácio d’O Cabeleira. In: GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba: UFPR, 2014., p. 311). E a razão seria óbvia: “O Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro. A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças, as índoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, pode-se afirmar que ainda se conserva ali em sua pureza, em sua genuína expressão” (TÁVORA, 2014, p. 311). Se “Norte e Sul são irmãos, mas são dois” (TÁVORA, 2014, p. 312), deve-se notar que tal diferença se faz não pelo fato de o Norte3 3 Durante boa parte do século XIX, o que se entendia por Norte compreendia ser o que atualmente formam as regiões Norte e Nordeste. ser dotado de uma cultura e de uma literatura particular, peculiar, de “cor local”, mas por ser mais abundante em elementos “para a formação de uma literatura propriamente brasileira, filha da terra” (TÁVORA, 2014, p. 311). Mas a matéria específica que definiria o traço mais original da literatura do Norte, contraposta à do Sul, que tem na Corte o seu centro, não é, ou parece não poder ser enunciada, por ora, por Franklin Távora.

Também na crítica que Távora faz a O gaúcho, de Alencar, anos antes do prefácio, em nenhum momento Semprônio situa ou descreve uma possível artificialidade de ordem da “cor local” ou regional no romance alencariano. A sua querela contra o romance se refere ao caráter pouco verista da representação da figura do gaúcho. A premissa de Távora é a de que a verossimilhança ficcional somente é possível por meio da observação ao passo que Alencar teria “a pretensão de conhecer a natureza, os costumes dos povos (todas as variadas particularidades, que só bem acompanhamos em contato com elas) sem dar um passo fora do seu gabinete” (TÁVORA, 2011TÁVORA, Franklin. Cartas a Cincinato. Organização de Eduardo Viera Martins. Campinas: Unicamp, 2011., p. 53). A quem Távora atribui ainda fazer parte do grupo de escritores dotado de “imaginação atrofiada nas cidades [onde] só pode procriar a mentira, a falsidade, quando quer estampar ações e figuras da vida florestal ou do deserto” (TÁVORA, 2011, p. 54)4 4 Sob esse aspecto, na mencionada divisão entre literatura do Norte e do Sul da carta-prefácio, não podemos esquecer que Franklin Távora irá considerar o seu conterrâneo cearense pertencente à literatura sulina. . Não bastasse isso, a linguagem de José de Alencar, considera ainda Távora, não teria asas para elevar-se a assuntos heroicos, conforme pediria a sua matéria5 5 Sabe-se que uma série de fatores estaria por trás da crítica que Franklin Távora desfere a José de Alencar, que todavia está fora do interesse direto deste estudo. .

Assim, seja na visão que se esboça de que o país é literariamente variado, seja no exame de uma obra que será considerada sob muitos aspectos modelar do que adiante se chamará propriamente de regionalismo, em nenhuma das situações o argumento se centra no reconhecimento e na consciência de alguma forma de particularidade local, de vigência de um subsistema cultural e literário, com seu correlato sistema de valores minimamente pautado, e, por consequência, com alguma demanda de circulação. O que sugere estar em disputa, nessa quadra, ao menos no desejo do autor d’O Cabeleira, é a hegemonia por uma suposta matriz literária mais autêntica, que no caso significaria aquela menos afeita aos influxos externo e urbano.

Quase 20 anos depois do prefácio d’O Cabeleira, outro cearense, o escritor Adolfo Caminha, retoma a discussão em dois artigos, um intitulado justamente “Norte e sul” (1894aCAMINHA, Adolfo. (1894a). Norte e sul. In: GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba: UFPR, 2014, p. 315-319.) e o outro, “Nativismo ou cosmopolitismo?” (1894b). Franklin Távora é referido, sem ser citado, no primeiro. O autor do Bom crioulo invoca a “palavra da ciência” para defender a ideia segundo a qual esta concebe a primazia à gestação artística às regiões do norte, isto é, “ao país em que mais temperado for o clima” (CAMINHA, 1894aCAMINHA, Adolfo. (1894a). Norte e sul. In: GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba: UFPR, 2014, p. 315-319., p. 316). No norte, ao contrário do sul, uma “atmosfera leve, um céu azul e uma paisagem clara, como se observam ordinariamente nas regiões setentrionais do Brasil, dão força à imaginação, desenvolvem a sensibilidade, proporcionam estados d’alma e uma visão otimista das cousas” (CAMINHA, 1894a, p. 316). O calor excessivo levaria à indolência do espírito e, portanto, a “certa incapacidade para as grandes criações estéticas”; já o frio excessivo, à atrofia mental, mas sem consequências de todo para a sensibilidade artística. Caminha compreende o fenômeno como manifestação universal, indo buscar exemplos para sua “hipótese” em diferentes literaturas. Com relação à brasileira, a exemplo de outras, “não se pode negar que a zona norte é mais fecunda em organizações artísticas: de lá vêm toda a força, todo o prestígio literário, toda a originalidade” (CAMINHA, 1894a, p. 316). A “descida” dos nossos escritores ao sul, particularmente ao Rio de Janeiro, diz respeito apenas à necessidade de completar a sua educação de espírito. Esse fato é comum a escritores do sul e do norte, “que trazem do solo natal o que se não adquire em parte alguma: o temperamento, a vocação, as tendências naturais” (CAMINHA, 1894a, p. 316). Quase como complemento e síntese de sua argumentação, Adolfo Caminha diz:

O filho da província, por mais talentoso que seja, há de forçosamente completar a sua educação artística num círculo maior, onde as suas faculdades possam triunfar em comunicação com as obras estrangeiras; o talento, porém, esse conserva-se original e vigoroso, sem perder nenhum dos caracteres que o distinguem da inteligência meridional. (CAMINHA, 1894aCAMINHA, Adolfo. (1894a). Norte e sul. In: GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba: UFPR, 2014, p. 315-319., p. 318).

No ensaio “Nativismo ou cosmopolitismo?”, na questão suscitada desde o título, o escritor cearense volta a ver a experiência literária da cidade como indistinta e incaracterística quando não “falsa”, “sem originalidade”, “sem cor própria”, porque influenciada por modelos estrangeiros. Num meio cosmopolita, o criador perde inconscientemente as qualidades características de brasileiro. O contrário se passa no ambiente provinciano, “que desconhece a tumultuosa agitação dos grandes centros, que vive lá no coração de sua pátria, identificado com o viver do povo e com a natureza”; aqui, a literatura é mais original e verdadeira, porque descreve o que o escritor “viu e sentiu, comunica-nos a impressão que diretamente recebeu; é, por força, um nativista, um produto do meio nacional” (CAMINHA, 1894bCAMINHA, Adolfo. (1894b). Nativismo ou cosmopolitismo?. In: GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba: UFPR, 2014, p. 239-242., p. 239-240).

Interessa-nos destacar que nos dois ensaios de um “escritor provinciano”, em final do século XIX, o que está em foco é o “inexplorado campo das tradições nacionais, da vida nacional” (CAMINHA, 1894bCAMINHA, Adolfo. (1894b). Nativismo ou cosmopolitismo?. In: GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba: UFPR, 2014, p. 239-242., p. 242); em nenhum momento esse campo pode ser confundido ou sobreposto ao da particularidade local, provincial ou regional. Noções como “norte” e “nativismo”, com explicação mais ao gosto do cientificismo finissecular em voga, no primeiro caso, ou com apelo ao recorrente problema da influência da literatura estrangeira6 6 O debate da influência da literatura estrangeira, em especial a portuguesa e a francesa, sobre a brasileira, como se sabe, será constante ao longo do romantismo e depois dele. No caso particular aqui analisado, vale chamar a atenção para o fato de que a aspiração à originalidade nacional não consegue abrir mão do pensamento forasteiro prestigiado e avançado da época ou, no mínimo, vem de mãos dadas com ele - o cientificismo, que todavia não é compreendido como elemento estranho pelo autor. Sobre o problema, ver o ensaio “Nacional por subtração” (SCHWARZ, 1987). sobre a nossa, no segundo, circunscrevem as reflexões de Adolfo Caminha ainda no âmbito das preocupações estritamente nacionais.

Comparativamente, a visão de Caminha é mais balizada pelo “campo da tradição e da vida nacional” do que a de Távora, mas os pontos de contiguidade surgem de modo relativamente claro, seja nos conceitos (norte/sul), ainda que operados em sentidos diversos, seja - e mais importante - nos pontos de vista em que a noção de “meio provinciano”, no primeiro, é correlata à de “literatura do norte”, no segundo, ambas correspondendo à aspiração legitimadora do que seria uma autêntica literatura nacional não afetada pela imitação estrangeira. De qualquer maneira, num caso e noutro, a consciência literária se manifesta e se define como instância da formação nacional. Poder-se-ia considerar que algumas dessas formulações são elementos embrionários do que mais adiante se denominará de regionalismo; marcam certa posição que, não podemos desconhecer, já sinalizam a percepção de que “a nossa literatura assemelhar-se-á à árvore que produz pomos de natureza diversa”, mas não se caracterizam como um pensamento, programático ou analítico, que crie e delimite a vigência de um sistema de valores cultural e literário particularistas.

Sob a ótica dos historiadores

Deslocando a atenção dos escritores-ficcionistas para os dois principais historiadores e críticos da literatura brasileira da segunda metade século XIX até os primeiros decênios do XX, Sílvio Romero e José Veríssimo, e considerando as suas respectivas histórias da literatura, podemos dirigir a eles também a pergunta central que persegue a nossa preocupação neste estudo: por que na sistematização das suas histórias literárias a noção de regionalismo não surge como um dos conceitos ordenadores e explicativos da matéria literária? Ou, como correlato da questão, por que a expressão praticamente inexiste na obra de Sílvio Romero na versão original (1888) e mesmo na segunda já aumentada7 7 A partir da terceira edição, de 1943, a História da literatura brasileira de Sílvio Romero foi ampliada por Nelson Romero com a incorporação a ela de outras obras do historiador, passando dos originais dois volumes para cinco. ? No caso da História da literatura brasileira (1916), de José Veríssimo, ainda que o autor faça uso da expressão e de termos derivados (VERÍSSIMO, 1981_____. História da literatura brasileira. 4. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1981., p. 195 e 203), por que motivo o regionalismo não se torna ainda um dos princípios organizadores de sua história literária8 8 Para não deixar dúvida: não estamos propugnando que já deveria haver, nesse instante, uma noção de regionalismo vigente como elemento explicativo ou como manifestação de consciência sobre a nossa literatura. Estamos nos limitando a demonstrar que a ideia de regionalismo, no sentido forte do termo, ainda não estava inscrita no horizonte mental dos nossos escritores. ?

Sílvio Romero, na segunda versão da sua História da literatura brasileira, ao estudar a obra de Franklin Távora, comenta que o autor d’O Cabeleira “deve figurar como chefe do naturalismo tradicionalista e campesino na novelística brasileira”, explicando, a seguir, o uso de cada um dos termos: naturalismo, porque seus tipos e cenas são observações diretas do escritor, “estudos do natural”, e não meros elementos da imaginação; tradicionalista, porque tratou de assuntos do passado, históricos; campesino, porque “escolhia seus atores entre as gentes da roça, do mato, do campo” (ROMERO, 1954ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Tomo V. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954., p. 1.602). Esse conceito fará parte ainda do seu “Quadro sintético da evolução dos gêneros da literatura brasileira” (1909), anexado à parte final do quinto e último tomo de sua História, como um dos nove conceitos na tentativa de definir a prosa de ficção. O “meio-naturalismo tradicionalista e campesino” abrangerá o período de produção literária que vai de 1860 a 1884, e na ponta da caracterização está a obra de Franklin Távora, a que se somam a de Bernardo Guimarães, Taunay, Apolinário Porto-Alegre, Inglês de Sousa, José do Patrocínio, Rodolfo Teófilo, Afonso Arinos, Domingos Olímpio, Viriato Correia, entre outros. Do ponto de vista da definição conceitual, não há informações, senão aquelas elaboradas na análise de Franklin Távora (ROMERO, 1954, p. 1.974).

A noção de “meio-naturalismo tradicionalista e campesino” (ROMERO, 1954ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Tomo V. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.) nos permite vislumbrar que Sílvio Romero já entrevia diferenciações literárias mais significativas no “quadro da evolução” da literatura brasileira9 9 Não podemos perder de vista que Sílvio Romero já dera ciência dessa diferença ao organizar coletâneas de cultura popular e antologias como a do Parnaso sergipano. . A chave aqui se concentra no termo “campesino”, que remete, como afirma, à representação de “atores entre as gentes da roça, do mato, do campo” (ROMERO, 1954); ao mesmo tempo, não se pode deixar de notar e de inferir que essa noção forma uma espécie de par complementar e oposto ao que se segue, que é o de “meio-naturalismo da cidade” e abrange o mesmo período de produção do “meio-naturalismo tradicionalista e campesino”. Ambas se lançam embrionariamente como categorias que, mais adiante, irão configurar certo modo de compreender a literatura brasileira na distinção entre prosa de ficção urbana e prosa de ficção rural. Até esse momento, ainda que esbocem um patamar de diferenciação, parecem, no entanto, limitar-se a um modo de classificação distinto das formas de apresentação dos atores e das cenas ficcionais entre “meio-naturalismo campesino” e “meio-naturalismo da cidade”. São por assim dizer “pré-conceitos”, ou conceitos meramente classificatórios, no sentido em que não chegam a sistematizar e a gerar um conhecimento literário específico. De outro lado, não se pode perder de vista que a noção de “naturalismo campesino” é formulada cerca de vinte anos depois da versão original da sua História da literatura brasileira, depois, portanto, dos próprios ensaios de Adolfo Caminha, e já indicia a mudança de percepção do problema.

Fundamental para a discussão proposta é a posição de José Veríssimo. A entrada em circulação do conceito de regionalismo de modo mais articulado, no pensamento crítico literário, sugere, salvo melhor juízo, ter se dado com os seus estudos e artigos, antes mesmo da publicação de sua História da literatura brasileira. No ensaio publicado entre 1912 e 1914, desde o título já se anuncia a presença do conceito, “Literatura regional”10 10 Esse estudo saiu entre esses anos em jornal e compõe a coletânea póstuma Letras e literatos: estudinhos críticos da nossa literatura (VERÍSSIMO, 1936), publicada em 1936, pela José Olympio. . Além de abordar o exame de três obras regionalistas publicadas à época, o texto formula um conjunto de questões que até então não se punha de modo claro e explícito no horizonte literário da crítica e dos escritores. Tais questões lastreiam a possibilidade de constituição de um conceito na medida em que se assentam em três aspectos: na demarcação do ingresso do regionalismo como parte constitutiva do nosso processo literário, na sua visão como fenômeno literário específico e no ajuizamento de valor. Para José Veríssimo, a nossa literatura se iniciou pela “aplicação às coisas regionais”; tanto na poesia quanto na prosa, essa primeira inspiração literária se desenvolve com o “instinto de nacionalidade” do momento - fazendo o crítico uso da clássica expressão machadiana -, o qual se exprimiu por meio do “indigenismo caboclo” e do “pitoresco sertanejo” (VERÍSSIMO, 1977_____. Literatura regional. In: VERÍSSIMO, José. José Veríssimo: teoria, crítica e história literária. Organização de João Alexandre Barbosa. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1977., p. 83). Ao mesmo tempo, pode-se dizer que a sua compreensão sobre o regionalismo se confunde com o seu juízo de valor. A forte presença da “vida rústica” na literatura se esbate com o fato de que raramente os escritores souberam compenetrar-se da “alma sertaneja, nem a definir profundamente”, ao que complementa:

A máxima parte dessa literatura, que por sua vez constitui a melhor da nossa, ficou na superficialidade da representação dos aspectos materiais. A máxima parte dela, impressionada apenas pelo seu pitoresco visível, quedou-se no descritivo ou caiu retoricamente na idealização romântica, trazendo para a nossa ficção preconceitos românticos europeus. (VERÍSSIMO, 1977_____. Literatura regional. In: VERÍSSIMO, José. José Veríssimo: teoria, crítica e história literária. Organização de João Alexandre Barbosa. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1977., p. 83).

Faltou a essa “literatura rústica”, argumenta o crítico, além de conhecimento de que também carecia, o sentimento, “a compreensão que vem da íntima afinidade do artista com o seu assunto” (VERÍSSIMO, 1977_____. Literatura regional. In: VERÍSSIMO, José. José Veríssimo: teoria, crítica e história literária. Organização de João Alexandre Barbosa. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1977., p. 85). E não deixa de retornar a ideia de que também ela foi feita, antes de tudo, com a má influência da mentalidade e dos sentimentos europeus, “com a estética, os processos, as modas, os cacoetes literários estrangeiros” (VERÍSSIMO, 1977, p. 85). Dessa falta de correlação íntima entre o artista e a matéria derivará um dos problemas centrais da literatura regional:

Ficam todos [os escritores] na descrição ou na sensação puramente literária [sic], não raro retórica, do nosso mundo exterior. Também nada mais fácil, e por isso mais vulgar, do que a representação crassa do pitoresco, do curioso ou do singular de nossas regiões sertanejas. O vocabulário local, a fraseologia regional, a nomenclatura da flora, da fauna, as curiosidades indígenas, a apresentação dos seus aspectos mais típicos bastam para dar a ilusão da cor e até do caráter local. (VERÍSSIMO, 1977_____. Literatura regional. In: VERÍSSIMO, José. José Veríssimo: teoria, crítica e história literária. Organização de João Alexandre Barbosa. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1977., p. 85).

Todos esses fatores somados e articulados fazem da “literatura rústica” algo peregrino e artificial. Podemos constatar que o ensaio de José Veríssimo conforma de vez certa noção de literatura regional, desde aí sob má sina e sob mau olhar da crítica11 11 Vale salientar que as ideias negativas de José Veríssimo sobre a literatura regional farão escola e, na verdade, com variações aqui e ali, pouco se alterarão ao longo do tempo, quando o conceito se firmar de vez no horizonte crítico. Sobre o assunto e também como o conceito de regionalismo se transformou mais em juízo crítico do que categoria analítico-descritiva ver: Gil, 2008. , que não se descortinava nem em Sílvio Romero nem na crítica em geral e nem em nossos escritores-ficcionistas.

Curiosamente, entretanto, José Veríssimo não utiliza o conceito em uma das suas obras seminais, que é a História da literatura brasileira, como forma de ordenar a sua visão histórica da matéria literária. A presença da expressão nela é predominantemente adjetiva e pontual, e não explicativa e sistemática. Assim, se, por um lado, Veríssimo procura compreender a noção do pitoresco como elemento da busca do peculiar e, portanto, do diferencial em momento de formação das nações americanas, “carecedoras de um real sentimento ou pensamento próprio” (VERÍSSIMO, 1981_____. História da literatura brasileira. 4. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1981., p. 194 e 203), ao analisar Guarani e As minas de Prata, de José de Alencar, por outro, o historiador diz que “Bernardo Guimarães é o criador do romance sertanejo e regional, sob seu puro aspecto brasileiro” (VERÍSSIMO, 1981, p. 203), sem todavia dar espessura e densidade ao conceito de modo a indicar como possível linhagem de nossa constituição literária, como faz no artigo antes mencionado. Por que - podemos nos perguntar então -, tendo em mente e em mãos certo nível de compreensão e de elaboração do caráter internamente diferenciado da nossa literatura, o historiador não chega a operar ainda com o conceito no sentido de tê-lo como uma das possíveis instâncias de configuração da dinâmica do nosso sistema literário?

Talvez parte da resposta, ou uma resposta possível, esteja num ensaio anterior aos outros estudos, de 1902, em que José Veríssimo retoma a discussão sobre literatura do Norte e do Sul, de Franklin Távora, quando da reedição da trilogia das crônicas pernambucanas desse autor. No ensaio “Franklin Távora e a literatura do Norte”, o historiador elenca três fatores que poderiam ter levado Távora à sua formulação da literatura do Norte: o seu sentimento dúbio pela Capital entre uma admiração e um gosto exagerado por ela e a desconfiança do matuto, de provinciano; o bairrismo nortista motivado por razões históricas, sociais, particularmente no que diz respeito à posição ocupada por Pernambuco ao longo do período colonial, e a diferença geográfica que agiria sobre os diferentes tipos sociais e étnicos (VERÍSSIMO, 2014_____. Franklin Távora e a literatura do Norte. In: GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba: UFPR, 2014., p. 329-330). Após exame desses pontos, sobretudo dos dois últimos, Veríssimo assinala que não há como negar que haja diferenças entre o Norte e o Sul; entretanto, argumenta que nem mesmo o Norte ou mesmo o Sul são homogêneos; pelos aspectos físicos, costumes e usanças, o Ceará é diferente da Bahia, como São Paulo do Paraná e o Rio Grande do Sul de Pernambuco. Só que essas diferenças - eis o núcleo da posição de José Veríssimo - “não podem servir para nelas assentarmos, como quisera o meu saudoso amigo Távora, o critério da divisão regional da literatura brasileira” (VERÍSSIMO, 2014, p. 331). E quase em chave de conclusão acrescenta:

Mas mesmo ao tempo em que escrevia Franklin Távora, uma literatura que fosse a expressão sincera da vida do Sul do Brasil não seria menos brasileira que a que exprimisse a do Norte. Se ambas fossem a representação perfeita desta vida, achar-se-iam forçosamente entre elas pontos comuns, identidades manifestas, desses característicos com que através das variedades mais pronunciadas a espécie revela a sua unidade. (VERÍSSIMO, 2014_____. Franklin Távora e a literatura do Norte. In: GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba: UFPR, 2014., p. 332).

No centro do pensamento de José Veríssimo está não somente o questionamento do que é o Brasil e o brasileiro na versão “mestiço-romântica” de Távora, mas sobretudo a compreensão de que, mesmo reconhecendo os particularismos das regiões, a unidade literária nacional, como força centrípeta, tem o poder de subsumir em si as diferenças regionais. Daí que, para ele, Norte e Sul resguardam os “caracteres comuns que física e moralmente as igualam e os sentimentos gerais que as irmanam, delas não podia sair, sob o aspecto estético, uma manifestação especial, particular a cada uma das suas frações” (VERÍSSIMO, 2014_____. Franklin Távora e a literatura do Norte. In: GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba: UFPR, 2014., p. 330). A perspectiva do historiador paraense é presidida por uma matriz de pensamento que ainda compreende a necessidade e a prioridade de ver o sistema cultural e literário brasileiro como um todo, como a construção do todo nacional, em que pese já se possa entrever com mais nitidez as partes (regionais) desse todo que o constituem. Muito provavelmente sustentando essa posição crítica estão o sentimento e a compreensão do potencial de desagregação da nação existente, agora sob a batuta da recém-proclamada República. Talvez isso explique, ao menos em parte, o porquê da ausência da noção de regionalismo como um dos princípios diretores de sua História da literatura brasileira. Esta é vista como um construto da unidade e da centralidade que a formação literária nacional deve ter no esforço maior da construção da própria nação, razão pela qual a visão necessariamente fragmentária e particularista do regional, ainda que em nome do nacional, não pode ser posta em destaque nesse momento. É nesse sentido que o pensamento de José Veríssimo ocupa uma posição de trânsito entre a sua ausência até então e o seu surgimento como conceito. Digamos que, como crítico, ele percebeu o fenômeno e o nomeou, como historiador, porém, parece ter se recusado a introduzi-lo como parte formadora do seu método de análise e, por consequência, como parte constituinte também do seu próprio objeto, a não ser, como se viu, nominalmente. Essa parece ser uma contradição que requer um pouco mais de esclarecimento dos seus termos.

O conceito e a história

Retomemos a questão principal de nossa reflexão. Estamos sugerindo que a partir da segunda metade do século XIX, com sua consolidação na década de 1870, houve uma expressiva produção literária que poderíamos chamar de provincial ou rural, de tendência não urbana, que escapava ao eixo cultural e literário dominante, que era a cidade do Rio de Janeiro, a corte, e depois a capital federal da República. Essa literatura, no entanto, não deixava de ser sobredeterminada, de forma direta e indireta, pelo influxo do campo de força (e das relações) de poder e de hegemonia literária, cultural, política e social que se engendrava e se irradiava do centro de poder. Haveria, portanto, ao longo desse período de mais de meio século, uma produção literária provincial, mas não houve, no seu transcorrer, a formação de uma consciência, de um pensamento que a percebesse como uma literatura particular, local ou, como veio a se chamar, regional. Acima, buscamos caracterizar a ausência dessa consciência no momento em que emergem ideias e formulações que aparentemente sugerem certa inflexão na compreensão do problema, essa inflexão, todavia, como se tentou mostrar, ainda encerrava o nacional como critério dominante de compreensão da nossa literatura. Já no começo do século XX, o conceito adquiria forma e conteúdo como expressão da particularidade, mas não, ainda, como sistematização de um modo de conceber a literatura brasileira.

Posto isso, a pergunta que nos cabe formular nesta quadra é: por que a existência de literaturas locais/regionais não conseguiu se desgarrar de um princípio centralizador no modo de ordenar, organizar e compreender a literatura brasileira, que é o nacional, como baliza dominante? Posto em outros termos, por que a chamada literatura regional requereu longo tempo para que a crítica e a história literárias elaborassem conceito a seu respeito e começassem a operá-lo com algum grau de poder descritivo e interpretativo do fenômeno?

Para ao menos delinear uma explicação à questão, nos limites possíveis deste artigo, é necessário que nos retiremos do campo literário para compreender que a própria configuração do dinamismo literário e dos seus respectivos conceitos se define na mediação e na relação com outras instâncias da vida social. Os fatores centrais que determinariam a longa demora para o surgimento de uma visada mais particularista/regional/provincial à vida literária e cultural não têm o caráter de originalidade histórica ou social neste trabalho. Eles estão no bojo de estudos contemporâneos sobre a formação histórica, social e política do Brasil.

Primeiro fator. Imagino não ser totalmente equivocado dizer que, após a Independência, em 1822, e ao longo de quase todo o século XIX, portanto, em momentos diferentes, em contextos históricos variados e com ordem de questões jungidas em conjunturas sociais diversas, o que moveu as ações, os pensamentos, os projetos e os sentimentos da elite política, de fração da classe econômica dominante e de setores letrados ligados direta ou indiretamente a ambas foi, por um lado, a formação, a consolidação e as formas de atuação do Estado nacional e, por outro, a construção da nação12 12 Sobre o exame histórico do conceito de nação, ver: O romantismo e a ideia de nação no Brasil (1830-1870) (RICUPERO, 2004). Utilizamos algumas formulações do autor, adaptando-as ao propósito do nosso trabalho. . Em esquema, a consciência e a prática desses grupos punham em movimento o processo político e cultural de construção nacional. Esse gesto desdobrado ao longo de décadas do século XIX exigiu não somente a centralização de formas de controle e de administração do poder durante o período imperial, sobretudo depois da Regência, do ponto de vista da estrutura e do funcionamento do Estado, mas também um sistema ideológico de valores com um ideário de nação predominantemente centralizador e integrador. No mesmo passo que a independência dos países da América hispânica evidenciava o potencial de fragmentação da experiência da colonização por meio da instauração de aparatos de poderes locais, tais forças centrífugas também estavam na base da formação histórica brasileira, desde as capitanias, cujo “sistema se aproximava de uma federação, se da expressão guardamos apenas o aspecto de autonomia política das unidades componentes do todo” (CARVALHO, 1998CARVALHO, José Murilo. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998., p. 156). Nesse sentido, “o processo de centralização e crescimento do governo central se dava num contexto de conflitos e pressões de todo o tipo, e grande parte da história política do Brasil gira em torno do tema da centralização vs. descentralização” (SCHWARTZMAN, 1988SCHWARTZMAN, Simon. As bases do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1988., p. 71)13 13 Para o ponto de vista deste trabalho, ver particularmente o capítulo 5, “Do império à república: centralização, desequilíbrios regionais e descentralização” (SCHWARTZMAN, 1988, p. 171-212). O esforço de centralização e de integração na busca da unidade nacional possível não deixou de ser o reconhecimento de que forças sociais centrífugas, para usar a expressão de Oliveira Viana (1973), sempre estiveram presentes ao longo do período imperial, mas sem força hegemônica. .

Por isso mesmo, e entre outras razões, a formação do Estado e a criação da nação, momentos diferentes de um mesmo processo, emergiram e atuaram predominantemente, ao longo do período imperial, como instâncias definidoras do empenho de unificação nacional, estabelecendo “os parâmetros básicos para a unidade brasileira, num esforço que será tanto material como simbólico” (RICUPERO, 2004RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a ideia de nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004., p. 40). Em relação a este último, as formas de engendramento da identidade cultural, do indianismo romântico de um José de Alencar à “teoria” da obnubilação tropicalista naturalista de um José Araripe Jr., entre outras, buscavam criar visões da unidade nacional, de integração do todo nacional. Por contrapartida, havia pouca possibilidade de se forjar sistemas de pensamento ou visões particularistas que expressassem as demandas ideológicas e simbólicas das elites ou de grupos sociais locais ou regionais14 14 Isso não significa, por parte dos nossos escritores, falta de compreensão do potencial da diversidade cultural e literária das forças centrífugas que constituíam o país. A formulação de Bernardo Guimarães, de 1847, reflete esse aspecto, sintomaticamente lançando esta possibilidade como futuro: “Provavelmente ela [a literatura] não será uniforme, apresentará tantas variações quanta é a diversidade de nosso clima e solo: o caráter dos povos das campinas abertas do Sul divergirá essencialmente dos habitantes das nimbosas e auríferas serranias de Minas, e dos filhos das gigantescas e majestosas florestas do Pará” (GUIMARÃES, 2014, p. 193). .

Segundo fator. O mundo centralizado do Império, particularmente o do segundo, é um mundo dominantemente rural, que “respondia por 80% da população e por quase toda a riqueza” (CARVALHO, 1998CARVALHO, José Murilo. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998., p. 179), baseado na grande propriedade, na economia exportadora e na exploração da mão de obra escrava. Tais formas de produção tendem a criar relações de produção com baixa voltagem de divisão social do trabalho ao longo do tempo. A plantation escravista-exportadora, como forma dominante de produção da riqueza do segundo Império, estabelece a pouca especialização do trabalho e das relações de produção como um todo15 15 A plantation escravista-exportadora é o plano mais destacado de um processo mais abrangente e de longa duração para o qual se quer chamar a atenção, que é o fato de nossa formação social ter como eixo dominante de sua constituição o mundo rural, os “domínios rurais”, em suas formas de trabalho, de produção e de circulação de produtos os mais diversos e variados. . Embora as atividades e os modos de vida urbana se fizessem presentes em cidades diversas do Brasil, na segunda metade do século XIX, com seus segmentos burocráticos, com os pequenos grupos sociais de profissionais liberais e com os escravos de ganho ou de aluguel, entre outros, o grau de complexificação e de diversidade sociais sugere ser ainda muito baixo, fazendo com que os centros urbanos brasileiros nunca deixassem de se “ressentir fortemente da ditadura dos domínios rurais” (HOLANDA, 2016HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 145). A “ditadura dos domínios rurais”, nas suas mais diversas formas, retarda a diferenciação entre espaços sociais configuradamente variados e diversos. Dito em outros termos, com tal sistema, não há, durante quase todo o século XIX, uma “divisão territorial do trabalho” que possibilite a produção do espaço social por assim dizer dicotômica, por exemplo, entre mundo rural e mundo urbano (MOREIRA, 2012MOREIRA, Ruy. As fases e vetores da formação espacial brasileira: hegemonias e conflitos. In: _____. A formação espacial brasileira: uma contribuição crítica à geografia do Brasil. Rio de Janeiro: Consequência, 2012., p. 18). Esta é a compreensão de Maria Isaura Pereira de Queiroz quando se refere à dialética da implicação mútua entre campo e cidade:

Não houve, pois, durante o período colonial, prolongando-se durante o período monárquico, uma diferenciação essencial entre campo e cidade, como o que se estabelecera na América Espanhola; pelo contrário, a dialética da implicação mútua parece a mais apropriada para nomear o tipo de processo existente então entre ambos, o que proporcionou uma interpenetração profunda de civilizações. Note-se que imanência recíproca ou implicação mútua significa que os dois termos, heterogêneos à primeira vista, se contêm reciprocamente, se recobrem parcialmente um ao outro. (QUEIROZ, 1978QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Dialética do rural e do urbano: exemplos brasileiros. In: _____. Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1978., p. 280).

É provável que tal indistinção também esteja na base da impossibilidade de se forjar um aparato mental que expressasse a constituição de um sistema de valores e ideológico de sociedades e grupos regionais que se percebessem como relativamente autônomos e diferenciados. Note-se, portanto, que a existência e a ação de forças centrífugas, sobretudo inter e intraclasses dominantes provinciais, desdobradas em tensão e conflitos os mais diversos ao longo do Império, não são suficientes para a configuração de identidade particularista requerida ao regionalismo, ainda que a formação dessas elites, a médio ou a longo prazo, se torne um pressuposto para tal.

Dois vetores dominantes de longa duração, atuando em níveis diversos da vida social, teriam, por conseguinte, impedido o surgimento de uma consciência particularista, localista e/ou regionalista no Brasil do século XIX. O caráter político e social tendencialmente centralizador do Estado brasileiro, junto à necessidade prioritária da construção cultural identitária nacional, por um lado, e, por outro, a indistinção de formações sociais espaciais diversas em razão da baixa divisão territorial do trabalho no bojo da sociedade escravista-exportadora formaram o amálgama necessário a impedir fissuras significativas do prédio imperial. Daí o aspecto aparentemente paradoxal de se ter uma “produção literária regional” e uma reflexão literária que não a incluía nominal, crítica e historicamente; não a incluía porque ela era percebida única e exclusivamente como literatura “nacional”.

A consolidação do conceito

Na hipótese que se está delineando, o conceito de regionalismo surge imantado por um feixe de condições históricas, sociais e culturais que envolve a sua possibilidade de aparição e consolidação do ponto de vista literário. Se procuramos, até agora, percorrer as razões de sua ausência ao longo da prática centralizadora do Império na sua intenção de construir a unidade estatal, política, administrativa, territorial e cultural do país, podemos dizer, agora, que a noção emana no seio da experiência do federalismo da Primeira República, ou seja, no momento de descentralização, “ponto alto do poder das oligarquias rurais na história independente do país” (CARVALHO, 1998CARVALHO, José Murilo. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998., p. 181-182). Trata-se de um momento de desconcentração do poder que se movia como força histórica e social já no início de nossa formação histórica, adquirindo uma configuração específica após o fim do Império, como anota José Murilo de Carvalho, no ensaio “Federalismo e centralização no Império brasileiro: história e argumento”, já referido:

[H]avia no País, desde a colônia, forte base localista, importantes fatores centrífugos. O elemento localista não cessou de se manifestar durante o processo de independência e durante toda a Regência. A centralização imperial foi um tour-de-force para o qual colaboraram vários fatores: a formação da elite política, o cansaço com as revoltas, o receio da perturbação da ordem social escravista, o temor da fragmentação do País, o apelo simbólico da monarquia entre as populações rurais e seu apelo instrumental entre as elites. Assim que passou o efeito da ação ordenadora da centralização, e assim que terminou a coincidência entre o centro político e centro econômico [o deslocamento da produção de café do Rio de Janeiro para São Paulo], voltaram as demandas de descentralização, sobretudo nas províncias mais dinâmicas. (CARVALHO, 1998CARVALHO, José Murilo. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998., p. 178-179).

O processo de descentralização trouxe consigo, portanto, a entrada em cena dos estados, agora com força de poder político, administrativo e também em busca de capital simbólico que, de alguma maneira, os definisse a si mesmo, em face dos outros estados e do poder central. Nesse novo jogo de xadrez das formas e das relações de poder implantado pelo federalismo republicano, vale ao menos assinalar que as oligarquias locais têm posição importante, mas não absoluta, já que se encontravam em momento de descenso. É ainda Murilo de Carvalho, seguindo a argumentação de Victor Nunes Leal, no estudo “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual”, que chama atenção para essa articulação específica entre oligarquias locais e a reconfiguração do lugar político das ex-províncias, agora estados:

A conjuntura econômica, segundo Leal, era a decadência econômica dos fazendeiros. Esta decadência acarretava enfraquecimento do poder político dos coronéis em face de seus dependentes e rivais. A manutenção desse poder passava, então, a exigir a presença do Estado, que expandia sua influência na proporção em que diminuía a dos donos da terra. O coronelismo era fruto de alteração na relação de forças entre os proprietários rurais e o governo, e significava antes o fortalecimento do poder do Estado que o predomínio do coronel. O momento histórico em que se deu essa transformação foi a Primeira República, que durou de 1889 até 1930. (CARVALHO, 1998CARVALHO, José Murilo. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998., p. 132).

Para o nosso argumento, mostrado aqui em esquema, interessa destacar que, se o Império foi o momento e a fonte da centralização, organizando e ordenando o seu sistema de valores ideológicos na busca da coesão e da unidade nacional, o período republicano constituiu unidades de poder que, sobrevivendo de modo difuso e disperso durante o Império, demandam, nessa quadra, a reivindicação da especificidade local em face de outras instâncias políticas, sociais e culturais de poder. O estado, agora redimensionado o seu poder e seu lugar, relativamente autonomizado e descentralizado, ou seja, constituindo-se como unidade, e nesse sentido se percebendo como parte de um todo, torna-se o locus histórico da ideologia da particularidade, da diferença e do peculiar. A plena vigência do conceito de regionalismo/de regional somente foi possível no bojo da configuração e fortalecimento dos estados como unidades de poder político, administrativo e cultural. Consolidação do regionalismo e consolidação das unidades federativas surgem como gêmeas siamesas do mesmo processo histórico.

Não para menos, é nesse momento que o escritor gaúcho Alcides Maya propugnava: “Ao federalismo político, definitivamente triunfante, corresponda o federalismo literário. Evitemos a centralização das letras” (MAYA, 1979MAYA, Alcides. O Rio Grande mental. In: CHAVES, Flávio Loureiro (Org.). O ensaio no Rio Grande do Sul (1868-1920). Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979., p. 21). Nesse contexto, e apenas para sinalizar, não é para menos também que emerjam várias formas de expressão, de manifestação e de evidenciação da consciência particularista: talvez o primeiro registro da entrada do conceito de regionalismo como categoria a ordenar e a explicar a matéria literária ocorra numa história literária... provincial, que é a História literária do Rio Grande do Sul, de João Pinto da Silva, publicada em 1924SILVA, João Pinto da. História literária do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1924. 16 16 Com relação a esse ponto, apenas uma pesquisa mais detida poderá confirmar isso que é mera hipótese neste momento. Na trilha do que estamos apenas sugerindo nesse parágrafo, aspecto central para a discussão aqui proposta é o estudo da “infraestrutura literária” que se formou e se consolidou, no período (surgimento de revistas, editoras, de instituições literárias, culturais e de ensino de diferentes níveis etc.), mas que não é objeto de estudo neste momento para nós. ; o aparecimento do Centro Regionalista do Nordeste e, a seguir, o Primeiro Congresso Regionalista do Nordeste, em Pernambuco, entre 24 e 26, arregimentam figuras significativas do universo intelectual da região; a emergência do movimento Paranista, capitaneado por Romário Martins, na segunda metade dos anos 1920, bem como o regionalismo Modernista paulista, de 192217 17 O modernismo paulista de 1922, encabeçado sobretudo por Mário e Oswald de Andrade, me parece ter surgido na emergência de demandas culturais e literárias provinciais que ocorreu na consolidação dos estados no contexto da dinâmica da reordenação do poder nacional. Não se diferencia em nada, assim, de outros movimentos e manifestações surgidos naquele momento. A projeção que ele pretendeu assumir, desde o começo, e que, sobretudo, assumiu nas décadas seguintes, tornando-se o “movimento nacional” por definição, diz respeito, por um lado, ao poder econômico que São Paulo já representava naquele momento, por outro, e como correlato disso, reflete a hegemonia que esse estado passa a ter no campo literário, definindo, em boa medida, a narrativa histórica da nossa literatura. , parecem surgir dentro da mesma dinâmica histórica e cultural. Tomados apenas esses exemplos diferentes entre si, podemos ver que, nos anos de 1920, a noção de regionalismo entraria definitivamente para o pensamento crítico e histórico e também como tomada de consciência do particular e da reivindicação da especificidade literária e cultural.

REFERÊNCIAS

  • CAMINHA, Adolfo. (1894a). Norte e sul. In: GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba: UFPR, 2014, p. 315-319.
  • CAMINHA, Adolfo. (1894b). Nativismo ou cosmopolitismo?. In: GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba: UFPR, 2014, p. 239-242.
  • CARVALHO, José Murilo. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
  • GIL, Fernando Cerisara. A crítica e o romance rural. Revista de Letras, Unesp, Araraquara, v. 48, n. 1, 2008, p. 85-100.
  • GUIMARÃES, Bernardo. Reflexões sobre a poesia brasileira. In: GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba: UFPR, 2014.
  • HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
  • LEONEL, Maria Célia; SEGATTO, José Antonio. O regional e o universal na representação das relações sociais. Cerrados, revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UnB, Brasília, n. 28, 2009, p. 135-156.
  • MAYA, Alcides. O Rio Grande mental. In: CHAVES, Flávio Loureiro (Org.). O ensaio no Rio Grande do Sul (1868-1920). Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979.
  • MOREIRA, Ruy. As fases e vetores da formação espacial brasileira: hegemonias e conflitos. In: _____. A formação espacial brasileira: uma contribuição crítica à geografia do Brasil. Rio de Janeiro: Consequência, 2012.
  • OLIVEIRA VIANA, Francisco José. Populações meridionais do Brasil. V. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973.
  • QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Dialética do rural e do urbano: exemplos brasileiros. In: _____. Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1978.
  • RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a ideia de nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Tomo V. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.
  • SCHWARTZMAN, Simon. As bases do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1988.
  • SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: _____. Que horas são? Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
  • SILVA, João Pinto da. História literária do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1924.
  • TÁVORA, Franklin. Cartas a Cincinato. Organização de Eduardo Viera Martins. Campinas: Unicamp, 2011.
  • _____. Carta-prefácio d’O Cabeleira. In: GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba: UFPR, 2014.
  • VERÍSSIMO, José. Letras e literatos: estudinhos críticos da nossa literatura. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936.
  • _____. Literatura regional. In: VERÍSSIMO, José. José Veríssimo: teoria, crítica e história literária. Organização de João Alexandre Barbosa. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1977.
  • _____. História da literatura brasileira. 4. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1981.
  • _____. Franklin Távora e a literatura do Norte. In: GIL, Fernando C. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901). Curitiba: UFPR, 2014.
  • 2
    Esse último romance teve apenas os seus primeiros capítulos publicados no século XIX, saindo na íntegra em 1952.
  • 3
    Durante boa parte do século XIX, o que se entendia por Norte compreendia ser o que atualmente formam as regiões Norte e Nordeste.
  • 4
    Sob esse aspecto, na mencionada divisão entre literatura do Norte e do Sul da carta-prefácio, não podemos esquecer que Franklin Távora irá considerar o seu conterrâneo cearense pertencente à literatura sulina.
  • 5
    Sabe-se que uma série de fatores estaria por trás da crítica que Franklin Távora desfere a José de Alencar, que todavia está fora do interesse direto deste estudo.
  • 6
    O debate da influência da literatura estrangeira, em especial a portuguesa e a francesa, sobre a brasileira, como se sabe, será constante ao longo do romantismo e depois dele. No caso particular aqui analisado, vale chamar a atenção para o fato de que a aspiração à originalidade nacional não consegue abrir mão do pensamento forasteiro prestigiado e avançado da época ou, no mínimo, vem de mãos dadas com ele - o cientificismo, que todavia não é compreendido como elemento estranho pelo autor. Sobre o problema, ver o ensaio “Nacional por subtração” (SCHWARZ, 1987).
  • 7
    A partir da terceira edição, de 1943, a História da literatura brasileira de Sílvio Romero foi ampliada por Nelson Romero com a incorporação a ela de outras obras do historiador, passando dos originais dois volumes para cinco.
  • 8
    Para não deixar dúvida: não estamos propugnando que deveria haver, nesse instante, uma noção de regionalismo vigente como elemento explicativo ou como manifestação de consciência sobre a nossa literatura. Estamos nos limitando a demonstrar que a ideia de regionalismo, no sentido forte do termo, ainda não estava inscrita no horizonte mental dos nossos escritores.
  • 9
    Não podemos perder de vista que Sílvio Romero já dera ciência dessa diferença ao organizar coletâneas de cultura popular e antologias como a do Parnaso sergipano.
  • 10
    Esse estudo saiu entre esses anos em jornal e compõe a coletânea póstuma Letras e literatos: estudinhos críticos da nossa literatura (VERÍSSIMO, 1936), publicada em 1936, pela José Olympio.
  • 11
    Vale salientar que as ideias negativas de José Veríssimo sobre a literatura regional farão escola e, na verdade, com variações aqui e ali, pouco se alterarão ao longo do tempo, quando o conceito se firmar de vez no horizonte crítico. Sobre o assunto e também como o conceito de regionalismo se transformou mais em juízo crítico do que categoria analítico-descritiva ver: Gil, 2008.
  • 12
    Sobre o exame histórico do conceito de nação, ver: O romantismo e a ideia de nação no Brasil (1830-1870) (RICUPERO, 2004). Utilizamos algumas formulações do autor, adaptando-as ao propósito do nosso trabalho.
  • 13
    Para o ponto de vista deste trabalho, ver particularmente o capítulo 5, “Do império à república: centralização, desequilíbrios regionais e descentralização” (SCHWARTZMAN, 1988, p. 171-212). O esforço de centralização e de integração na busca da unidade nacional possível não deixou de ser o reconhecimento de que forças sociais centrífugas, para usar a expressão de Oliveira Viana (1973), sempre estiveram presentes ao longo do período imperial, mas sem força hegemônica.
  • 14
    Isso não significa, por parte dos nossos escritores, falta de compreensão do potencial da diversidade cultural e literária das forças centrífugas que constituíam o país. A formulação de Bernardo Guimarães, de 1847, reflete esse aspecto, sintomaticamente lançando esta possibilidade como futuro: “Provavelmente ela [a literatura] não será uniforme, apresentará tantas variações quanta é a diversidade de nosso clima e solo: o caráter dos povos das campinas abertas do Sul divergirá essencialmente dos habitantes das nimbosas e auríferas serranias de Minas, e dos filhos das gigantescas e majestosas florestas do Pará” (GUIMARÃES, 2014, p. 193).
  • 15
    A plantation escravista-exportadora é o plano mais destacado de um processo mais abrangente e de longa duração para o qual se quer chamar a atenção, que é o fato de nossa formação social ter como eixo dominante de sua constituição o mundo rural, os “domínios rurais”, em suas formas de trabalho, de produção e de circulação de produtos os mais diversos e variados.
  • 16
    Com relação a esse ponto, apenas uma pesquisa mais detida poderá confirmar isso que é mera hipótese neste momento. Na trilha do que estamos apenas sugerindo nesse parágrafo, aspecto central para a discussão aqui proposta é o estudo da “infraestrutura literária” que se formou e se consolidou, no período (surgimento de revistas, editoras, de instituições literárias, culturais e de ensino de diferentes níveis etc.), mas que não é objeto de estudo neste momento para nós.
  • 17
    O modernismo paulista de 1922, encabeçado sobretudo por Mário e Oswald de Andrade, me parece ter surgido na emergência de demandas culturais e literárias provinciais que ocorreu na consolidação dos estados no contexto da dinâmica da reordenação do poder nacional. Não se diferencia em nada, assim, de outros movimentos e manifestações surgidos naquele momento. A projeção que ele pretendeu assumir, desde o começo, e que, sobretudo, assumiu nas décadas seguintes, tornando-se o “movimento nacional” por definição, diz respeito, por um lado, ao poder econômico que São Paulo já representava naquele momento, por outro, e como correlato disso, reflete a hegemonia que esse estado passa a ter no campo literário, definindo, em boa medida, a narrativa histórica da nossa literatura.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2017
  • Aceito
    07 Fev 2018
Instituto de Estudos Brasileiros Espaço Brasiliana, Av. Prof. Luciano Gualberto, 78 - Cidade Universitária, 05508-010 São Paulo/SP Brasil, Tel. (55 11) 3091-1149 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaieb@usp.br