Acessibilidade / Reportar erro

Participação dos cidadãos e saneamento básico: panorama da legislação nacional

Citizen participation and basic sanitation: overview of national legislation

RESUMO

Tendo em vista contribuir para o aprofundamento do estudo sobre a participação dos cidadãos na área de saneamento, temática ainda recente e pouco discutida, este trabalho objetiva identificar, no marco legal nacional do saneamento, referências concernentes à participação dos cidadãos, as quais são analisadas à luz dos conceitos de cidadania, empoderamento e cultura política. As dezoito referências identificadas abordam a participação na perspectiva do controle social e podem ser classificadas em dois grupos: 1) promotoras da participação e 2) marcadas pela dubiedade, uma vez que, ao mesmo tempo, incentivam e limitam a ação participativa. Conclui-se que é forçoso reconhecer os avanços alcançados, representados pela existência da legislação em si, sabendo-se que, contudo, são insuficientes e requerem ampliação para a efetividade da participação.

PALAVRAS-CHAVE:
participação dos cidadãos; controle social; saneamento básico; legislação; Brasil

ABSTRACT

In order to contribute to the study of citizen participation in sanitation area, this paper intend to identify references about citizen participation presents in the national legislation and analyze all of them in the light of key concepts: citizenship, empowerment and political culture. It was identified 18 references, which address the participation from the social control perspective and can be classified into two groups: 1) promoting participation and 2) marked by ambiguity, since at the same time, encourage and limit participatory action. Thus, it is necessary to recognize the progress made, knowing that, however, is insufficient to participation consolidate.

KEYWORDS
citizen participation; social control; sanitation; legislation; Brazil

Introdução

O saneamento é uma intervenção que se dá no ambiente, para além de uma dimensão estritamente física. Na perspectiva do ideário da Promoção da Saúde, cuja proposição se iniciou no Canadá, na década de 70 do século XX, especialmente na Carta de Sundsval, resultante da III Conferência Internacional de Promoção da Saúde, ele é concebido como atuante também nas dimensões social, econômica, política e cultural do ambiente2 2 SOUZA, Cezarina Maria Nobre. Relação saneamento-saúde-ambiente: os discursos preventivista e da Promoção da Saúde. Saúde e Sociedade, vol. 16, n. 3, p. 125-137, 2007. .

Nesse sentido, o saneamento, além de sua estrutura física, que compreende os sistemas de engenharia para abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza pública e manejo de resíduos sólidos e manejo de águas pluviais, envolve também um conjunto de ações e instrumentos capazes de atuar nas demais dimensões ambientais.

Seu impacto sobre elas é decorrente de ações voltadas para a educação dos agentes sociais (usuários, não usuários, prestadores dos serviços etc.); de políticas que estabeleçam direitos e deveres dos usuários e dos prestadores dos serviços; e de uma estrutura institucional capaz de gerenciar as ações de forma integrada aos outros setores técnicos ligados aos chamados determinantes da saúde, assegurando igualmente a participação, nas tomadas de decisão, dos segmentos sociais que compreendem usuários e não usuários dos serviços.

Relativamente a este último aspecto, ligado à estrutura institucional, há na literatura científica evidências3 3 HELLER, Léo e NASCIMENTO, Nilo Oliveira. Pesquisa e desenvolvimento na área de saneamento no Brasil: necessidades e tendências. Revista Engenharia Sanitária e Ambiental, vol. 10, n. 1, p. 24-35, 2005. que apontam a gestão em saneamento como mediadora do êxito das intervenções empreendidas e, dentro dela, a participação social como um dos fatores preponderantes para a apropriação das mesmas pela população.

Também nesse sentido, reconhecendo a importância da participação dos cidadãos, a própria legislação nacional, com destaque para a lei n. 11.445/2007, a instituiu como um dos princípios a partir dos quais os serviços de saneamento devem ser prestados, dentro do que denominou de controle social.

Tendo em vista contribuir para o aprofundamento do estudo dessa temática, ainda pouco discutida na literatura científica4 4 PITERMAN, Ana. (A falta de) Controle social das políticas municipais de saneamento: um estudo em quatro municípios de Minas Gerais. Saúde e Sociedade, vol. 22, n. 4, p. 1.180-1.192, 2013. , este trabalho objetiva identificar no marco legal nacional do saneamento as referências concernentes à participação dos cidadãos, as quais são analisadas à luz de conceitos e proposições correlatos.

A seção seguinte aborda o conceito de participação. Nas demais, são apresentados o panorama da legislação com as referências identificadas, sua análise a partir dos conceitos de cidadania, empoderamento e cultura política, como também as considerações finais.

A participação dos cidadãos

Há diversos conceitos a respeito5 5 FERREIRA, Cristina Maria Soares e FONSECA, Alberto. Análise da participação popular nos conselhos municipais de meio ambiente do médio Piracicaba (MG). Ambiente & Sociedade, vol. XVII, n. 3, p. 239-258, 2014. e não há a priori um marco teórico no qual incluir a participação; há, sim, definições que, ao ultrapassarem a óbvia perspectiva do "tomar parte", têm em sua base diferentes quadros de fundamentação teórica formulados em também diferentes contextos históricos6 6 TEIXEIRA, Maria Lúcia; VIANNA, Werneck; CAVALCANTI, Maria de Lourdes e CABRAL, Marta de Pina. Participação em saúde: do que estamos falando?. Sociologias, vol. 11, n. 21, p. 218-251, 2009. . No contexto brasileiro dos anos de 1990, por exemplo, considera-se que a participação pode ser apresentada como importante instrumento de aprofundamento da democracia e para a reivindicação de democracia participativa7 7 BRASIL, Flávia de Paula Duque. Participação cidadã e reconfigurações nas políticas urbanas nos anos 90. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, vol. 6, n. 2, p. 35-51, 2004. .

A participação proporciona aos humanos o prazer de realizar ações em conjunto com seus congêneres, de exprimir-se, de desenvolver o pensamento reflexivo, de criar e de recriar, de ser valorizado pelos outros. Além disso, aumenta a eficácia e a eficiência do ato de realizar e buscar soluções para problemas específicos, porque realizar ações com os outros é mais produtivo do que fazê-las sozinho8 8 BORDENAVE, Juan Diaz Bordenave. O que é participação?. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. .

Por isso, para Juan Bordenave, a participação se edifica sobre duas bases complementares, que devem se manter equilibradas: uma base afetiva e outra instrumental. A primeira tem a ver com o prazer de participar; a segunda está ligada à eficácia e à eficiência da participação.

A necessidade de equilíbrio entre ambas as bases é fundamental, sob pena de entrarem em conflito. Caso a primeira prepondere, pode surgir a despreocupação em atingir-se resultados práticos, passando a participação a ser tal como um objeto de consumo pelo prazer que produz. Contudo, se a segunda se impuser, a participação pode se restringir a ser usada apenas como instrumento, meio, estratégia para atingir-se os objetivos pretendidos, sem que se usufrua o prazer de exercê-la.

No entanto, Bordenave ainda assevera que a participação não se configura apenas em torno do prazer e dos resultados que produz. Há também que se considerar seu papel educativo e formador de cidadãos, conforme a concebem Jean Jacques Rousseau, John Stuart Mill e outros pensadores9 9 VEIGA, Bruno Gonzaga Agapito da. Participação social e políticas públicas de gestão das águas: olhares sobre as experiências do Brasil, Portugal e França. Tese de doutorado. Brasília: Universidade de Brasília, 2007. . Nesse sentido, para Bordenave, o exercício da participação prepara a população para transformar o Estado em algo próximo e dependente de si.

Situando a participação entre o seu caráter instrumental (voltado para resolver problemas específicos) e o de aprendizagem coletiva (voltado para educar a população), pode-se dizer que ela vem a ser, nas palavras de Maria da Glória Gohn:

[...] um processo de vivência que imprime sentido e significado a um grupo ou movimento social, tornando-o protagonista de sua história, desenvolvendo uma consciência crítica desalienadora, agregando força sociopolítica a esse grupo ou ação coletiva e gerando novos valores e uma cultura política nova10 10 GOHN, Maria da Glória. O protagonismo da sociedade civil: Movimentos sociais, ONGs e redes solidárias. São Paulo: Cortez, 2005, p. 30. .

Referências à participação dos cidadãos identificadas no Marco Legal Nacional do Saneamento

O Marco Legal Nacional do Saneamento inclui a lei n. 11.445, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico e institui a participação dos cidadãos na área, o que é ratificado em outras peças que o compõem e que foram igualmente objeto de análise neste estudo.

Assim, procedeu-se a uma leitura minuciosa da referida lei, bem como do decreto n. 7.217/2010, que a regulamenta; da lei n. 12.305/2010, que estabelece a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e do decreto n. 7.404/2010, que regulamenta esta PNRS.

O resultado desse exame revelou dezoito artigos que, em determinados incisos ou parágrafos ou em sua totalidade, fazem referência à participação, designada como controle social.

Analisando-se tais referências, pode-se classificá-las em dois grupos: 1) referências que promovem a participação no sentido apresentado por Gohn; e 2) referências marcadas pela dubiedade, uma vez que, se por um lado incentivam a participação tal como as referências do Grupo 1, por outro lado, acabam por obstaculizar a consolidação de um processo participativo marcado pela cidadania, pelo empoderamento e pela instituição de uma cultura política participativa. A tabela 1, a seguir, indica a composição desses grupos.

Relativamente ao Grupo 1, na lei n. 11.445/2007, o art. 2º, inciso X, estabelece que o controle social é um dos princípios fundamentais segundo os quais os serviços de saneamento básico devem ser prestados. O art. 3º, inciso IV, define o termo controle social como sendo o "conjunto de mecanismos e procedimentos que garantem à sociedade informações, representações técnicas e participações nos processos de formulação de políticas, de planejamento e de avaliação relacionados aos serviços públicos de saneamento básico".

O art. 9º, inciso V, dessa lei, estabelece que, ao titular dos serviços de saneamento, ou seja, o município, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, definido em 2013, cabe a responsabilidade de, no ato de formular sua política pública correlata, estabelecer mecanismos de controle social. O art. 11, inciso V, ao definir as condições de validade dos contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento, determina que as atividades de planejamento, regulação e fiscalização desses serviços devem incorporar a adoção de mecanismos de controle social.

No decreto n. 7.217/2010, os art. 2º, inciso VI, e 3º, inciso X, ratificam, respectivamente, o conceito de controle social e a instituição do mesmo como princípio norteador da prestação dos serviços de saneamento básico, ambos estabelecidos pela lei n. 11.445/2007.

O art. 23, inciso VI, determina que o titular dos serviços de saneamento tem a responsabilidade de formular sua política de saneamento, na qual deverá definir quais deverão ser os mecanismos de participação e controle social. Em seu parágrafo 3o, esse artigo, referendando a relação saneamento-saúde, também assegura que os órgãos de controle social do Sistema Único de Saúde (SUS) detêm a possibilidade de participar do processo de formulação de política referido, bem como da execução das ações propostas em decorrência.

O art. 39, inciso VI, reproduz o texto do art. 11, inciso V, da lei n. 11.445/2007, que trata dos contratos de prestação dos serviços de saneamento instituindo o controle social como uma das condições que devem ser atendidas para assegurar a validade dos mesmos.

No que tange à lei n. 12.305/2010, seu art. 3º, inciso VI, reproduz na íntegra a definição de controle social apresentada pela lei n. 11.445/2007 e pelo decreto n. 7.217/2010. Além disso, no inciso XI, ao definir gestão integrada de resíduos sólidos como o "conjunto de ações voltadas para a busca de soluções para os resíduos sólidos, de forma a considerar as dimensões política, econômica, ambiental, cultural e social, com controle social e sob a premissa do desenvolvimento sustentável", ressalta que o controle social deve ser uma das marcas desse procedimento.

O art. 6º desse decreto, ao estabelecer os princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos, no inciso X, destaca o controle social, alinhando-se aos princípios da prestação dos serviços de saneamento instituídos pela lei n. 11.445/2007 e confirmados pelo decreto n. 7.217/2010. O art. 8º, referindo-se aos instrumentos de que a política nacional de resíduos passa a dispor para sua aplicação, faz referência à constituição de órgãos colegiados de controle social dos serviços de resíduos sólidos nos municípios.

No que tange ao Grupo 2 de referências, na lei n. 11.445/2007, o art. 47 refere-se, em sua totalidade, à possibilidade do exercício do controle social em saneamento por meio de órgãos colegiados de caráter consultivo, criados para esse fim ou já existentes, nos quais deverão estar representados diversos segmentos do Estado e da sociedade civil.

No decreto n. 7.217/2010, o art. 34, em seu caput, incisos e parágrafos, institui e normatiza os mecanismos (debates, consultas e audiências públicas, participação em órgãos colegiados) por meio dos quais o controle social deve ser colocado em prática. Com redação alterada pelo decreto n. 8.211/2014, seu parágrafo 6º determina prazo para que os titulares dos serviços criem legalmente instâncias colegiadas de controle social e assim habilitem seu acesso, segundo esse critério, a recursos públicos federais.

O art. 35, em seu caput, estabelece que estados e União poderão adotar os mecanismos de controle social definidos pelo art. 34 e, no seu parágrafo 1º, institui que, no caso de delegação do exercício de competências, não haverá prejuízo ao controle social.

No que diz respeito à lei n. 12.305/2010, o art. 14, em seu parágrafo único, referindo-se aos planos de resíduos sólidos, assevera que, no processo de formulação, implementação e operacionalização destes, deve ser assegurado o controle social. Para tanto, destaca o disposto na lei n. 10.650/2003 sobre o acesso público à informação no âmbito do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) e o conteúdo correlato à participação de órgãos colegiados no controle social determinado pela lei n. 11.445/2007.

O art. 15, inciso XI, e o art. 17, inciso XII, referem-se, respectivamente, ao plano nacional e aos planos estaduais de resíduos sólidos, destacando, em ambos os casos, que o controle social deve ser assegurado no que diz respeito à implementação e à fiscalização dos mesmos.

Finalmente, em relação ao decreto n. 7.404/2010, o art. 45, parágrafo 1º, ao tratar dos planos de resíduos sólidos, determina que seja assegurado o controle social nas fases de formulação, implementação e operacionalização destes, bem como ratifica o disposto no art. 14 de lei n. 12.305/2010 sobre o acesso público à informação no âmbito do Sisnama e o conteúdo correlato à participação de órgãos colegiados no controle social determinado pela lei n. 11.445/2007.

Analisando as referências identificadas

Nesta seção faz-se uma análise das referências encontradas e classificadas nos dois grupos, a partir de um rico referencial teórico que inclui, como ponto de partida, o conceito de Gohn, já apresentado, acerca da participação.

A respeito das referências contidas nos artigos classificados no Grupo 1, pode-se identificar em seu conteúdo um estímulo ao processo vivencial que constitui a participação, conforme a entende Gohn, como exercício de cidadania marcado pelo incentivo ao empoderamento e a uma cultura política participativa que, no caso do saneamento, deve ser levado a efeito na perspectiva do controle social.

Tais características também são encontradas nas referências contidas nos artigos classificados no Grupo 2. Contudo, um olhar mais cuidadoso e profundo revela que, de forma mais ou menos clara, em um movimento dúbio, estes estabelecem o cerceamento da ação participativa.

Ao mesmo tempo que, por um lado, ratificam o controle social com ampla participação de diversos segmentos sociais (usuários dos serviços e entidades técnicas, organizações da sociedade civil e de defesa do consumidor relacionadas ao saneamento) na formulação, implementação e operacionalização de políticas, que instituem e normatizam mecanismos participativos e que estabelecem prazo para a criação de órgãos colegiados, por outro lado, parecem transformar o processo vivencial participativo que instituem em mero simulacro, sem nenhuma efetividade a priori, pois se referem à participação por meio de órgãos colegiados que atuem somente em caráter consultivo e não deliberativo.

Levando em conta que o conceito de Gohn traz em seu bojo, explícita e/ou implicitamente, conceitos subsidiários, tais como cidadania, empoderamento e cultura política, a análise das referências em estudo, de ambos os grupos, pode ser feita de forma mais aprofundada usando-se como parâmetros esses conceitos-chave.

Cidadania

No que tange à cidadania, pode-se considerar que o conteúdo das referências do Grupo 1 estimula seu exercício, pois estabelece uma diretriz para a prestação dos serviços de saneamento à sociedade em geral, a todos os indivíduos que a ela pertencem, de forma igualitária e inclusiva, assegurando-lhes o direito (e o dever) de participar das atividades em questão por meio dos mecanismos de controle social estabelecidos.

Por outro lado, o conteúdo das referências inseridas no Grupo 2, ao contrário, ao definir como consultivo o caráter dos órgãos colegiados de saneamento, acaba por reduzir o exercício da cidadania, restringindo o alcance da participação da sociedade civil no controle das políticas estatais. Isso redunda em prejuízo para usuários e, principalmente, para não usuários dos serviços que, mesmo não tendo representação explícita nos órgãos colegiados, poderiam a eles recorrer em defesa de sua inclusão nas políticas públicas.

Mas de que cidadania está se falando, pois é preciso levar em conta que esse conceito está condicionado à concepção da organização política de cada sociedade. No entanto, é clássico o conceito proposto pelo sociólogo inglês Thomas Humphrey Marshall que, em seu ensaio "Citizenship and social class", a considera como sendo o pertencimento pleno a uma comunidade11 11 MARSHAL, Thomas Humphrey. Citizenship and Social Class. In: Class, Citizenship and Social Development. Westport: Greenwood Press, 1973. .

Nesse sentido, para o sociólogo em questão, o pertencimento implica a participação dos indivíduos na determinação das condições de sua própria associação entre si. Assim, a cidadania constitui a participação na determinação do conjunto de iguais direitos e deveres, liberdades e restrições, poderes e responsabilidades que demarcam as relações entre os indivíduos e a sociedade, por mais que não exista um padrão universal que determine quais deverão ser os direitos e deveres de cada indivíduo. Contudo, segundo David Held12 12 HELD, David. Ciudadanía y autonomía. La Política (Barcelona), n. 3, p. 41-67, 1997. (Tradução de BARBOSA, A. S. e ROSA E SILVA, A. M. O. Perspectivas, vol. 22, p. 201-231, 1999). , para Marshall, as sociedades que buscam pautar seu desenvolvimento a partir do princípio da cidadania criam um perfil de cidadania ideal, tal como uma meta a ser atingida, de acordo com a qual conformam suas aspirações.

Marshall considera, segundo comentam Léo Heller e José Esteban Castro13 13 HELLER, Léo e CASTRO, Jose Esteban. Política pública de saneamento: apontamentos teórico-conceituais. Revista de Engenharia Sanitária e Ambiental, vol. 12, n. 3, p. 284-295, 2007. , que os direitos sociais da cidadania conduziriam à eliminação das desigualdades ligadas às classes sociais, à etnia, ao gênero e, entre estes, destaca o acesso a serviços e bens essenciais, como a saúde pública e a educação básica. Necessariamente aqui se incluem, também, os serviços de saneamento, considerando sua essencialidade à vida.

Há, contudo, interessante aspecto a considerar na condição de pertencimento que caracteriza a cidadania, para o qual Thomas Janoski14 14 JANOSKI, Thomas. Citizenship and civil society: A framework of rights and obligations in liberal, traditional, and social democratic regimes. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. chama atenção. Segundo esse autor, cidadania é a condição de pertencimento, passivo ou ativo, de indivíduos a uma nação-estado, os quais detêm direitos e deveres universais, porém com um grau específico de equidade. Assim, os direitos e deveres da cidadania seriam usufruídos/exercidos em níveis diferenciados na sociedade, uma vez que, aqueles indivíduos que não alcançassem níveis elevados de equidade, seriam alijados dessa sociedade, deixando de participar das políticas públicas, tendo sua cidadania "cassada".

Essa realidade de alijamento da sociedade e "cassação" da cidadania pode ser encontrada Brasil afora, marcada, por exemplo, pela falta de acesso aos serviços de saneamento, principalmente em áreas pauperizadas onde as políticas públicas estão ausentes ou não se fazem sentir plenamente.

Pela atualidade da questão, pode-se citar, como exemplo, a epidemia de microcefalia, cuja distribuição espacial por local de residência das mães dos recém-nascidos atingidos é maior em áreas pobres, com urbanização e saneamento precários, caracterizadas pela intermitência do abastecimento de água (que leva os moradores ao armazenamento inseguro de água favorecendo a constituição de criadouros do mosquito vetor), inadequação ou inexistência do esgotamento sanitário, presença de resíduos sólidos junto aos domicílios e deficiências na drenagem de águas pluviais15 15 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA. Nota técnica, jan. 2016. Disponível em: <https://goo.gl/ReqzVo>. Acesso em: mar. 2016. .

Nesse caso específico, além das medidas de enfrentamento das causas socioambientais que residem na base do problema, sem dúvida que os mecanismos de controle social instituídos pela legislação em análise, presentes nas referências do Grupo 1, também constituem recursos em favor da saúde e da retomada da cidadania "cassada". No entanto, isso parece ter seu impacto reduzido, conforme apontam as referências do Grupo 2, levando-se em conta que as formulações e orientações emanadas dos órgãos colegiados de saneamento constituem apenas material de consulta para os tomadores de decisão, e não deliberações a serem cumpridas.

Merece destaque, também, a concepção de cidadania proposta por Alain Touraine, sociólogo francês contemporâneo. Para o autor, indivíduos e comunidades têm o direito de atuar como sujeitos de sua própria história. Para tanto, o conceito de cidadania seria insuficiente, pois ser sujeito é mais do que ser cidadão, pois ele tem amor a si próprio e, por isso, busca sua liberdade, uma consciência de filiação e responsabilidade sobre os agentes políticos na criação e modificação das leis que normatizam o funcionamento da sociedade16 16 TOURAINE, Alain. O que é democracia. Petrópolis: Vozes, 1996. .

Nesse sentido, se usuários e não usuários dos serviços de saneamento, em todos os rincões do país, participassem com efetividade deliberativa do planejamento, da regulação e da fiscalização dos mesmos, levando em conta a essencialidade do saneamento para a vida e, consequentemente, como fator contribuinte para sua liberdade, felicidade e plenitude de suas potencialidades, estariam atuando como sujeitos de sua história.

Empoderamento

Relativamente ao conceito de empoderamento, pode-se considerar que as referências do Grupo 1 o contemplam. Por outro lado, as do Grupo 2 o comprometem.

Antes de explicar as razões de tais afirmativas e para que sejam bem compreendidas, necessário se faz tecer comentários sobre o conceito de empoderamento em si, suas origens e desdobramentos.

Empoderamento é um termo que traduz a expressão inglesa empowerment, cujas origens remontam aos anos 50 do século XX, tendo como raízes as lutas pelos direitos civis, o movimento feminista e ideologias presentes nas sociedades dos países desenvolvidos. Entre os anos de 1970 e 1990, sofreu influências diversas: dos movimentos de autoajuda; da psicologia comunitária e dos movimentos que buscam afirmar o direito de cidadania em relação à prática médica, à educação em saúde e ao ambiente físico17 17 CARVALHO, Sérgio Resende. Os múltiplos sentidos da categoria "empowerment" no projeto de Promoção à Saúde. Cadernos de Saúde Pública, vol. 20, n. 4, p. 1.088-1.095, 2004. .

Esse termo vem sendo muito empregado na área de políticas públicas, passando a constituir um jargão18 18 GOHN, Maria da Glória. Empoderamento e participação da comunidade em políticas sociais. Saúde e Sociedade, vol. 13, n. 2, p. 20-31, 2004. . Por exemplo, corresponde a um dos núcleos filosóficos e a uma das estratégias-chave do movimento de Promoção da Saúde, pois está presente nas definições de saúde e promoção à saúde, além de ser elemento central de estratégias adotadas pela Promoção, como as de participação comunitária, educação em saúde e políticas públicas saudáveis19 19 CARVALHO, Sérgio Resende e GASTALDO, Denise. Promoção à saúde e empoderamento: uma reflexão a partir das perspectivas crítico-social pós-estruturalista. Ciência e Saúde Coletiva, vol. 13 (sup. 2), p. 2.029-2.040, 2008. .

A adoção da palavra empoderamento no idioma português tem recebido críticas pela falta de fidedignidade, o que contribui para a sua polissemia: apoderamento (domínio de, apossar-se, assenhorear-se, dominar, conquistar, tomar posse), emancipação (tornar livre, independente)20 20 CARVALHO, Sérgio Resende. Op. cit. . Mas, de maneira geral, tem sido utilizada para referenciar o desenvolvimento de potencialidades, o aumento de informação e percepção com o objetivo de contribuir para a participação e a democracia, o aumento de poder e de autonomia, principalmente para indivíduos e grupos submetidos a relações de opressão, discriminação e dominação social21 21 WENDHAUSEN, Águeda L. P.; BARBOSA, Tatiane Muniz; BORBA, Maria Clara de. Empoderamento e recursos para a participação em Conselhos Gestores. Saúde e Sociedade, vol. 15, n. 3, p. 131-144, 2006. .

Diante de tais definições, pode-se questionar, por exemplo: a serviço de quem estão o aumento de poder e de autonomia? Trata-se do desenvolvimento de potencialidades de indivíduos e coletivos para sua libertação das estruturas opressoras, discriminadoras e dominadoras em um movimento de ampliação de sua consciência ou trata-se da desresponsabilização do Estado, sugerindo que, em marcha de retrocesso na prestação de serviços que asseguram direitos sociais, cada indivíduo ou comunidade utilize seus próprios recursos, diminuindo sua dependência das instituições macrossociais?

Assim, a partir da lente de observação aplicada para sua interpretação, o empoderamento pode tanto se referir a um processo de mobilizações e práticas voltadas para promover e impulsionar o crescimento, a autonomia, a ampliação da consciência crítica e a melhoria das condições materiais de vida de indivíduos e comunidades; quanto pode se associar a projetos e ações sociais assistencialistas que buscam pura e simplesmente atender pontualmente indivíduos e grupos excluídos, carentes de determinados bens, recursos e serviços essenciais à sobrevivência, sem, contudo, romper com a estrutura e os processos que os mantêm excluídos22 22 GOHN, Maria da Glória. Op. cit., 2004. .

Nesse sentido, pode-se considerar que as diferentes definições e interpretações a respeito, bem como a carência de um embasamento teórico consistente são fatores que fazem com que o termo seja discutido com frequência, mas sem um entendimento mais profundo23 23 RISSEL, Christopher. Empowerment: the holy grail of health promotion?. Health Promotion International, vol. 9, n. 1, p. 39-47, 1994. .

Christopher Rissel identifica na literatura que consulta uma diferença entre a experiência subjetiva do empoderamento e a realidade objetiva de mudanças das condições estruturais decorrentes do mesmo. Assim, propõe o conceito de empoderamento psicológico e de empoderamento social/comunitário.

O primeiro consiste em um processo que objetiva promover no indivíduo um sentimento de maior controle sobre sua vida e que pode ocorrer sem sua participação em ações políticas coletivas. O segundo inclui um elevado nível de empoderamento psicológico, participação política, redistribuição de recursos e tomadas de decisão favoráveis ao conjunto da comunidade ou grupo.

Assim, o empoderamento não consiste apenas - embora isto seja necessário - na sensação psicológica do poder e da autoconfiança, que pode ser - e muitas vezes o é de fato - fomentada como mecanismo de controle e manipulação social por parte de grupos interessados em criar estratégias para a manutenção do status quo. Mais do que isso, trata-se de algo que incide sobre a distribuição do poder na sociedade, a partir do qual há o compartilhamento desse poder entre gestores públicos/profissionais de saneamento/usuários dos serviços, por exemplo. A lógica em torno dessa questão passa a ser a do exercício do poder com o outro e não mais a do poder sobre o outro24 24 CARVALHO, Sérgio Resende e GASTALDO, Denise. Op. cit. .

Referindo-se exatamente à tal mudança de lógica, Sérgio Resende Carvalho faz alusão às práticas educativas como instrumento a favor do empoderamento social/comunitário. Cita o pedagogo brasileiro Paulo Freire e sua proposição de uma pedagogia libertadora, que tem sido associada ao que denomina empowerment education, cujo objetivo é contribuir para a emancipação humana, o desenvolvimento do pensamento crítico, a superação das estruturas institucionais e ideológicas de opressão propondo um modelo pedagógico que tem por objetivo promover a participação de indivíduos e coletivos na identificação e na análise crítica de seus problemas visando à elaboração de estratégias de ação que busquem a transformação do instituído25 25 CARVALHO, Sérgio Resende. Saúde Coletiva e Promoção da Saúde: sujeito e mudança. São Paulo: Hucitec, p. 76, 2005. .

A ideia do empoderamento se associa claramente à proposição do economista contemporâneo Amartya Sen que, em seu consagrado trabalho Development as freedom, publicado originalmente em 1999, considera que o desenvolvimento "é um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam"26 26 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 16, 2010. . Nesse sentido, o autor aponta como liberdades, entre outras: o combate à fome, a doenças evitáveis e à mortalidade precoce (podendo-se aqui incluir o saneamento como instrumento para o alcance destas últimas); o acesso à alfabetização e à participação política; a liberdade de expressão; os dispositivos econômicos; as oportunidades sociais.

Segundo Amartya Sen, essas liberdades reforçam as capacidades (capabilities) das pessoas de levar o tipo de vida que valorizam. Assim, surge uma relação de mão dupla: as políticas públicas podem ampliá-las (eliminando a pobreza como privação de capacidades), como podem também ser influenciadas pelo efetivo uso das capacidades participativas de indivíduos e comunidades.

Com base no referencial teórico exposto, e conforme já dito, as referências do Grupo 1 contemplam o empoderamento, enquanto que as do Grupo 2 o comprometem. Isso explica por que as primeiras, ao assegurar assento a usuários e outros representantes da sociedade civil em uma instância de controle social possibilitando-lhes acesso a informações, representações técnicas e participações nos processos de formulação de políticas, de planejamento e de avaliação relacionados aos serviços públicos de saneamento, certamente podem produzir uma sensação de poder e autoconfiança (empoderamento psicológico), assim como remetem à possibilidade de redistribuição de recursos e tomadas de decisão favoráveis ao conjunto da comunidade ou grupo (empoderamento social-comunitário), conforme descreve Rissel.

No entanto, por conta das referências do Grupo 2, fica empanado o sentido de participar de uma discussão sabendo-se que seu produto em nada poderá alterar qualquer decisão de interesse do grupo dirigente. Isso não implica, de fato, a partilha do poder a que se refere Rissel.

Além disso, a depender da qualidade da participação dos representantes da sociedade civil, é possível que não seja alcançada qualquer mudança no status quo, caso sua ação participativa não venha a alcançar os atributos educativos e transformadores descritos por Bordenave, responsáveis por romper as algemas que aprisionam indivíduos e comunidades, impedindo-lhes o exercício das liberdades e capacidades às quais se reporta Sen.

Cultura política

Outro fator que também pode comprometer o empoderamento social-comunitário, a partir das referências do Grupo 2, é a cultura política que orienta indivíduos e comunidades, caso seja marcada pela baixa participação.

Ao discutir esse conceito, citando diversos autores, Julian Borba assevera que, desde os estudos de Platão, Aristóteles e Sócrates, estão presentes na literatura preocupações com a capacidade política dos cidadãos e o seu papel na sociedade.

Contudo, para o autor, somente a partir do clássico estudo The civic culture: political attitudes and democracy in five countries, dos pesquisadores norte-americanos Gabriel Almond e Sidney Verba, publicado originalmente em 1963, essa preocupação assumiu um status de campo de conhecimento da ciência política, contando com um novo aparato teórico e instrumental metodológico27 27 BORBA, Julian. Cultura política, ideologia e comportamento eleitoral: alguns apontamentos teóricos sobre o caso brasileiro. Opinião Pública, vol. XI, n. 1, p. 147-168, 2005. .

Para Almond e Verba, o termo "cultura política" refere-se "às orientações especificamente políticas, às atitudes com respeito ao sistema político, suas diversas partes e o papel dos cidadãos na vida pública"28 28 ALMOND, Gabriel e VERBA, Sidney. The civic culture: Political attitudes and democracy in five nations. Princeton: Princeton University Press, 1989, p. 12. , ou ainda, em outras palavras, às tendências psicológicas que caracterizam os membros de uma sociedade em relação à política.

Esses autores, em sua análise, distinguem três tipos de tendências psicológicas, denominadas por Borba como sendo orientações políticas e definidas por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino como "posições que o indivíduo pode assumir [...] ou modos segundo os quais ele pode encarar os fatos e as relações sociais"29 29 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: Editora da UnB, 1986, p. 306. . São elas: a cognitiva, a afetiva, a valorativa.

Para os autores, a tendência cognitiva se expressa pelo conhecimento do sistema público, de seu papel e de seus titulares e pela crença em cada um desses elementos. A tendência afetiva se revela por conta dos sentimentos nutridos a respeito do sistema, sua estrutura (papéis, pessoas) e seu desempenho. A tendência valorativa corresponde ao conjunto de julgamentos e opiniões sobre os fenômenos políticos, que são emitidos a partir da combinação de informações, sentimentos e critérios de avaliação.

Tais tendências distinguem-se também a partir de diferentes classes de objeto (o sistema político como um todo; sua estrutura de incorporação das demandas sociais; sua estrutura político-administrativa de resposta às demandas sociais; relação indivíduos-sistema, ligada à percepção do sujeito como ator político), resultando em três diferentes tipos de cultura política: a paroquial, a súdita e a participante.

A cultura política paroquial, para Karina Kuschnir e Leandro Carneiro, como também para Lília Souza, ocorre em sociedades simples onde os papéis e as instituições de caráter especificamente político não existem ou acabam por coincidir com papéis e estruturas de natureza econômica ou religiosa; há baixos níveis de participação política e associativa, consequente da limitada visão dos agentes sociais quanto à incorporação de suas demandas30 30 KUSCHNIR, Karina e CARNEIRO, Leandro Piquet. As dimensões subjetivas da política: Cultura política e antropologia da política. Estudos históricos, n. 24, 1999. Disponível em: <http://goo.gl/FpAQp5>. Acesso em: mar. 2016. ,31 31 SOUZA, Lília. Cultura política: anotações sobre os casos brasileiro e baiano. Anais do IV Encontro da Compolítica. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2011. .

A cultura política súdita ou de sujeição, para esses autores, ocorre quando os agentes sociais direcionam sua atenção para o sistema político como um todo, porém privilegiando as estruturas político-administrativas de resposta às suas demandas.

A cultura política de participação, para os mesmos autores, ocorre quando o foco da atenção dos agentes sociais está distribuído equilibradamente entre as estruturas de incorporação de demandas e de resposta a elas.

Caracterizando a congruência ou a incongruência entre a cultura e a estrutura política, entram em jogo os conceitos, também propostos por Almond e Verba, de adesão (quando o conhecimento está aliado a tendências afetivas e juízos positivos apatia (quando os membros da sociedade se manifestam de forma hostil) e alienação (quando é de indiferença a atitude dos membros da sociedade).

Para esses autores, um exemplo de incongruência seria uma cultura política de participação presente em um sistema político marcado por estruturas autocráticas. Por outro lado, se nesse sistema houvesse uma cultura de sujeição, então esse seria um exemplo de congruência. Outra situação de incongruência, citada por Bobbio, Matteucci e Pasquino, seria aquela em que a cultura política não considera o cidadão como participante, havendo, contudo, estruturas políticas de participação.

Refletindo sobre as proposições de Almond e Verba, os autores Bobbio, Matteucci e Pasquino ressaltam que todos os tipos de cultura política apresentados são meramente ideais, e que, na prática, há intensa mistura entre eles, resultante da combinação das tendências descritas.

Conforme asseveram Julian Borba e Lília Souza, o conceito de cultura política proposto por Almond e Verba, apesar de muito apreciado por ter sido seminal, tem recebido inúmeras críticas, como: considerar que o funcionamento das instituições políticas não influencia a cultura política; desconsiderar que as diferentes culturas políticas são fruto de diferentes experiências históricas e que não necessariamente caminham para a mesma conformação institucional; defenderem a democracia liberal como modelo ideal de sociedade.

Propondo seu próprio conceito, Bobbio, Matteucci e Pasquino concebem a cultura política como o "conjunto de atitudes, normas, crenças mais ou menos largamente partilhadas pelos membros de uma determinada unidade social, tendo como objeto fenômenos políticos"32 32 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Op. cit., p. 306. .

Para os autores, há três elementos que compõem a cultura política de uma sociedade: 1) o conhecimento de seus integrantes sobre as instituições, a prática política, as forças políticas operantes; 2) as tendências, definidas como sendo a indiferença, a rigidez, o dogmatismo ou a confiança, a adesão, a tolerância para com as forças políticas existentes; 3) as normas, tais como direito-dever de participação da vida política, o aceite obrigatório da decisão da maioria, a possibilidade ou não de uso da força.

Deve-se lembrar que, como assevera Bobbio, em uma sociedade, há intensa mistura entre as diferentes culturas políticas, podendo ser encontrados segmentos sociais que apresentam maior ou menor ação participativa.

O conteúdo restritivo das referências do Grupo 2 reduz o que, segundo as referências do Grupo 1, poderia ser um movimento de controle do Estado e das classes dirigentes por parte da sociedade civil, principalmente de seus segmentos mais excluídos, exercido a partir de consensos construídos por meio das lutas travadas nos órgãos colegiados33 33 BRAVO, Maria Inês Souza; CORREIA, Maria Valéria Costa. Desafios do controle social na atualidade. Serviço Social e Sociedade, n. 109, p. 126-150, 2012. . O que resta, por mais forte que seja, não passa de um movimento de pressão, se não vier a assumir características de uma cultura política paroquial, conforme o entendem Kuschnir e Carneiro.

De fato, a área de saneamento é historicamente marcada por significativo déficit de democracia nas políticas públicas e na gestão dos serviços, herdado de períodos da vida nacional caracterizados pelo autoritarismo34 34 HELLER, Léo; REZENDE, Sonaly Cristina e HELLER, Pedro Gasparini Barbosa. Participação e controle social em saneamento básico: aspectos teórico-conceituais. In: GALVÃO JUNIOR, Alceu de Castro e XIMENES, Mafisa Maria Ferreira. Regulação: controle social da prestação dos serviços de água e esgoto. Fortaleza: Pouchain Ramos, 2007. . Estudos recentes têm demonstrado que tal situação ainda não foi superada satisfatoriamente35 35 MELO, Glenda Barbosa de. Avaliação da Política Municipal de Saneamento Ambiental de Alagoinhas (BA): Contornos da participação e do controle social. Dissertação de mestrado. Brasília: Universidade de Brasília, 2009. ,36 36 PITERMAN, Ana. Op. cit., p.1180-1192. ,37 37 MELLO, Maíra Crivellari Cardoso e REZENDE, Sonaly. O Conselho Municipal de Saneamento de Belo Horizonte: desafios e possibilidades. Engenharia Sanitária e Ambiental, vol. 19, n. 4, p. 479-488, 2014. , diante do que se poderia dizer que é baixa a cultura política participativa que permanece em vigor.

Considerações finais

A análise do panorama da legislação apresentado, com as dezoito referências ao controle social encontradas, revela que, ao mesmo tempo que, por um lado, há o incentivo ao controle social e, por outro lado, há o cerceamento desse princípio por conta da instituição de mecanismos participativos limitados em função de seu caráter apenas consultivo.

Nesse sentido, parece evidente que fica prejudicado o processo vivencial participativo, promotor de uma consciência crítica desalienadora capaz de agregar força sociopolítica para geração de novos valores e cultura política, conforme o entende Gohn.

Levando-se em conta que, historicamente, as ações de saneamento são conformadas, ainda em geral, a partir de paradigmas que constituem herança do Plano Nacional de Saneamento, criado durante o regime da ditadura militar no país, ao longo do qual o controle social era exercido pelo Estado sobre a sociedade, pode-se compreender a dubiedade acima aludida.

É forçoso reconhecer os avanços alcançados, cujo destaque é a criação da própria legislação em si, sabendo-se que, contudo, são insuficientes, tanto do ponto de vista do alinhamento com uma proposta mais avançada de participação quanto, sem dúvida, na perspectiva das práticas exercidas, o que constitui, igualmente, importante questão a ser examinada em estudo específico.

  • 2
    SOUZA, Cezarina Maria Nobre. Relação saneamento-saúde-ambiente: os discursos preventivista e da Promoção da Saúde. Saúde e Sociedade, vol. 16, n. 3, p. 125-137, 2007.
  • 3
    HELLER, Léo e NASCIMENTO, Nilo Oliveira. Pesquisa e desenvolvimento na área de saneamento no Brasil: necessidades e tendências. Revista Engenharia Sanitária e Ambiental, vol. 10, n. 1, p. 24-35, 2005.
  • 4
    PITERMAN, Ana. (A falta de) Controle social das políticas municipais de saneamento: um estudo em quatro municípios de Minas Gerais. Saúde e Sociedade, vol. 22, n. 4, p. 1.180-1.192, 2013.
  • 5
    FERREIRA, Cristina Maria Soares e FONSECA, Alberto. Análise da participação popular nos conselhos municipais de meio ambiente do médio Piracicaba (MG). Ambiente & Sociedade, vol. XVII, n. 3, p. 239-258, 2014.
  • 6
    TEIXEIRA, Maria Lúcia; VIANNA, Werneck; CAVALCANTI, Maria de Lourdes e CABRAL, Marta de Pina. Participação em saúde: do que estamos falando?. Sociologias, vol. 11, n. 21, p. 218-251, 2009.
  • 7
    BRASIL, Flávia de Paula Duque. Participação cidadã e reconfigurações nas políticas urbanas nos anos 90. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, vol. 6, n. 2, p. 35-51, 2004.
  • 8
    BORDENAVE, Juan Diaz Bordenave. O que é participação?. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
  • 9
    VEIGA, Bruno Gonzaga Agapito da. Participação social e políticas públicas de gestão das águas: olhares sobre as experiências do Brasil, Portugal e França. Tese de doutorado. Brasília: Universidade de Brasília, 2007.
  • 10
    GOHN, Maria da Glória. O protagonismo da sociedade civil: Movimentos sociais, ONGs e redes solidárias. São Paulo: Cortez, 2005, p. 30.
  • 11
    MARSHAL, Thomas Humphrey. Citizenship and Social Class. In: Class, Citizenship and Social Development. Westport: Greenwood Press, 1973.
  • 12
    HELD, David. Ciudadanía y autonomía. La Política (Barcelona), n. 3, p. 41-67, 1997. (Tradução de BARBOSA, A. S. e ROSA E SILVA, A. M. O. Perspectivas, vol. 22, p. 201-231, 1999).
  • 13
    HELLER, Léo e CASTRO, Jose Esteban. Política pública de saneamento: apontamentos teórico-conceituais. Revista de Engenharia Sanitária e Ambiental, vol. 12, n. 3, p. 284-295, 2007.
  • 14
    JANOSKI, Thomas. Citizenship and civil society: A framework of rights and obligations in liberal, traditional, and social democratic regimes. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
  • 15
    ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA. Nota técnica, jan. 2016. Disponível em: <https://goo.gl/ReqzVo>. Acesso em: mar. 2016.
  • 16
    TOURAINE, Alain. O que é democracia. Petrópolis: Vozes, 1996.
  • 17
    CARVALHO, Sérgio Resende. Os múltiplos sentidos da categoria "empowerment" no projeto de Promoção à Saúde. Cadernos de Saúde Pública, vol. 20, n. 4, p. 1.088-1.095, 2004.
  • 18
    GOHN, Maria da Glória. Empoderamento e participação da comunidade em políticas sociais. Saúde e Sociedade, vol. 13, n. 2, p. 20-31, 2004.
  • 19
    CARVALHO, Sérgio Resende e GASTALDO, Denise. Promoção à saúde e empoderamento: uma reflexão a partir das perspectivas crítico-social pós-estruturalista. Ciência e Saúde Coletiva, vol. 13 (sup. 2), p. 2.029-2.040, 2008.
  • 20
    CARVALHO, Sérgio Resende. Op. cit.
  • 21
    WENDHAUSEN, Águeda L. P.; BARBOSA, Tatiane Muniz; BORBA, Maria Clara de. Empoderamento e recursos para a participação em Conselhos Gestores. Saúde e Sociedade, vol. 15, n. 3, p. 131-144, 2006.
  • 22
    GOHN, Maria da Glória. Op. cit., 2004.
  • 23
    RISSEL, Christopher. Empowerment: the holy grail of health promotion?. Health Promotion International, vol. 9, n. 1, p. 39-47, 1994.
  • 24
    CARVALHO, Sérgio Resende e GASTALDO, Denise. Op. cit.
  • 25
    CARVALHO, Sérgio Resende. Saúde Coletiva e Promoção da Saúde: sujeito e mudança. São Paulo: Hucitec, p. 76, 2005.
  • 26
    SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, p. 16, 2010.
  • 27
    BORBA, Julian. Cultura política, ideologia e comportamento eleitoral: alguns apontamentos teóricos sobre o caso brasileiro. Opinião Pública, vol. XI, n. 1, p. 147-168, 2005.
  • 28
    ALMOND, Gabriel e VERBA, Sidney. The civic culture: Political attitudes and democracy in five nations. Princeton: Princeton University Press, 1989, p. 12.
  • 29
    BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: Editora da UnB, 1986, p. 306.
  • 30
    KUSCHNIR, Karina e CARNEIRO, Leandro Piquet. As dimensões subjetivas da política: Cultura política e antropologia da política. Estudos históricos, n. 24, 1999. Disponível em: <http://goo.gl/FpAQp5>. Acesso em: mar. 2016.
  • 31
    SOUZA, Lília. Cultura política: anotações sobre os casos brasileiro e baiano. Anais do IV Encontro da Compolítica. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2011.
  • 32
    BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Op. cit., p. 306.
  • 33
    BRAVO, Maria Inês Souza; CORREIA, Maria Valéria Costa. Desafios do controle social na atualidade. Serviço Social e Sociedade, n. 109, p. 126-150, 2012.
  • 34
    HELLER, Léo; REZENDE, Sonaly Cristina e HELLER, Pedro Gasparini Barbosa. Participação e controle social em saneamento básico: aspectos teórico-conceituais. In: GALVÃO JUNIOR, Alceu de Castro e XIMENES, Mafisa Maria Ferreira. Regulação: controle social da prestação dos serviços de água e esgoto. Fortaleza: Pouchain Ramos, 2007.
  • 35
    MELO, Glenda Barbosa de. Avaliação da Política Municipal de Saneamento Ambiental de Alagoinhas (BA): Contornos da participação e do controle social. Dissertação de mestrado. Brasília: Universidade de Brasília, 2009.
  • 36
    PITERMAN, Ana. Op. cit., p.1180-1192.
  • 37
    MELLO, Maíra Crivellari Cardoso e REZENDE, Sonaly. O Conselho Municipal de Saneamento de Belo Horizonte: desafios e possibilidades. Engenharia Sanitária e Ambiental, vol. 19, n. 4, p. 479-488, 2014.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ALMOND, Gabriel; VERBA, Sidney. The civic culture: Political attitudes and democracy in five nations. Princeton: Princeton University Press, 1989.
  • ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA. Nota técnica, jan. 2016. Disponível em: <https://goo.gl/ReqzVo>. Acesso em: mar. 2016.
    » https://goo.gl/ReqzVo
  • BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política Brasília: Editora da UnB, 1986.
  • BORBA, Julian. Cultura política, ideologia e comportamento eleitoral: alguns apontamentos teóricos sobre o caso brasileiro. Opinião Pública, vol. XI, n. 1.
  • BORDENAVE, Juan Diaz. O que é participação? 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
  • BRASIL, Flávia de Paula Duque. Participação cidadã e reconfigurações nas políticas urbanas nos anos 90. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, vol. 6, n. 2, 2004.
  • BRAVO, Maria Inês Souza; CORREIA, Maria Valéria Costa. Desafios do controle social na atualidade. Serviço Social e Sociedade, n. 109, 2012.
  • CARVALHO, Sérgio Resende; GASTALDO, Denise. Promoção à saúde e empoderamento: uma reflexão a partir das perspectivas crítico-social pós-estruturalista. Ciência e Saúde Coletiva, vol. 13 (sup. 2), 2008.
  • CARVALHO, Sérgio Resende. Os múltiplos sentidos da categoria "empowerment" no projeto de Promoção à Saúde. Cadernos de Saúde Pública, vol. 20, n. 4, 2004.
  • ______. Saúde Coletiva e Promoção da Saúde: sujeito e mudança. São Paulo: Hucitec, 2005.
  • FERREIRA, Cristina Maria Soares e FONSECA, Alberto. Análise da participação popular nos conselhos municipais de meio ambiente do médio Piracicaba (MG). Ambiente & Sociedade, vol. XVII, n. 3, 2014.
  • GALVÃO JUNIOR, Alceu de Castro e XIMENES, Mafisa Maria Ferreira. Regulação: controle social da prestação dos serviços de água e esgoto. Fortaleza:: Pouchain Ramos, 2007.
  • GOHN, Maria da Glória. O protagonismo da sociedade civil: Movimentos sociais, ONGs e redes solidárias. São Paulo: Cortez, 2005.
  • ______. Empoderamento e participação da comunidade em políticas sociais. Saúde e Sociedade, vol. 13, n. 2, 2004.
  • HELD, David. Ciudadanía y autonomía. La Política (Barcelona), n. 3, 1997. Trad. BARBOSA, A. S. e ROSA E SILVA, A. M. O. Perspectivas, vol. 22, 1999.
  • HELLER, Léo e CASTRO, Jose Esteban. Política pública de saneamento: apontamentos teórico-conceituais. Revista de Engenharia Sanitária e Ambiental, vol. 12, n. 3, 2007.
  • HELLER, Léo e NASCIMENTO, Nilo Oliveira. Pesquisa e desenvolvimento na área de saneamento no Brasil: necessidades e tendências. Revista Engenharia Sanitária e Ambiental, vol. 10, n. 1, 2005.
  • HELLER, Léo; REZENDE, Sonaly Cristina; HELLER, Pedro Gasparini Barbosa. Participação e controle social em saneamento básico: aspectos teórico-conceituais. In: GALVÃO JUNIOR, Alceu de Castro e XIMENES, Mafisa Maria Ferreira. Regulação: controle social da prestação dos serviços de água e esgoto. Fortaleza: Pouchain Ramos, 2007.
  • JANOSKI, Thomas. Citizenship and civil society: A framework of rights and obligations in liberal, traditional, and social democratic regimes. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
  • KUSCHNIR, Karina e CARNEIRO, Leandro Piquet. As dimensões subjetivas da política: Cultura política e antropologia da política. Estudos históricos, n. 24, 1999. Disponível em: <http://goo.gl/FpAQp5>. Acesso em: mar. 2016.
    » http://goo.gl/FpAQp5
  • MARSHAL, Thomas Humphrey. Citizenship and Social Class. In: Class, Citizenship and Social Development Westport: Greenwood Press, 1973.
  • MELO, Glenda Barbosa de. Avaliação da Política Municipal de Saneamento Ambiental de Alagoinhas (BA): Contornos da participação e do controle social. Dissertação (Mestrado). Brasília: Universidade de Brasília, 2009.
  • MELLO, Maíra Crivellari Cardoso e REZENDE, Sonaly. O Conselho Municipal de Saneamento de Belo Horizonte: desafios e possibilidades. Engenharia Sanitária e Ambiental, vol. 19, n. 4, 2014.
  • PITERMAN, Ana. (A falta de) Controle social das políticas municipais de saneamento: um estudo em quatro municípios de Minas Gerais. Saúde e Sociedade, vol. 22, n. 4, 2013.
  • RISSEL, Christopher. Empowerment: the holy grail of health promotion?. Health Promotion International, vol. 9, n. 1, 1994.
  • SOUZA, Cezarina Maria Nobre. Relação saneamento-saúde-ambiente: os discursos preventivista e da Promoção da Saúde. Saúde e Sociedade, vol. 16, n. 3, 2007.
  • SOUZA, Lília. Cultura política: anotações sobre os casos brasileiro e baiano. Anais do IV Encontro da Compolítica Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2011.
  • SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • TEIXEIRA, Maria Lúcia; VIANNA, Werneck; CAVALCANTI, Maria de Lourdes e CABRAL, Marta de Pina. Participação em saúde: do que estamos falando?. Sociologias, vol. 11, n. 21, 2009.
  • TOURAINE, Alain. O que é democracia Petrópolis: Vozes, 1996.
  • VEIGA, Bruno Gonzaga Agapito da. Participação social e políticas públicas de gestão das águas: olhares sobre as experiências do Brasil, Portugal e França. Tese de doutorado. Brasília: Universidade de Brasília, 2007.
  • WENDHAUSEN, Águeda L. P.; BARBOSA, Tatiane Muniz; BORBA, Maria Clara de. Empoderamento e recursos para a participação em Conselhos Gestores. Saúde e Sociedade, vol. 15, n. 3, 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2015
  • Aceito
    12 Fev 2016
Instituto de Estudos Brasileiros Espaço Brasiliana, Av. Prof. Luciano Gualberto, 78 - Cidade Universitária, 05508-010 São Paulo/SP Brasil, Tel. (55 11) 3091-1149 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaieb@usp.br