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Trabalho, teleologia e causalidade: as formas originárias da práxis social em Lukács

Work, teleology and causality: the original forms of social praxis in Lukács

Resumo

Este artigo visa compreender as reflexões de Lukács sobre os fundamentos ontológicos do trabalho, tendo este como nascedouro da práxis social, considerando as complexas cadeias que o estruturam. A exposição das categorias está ancorada nos fundamentos da ontologia do ser social. Como categoria guiada por uma necessidade cada vez mais social, sustentado pela consciência, mediado pela natureza, meios e fins, o trabalho possibilita a emergência da práxis social, afiançando teleologia e causalidade, tornandose núcleo fundante do ser social.

Palavras-chave:
Trabalho; Ontologia; Ser social; Práxis

Abstract

This article aims at understanding Lukács’ reflections on the ontological foundations of labour, taking it as the birthplace of social praxis, considering the complex chains that structure it. The exposition of the categories is anchored in the foundations of the ontology of social being. As a category guided by an increasingly social need, sustained by consciousness, mediated by nature, means and ends, work enables the emergence of social praxis, affirming teleology and causality, becoming the founding nucleus of social being.

Keywords:
Work; Ontology; Social Being; Praxis

Introdução

As exéquias do trabalho, prematuramente defendidas pelos ideólogos neoliberais no bojo do colapso que levou a cabo a maior experiência socialista do século passado, acentuaram afirmações generalizantes das teorias modernas que marcavam o fim da sociedade do trabalho, o fim da história, como afirmara um entusiasta Fukuyama (1992). Coadunam-se com o colapso da URSS, a ascensão da combinação de fatores econômicos e ideopolíticos embalados pelo programático eixo neoliberalizante da era Reagan-Thatcher, que anunciavam a existência de uma suposta nova história da humanidade, revelando, em seu cerne, profundas e irreversíveis determinações na vida social e, evidentemente, no mundo do trabalho.

Malfadado foi o funeral do mundo do trabalho propugnado pelos apologetas do capital, fracasso este que, diante de uma incontestável refutação às teses marxianas do valor-trabalho, “ esta como uma das chaves heurísticas para compreensão da dinâmica do capitalismo e, sobretudo, a partir da complexidade do capitalismo em tempos agudos -, reacendeu o debate sobre o trabalho, “ se é que esteve um dia em fogo morto -, retomando as categorias1 1 Em relação às categorias, afirma Lukács (apud EÖRSI, 1986, p. 85) que elas são formas de ser, o que jamais remove, a partir do método marxiano, sua legalidade diante da historicidade, registrando o autor que “não é que a história se desenvolva no interior do sistema das categorias, mas, ao contrário, a história é a transformação do sistema das categorias”. indispensáveis para o entendimento do trabalho como produtor de valor, bem como sua finalidade cada vez mais social.

Nessa direção, tais reflexões sobre o trabalho necessitam ser compreendidas, instituindo-se as mediações necessárias, a partir de um método que se estabeleça diante da base material da vida, entendida ontologicamente como ponto de partida de toda sociabilidade humana, no sentido de compreendê-la a partir de uma “[...] análise radicalmente crítica da gênese, do desenvolvimento, da consolidação e dos vetores de crises da sociedade burguesa e da ordem capitalista” (PAULO NETTO, 2009PAULO NETTO, J. Introdução ao método na teoria Social. In: Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009., p. 157).

Nesse sentido, muito longe de esgotar o debate, nosso objetivo neste artigo introdutório é compreender o significado ontológico do trabalho, mediado com complexas cadeias causais que vão possibilitar colocar em movimento teleologia e causalidade, afiançando a emergência de um ser refinado, que possibilita a existência da mundaneidade social, ou seja, o ser social e suas inúmeras mediações complexas, originadas no trabalho.

A fim de possibilitar uma reflexão fiel a concretude da vida, tomamos como referência os esforços teórico-metodológicos e éticos presentes na obra de György Lukács, que, intentando fazer renascer o marxismo, empreendeu um rigoroso estudo sobre as origens do ser social, tendo o trabalho enquanto forma originária da práxis social, fundamento este que nos servirá de base para as reflexões deste artigo.

O trabalho como forma originária da práxis social

Embora profundamente determinado pelas relações sociais de produção vigentes, o trabalho, compreendido como uma autoconstrução sóciohistórica, se inscreve como exclusiva possibilidade posta ao e pelo homem, a partir da realização de complexas mediações e atividades que lhe possibilitam dirigir-se rumo à construção de elementos indispensáveis ao seu reconhecimento como ser social. Assim, o trabalho, “[...] a sociabilidade, a consciência, a universalidade e a liberdade” (BARROCO, 2010BARROCO, M. L. S. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez, 2010., p. 116), situam-se como atividades mediadoras, autocriativas, universais, que possibilitam o estabelecimento das bases rumo ao refinamento social mais elevado, bem como o latente desenvolvimento de todas as potencialidades dirigidas ao humano-genérico.

Enquanto atividade que imputa ao humano-genérico um refinamento social cada vez mais elevado, é necessário entender que o trabalho, na condição de uma categoria indispensável à emergência do ser social, requer o distanciamento da imediatidade latente dos instintos, pois objetiva, por meio do intercâmbio com a natureza, determinada transformação almejada, profundamente mediatizada pela satisfação das necessidades humanas, bem como ruma em direção à sua humanização.

Esse distanciamento remete o humano-genérico na direção do conteúdo ontológico do qual o trabalho é legatário e do qual demonstra ser uma categoria, “ mediada por outras igualmente importantes “ fundante para a emergência de um novo tipo de ser, mais refinado, dotado de sentidos. Ainda que este conteúdo seja profundamente cooptado, alterado e determinado pelas relações sociais de produção, o trabalho resguarda a fundação deste novo tipo de ser. Tomadas como referência, as categorias fundadas no método, podemos retomar Lukács (2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 286) quando afirma que “o trabalho dá lugar a uma dupla transformação. Por um lado, o próprio ser humano que trabalha é transformado por seu trabalho; ele atua sobre a natureza exterior e modifica, ao mesmo tempo, sua natureza, desenvolve as potências que nela se encontram latentes”.

Compreendida como a primeira forma de objetividade, afirma-se de que não há homem sem natureza, porém é factível o reconhecimento da existência da natureza sem homem, e, deste modo, esta natureza não consiste em uma imaterialidade idealizada2 2 Cabe situar inúmeras teodiceias criadas a partir da necessidade de situar a natureza e a história a um finalismo, sob o domínio de imagens criadas pelo homem. Ver Frederico (2005). . Esta natureza é insuprimível, compreendida como um terreno prenhe de legalidades próprias, embora mediante a emergência do ser social ela não altere seu estatuto, de modo que mesmo diante do contínuo afastamento das barreiras realizado pelos homens a partir do trabalho, sua legalidade permanece intocada.

Mediada pelo trabalho e pelas capacidades humano-genéricas frente a um continuado e sistemático processo de pores teleológicos é que tal natureza se impõe, bem como oferece respostas aos carecimentos humanos, figurando-se numa via de mão dupla, ao tornar-se núcleo fundante para a satisfação das necessidades do humano-genérico e terreno concreto para o desenvolvimento da sua autotransformação, centrado em uma socialização cada vez mais pura (TERTULIAN, 1995TERTULIAN, N. Uma apresentação à Ontologia do ser social de Lukács. Crítica marxista, São Paulo: Brasiliense, n. 2, p. 54, 1995.).

O trabalho, além de constituir-se como uma atividade ontológica para o ser social, pois lhe confere humanidade, tributa determinado estatuto diante da transformação da natureza e, por consequência, a sua imediata e inegável transformação enquanto ser social, diante de um processo definido por pores teleológicos. Assim, “[...] só é lícito falar do ser social quando se compreende que a sua gênese, o seu distinguir-se da sua própria base e o seu processo de tornar-se algo autônomo se baseiam no trabalho, isto é, na continuada realização de posições teleológicas” (LUKÁCS, 1981LUKÁCS, G. O Trabalho. In: LUKÁCS, G. Ontologia do ser social. Roma: Riuniti, 1981., p. 11).

Ao situar a relação homem-natureza, não poderia justapô-la de maneira fracionada e acidentada à sociedade, pois, considerando natureza, trabalho, meio e fim, mediados pela produção, desembocam no processo de trabalho, dirigindo a um determinado fim, que possibilita a emergência de determinado produto, afiançando a existência da mundaneidade social.

Dito isso, recusa-se a compreensão justaposta desta relação, situando que a síntese dessa nova esfera social revela a existência de uma objetivação legatária de determinações a partir da totalidade social que, contraditória e heterogênea, coloca em movimento teleologia e causalidade, considerando a inegável existência da natureza, porém com profundos traços de mutação na esfera da consciência humana (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.).

Diante da transformação das bases da natureza, o trabalho somente pode ser considerado como atividade consciente a partir das formas de projeção na consciência, dirigidas à satisfação de necessidades sociais, mas se afigura como teleologia ao passo que leva a cabo sua objetivação, pois não é lícito falar em teleologia sem causalidade, categorias estas como chaves heurísticas para compreensão da vida social (TERTULIAN, 1995TERTULIAN, N. Uma apresentação à Ontologia do ser social de Lukács. Crítica marxista, São Paulo: Brasiliense, n. 2, p. 54, 1995.).

Neste sentido, teleologia e causalidade

[...] não são, como apareciam nas análises gnosiológicas ou lógicas, princípios mutuamente excludentes no desdobramento do processo, do ser-aí do ser-assim das coisas, mas, ao contrário, princípios mutuamente heterogêneos, que, no entanto, apesar da sua contraditoriedade, somente em comum, numa coexistência dinâmica indissociável, podem constituir o fundamento ontológico de determinados complexos dinâmicos, complexos que só no campo do ser social são ontologicamente possíveis, cuja ação nessa coexistência dinâmica constitui característica principal desse grau do ser (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 89).

Além da função de sociabilização por meio do trabalho, o homem, ao projetar finalidades, constrói, na esfera da consciência, determinada forma que será objetivada. O produto desse processo situa-se como uma construção mental antecipada nessa mesma consciência que, impulsionada por necessidades, sustentada por uma intelecção, nervos e músculos, tendo instrumentos que mediam esse processo, materializa-se a partir de um intercâmbio entre homem e natureza, possibilitando a concreção dessa abstração (FRANÇA JÚNIOR; LARA, 2015FRANÇA JÚNIOR, R; LARA, R. Trabalho e Ser Social: reflexões sobre a ontologia lukacsiana e sua incidência no Projeto Ético-Político Profissional. Textos e Contextos, Porto Alegre, v. 14, n. 1, 2015. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/ article/view/17406/13306. Acesso em: maio 2019.
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/...
).

O trabalho para realizar-se pressupõe um reflexo correto, ou seja, um reconhecimento válido sobre a matéria que será transformada, mediada por alternativas diante dos meios mais adequados a corresponder-lhe às necessidades. A teoria do reflexo refere-se às escolhas conscientes dos meios e instrumentos que fornecem ao ser social “[...] utilidade ou não de um reflexo determinado. A realização da ‘verdade’ contida no reflexo depende dos fins escolhidos pelo homem” (FREDERICO, 2005FREDERICO, C. Marx, Lukács a arte na pesquisa ontológica. Natal: Ed. EDUFRN, 2005., p. 125). É certo que o espelhamento da realidade se situa como processo indispensável, que possibilita ao homem dissociar-se de seu ambiente, o que vai manifestar-se diretamente na confrontação entre sujeito e objeto.

Lukács (2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 66) afirma que “[...] no espelhamento da realidade a reprodução se destaca da realidade reproduzida, coagulando-se numa ‘realidade’ própria na consciência [...]”, ao passo que, nessa consciência, tal reflexo é apenas uma mera reprodução, destacando que dela deriva uma nova forma de objetividade, mas que não cria uma realidade, pois, assim pensada, perderia seu estatuto ontológico. Tal reprodução não é idêntica diante daquilo que reproduz, “[...] pelo contrário, no plano ontológico, o ser social se subdivide em dois momentos heterogêneos, que do ponto de vista do ser não só estão diante um do outro como heterogêneos” (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013., p.66), revelando uma factível dualidade que se opõe: o ser social e seu espelhamento na esfera da consciência.

O espelhamento funda-se em uma peculiar contradição, visto que tal espelhamento da realidade não se figura como um não ser, por ser apenas um reflexo (mas não menos importante), mas se torna indispensável na mediação de causalidades. É, ao mesmo tempo, elemento que conduz a emergência de novas objetividades frente ao ser social, sendo que este espelhamento, mesmo não sendo um ser em síntese, não carrega nenhum tipo de dado gnosiológico, pois ele é tributário de um estatuto ontológico.

Assim,

[...] o espelhamento tem uma natureza peculiar contraditória: por um lado, ele é o exato oposto de qualquer ser, precisamente porque ele é espelhamento, não é ser; por outro lado, e ao mesmo tempo, é o veículo através do qual surgem novas objetividades no ser social, para a reprodução deste no mesmo nível ou em um nível mais alto (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 67).

Como expressão de uma processualidade determinada por uma complexidade muito ampla, tal interação entre opostos não anula as capacidades de objetivação do ser social, pelo contrário, ela vai irrigar as mediações indispensáveis diante dos pores teleológicos que, na condição de causalidade posta, demonstram a estatura do trabalho para o ser social.

Lukács (2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 62) acentua a diferencialidade entre o ser social e demais animais da natureza, sobretudo aqueles considerados mais desenvolvidos, afirmando que “[...] parece um fato inegável, todavia, ela se mantém sempre como um pálido momento parcial subordinado ao seu processo de reprodução biologicamente fundado e que se desenvolve segundo as leis da biologia”.

Tributa-se à esfera da reprodução biológica desses animais um epifenômeno do ser orgânico, a serviço de uma existência biológica, figurando-se de modo estagnado, onde o mutismo de um determinado tipo de desenvolvimento impera. Tal condição se coloca como um beco sem saída em qualquer estágio de sua existência, por não haver nenhum tipo de desenvolvimento que se imponha como teleologia e causalidade.

Prévia ideação ou teleologia configura-se como uma categoria exclusiva do humano-genérico que, estabelecendo-se no campo das ideias e dirigindo-se à objetivação, valendo-se de determinados meios, transforma a teleologia em causalidade posta, tratando-se de uma indispensabilidade presente na relação entre humano-genérico e natureza. Teleologia e causalidade têm no trabalho elemento mediador, sustentado pela capacidade humana em reconhecer as propriedades e os princípios presentes na legalidade da natureza.

O ser social, “[...] ao apreender os nexos da malha causal, ao assumi-los na consciência por meio da reprodução ideal, torna-se capaz de transformar a matéria natural, produzindo, deste modo, um objeto apto a satisfazer suas necessidades e carências” (FORTES, 2016, p. 50). O homem é um ser que dá respostas.

Ao compreender que esse ser social possibilita respostas aos carecimentos mais variados, importa entender que tal processualidade se inscreve no terreno da base material que insta o ser social a emitir respostas cada vez mais sociais. Nesta base, a vida somente pode ser considerada como tal tendo como ponto de partida a esfera inorgânica, consubstanciada pelo incessante intercâmbio do homem -

mediado pelo trabalho - enquanto ser natural, com a natureza, e esse intercâmbio possibilita que este ser natural se ancore enquanto esfera ontológica particular no interior da totalidade do ser em geral, ou seja, essa processualidade afiança a emergência de um ser mais complexo, mais desenvolvido (FRANÇA JÚNIOR, 2018).

As esferas constitutivas do ser social não se limitam apenas às bases inorgânicas, mesmo que elas se situem como base de sustentação, mediadas por outras categorias, à emergência deste ser desenvolvido. Não há possibilidade da existência das bases orgânicas sem aquelas determinadas pelas primeiras, as inorgânicas, pois não há possibilidade de inversão das prioridades ontológicas nelas contidas, ou seja, as matérias orgânicas não podem prescindir dos elementos inorgânicos que as engendram (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.).

Tais esferas se constituem como um complexo determinado, que situa o humano-genérico como um complexo de complexos, tendo como base o avanço do processo de desenvolvimento das formações sociais (qualitativamente mais complexas), tendo em vista que “[...] quanto maior a variedade de relações sociais que ela (sociedade) contenha, maior será a articulação das vidas individuais com a história coletiva” (LESSA, 2008LESSA, S; TONET, I. Introdução à filosofia de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 76), o que não anula sua prioridade, pelo contrário, assegura, mediada, com outras categoriais mais complexas e superiores, a emergência deste novo tipo de ser.

Nessa direção, o trabalho necessita ser apreendido a partir da sua base, tendo em vista seu caráter coletivo, pois as necessidades de outros sujeitos permitem que o trabalho apresente determinada finalidade social, reconhecendo as particularidades desta categoria, entre elas, os pores teleológicos primários - que se situam no bojo de um particular tipo de desenvolvimento social, sendo este restrito às esferas econômicas -, dirigidos diante da satisfação das necessidades sociais, inaugurando, assim, o processo em direção à realização do valor de uso. O trabalho determinado nessa esfera de desenvolvimento social não o impõe diante de um determinismo frente à economia; essa esfera econômica segue, invariavelmente, “[...] acrescida de níveis mais complexos que irão compor a sociedade” (FREDERICO, 2005FREDERICO, C. Marx, Lukács a arte na pesquisa ontológica. Natal: Ed. EDUFRN, 2005., p. 133).

A realização dos pores teleológicos somente se constitui como possibilidade a partir do acesso às cadeias causais que lhes engendram, sendo que esta causalidade se afigura como terreno que se precede de determinada projeção finalística. Compreendidas nesta direção, as bases causais seguem ilimitadas, diante de uma infinidade imanente, posto que a chamada consciência ponente segue adstrita a determinados horizontes objetiváveis (TERTULIAN, 1995TERTULIAN, N. Uma apresentação à Ontologia do ser social de Lukács. Crítica marxista, São Paulo: Brasiliense, n. 2, p. 54, 1995.).

Essa consciência ponente situa-se como uma célula que compõe a emergência da vida social, na medida em que se atribui a ela inúmeras mediações, entre elas, o trabalho, é imprescindível deslindar a relação entre natureza e sociedade, ao passo que a primeira segue dominada por uma causalidade imanente e a segunda se coloca frente a constantes posicionamentos finalísticos, conscientes, diante de alternativas de escolhas postas à sua decisão de valor, situando, deste modo, frente a uma incontestável e indissolúvel relação causal-finalística.

Esse movimento permite dar legalidade e efetividade ao “[...] caráter de irredutibilidade do mundo dos valores” (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 52), como produto da consciência que impõe à causalidade posta profundamente mediada por projeções finalísticas. Assim, somente “[...] podemos falar racionalmente do ser social quando concebemos que a sua gênese, o seu distinguir-se, a sua própria base e seu tornar-se autônomo baseiam-se no trabalho, isto é, na contínua realização de pores teleológicos” (LUKÁCS, 2013, p. 52).

A imbricação entre teleologia e causalidade inscreve-se como uma latente expressão de uma teleologia primária, indispensável para impulsionar o homem rumo a um novo tipo de ser, frente à satisfação de necessidades crescentes, bem como diante das necessidades econômicas. Mas, ocorre no conjunto desta complexidade, determinadas posições que saltam da base material da vida e fixam-se diante de pores que influenciam comportamentos; os pores teleológicos secundários.

Diferentemente dos pores teleológicos primários, baseados na relação direta com a natureza, os pores teleológicos secundários dão origem a um momento pelo qual o processo se inverte e a práxis humano-social inscreve como algo qualitativamente novo, no sentido de que essa práxis humana situe como uma forma superior, soerguendo-se cristalizada de mediações, no sentido de provocar determinados graus de influências frente ao comportamento humano, direcionada à consciência dos seres sociais.

Os pores teleológicos secundários inscrevem-se frente ao campo das ideologias, ao realizar uma práxis social dirigida a influenciar outros seres sociais e conduzi-los a responderem mediante alternativas postas. Trata-se de uma “[...] tentativa de induzir outra pessoa (ou grupo de pessoas) a realizar, por sua parte, pores teleológicos concretos” (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 83).

Nesse sentido, a ideologia, dimensionada a partir dos conflitos sociais, “[...] filtra os problemas que afloram da consciência e orienta a intervenção dos homens” (FREDERICO, 2005FREDERICO, C. Marx, Lukács a arte na pesquisa ontológica. Natal: Ed. EDUFRN, 2005., p. 137), indica sua prioridade em direcionar a tomada de decisões influenciadas por outros homens. Porém, com a prevalência das categorias econômicas, esse processo inverte-se, segue por ele apropriado, tendo em vista que esta crescente dominação direta “[...] cede lugar ao dinamismo da lógica econômica e às técnicas de convencimento que atrelam os indivíduos ao sistema social” (FREDERICO, 2005, p. 137).

Diante do momento em que o ser social se dirige frente ao estabelecimento de uma relação necessariamente consciente e histórica com outros seres sociais, no sentido de objetivar determinado trabalho, ele possibilita que o pôr teleológico secundário transponha as características imediatas do trabalho, na direção da constituição de uma processualidade que incide diretamente sobre as condutas humanas, projetando a consciência humana e impulsionando ações concretas. Os pores teleológicos secundários, mediados pelo trabalho, remetem o ser social rumo à práxis social, sendo esta entendida como um campo prenhe de possibilidades de transformação. Com relação à práxis social, Lukács (1978LUKÁCS, G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Revista Temas de Ciências Humanas, São Paulo, n. 1, 1978., p. 5) afirma que o

[...] homem torna-se um ser que dá respostas precisamente na medida em que - paralelamente ao desenvolvimento social e em proporção crescente - ele generaliza, transformando em perguntas seus próprios carecimentos e suas possibilidades de satisfazê-los.

Tendo-a como base genética frente às projeções mentais cada vez mais aperfeiçoadas deste ser social, é considerável que, na mesma medida de aperfeiçoamento, sua práxis siga cada vez mais social, visto que, para atingir esse nível qualitativamente novo diante da práxis, supõe o desenvolvimento ulterior da universalidade, da consciência, da liberdade e da sociabilidade. Sem elas não é possível ascender a uma práxis social emancipatória.

Não há determinada linearidade diante deste processo, pois este se constitui de modo muito particular, levando em consideração determinados tipos de desenvolvimento - considerando os tipos de classes sociais, estratos sociais desiguais, por exemplo a depender da esfera social na qual a processualidade se inscreve, visto que, a partir das determinações das totalidades sociais, cada vez mais ricas e complexas e estas determinações figuram-se diante de inúmeras mediações entre os indivíduos e o gênero humano.

Considerando as determinadas formas e complexificações originadas desta práxis, categorizada como ações interativas, acabam assumindo uma supremacia diante dos níveis inferiores, “[...] de tal modo que as mudanças ulteriores do sujeito, por mais importantes que sejam, certamente são produtos de estágios mais evoluídos, superiores de um ponto de vista social, e, no entanto, têm seu fundamento ontológico na forma originária do simples trabalho” (LUKÁCS, 1981LUKÁCS, G. O Trabalho. In: LUKÁCS, G. Ontologia do ser social. Roma: Riuniti, 1981., p. 41).

A práxis como ação geradora da liberdade

O trabalho, como medida da emergência da liberdade, é condição para o desenvolvimento das suas forças liberadoras, se coloca diante do domínio pelos seres humanos, das restrições impostas pelas barreiras naturais e sua consequente superação, mediando potências afiançadoras do autorreconhecimento da sua condição de ser social. Afirma seu lugar como sujeito individual e coletivo, que responde, imediatamente, a carências e cria novas necessidades cada vez mais sociais.

A existência do trabalho como capacidade dirigida à liberdade não pode ser compreendida como uma categoria descolada do real e das mediações que a enriquecem, pois, pensando deste modo, trabalho e liberdade tornar-se-iam valores puramente abstratos. Sua afirmação como capacidade livre requer precisá-la como uma atividade criadora, consciente, diante da superação da sua restrição por vezes simplista, como atividade puramente de sobrevivência ou, como afirma Barroco (2010BARROCO, M. L. S. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez, 2010., p. 61), de “exploração e dominação entre os homens”.

Ao situar liberdade, falamos de alternativas possíveis frente a possibilidades fundadas diante do tempo histórico de uma base material da qual o ser social se (re)produz, levando em conta padrões ético-morais individuais e/ou coletivos que o influenciam. As alternativas demonstram determinada passagem daquilo que antes era uma possibilidade e, agora, transmuta-se em uma realidade posta, residindo aí, atos de escolhas e decisões conscientes (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.).

Mediante determinada ação liberadora dos elementos que impulsionam a liberdade, aqui falamos de uma liberdade substantiva, dirigida ao pleno exercício da grandeza humana, e é necessário destacar que tais mediações se colocam diante de uma posição de devir ético, que supõe a adesão de valores igualmente ratificados frente a um tipo de liberdade que, superados seus limites restritos, dados na esfera do cotidiano, se coloque diante da universalidade.

Entendida como uma expressão latente da práxis, a ética ultrapassa os limites de um dever-ser na direção de situar-se como uma ação universal, calcada nos domínios do vir a ser, de modo que se configura essa ética tendo por base uma teleologia que se inscreve a partir de tipos de decisões que derivam ações práticas, dirigidas à superação daqueles elementos que obstaculizam a criação de necessidades e potencialidades livres (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.).

Esta capacidade ética não se coloca como uma abstração, ela segue mediatizada pelas esferas constitutivas da totalidade social, considerando a concretude da vida. Superada esta compreensão rumo a uma objetivação que lhe confira objetividade - diante de uma legalidade que, mediada pelo trabalho, ancorada em valores universais, possibilite a emergência de uma atividade livre, criativa, consciente -, a situe como uma capacidade direcionada a “[...] despojar os fins externos de seu caráter de pura necessidade natural para estabelecê-los como fins que o indivíduo fixa a si mesmo, de maneira que se torne a realização e objetivação do sujeito, ou seja, liberdade real, cuja atividade é precisamente o trabalho” (MARX, 2013MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 101).

Esse novo tipo de ser segue ancorado por processos consubstanciados frente a um alargamento da sociabilização, fundado no trabalho e este último, por sua vez, mediado pelas esferas constitutivas da vida. Faz-se necessário destacar o salto ontológico como momento único, exclusivo e decisivo no desenvolvimento deste ser social.

O salto ontológico se coloca diante de dois momentos, sendo que, no primeiro, este salto se manifesta a partir do desenvolvimento das formas de linguagem, das formas de consciência e pelo trabalho, colocando o homem na direção do ser-em-si do gênero humano, mediando o indivíduo ao gênero, entendido numa dimensão que transita entre o ser particular e o universal.

Tais formas, a partir das mediações consideradas com as esferas inorgânicas e orgânicas, impõem ao homem seguir em direção à superação do estado de mutismo, que, presente nos animais desprovidos de consciência, promove um efetivo distanciamento das formas ulteriores presentes no desenvolvimento humanosocial, evidenciando, assim, uma ruptura de tal paralisia em direção à generidade para-si.

Esta ruptura ratifica quão mais avançada essa sociedade se torna, mais suas determinações operantes se tornam enriquecidas, multímodas, ainda que muito determinadas por velhas contradições diante do desenvolvimento. Posto diante da ruptura de tal paralisia frente a este movimento operado por inúmeras cadeias causais,

se mostra um novo traço essencial da generidade não mais-muda frente àquela muda. Esta última está fundada biologicamente, por isso age imediatamente, sem necessidade de uma consciência mediadora. A generidade humana supera desde o início essa imediaticidade, por isso necessita sempre de atos mediadores conscientes, para em geral poder funcionar. Essa separação do novo ser da objetividade natural se apresenta desde o início. Mesmo o mais insignificante instrumento, produto etc. do trabalho, desde logo possui um ser essencialmente social. [...] No próprio homem, o salto - mediado pelo trabalho e pela linguagem - para além da generidade muda (apenas biológica) não é mais reversível (LUKÁCS, 2010LUKÁCS, G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 115).

A processualidade contida neste primeiro salto, a partir da linguagem, das formas de consciência e pelo trabalho, é situada por Frederico (2005FREDERICO, C. Marx, Lukács a arte na pesquisa ontológica. Natal: Ed. EDUFRN, 2005., p. 126) como a formação do “[...] ser social e os dois polos que o integram: o indivíduo e a sociedade”, determinando que a existência destes polos seguem uma determinabilidade que, profundamente encadeada de legalidades, prenhe de incongruências, descontinuísmos e antagonismos, revela o primado da totalidade da vida social e sua dinamicidade.

Uma leitura desavisada imporia a este movimento uma suposta linearidade histórica, como uma sucessão de fatos epifenomênicos e justapostos, ao tentar validar a riqueza desta processualidade descolada da práxis originada no trabalho e do desenvolvimento do ser humano como respostas deste às carências postas. A passagem entre a esfera inorgânica e orgânica rumo à social é preenchida de legalidades em que a ruptura segue enriquecida dos conteúdos que carrega, sendo que cada esfera desenvolve frente à relativa autonomia diante das outras legalidades específicas, que lhe confere diferenciação diante das demais.

O segundo momento que compreende o salto ontológico se constitui pelo contínuo processo de reconciliação entre as particularidades do indivíduo e as determinações presentes diante do gênero humano, rumo à superação dos descompassos e incongruências que se lhe apresentam como inegáveis e indispensáveis formas constituintes. Pode-se considerar essa reconciliação ao longo da história como a pré-história da sociedade humana, isto é, do gênero humano.

Pode-se referir ao indivíduo e à sociedade como polos, tendo como base um desenvolvimento muito particular, evidentemente marcado por contradições e por profundos tensionamentos, lhes conferindo um particular e efetivo movimento. Neste conjunto, busca-se refletir sobre o constante processo de (re)produção da vida social como elemento que “[...] conduz à individuação do sujeito e à socialização crescente da sociedade” (FREDERICO, 2005FREDERICO, C. Marx, Lukács a arte na pesquisa ontológica. Natal: Ed. EDUFRN, 2005., p. 126), o que nos leva a compreender, frente ao campo das (re)produções, que tal incessante superação dos descompassos remete à esfera de um profundo esvaziamento particular, rumo ao “[...] processo de elevação acima da particularidade [situado como] processo de síntese a partir do qual se realiza o indivíduo” (HELLER, 2002, p. 88, grifos da autora).

Ao serem suspensos os antagonismos presentes e inerentes a estes polos, emerge a possibilidade do homemem-si romper com o ser determinado e reproduzido frente às relações sociais de produção, rumo à constituição de um homem para-si, ascendido à genericidade humana, momento pelo qual o humano-genérico libera suas potências latentes, até então limitadas às esferas de uma reprodução restrita e monocausal, rumo ao que Markus (1974, apud BARROCO, 2010BARROCO, M. L. S. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez, 2010.) chamou de autoconsciência, ou seja, uma autotranscendência de caráter prático do ser social em relação aos limites impostos encontrados na natureza em relação ao ser individual.

Esta processualidade apenas se opera diante da práxis humana, profundamente enriquecida por uma démarche prenhe de necessidades, que antes como um ente ideal, objetiva-se e se coloca como causalidade posta em suas mais complexas mediações. Assim, considera-se que o salto ontológico se impõe como uma

[...] mudança qualitativa e estrutural do ser, na qual a fase inicial contém certamente em si determinadas premissas e possibilidades das fases sucessivas e superiores, mas estas não podem se desenvolver daquelas a partir de uma simples e retilínea continuidade (LUKÁCS, 1979LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Ciências Humanas, 1979., p. 95).

A compressão do salto ontológico, centrado a partir da transmutação dos elementos pré-humanos para a atualidade do estágio mais refinado, fornece as bases de constituição do ser social. Este, entendido como uma expressão da genericidade humana, não se coloca como uma processualidade destituída de legalidades e profundas mediações que a forjam, bem como não seria lícito situá-lo como um acontecimento unímodo, sustentado por uma vontade exclusivamente subjetiva deste ser que ruma a níveis mais elevados de socialização. Sua essência segue radicada na ruptura com as continuidades chamadas de normais por Lukács (1979LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.), contrapondo os equívocos presentes na compreensão de um suposto “nascimento repentino ou gradual” diante da historicidade desta nova forma de ser.

O salto ontológico se situa no bojo das determinações da base material presente e irrigada pela vida social, o que pressupõe o reconhecimento das relações sociais de produção, entendida aí a presença da cessação (desigual e contraditória) dos estados pregressos que engendram e circunscrevem legalidades. Compreendidas deste modo, as “[...] formas de objetividade do ser social se desenvolvem à medida que surge e se explicita a práxis social, a partir do ser natural, tornando-se cada vez mais claramente sociais” (LUKÁCS, 1979LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Ciências Humanas, 1979., p. 17).

O salto não é, de modo algum, anulado ou negado pela lentidão que constitui esse momento particular do homem, bem como diante de suas inúmeras formas intermediárias, pois é diante da teleologia e suas objetivações postas em movimento que se engendra uma transformação das formas ulteriores daquele ser, para um ser para-si.

Para Lukács, (1969, apud ABENDROTH, et al., 1969ABENDROTH, W et al. Conversando com Lukács. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969., p. 16), o

[...] homem é em si um ser complexo, no sentido biológico; mas como complexo humano não pode ser decomposto, não havendo possibilidade de atomização do ser social, continuando sua afirmação, ao passo que [...] compreender os fenômenos sociais, devo considerar a sociedade, desde o princípio, como um complexo de complexos.

Tais conteúdos sociais mais puros circunscrevem-se diante das inúmeras contradições que se operam na estreita relação entre sujeito e sociedade, concebidas aqui as determinações operadas pelas relações sociais, tendo como célula originária processos anteriores que vão irrigar as esferas constitutivas da totalidade pela qual emerge e consequentemente se (re)produz.

Isso nos remete a entender o edifício categorial do pensamento de Lukács em direção à supressão das formas determinadoras das relações sociais de produção atuais, o que possibilita compreender que a transição ou o salto dessa sociabilidade para um novo tipo de socialidade necessita ser portador de uma nova universalização, que precisa se afirmar, tendo em consideração que tais fenômenos transitórios ou as forças pertencentes ao novo ser se desenvolvam; sem isso, não há possibilidade alguma deste novo emergir, residindo aqui elementos do debate sobre a ética.

Considerações finais

Concebido como um ser que responde, o homem tem nas alternativas de escolhas as formas essenciais para julgar os valores para ele necessários e, em decorrência do seu lugar na concretude da vida, vai determinar as escolhas das respostas mais indispensáveis à sua (re) produção.

Essas escolhas seguem influenciadas pelos pores teleológicos secundários como um campo prenhe de ideologia, porém, como as formas de desenvolvimento econômico não são dirigidas a uma finalidade específica, por não serem portadoras de uma teleologia, acirra-se, deste modo, seu antagonismo com o desenvolvimento humano.

É necessário compreender que o desenvolvimento das forças produtivas e o acirramento das relações sociais de produção em direção a níveis mais elevados de concentração da riqueza socialmente produzida operaram uma profunda alteração na composição do capital, na sua relação com o trabalho, criando uma crescente passagem da mais-valia absoluta em direção à mais-valia relativa.

Esse processo impacta o trabalho e os trabalhadores, sobretudo em tempos nos quais a dinâmica de reprodução do capitalismo impôs profundas alterações no processo produtivo, o que esgarçou ainda mais a conflituosa relação do homem com o objeto por ele produzido como resultado do seu trabalho. Diante do crescente direcionamento das forças produtivas rumo à automatização do processo produtivo, o capitalismo criou uma nova divisão do trabalho, que produz um contingente de especialistas em dirimir os conflitos sociais (FREDERICO, 2005FREDERICO, C. Marx, Lukács a arte na pesquisa ontológica. Natal: Ed. EDUFRN, 2005.), que pode se substabelecer na direção da ocultação da realidade, com rebatimentos no processo de individuação, tendo como expressão máxima a filáucia, que forja tipos de indivíduos, como uma síntese máxima da (re)produção social.

No plano imediato, a presença de variantes e determinadas formas frente ao cotidiano se estabelece, a partir da compreensão de que este é terreno fértil à reificação, mesmo centrado numa insuprimibilidade considerada, estas formas sobre o cotidiano prescrevem um evidente obscurecimento do “realmente essencial no plano ontológico”. O cotidiano situa em uma relação imediata deste obscurecimento no plano ontológico, e impõe um reducionismo do real, sendo que, para tanto, ele se funda em deduções profundamente alienadas e enraizadas, alterando as formas de compreensão da realidade. É necessário dirigir a práxis humana na direção da contestação e suplantação da imediatidade presente na cotidianidade, no sentido de situá-la diante de inúmeras possibilidades, visando à apreensão de um lídimo ser-em-si, considerando que os “[...] meios de domínio intelectual do ser sejam submetidos a uma permanente consideração crítica” (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 37).

Diante da superação dos limites que impõem ao ser social determinações externas à sua expansão como um ser social realmente existente e autoconstruído, ou seja, o que Lukács (2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.) anuncia como a consagração de uma genericidade humana, coloca-se uma práxis social construída socialmente, frente à mutualidade entre os homens, concebida como um processo pelo qual a cooperação se firma como uma atividade geradora da liberdade.

Tal momento não pode ser idealizado ou subjetivado, apenas, tendo em vista que é pelo trabalho que se coloca em movimento o incontestável processo entre teleologia e causalidade, que determina uma causalidade posta. A existência inequívoca entre a cooperação humana diante das dimensões liberadoras pelo trabalho não se constitui de modo automático, pois este movimento posto necessita colar-se frente a inúmeras mediações, entre elas a consideração de uma racionalidade crítica, diante de uma operante dialética, que nega suas bases constitutivas, dando origem, ressalvadas as necessárias mediações, a um novo tipo de ser.

É impossível situar o trabalho como uma categoria “autônoma” diante das demais, tendo em vista que se trata de uma atividade inerente ao ser social, que possibilita + considerando o movimento posto pela teleologia e causalidade, no tempo do uso de meios necessários - mediar o homem às esferas constitutivas da vida e da sociedade. Tal processualidade segue profundamente determinada e capturada pelas relações sociais de produção, mas não perdeu sua substância social para o ser social.

Na conflituosa relação entre o capital e o trabalho, relação esta que vem, segundo Frederico; Teixeira (2008FREDERICO, C.; TEIXEIRA, F. Marx no século XXI. São Paulo: Cortez, 2008., p. 125), situar o capitalismo sob a égide de “uma forma social de integração mediada pelas coisas que, por assim ser, transforma os homens em objetos e as coisas, que são objetos, em sujeitos das relações sociais”, o que impõe a necessária reflexão do alargamento do processo de apropriação da força do trabalho humano pelas relações sociais de produção que, mais atual que nunca, revela o esvaziamento dos sentidos do ser social.

Embora a relação siga profundamente transmutada entre sujeito e objeto nos termos impostos pelas relações sociais de produção capitalistas, o trabalho ainda segue + mediado com inúmeros complexos ontológicos -, afiançando a existência da mundaneidade social, ao passo que, colocando em movimento teleologia e causalidade, afigura-se no terreno de legalidades muito particulares, que confere ao ser social profundas e incontáveis cadeias sociais ancoradoras de sua existência legítima.

Agradecimentos

À Lucia Barroco e João Antônio Rodrigues (in memorian) À Anderson Henrique Vieira, pela revisão gramatical deste texto.

Referências

  • ABENDROTH, W et al. Conversando com Lukács. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
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  • FREDERICO, C. Marx, Lukács a arte na pesquisa ontológica. Natal: Ed. EDUFRN, 2005.
  • FREDERICO, C.; TEIXEIRA, F. Marx no século XXI. São Paulo: Cortez, 2008.
  • HELLER, A. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.
  • FRANÇA JÚNIOR, R; LARA, R. Trabalho e Ser Social: reflexões sobre a ontologia lukacsiana e sua incidência no Projeto Ético-Político Profissional. Textos e Contextos, Porto Alegre, v. 14, n. 1, 2015. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/ article/view/17406/13306 Acesso em: maio 2019.
    » http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/ article/view/17406/13306
  • FRANÇA JUNIOR, R. P. A odisséia do ser social: O mundo do trabalho nas produções científicas no Serviço Social brasileiro. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, 2018.
  • LESSA, S; TONET, I. Introdução à filosofia de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
  • LUKÁCS, G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Revista Temas de Ciências Humanas, São Paulo, n. 1, 1978.
  • LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.
  • LUKÁCS, G. O Trabalho. In: LUKÁCS, G. Ontologia do ser social. Roma: Riuniti, 1981.
  • LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.
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  • MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • PAULO NETTO, J. Introdução ao método na teoria Social. In: Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009.
  • TERTULIAN, N. Uma apresentação à Ontologia do ser social de Lukács. Crítica marxista, São Paulo: Brasiliense, n. 2, p. 54, 1995.

Notas

  • 1
    Em relação às categorias, afirma Lukács (apud EÖRSI, 1986, p. 85) que elas são formas de ser, o que jamais remove, a partir do método marxiano, sua legalidade diante da historicidade, registrando o autor que “não é que a história se desenvolva no interior do sistema das categorias, mas, ao contrário, a história é a transformação do sistema das categorias”.
  • 2
    Cabe situar inúmeras teodiceias criadas a partir da necessidade de situar a natureza e a história a um finalismo, sob o domínio de imagens criadas pelo homem. Ver Frederico (2005).
  • Agência financiadora

    Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação

    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação

    Consentimento do autor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2020
  • Aceito
    25 Abr 2020
  • Revisado
    14 Maio 2020
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