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Direitos humanos, democracia e neoconservadorismo

O presente número da Revista Katálysis está voltado para uma análise crítica de temas centrais e vitais na atual conjuntura política do Brasil, tomando como eixo central de interpretação a dinâmica das relações entre a luta de classes, a produção e reprodução das relações sociais e as ideologias. Ao mesmo tempo, procura enfocar as repercussões desses temas para a profissão de Serviço Social, tomada em suas particularidades, mediações e contradições com esse contexto histórico mais abrangente. Essa perspectiva expressa uma posição teórico-metodológica (e ídeo-política) articulada a uma questão de método, vinculada ao materialismo histórico, à categoria de totalidade e à razão dialética. Mediante esse quadro referencial, os artigos analisam seus objetos de estudo a partir de um fio condutor que lhes confere unidade, relacionando seus problemas de pesquisa às contradições históricas concretas do desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

As potencialidades dessa angulação, em termos de método de análise, permitem que os objetos de estudo adquiram centralidade e sejam apresentados em sua processualidade, alinhando-se, assim, às lições mais importantes da dialética materialista. Os temas são apresentados como particularidades da reprodução das relações sociais na sociedade burguesa e, por isso, possuem contradições, limites, potencialidades, tensionamentos, conflitos e assimetrias, sendo perseguidos e traduzidos em seu sentido histórico tendencial pela razão dialética. Estão entre esses temas: as ideologias (neoliberalismo, conservadorismo, marxismo, liberalismo, ética), a política (direitos humanos, democracia, Estado e sociedade civil, políticas públicas, organização dos trabalhadores, questões atinentes ao Serviço Social como profissão e área de conhecimento, possibilidades de superação do capitalismo), e a produção e reprodução das relações sociais (propriedade privada dos meios de produção, produção socializada e apropriação privada das riquezas, crises do capital, mudanças no padrão de reprodução da força de trabalho, ascensão de ideologias conservadoras e autoritárias). O resultado é a possibilidade de definição de estratégias e táticas consequentes, frentes para uma atuação política e profissional afinada com os ideais do Projeto Ético-Político.

Os textos vêm na esteira das preocupações de setores importantes e expressivos no âmbito das universidades e das organizações da sociedade civil. Essas produções estão atentas à amplitude, à diversidade e à profundidade das lutas e conflitos sociais no Brasil. Isso tem permitido a construção de linhas de resistência intelectual, cultural, ideológica e política frente às características reacionárias, obscurantistas e irracionalistas que se acirraram na conjuntura brasileira, a partir do assim chamado “bolsonarismo”. Nesse cenário, há um traço específico que pode ser explorado pelas forças orientadas pela democracia substantiva e plena expansão dos indivíduos sociais: com a radicalização da extrema-direita, expressa nas ações concretas e discursos defendidos nas diversas mídias, seus objetivos estratégicos surgem à luz do dia, expondo com maior claridade o conteúdo e a forma de seus interesses específicos, na tentativa de hegemonizar as posições políticas das classes dominantes. Os antagonismos entre os interesses das classes sociais subalternas e dominantes, assim, ficam mais evidentes, ampliando as chances de tomada de consciência acerca dos conflitos por parte de maiores contingentes de trabalhadores, algo essencial para um projeto societário crítico do capitalismo.

A radicalização da extrema-direita no Brasil, que intensifica a materialização do conservadorismo, é um elo no cenário internacional de reorganização e recomposição das forças e interesses das classes dominantes a partir da década de 2000. Entre outras frentes de ação, elas definiram novas estratégias, reproduzidas pela “nova direita” no Brasil: alinhamento internacional, atuação intensiva nas redes sociais e novas tecnologias, sofisticação do léxico conservador, embasamento teórico, enfoque na formação de quadros na juventude, inserção nos espaços universitários, disputas de eleições locais e parlamentares, inserção nas comunidades e articulação com setores empresarial-evangélicos e do agronegócio, entre outras. Essa recomposição é uma resposta político-ideológica estratégica, para construir o consenso e a viabilidade à agenda de desmonte dos direitos sociais no Brasil. Simultaneamente, ela mira a formação de novas lideranças políticas conservadoras, preparando, antecipadamente, os quadros militantes das próximas décadas. Trata-se, portanto, de uma frente de atuação para o curto, médio e longo prazo por parte das classes dominantes, explicitando uma racionalidade e uma capacidade organizativa capazes de se enraizar e capilarizar na sociedade brasileira. Esse alinhamento permitiu um adensamento substantivo à extrema-direita no Brasil, capaz de colocar as condições para sua ruptura com a política de conciliação de classes tentada no período do lulo-petismo.

Essa conjuntura tem raízes no quadro da crise aberta em 2008, que golpeou o capital financeiro em escala mundial e permanece longe de seu fim. Desde então, acumulam-se medidas, pacotes e ajustes visando a retomada das taxas de lucro, com repercussões sociais que implicam custos muito altos para as massas trabalhadoras, deteriorando suas condições de vida e trabalho por meio de ofensivas aos direitos e às políticas sociais. O repertório acionado pelos países é variado, mas possui um ponto em comum: a intensificação da exploração da força de trabalho, resultado das expropriações das contrarreformas nas políticas de proteção social; da destruição de direitos; das transformações do trabalho; do sequestro do fundo público; entre outras. Essas são formas ideológicas e políticas atuais da luta de classes, que reforçam as transferências de capital da periferia para os países imperialistas. Tal dinâmica de exploração tem sido aprofundada com poucas restrições pelas classes dominantes. Com frequência, o único critério adotado por elas é o limite absoluto da preservação e reprodução da força de trabalho, em condições físicas e mentais suficientes para produção e/ou valorização do valor (pressupostas as variações nacionais e regionais e a divisão social do trabalho). A teoria do valor de Marx, nesse contexto, apresenta uma impressionante vitalidade teórica.

No Brasil, as mobilizações de junho de 2013 podem ser consideradas como um divisor de águas conjuntural. Mesmo considerando seus traços difusos e contraditórios, não é possível enquadrá-las como reacionárias. O sentido dominante de junho de 2013 esteve centrado em reivindicações democráticas, pois centenas de milhares de pessoas tomaram as ruas em defesa de serviços públicos e gratuitos. O país registrou, antes mesmo de junho de 2013, o crescimento do ativismo sindical (as greves, desde 2009, estavam em ascensão e em 2012 atingiram o pico, quando comparadas aos anos 1980). Apesar desse quadro, as manifestações de 2013 não tiveram a participação direta do núcleo duro do sindicalismo brasileiro.

As eleições de 2014 consolidaram o novo cenário: o governo Dilma saiu mais enfraquecido; a esquerda socialista (PSOL, PCB e PSTU) registrou crescimento eleitoral; a oposição de direita se fortaleceu; e entrou em cena a extrema direita brasileira. A conjuntura política e econômica do país se deteriorou rapidamente e uma aliança formada por setores do Congresso Nacional, da grande mídia em colaboração com o judiciário, do empresariado militante e lideranças evangélicas radicalizadas, desencadeou um movimento que culminou com o impeachment de Dilma Rousseff. As mobilizações alimentadas pelas denúncias de corrupção, ancoradas nos apelos da Operação Lava Jato, acrescentaram um teor de massas para a consolidação do bloco de extremadireita. Milhares de pessoas foram às ruas, manifestando um conjunto de reivindicações reacionárias, conservadoras, antipetistas, anticomunistas, com marcas de racismo, xenofobia e misoginia, com ataques à democracia, aos direitos humanos, sociais e trabalhistas. Esse processo ensejou terreno fértil para o “bolsonarismo”, pautado desde a gênese pela obscura figura do astrólogo e youtuber Olavo de Carvalho e seus asceclas.

A democracia foi golpeada com o impeachment. Michel Temer, antes mesmo de assumir a Presidência da República, já havia anunciado a plataforma que iria desenvolver - o plano Ponte para o futuro visava a instituição de um novo regime fiscal, concretizado com a Emenda Constitucional 95, e o ataque direto aos direitos trabalhistas. As eleições de 2018 foram realizadas sob forte impacto de todo esse processo e o resultado foi a vitória eleitoral da extrema direita, com a assunção de Bolsonaro e a continuidade da pauta ultraliberal. Entre os recursos estratégicos mais utilizados nessa disputa destacam-se a intensa atuação da “nova direita”, o uso massivo de fake news em redes sociais, as campanhas de ódio e desumanização das esquerdas e suas múltiplas frentes de luta, o apoio de milícias e redes paramilitares de poder, discurso escatológico de lideranças religiosas. Esses recursos, que degradam o sentido da democracia, foram justificados em nome de uma suposta “nova política”, alegadamente técnica e anti-ideológica, realizada visando “os bons costumes”.

Por outro lado, a agenda do “bolsonarismo”, inspirada pelo “olavismo” e suas “teorias da conspiração” anticomunistas, tem sofrido importantes baixas desde a crise catalisada pelo novo coronavírus. A pandemia abriu uma fratura no bloco de extrema-direita, com dissidências e rupturas de expressivos aliados em vários setores. A fragilidade aparente do Presidente em lidar com a crise, todavia, não implica o esfacelamento imediato do bloco “bolsonarista”, que é maior e mais capilarizado que o Presidente e seus ascetas mais próximos. As forças democráticas e de esquerda, mesmo ante o período de consequências de uma derrota histórica recente, precisam mirar essas contradições com senso crítico, profundidade teórica, energia política e solidariedade de classe. Estão em jogo o tensionamento da racionalidade neoliberal e conservadora, o horizonte de realinhamento do papel do Estado e políticas de proteção social e a disputa por hegemonia para a condução desse processo. A vida social em escala internacional, a partir da pandemia do novo coronavírus, entrará em uma correlação de forças, mais complexa, mais contraditória, e com um horizonte ampliado de possibilidades de desenvolvimento.

A ciência e, particularmente, a teoria social crítica, cumprem uma função vital no tempo presente. Urge a necessidade de reflexões que apreendam as múltiplas determinações das contradições que estruturam a sociedade de classes brasileira, como as que estão presentes nesse número da Revista Katálysis. Ferramenta indispensável para essa tarefa é a postura investigativa, apoiada pela perspectiva de totalidade e pela dialética materialista. Nesse sentido, importa recuperar a ideia inscrita na frase de Romain Rolland, que ficou mais conhecida pelo registro de Gramsci: aliar o pessimismo da razão e o otimismo da vontade.

Jamerson Murillo Anunciação de Souza & Marcelo Sitcovsky. João Pessoa, 31 de março de 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020
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