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Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde

Resumos

O objetivo deste artigo foi apresentar uma reflexão de como as noções e comportamentos ligados aos processos de saúde e de doença integram a cultura de grupos sociais onde os mesmos ocorrem. Argumenta-se que os sistemas médicos de atenção à saúde, assim como as respostas dadas às doenças, são sistemas culturais, consonantes com os grupos e realidades sociais que os produzem. A compreensão dessa relação se mostra fundamental para a formação do profissional da saúde.

Cultura; Antropologia; Atenção à Saúde; Ciências da Saúde


This article presents a reflection as to how notions and behavior related to the processes of health and illness are an integral part of the culture of the social group in which they occur. It is argued that medical and health care systems are cultural systems consonant with the groups and social realities that produce them. Such a comprehension is fundamental for the health care professional training.

Culture; Anthropology; Health Care; Health Sciences


Este artículo presenta una reflexión acerca de como las nociones y comportamientos asociados a los procesos de salud y enfermedad están integrados a la cultura de los grupos sociales en los que estos procesos ocurren. Se argumenta que los sistemas médicos de atención a la salud, así como las respuestas dadas a la enfermedad son sistemas culturales que están en consonancia con los grupos y las realidades sociales que los producen. Comprender esta relación es crucial para la formación de profesionales en el área de la salud.

Cultura; Antropología; Atención a la Salud; Ciencias de la Salud


ARTIGO ORIGINAL

Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde

Esther Jean LangdonI; Flávio Braune WiikII

IAntropóloga, Doutor em Antropologia, Professor Titular, Universidade Federal de Santa Catarina, SC, Brasil. Email: estherjeanbr@gmail.com

IICientista Social, Doutor em Antropologia, Professor Adjunto, Universidade Estadual de Londrina, PR, Brasil. Email: flaviowiik@gmail.com

Endereço para correspondência

RESUMO

O objetivo deste artigo foi apresentar uma reflexão de como as noções e comportamentos ligados aos processos de saúde e de doença integram a cultura de grupos sociais onde os mesmos ocorrem. Argumenta-se que os sistemas médicos de atenção à saúde, assim como as respostas dadas às doenças, são sistemas culturais, consonantes com os grupos e realidades sociais que os produzem. A compreensão dessa relação se mostra fundamental para a formação do profissional da saúde.

Descritores: Cultura; Antropologia; Atenção à Saúde; Ciências da Saúde.

Introdução

Talvez soe deslocado abordar o tema da cultura em uma revista dedicada às Ciências da Saúde, assim como dar-se conta de como o conceito de cultura pode ser útil para profissionais dessa área. Todos sabem o que significa “cultura” em seu sentido corriqueiro. Afirma-se que uma pessoa “tem cultura” quando tem formação escolar avançada, origina-se de uma família de alto nível socioeconômico, conhece as artes e a filosofia. É usual afirmar que um “bom paciente” é aquele que “possui cultura”, cultura suficiente para compreender e seguir as orientações e cuidados transmitidos pelo médico ou enfermeiro. Esse tipo de paciente é contrastado com o “sem cultura”, considerado um paciente mais “difícil”, que age erroneamente por “ignorância” ou guiado por “superstições”.

Neste artigo, discorrer-se-á sobre outro tipo de cultura, cultura como conceito basilar da Antropologia, assim como conceito instrumental para qualquer profissional da saúde que atue ou faça pesquisas, não somente em áreas rurais ou entre populações indígenas, mas, também, no contexto urbano, caracterizado pela presença de pacientes pertencentes a diferentes classes sociais, religiões, regiões ou até mesmo grupos étnicos. Esses pacientes apresentam comportamentos e pensamentos singulares quanto à experiência da doença, assim como noções particulares sobre saúde e terapêutica. Tais particularidades não advêm das diferenças biológicas, mas, sim, das diferenças socioculturais. Em suma, parte-se do pressuposto de que todos têm cultura, e de que é a cultura que determina essas particularidades. Igualmente, sustenta-se que as questões inerentes à saúde e à doença devem ser pensadas a partir dos contextos socioculturais específicos nos quais os mesmos ocorrem.

Tal pressuposto não é exclusividade do campo e saber antropológicos, posto que tem sido encampado por teóricos, pesquisadores e profissionais da área da saúde - em especial nos campos da medicina e enfermagem - desde a segunda metade dos anos 1960(1-2). Esses também sustentam que a biomedicina é um sistema cultural e que as realidades da clínica médica devem ser analisadas a partir de perspectiva transcultural. Da mesma forma, chamam a atenção para a relevância do emprego de métodos e técnicas qualitativas nas pesquisas em saúde, em especial, do método etnográfico(3). A essas, somam-se reflexões acerca dos pressupostos teórico-filosóficos presentes à intersecção entre saúde e cultura, entre os imponderáveis observados na intervenção prática do profissional de saúde frente às teorias da cultura, entre relativismo cultural e direitos humanos universais, entre a natureza de uma profissão e o espaço mais teórico e reflexivo da antropologia(4).

Essa temática tem sido abordada na Revista Latino-Americana de Enfermagem, através da publicação de resultados de estudos e pesquisas em saúde, conduzidos por profissionais e teóricos da área(5-7). A partir do emprego do método etnográfico e da análise interpretativa, tais estudos apontam para a centralidade da construção do significado das enfermidades por parte dos pacientes, a qual se sobrepõe à causalidade e racionalidade biomédicas. A exemplo, em estudo conduzido com pacientes oncológicos, observou-se que a simbologia da radioterapia aos olhos dos pacientes, construída ao longo da experiência da doença e tratamento, mostrou-se como poderoso reorganizador e reordenador diante das rupturas causadas pela enfermidade e terapêutica. De igual maneira, tem-se observado a influência da crença religiosa na sobrevivência de pacientes laringectomizados, os quais são cercados por redes socioafetivas religiosas que os acompanham e almejam a sua cura. Por outro lado, esses estudos atentam para os desafios e paradoxos inerentes ao método etnográfico o qual requer, concomitantemente, a imersão do pesquisador no universo sociocultural cotidiano do grupo (de pacientes) a ser investigado e distanciamento para que o primeiro não assuma posturas etnocêntricas. Também se questiona a factibilidade entre o uso do interpretativismo, que tende à subjetividade hermenêutica, e a construção de conhecimento condizente com objetividade científica.

Um conceito instrumental de cultura

O universo que abrange a definição conceitual de cultura é extremamente complexo e diverso, divisor das várias correntes analítico-teóricas e formador de campos epistemológicos e metodológicos próprios(8-9). Em razão da finalidade do presente artigo, limitar-se-á, aqui, a discorrer sobre alguns aspectos essenciais e instrumentais atrelados ao conceito de cultura que, por sua vez, serão utilizados nas construções tipológica e analítica propostas.

Cultura pode ser definida como um conjunto de elementos que mediam e qualificam qualquer atividade física ou mental, que não seja determinada pela biologia, e que seja compartilhada por diferentes membros de um grupo social. Trata-se de elementos sobre os quais os atores sociais constroem significados para as ações e interações sociais concretas e temporais, assim como sustentam as formas sociais vigentes, as instituições e seus modelos operativos. A cultura inclui valores, símbolos, normas e práticas.

A partir dessa definição, três aspectos devem ser ressaltados para que se possa compreender o significado de atividade sociocultural. Cultura é aprendida, compartilhada e padronizada(10). Ao se afirmar que a cultura é aprendida, profere-se que não se pode explicar as diferenças do comportamento humano através da biologia de forma isolada. Sem negar o seu destacado papel, a perspectiva cultural(ista) afirma que a cultura modela as necessidades e características biológicas e corporais. Dessa forma, a biologia oferece um pano de fundo para o comportamento, assim como fornece as potencialidades da formação e desenvolvimento humano. Porém, é a cultura compartilhada pelos indivíduos formadores de uma sociedade que torna essas potencialidades em atividades específicas, diferenciadas e simbolicamente inteligíveis e comunicáveis.

Partindo dessa prerrogativa, ser homem ou mulher, brasileiro ou chinês não depende de suas respectivas composições genéticas, mas, sim, como esses, através e em razão de sua cultura, irão se comportar ou pensar. Estudos etnográficos sobre padrões de comportamento sexual, segundo os recortes de gênero, têm indicado que há grandes variações em comportamento dos sexos e que essas variações se fundam no que as pessoas têm aprendido de sua cultura sobre o que é ser homem ou mulher(11-12).

A cultura é compartilhada e padronizada, pois consiste em uma criação humana, partilhada por grupos sociais específicos. As formas materiais, os conteúdos e atribuições simbólicas a ela atrelados são padronizados a partir de interações sociais concretas dos indivíduos, assim como resultante de sua experiência em determinados contextos e espaços específicos, os quais podem ser transformados, permeados e compartilhados por diferentes segmentos sociais. Embora o conteúdo e formas inerentes a cada cultura possam ser apreendidos e replicados individualmente - conferindo à cultura caráter de experiência pessoal internalizada e incorporada - concerne à antropologia: i) identificar os padrões culturais repartidos pelos coletivos de indivíduos; ii) inferir sobre o que há em comum nas ações, atribuições de sentido, significados e simbolismo projetados pelos indivíduos sobre o mundo material e “natural” e iii) ponderar sobre a experiência de viver em sociedade, sobre adoecer e se cuidar, definindo-a como experiência eminentemente intersubjetiva e relacional, mediada pelo fenômeno cultural.

A fim de ilustrar o argumento aqui mostrado, observe-se os diferentes padrões culturais frente aos tipos de comida e à alimentação. No Brasil, a combinação do arroz com o feijão é fundamental para que a refeição seja considerada completa. Sem essa, mesmo havendo carne, muitos afirmam não satisfazer a sua fome. Outros, sempre precisam de um prato de carne para se sentir alimentados. Esses podem até “sair da mesa com fome”, após comer um abundante prato de comida chinesa cheio de legumes misturados com um pouco de carne. Já o chinês, sente-se completamente satisfeito com esse tipo de comida.

Não só o que comer é determinado de maneira particular pela cultura, mas também quando comer também o é. A maioria dos brasileiros tem que comer a maior refeição do dia ao meio-dia para “digerir bem a comida” e ficar “bem alimentado para o trabalho”, até o final da tarde. É comum a afirmação de que comer muito à noite, sobretudo comer “comidas pesadas”, faz mal para o estômago. Por sua vez, o norte-americano, que não sente falta do feijão, em geral come pouco ao meio-dia e ingere grande quantidade de alimento “pesado” (aos olhos dos brasileiros) antes de dormir. Para eles, a comida em abundância ao meio-dia faz mal e atrapalha o trabalho na parte da tarde. Nessa perspectiva, é a cultura que define os padrões sociais sobre o quê e quando comer, assim como a relação entre tipos de alimentos que devem ser combinados ou não, e, por conseguinte, a experiência de saciar a fome ou não é, sociobiologicamente, determinada. Cabe à biologia indicar a necessidade de nutrição e evidenciar certas limitações quanto aos alimentos considerados tóxicos.

Ao se afirmar que cultura está atrelada a qualquer atividade física ou mental, não se está referindo a ela como uma colcha de retalhos, composta por pedaços de superstições ou comportamentos desprovidos de coerência e lógica intrínseca. Fundamentalmente, a cultura organiza o mundo de cada grupo social, segundo a sua lógica própria. Trata-se de experiência integradora, total e totalizante, de pertencimento e, consequentemente, formadora e mantenedora de grupos sociais que compartilham, comunicam e replicam suas formas, instituições e os seus princípios e valores culturais.

Dado o seu caráter dinâmico e às suas características político-ideológicas intrínsecas, a cultura e os elementos que a caracterizam são fontes mediadoras de transformações sociais, altamente politizados, apropriados, alterados e manipulados por grupos sociais ao longo da história das sociedades, segundo diretrizes traçadas pelos atores sociais que fazem seu uso para estabelecer novos padrões socioculturais e modelos societários.

Mais ainda, cada grupo interage com um ambiente físico determinado, e a sua cultura define como sobreviver nesse ambiente. Devido ao caráter criativo e transformador, inerente às culturas humanas sobre o meio físico, pode-se encontrar, dentro de um mesmo tipo de ambiente, várias soluções particulares que respondem pela sobrevivência das sociedades. O ser humano tem capacidade para participar em qualquer cultura, aprender qualquer idioma e desempenhar qualquer tarefa. Porém, é a cultura específica em que ele nasce e/ou cresce que determina o(s) idioma(s) que falará, quais atividades deverá desempenhar, qual será a sua mobilidade social e posição hierárquica na estrutura social. Todas elas são regidas segundo a sua idade, sexo, e demais variáveis, os quais determinarão quais técnicas corporais e padrões estéticos adotará, cabendo ainda desempenhar papéis sociais de acordo com tipos ideais projetados pelo sistema de parentesco e demais inserções, segundo instituições vigentes em cada sociedade, e, finalmente, com as quais dialogará tanto como seu sujeito e seu objeto. Isso se dá, pois, ao longo da vida, os indivíduos são gradativamente socializados pelos/nos padrões culturais vigentes em sua sociedade, construídos através da interação social cotidiana, assim como através de processos rituais e filiações institucionais. Sendo esses responsáveis pela transformação dos indivíduos em pessoas, em membros de determinado grupo que mutuamente se reconhecem. De indivíduos transformados em pessoas, aprendem e replicam princípios que orientam padrões ideais acerca dos tipos valorados e qualificados de ação, de como se comportar, vestir, comer e de técnicas sobre como diagnosticar e tratar as enfermidades. Além do mais, a socialização dos indivíduos é responsável pela transmissão dos sentidos acerca do porquê fazer.

O porquê fazer tem especial importância, pois permite entender a integração e a lógica de uma cultura. A cultura, antes de tudo, oferece uma visão do mundo, isto é, uma explicação sobre como o mundo é organizado, de como atuar em mundo que ganha sentido e é valorado através da cultura. Dessa maneira, conforme discorrido anteriormente, é a cultura de um grupo que provê aos atores sociais estabelecer um sistema classificatório e valorativo daqueles alimentos considerados comestíveis ou não, define as técnicas e ambientes onde o alimento poderá ser encontrado, classifica, organiza e valora os alimentos em vários tipos de comida, tais como: “boa”, “fraca”, “forte”, “leve”(13).

Tome-se um outro exemplo: o do conceito de limpeza e de higiene, categorias fundamentais presentes em todas as culturas. Cada cultura estabelece as categorias das coisas, classificando-as como “limpas e puras” ou “sujas e impuras”(14), assim como determina quais são as práticas e conhecimentos atrelados a essas categorias que visam a sua manutenção, classificação e distinção. Entretanto, as definições acerca daquilo que é considerado “limpo” ou “sujo”, “puro” ou “impuro” são tão variadas quanto o é a multiplicidade das culturas humanas encontradas no mundo. Tal variação exprime uma asserção fundamental na construção do campo de conhecimento antropológico: a constatação, paradoxal, da diversidade e unidade englobadas pelo fenômeno cultural, que é, ao mesmo tempo, uno e universal e diverso e particular.

Entre os índios Barasana, da selva amazônica colombiana(15), além de formigas com cassava (pão de mandioca), a dieta consiste em carne ou peixes, obtidos pelos homens, comidos junto com cassava feito pelas mulheres. Quando um caçador tem sorte na caçada, na volta à maloca, entrega a maior porção de carne para o homem mais sênior da sua família extensa. Sua esposa, ou esposas, cozinha a carne em uma panela grande e a coloca no chão do centro da casa. Então, o homem sênior chama primeiro os homens para comer seguindo regras hierárquicas, baseadas em classes etárias e de prestígio. Em seguida, chama as mulheres, mas nem sempre todas. Crianças nunca são chamadas para comer quando a panela tem carne ou peixe de grande porte.

Além das regras sociais com base na hierarquia e distribuição de poder que regulam a alimentação, todos os alimentos, as pessoas que os manipulam e os ingerem são regulados por princípios culturais de limpeza e pureza, denominados pelos Barasana como witsioga. Witsioga consiste em uma substância presente na comida, especialmente na carne, que faz mal para as crianças pequenas, pessoas de certas classes etárias ou em estados liminares - tais como aquelas que estão entrando na puberdade ou que estão sendo iniciadas na pajelança, mulheres que recém deram à luz e pessoas doentes. Além disso, o pão é considerado um alimento “puro” e que, comer carne e, em seguida, manipulá-lo, o contamina.

Os Barasana têm uma classificação complexa dos animais e peixes que são witsioga. Eles os classificam segundo tamanho, comportamento etc. Há também princípios que regulam uma série de práticas e ações que podem e não podem ser desempenhadas depois de se ingerir carne, além de práticas higiênicas para tirar essa substância das pessoas que comem tipos de carne que contêm witsioga. Witsioga também regula o diagnóstico, origem e etiologia das doenças que, por sua vez, estão atreladas à cosmologia dos índios. O mundo é controlado por seres (“espíritos”), e witsioga atrai os espíritos maus que atacam as pessoas classificadas como enfraquecidas ou vulneráveis.

Esse exemplo ilustra que, ao se deparar com os costumes presentes em outras culturas, deve-se tentar entender seu porquê. Dessa forma, evita-se a compreensão etnocêntrica a seu respeito, ou seja: julgando a cultura dos Barasana, segundo nossos próprios valores e classificações de mundo e não segundo os seus próprios. Ao se citar que esses índios se alimentam de formigas, que comem na mesma panela, usando pão para pegar a comida, que várias pessoas compartilham uma só xícara para beber, talvez cause um pouco de repulsa, pois “formiga não é comida”, “tirar a comida da panela que está no chão é sujo”. Também, pode se pensar que a categoria witsioga é “superstição” e que tal procedimento é oposto ao que se compreende por “saúde” e “limpeza”, segundo a racionalidade biomédica.

A perspectiva antropológica requer que, quando se deparar com culturas diferentes, não se faça julgamentos de valor tomados com base no próprio sistema cultural, passando a olhar as outras culturas segundo seus próprios valores e conhecimentos - através dos quais expressam visão de mundo própria que orienta as suas práticas, conhecimentos e atitudes. A esse procedimento se denomina relativismo cultural. É ele que permite compreender o porquê das atividades e os sentidos atribuídos a elas de forma lógica, sem hierarquizá-los ou julgá-los, mas somente, e sobretudo, reconhecendo-os como diferentes!

Vários outros exemplos também poderiam ser extraídos das pesquisas de cunho etnográfico, conduzidas por profissionais de saúde, citadas neste artigo(4-7). Todos eles levam à reflexão sobre as questões relativas a hábitos de saúde, rituais, técnicas de atenção e cuidado, restrições sobre uso de terapias (e.g., transfusão de sangue ou transplante de órgãos, ou mesmo o aborto); todos eles mediados por sistemas culturais distantes, e até mesmo opostos, aos padrões culturais sobre os quais o sistema biomédico é construído e os profissionais de saúde treinados.

Utilizou-se, aqui, exemplos extraídos de uma sociedade provida de cultura com a qual raramente se tem contato, também denominada sociedade simples. Porém, diante de uma sociedade complexa como a brasileira, que, além de ser estratificada por classes sociais, é formada por inúmeros grupos étnicos, segmentos populacionais das mais diversas confissões religiosas e costumes regionais peculiares, são encontradas diferenças culturais internas, com variações intergrupais. Apesar de esses grupos compartilharem aspectos da cultura geral, abrigadas sob o que se convencionou chamar de “cultura brasileira”, reconhece-se que esses grupos formadores da população brasileira detêm diferentes visões de mundo e percebem a realidade de maneira peculiar, gerando complexo e entremeado mosaico sociocultural. Essa complexidade é pano de fundo do contexto que articula saúde, cultura e sociedade, e onde se dá a inserção do profissional e pesquisador do campo da saúde.

Cultura, sociedade e saúde

Ao se partir do pressuposto de que a cultura é um fenômeno total e que, portanto, provê uma visão de mundo às pessoas que a compartilha, orientando, dessa forma, os seus conhecimentos, práticas e atitudes, a questão da saúde e da doença está contida nessa visão do mundo e práxis social.

A doença e as preocupações para com a saúde são universais na vida humana, presentes em todas as sociedades. Cada grupo organiza-se coletivamente - através de meios materiais, pensamento e elementos culturais - para compreender e desenvolver técnicas em resposta às experiências, ou episódios de doença e infortúnios, sejam eles individuais ou coletivos. Com esse intuito, cada e todas as sociedades desenvolvem conhecimentos, práticas e instituições particulares, que se pode denominar sistema de atenção à saúde(1).

O sistema de atenção à saúde engloba todos os componentes presentes em uma sociedade relacionados à saúde, incluindo os conhecimentos sobre as origens, causas e tratamentos das enfermidades, as técnicas terapêuticas, seus praticantes, os papéis, padrões e agentes em ação nesse “cenário”. A esses são somadas as relações de poder e as instituições dedicadas à manutenção ou restauração do “estado de saúde”. Esse sistema é amparado por esquemas de símbolos que se expressam através das práticas, interações e instituições; todos condizentes com a cultura geral do grupo, que, por sua vez, servem para definir, classificar e explicar os fenômenos percebidos e classificados como “doença”.

Dessa maneira, o sistema de atenção à saúde não está desacoplado de outros aspectos gerais da cultura, assim como um sistema social não está dissociado da organização social de um grupo. Consequentemente, a maneira através da qual um determinado grupo social pensa e se organiza, para manter a saúde e enfrentar episódios de doença, não está dissociado da visão de mundo e da experiência geral que esse tem a respeito dos demais aspectos e dimensões socioculturalmente informados. Será somente a partir da compreensão dessa totalidade que serão apreendidos os conhecimentos e práticas atrelados à saúde dos sujeitos formadores de uma sociedade portadora de um sistema, ou cabedal cultural, próprio. Sendo assim, caso se desconheça que a categoria witsioga, entre os Barasana, está ligada à sua cosmologia, às classificações dos alimentos e aos estados/status das pessoas, não se compreenderá a importância dada por eles às maneiras tidas como corretas e “puras” de como preparar e comer os alimentos. Também seria difícil compreender a importância desse conceito dentro de suas preocupações para com a saúde, ou convencê-los de que, num ambiente com poucos recursos de proteína, proibições de carne para crianças pequenas e mulheres amamentando podem afetar seu crescimento se não disporem de outro recurso proteico adequado.

O sistema de atenção à saúde é um modelo conceitual e analítico, não uma realidade em si para os grupos sociais com os quais se convive ou se estuda. Porém, ele auxilia a sistematização e compreensão de um complexo conjunto de elementos e fatores experimentados no cotidiano, de maneira fragmentada e subjetiva, seja em nossa própria sociedade e cultura ou diante de outras não familiares.

Cabe ressaltar que, em uma sociedade complexa, como a brasileira, há vários sistemas de atenção à saúde operando concomitantemente, sistemas esses que representam a diversidade dos grupos e culturas que a constitui. Aqui, embora o sistema médico estatal seja o biomédico, que oferece serviços de saúde via Sistema Único de Saúde (SUS), a população, quando enferma, recorre a vários outros sistemas. Muitos grupos não procuram biomédicos, mas utilizam a medicina popular, outros utilizam sistemas médico-religiosos, outros, ainda, recorrem a vários sistemas ao longo do processo de doença e cura. Pensar o sistema de atenção à saúde como um sistema cultural de saúde ajuda compreender esses múltiplos comportamentos.

O sistema cultural de saúde

O sistema cultural de saúde ressalta a dimensão simbólica do entendimento que se tem sobre saúde e inclui os conhecimentos, percepções e cognições utilizadas para definir, classificar, perceber e explicar a doença. Cada e todas as culturas possuem conceitos sobre o que é ser doente ou saudável. Possuem também classificações acerca das doenças, e essas são organizadas segundo critérios de sintomas, gravidade etc. As suas classificações, tanto quanto os conceitos de saúde e doença, não são universais e raramente refletem as definições biomédicas. Por exemplo, arca caída, cobreiro, quebranto e mau-olhado(16) são consideradas doenças para vários grupos brasileiros, entretanto, não são reconhecidas ou tratadas pelos (bio)médicos. As classificações dessas doenças são organizadas segundo critérios próprios, os quais guiam os diagnósticos e terapias, cujos especialistas detêm elementos e materiais para tratá-las e as reconhecer como curadas ou não.

Dessa forma, a cultura oferece teorias etiológicas baseadas na visão do mundo de determinado grupo, as quais, frequentemente, apontam causas múltiplas para as enfermidades, que podem ser, e.g.: “místicas” e/ou “não místicas”. Dentre as causas “não místicas” (“não religiosas”, “não somáticas”, dentre outras) encontram-se teorias e percepções sobre o corpo e seu (mal)funcionamento frente à ingestão não adequada de determinados alimentos e clima, ainda, relações sociais e de trabalho tensas. Essas, por sua vez, se combinam para fornecer uma medicina preventiva ligada ao comportamento e à higiene, assim como elementos atrelados a uma medicina curativa. Quanto às causas “místicas”, essas, frequentemente, combinam com as “não místicas” e podem indicar mais que um tipo de tratamento necessário, a exemplo: um para curar o corpo físico e outro para curar o corpo ou estado espiritual ou social(17). Teorias etiológicas que incluem “causas naturais” também estão presentes em sistemas etnomédicos, ou seja, não biomédicos. Para as “causas naturais” das doenças, os sistemas etnomédicos contam com tratamentos baseados no conhecimento de ervas e técnicas de manipulação corporal, e sua eficácia evidencia o etnocentrismo biocientífico, muitas vezes presente diante dos demais sistemas culturais de atenção à saúde.

O sistema social de saúde

O sistema de atenção à saúde é tanto um sistema cultural quanto um sistema social de saúde. Define-se, aqui, sistema social de saúde como aquele que é composto pelas instituições relacionadas à saúde, à organização de papéis dos profissionais de saúde nele envolvidos, suas regras de interação, assim como as relações de poder a ele inerentes. Comumente, essa dimensão do sistema de atenção à saúde também inclui especialistas não reconhecidos pela biomedicina, tais como benzedeiras, curandeiros, xamãs, pajés, massoterapeutas, pais de santo, pastores e padres, dentre outros.

No universo de cada grupo social, os especialistas têm papel específico a desempenhar frente ao tratamento de determinada doença, e os pacientes têm certas expectativas sobre como tal papel será desempenhado, quais doenças o especialista pode curar, assim como uma ideia geral acerca dos métodos terapêuticos que serão empregados.

Nas sociedades complexas, além dos tradicionais, encontram-se especialistas chineses e orientais, em geral. Nos últimos dez anos, tem-se visto também a procura crescente por especialistas e terapeutas que pertencem àquilo que se denomina “nova era”(18). Dentro de uma mesma cidade, há especialistas detentores de vários métodos terapêuticos alternativos (parte dos sistemas culturais de atenção à saúde), sendo fatores determinantes para a sua escolha ou rechaço: princípios religiosos, econômicos, familiares, sociais, dentre outros fatores de ordem política e/ou legal (a exemplo, a perseguição por parte do Estado de determinado terapêutica não oficial)(16).

Estudos em saúde, cultura e sociedade no Brasil

No Brasil, estudos e pesquisas sobre saúde, cultura e sociedade têm se multiplicado circunstancialmente nos últimos vinte anos(19). Na última década, a Antropologia da Saúde vem se consolidando como espaço de reflexão, formação acadêmica e profissional de médicos, enfermeiros e demais profissionais da área da saúde no país(19). Há centros interdisciplinares universitários e núcleos de pesquisa, envolvendo antropólogos e demais pesquisadores e teóricos da saúde coletiva e pública, dedicados à investigação de aspectos culturais, sociais e político-econômicos atrelados às questões da saúde(19). Algumas coletâneas têm discorrido sobre a experiência da doença e do corpo enfermo, contrapostos à luz das questões de gênero, princípios religiosos, noções de cura e suas narrativas(20-21). Publicações recentes retratam etnografias dos contextos médicos, como em hospitais ou clínicas(22-23). A Editora FIOCRUZ publica a Coleção Antropologia e Saúde desde meados dos anos 1980, cujos números têm contribuído para a disseminação da produção oriunda de centros de pesquisa e pós-graduação nacionais, voltados para a área da saúde. Cadernos de Saúde Pública, também editados pela FIOCRUZ, têm trazido grande número de artigos voltados para problemáticas contemporâneas, tais como DST/AIDS, estrutura e funcionamento dos serviços de saúde, avaliação das políticas de saúde e saúde indígena.

Conclusões

Apesar de passíveis de contradições internas e, consequentemente, geradores de predicamentos, sustenta-se, aqui, a premissa de que os valores, conhecimentos e comportamentos culturais atrelados à saúde formam um sistema sociocultural integrado, total e lógico. Portanto, as questões relativas à saúde e à doença não podem ser analisadas de forma isolada das demais dimensões da vida social, mediadas e permeadas pela cultura que confere sentido a essas experiências. Os sistemas de atenção à saúde são sistemas culturais, consonantes com os grupos e realidades sociais, políticas e econômicas que os produzem e replicam. Dessa forma, para fins teóricos e analíticos, o sistema de atenção à saúde biomédico deve ser considerado como um sistema cultural, tal qual qualquer outro sistema etnomédico. Destarte, as interpretações e intervenções sobre os fenômenos mórbidos - operados tanto por parte dos indivíduos/pacientes quanto os observados e tratados pelos profissionais de saúde, formados no sistema biomédico - devem ser analisadas e balizadas pelo conceito de relativismo cultural, evitando, dessa maneira, a tomada de posturas e análises etnocêntricas por parte desses profissionais e teóricos.

Ao final, somos todos sujeitos da cultura, experimentada de várias formas, inclusive quando se adoece e se procura por tratamento. Porém, na atuação como profissionais e pesquisadores da área da saúde, depara-se com sistemas culturais diversos ao nosso (ou no qual se foi treinado), sem relativizar o próprio conhecimento médico. Isso de dá, em especial, no campo da saúde, pois, no Ocidente moderno e racional, naturaliza-se o campo médico, cobrindo-o de verdade universal e absoluta, afastando-o das formas de conhecimento culturalizado, isto é, cuja verdade é particular, relativa e condicional.

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  • Corresponding Author:
    Flavio Braune Wiik
    Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Ciências Humanas. Departamento de Ciências Sociais
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      22 Abr 2009
    • Aceito
      16 Nov 2009
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