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Significados psicoculturais da incontinência urinária feminina: uma revisão

Resumos

O objetivo do presente trabalho foi identificar e analisar estudos da literatura em saúde que abordassem significados psicoculturais relatados por mulheres que vivenciam a incontinência urinária (IU). Realizou-se busca bibliográfica nas bases de dados Lilacs, Medline, Pubmed e Medscape. A presente revisão identificou que estudos apontam polissemia de significados. Os artigos foram agrupados em três categorias eleitas como relevantes: vivências segundo a faixa etária, vivências cultural-religiosas e vivências quanto ao autocuidado. A pesquisa revelou que o grau de angústia experimentado e a amplitude das dificuldades estão relacionados tanto com a idade, etnia ou religião, quanto com a percepção que cada indivíduo tem de sua incontinência, o que levará aos diferentes níveis de transtorno emocional e por procura (ou não) de tratamento. Além disso, há barreiras percebidas na manutenção do autocuidado. Conclui-se que a IU pode gerar sofrimento e que as mulheres incontinentes enfrentam dificuldades para lidar com esse problema.

enfermagem; saúde da mulher; incontinência urinária; literatura de revisão; impacto psicossocial


The purpose of the present study was to identify and analyze studies in health literature about the psychocultural meanings reported by women who experience urinary incontinence (UI). A bibliographical search was executed in the following databases: Lilacs, Medline, Pubmed and Medscape. The present review showed that studies note several meanings. The articles were grouped in three categories defined as significant: according to age experiences, cultural-religious experiences and experiences in self-care. The studies revealed that the degree of anguish and the range of the difficulties experienced are related both with age, ethnic group or religion and with the perception each individual has of her incontinence, which will lead to different levels of emotional disorders and to seeking (or not seeking) treatment. Besides, barriers regarding self-care are perceived. It is concluded that the UI may cause suffering and incontinent women have difficulties to deal with this problem.

nursing; women's health; urinary incontinence; review literature; psychosocial impact


El objetivo del presente trabajo fue identificar y analizar estudios en salud que trataban sobre los significados psico-culturales de mujeres que pasaron por incontinencia urinaria (IU). Fue realizada una búsqueda bibliográfica en las bases de datos: Lilacs, Medline, Pubmed e Medscape. La presente revisión mostró estudios que presentan pluralidad de significados. Los artículos fueron agrupados en tres categorías: vivencias segun el grupo etáreo, vivencias culturales-religiosas y vivencias sobre el autocuidado. La investigación mostró que, el grado de angustia vivida y las dificultades se encuentran relacionadas con la edad, etnia o religión, así como por la percepción que cada individuo tiene sobre la incontinencia, lo cual lo llevó a diferentes grados de trastorno emocional y a buscar (o no) tratamiento. De la misma forma se perciben barreras en cuanto a su autocuidado. Se concluye que la IU puede causar sufrimiento y que las mujeres con incontinencia enfrentan dificultades para manejar este problema.

enfermería; salud de la mujer; incontinencia urinaria; literatura de revisión; impacto psicosocial


ARTIGOS DE REVISÃO

IEnfermeira, Universidade Estadual de Campinas, aluna de doutorado, e-mail: rosangelahiga@bol.com.br

IIEnfermeira, Livre-docente, Professor Associado, e-mail: mhbaena@fcm.unicamp.br

IIIMédico, Livre-docente, Professor doutor, e-mail: erturato@uol.com.br. Faculdade de Ciências Médicas, da Universidade Estadual de Campinas, Brasil

RESUMO

O objetivo do presente trabalho foi identificar e analisar estudos da literatura em saúde que abordassem significados psicoculturais relatados por mulheres que vivenciam a incontinência urinária (IU). Realizou-se busca bibliográfica nas bases de dados Lilacs, Medline, Pubmed e Medscape. A presente revisão identificou que estudos apontam polissemia de significados. Os artigos foram agrupados em três categorias eleitas como relevantes: vivências segundo a faixa etária, vivências cultural-religiosas e vivências quanto ao autocuidado. A pesquisa revelou que o grau de angústia experimentado e a amplitude das dificuldades estão relacionados tanto com a idade, etnia ou religião, quanto com a percepção que cada indivíduo tem de sua incontinência, o que levará aos diferentes níveis de transtorno emocional e por procura (ou não) de tratamento. Além disso, há barreiras percebidas na manutenção do autocuidado. Conclui-se que a IU pode gerar sofrimento e que as mulheres incontinentes enfrentam dificuldades para lidar com esse problema.

Descritores: enfermagem; saúde da mulher; incontinência urinária; literatura de revisão; impacto psicossocial

INTRODUÇÃO

A incontinência urinária (IU) afeta a população mundial, comprometendo mais a população feminina: uma entre cinco mulheres já vivenciou algum episódio dessa doença(1). Nas mulheres, a IU pode ocorrer mais freqüentemente: aos esforços, isto é, ao fazer força na região abdominal, espirrar, tossir, rir ou praticar esportes; nos casos de bexiga hiperativa, com urge-incontinência, incide como vontade forte e incontrolável de urinar, com grande possibilidade de perder urina caso não encontre banheiro; e na incontinência mista quando há perda de urina associada às duas situações, ou seja, é precedida de esforços e sintomas de urgência(2).

A ocorrência da perda urinária nessas situações implica em conseqüências psicossociais mais devastadoras do que as seqüelas sobre a saúde física, com múltiplos e abrangentes efeitos que restringem as atividades diárias, a interação social, afetam a autopercepção do estado de saúde e a qualidade de vida da mulher incontinente, quando comparada com a continente. Considerando pessoas com 60 anos ou mais, de acordo com avaliação da qualidade de vida medida pelo Incontinence Impact Questionnaire (IIQ), o fator emocional mostrou-se o mais afetado. Aproximadamente um terço dos entrevistados referiu nervosismo, vergonha ou frustração por causa de sua IU; enquanto o domínio social e o medo do odor tiveram escore de alto impacto(3), uma vez que a perda urinária restringe o contato com colegas no ambiente de trabalho(4) e proximidade física com as pessoas em geral(5).

A incontinência atinge pessoas de todas as idades, independentemente da condição socioeconômica e cultural e, freqüentemente, afeta com maior intensidade aqueles grupos mais limitados para a procura de ajuda, tais como os idosos e os incapacitados fisicamente. Por ser um dos problemas ditos silenciosos em geriatria, vindo associado ao declínio fisiológico da pessoa idosa, pode influenciar certa falta de interesse por parte dos profissionais da saúde(6), em particular os enfermeiros, os quais, por sua vez, apóiam-se inadvertidamente em velhos mitos e em estereótipos, como crenças de que os idosos aceitam a IU como conseqüência natural do avanço da idade(7) e, sendo assim, refletindo também quanto à validade de se investir no tratamento da IU em pessoas dessa faixa etária(6).

Esses fatores podem conduzir o enfermeiro à avaliação deficiente do cuidado dos idosos incontinentes, tanto na identificação do problema como no seu manejo. O conflito do estabelecimento de prioridades clínicas para a equipe de enfermagem, bem como os déficits da educação sobre IU, é citado como barreira para promover a continência. Assim, a equipe profissional necessita estar consciente do impacto do não tratamento da IU para os idosos e, portanto, deve promover o estado de continência tanto quanto desenvolver estratégias para a contenção da perda urinária(7).

Haja vista que se está diante de um problema delicado, muitas vezes ocultado pela desvalorização dos sintomas, pelo desconhecimento ou vergonha, o fato sugere ser problema 'escondido' e subestimado tanto pelo portador como pelos enfermeiros e demais profissionais da saúde. O conhecimento sobre o impacto da IU na população, seus tipos e causas são aspectos fundamentais a considerar na avaliação do problema e, conseqüentemente, para o diagnóstico e condutas adequadas(6).

Diante do exposto sobre essa disfunção urinária, considerou-se, aqui, como prioridade e relevância, a necessidade de se analisar estudos envolvendo narrativas das mulheres com IU para compreender suas vivências, bem como reações emocionais associadas aos episódios da perda urinária, os significados referidos a esses fenômenos vividos. Compilou-se, assim, importantes contribuições para que os profissionais da saúde aprimorem o enfoque psicológico e o interesse em aprofundar os conhecimentos sobre o tema.

Assim sendo, entende-se que as pesquisas realizadas com mulheres portadoras de IU sejam ferramentas para evidenciar as visões e sentimentos das pessoas incontinentes sobre seu problema e suas atitudes frente à perda urinária. Portanto, o objetivo do presente trabalho foi identificar e analisar estudos da literatura em saúde que abordassem significados psicoculturais relatados por mulheres que vivenciam a IU.

MÉTODO

Trata-se de revisão da literatura, com o propósito de reunir e sintetizar o conhecimento então existente sobre o tema proposto, quais são os significados da IU para mulheres. As revisões foram desenvolvidas de forma criteriosa, uma vez que há estudos pouco numerosos sobre o assunto aqui considerado.

Para sustentar a discussão, foi realizada revisão bibliográfica nas bases de dados Lilacs (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde), Medline (Literatura Internacional em Ciências da Saúde), Pubmed e Medscape. Utilizando as palavras urinary, incontinence, female, qualitative study e quality life e foram selecionados, por opção metodológica dos autores, quanto ao recorte do objeto de estudos, aqueles redigidos em língua portuguesa, espanhola e inglesa, bem como os publicados a partir de 1990.

Os resultados das buscas eletrônicas foram avaliados e selecionados com a finalidade de se resgatar artigos considerados como relevantes e excluir aqueles de menor importância acadêmica na ótica dos autores. Foram então seguidas quatro etapas: (a) seleção nas bases de dados eleitas para obtenção dos estudos e, a partir do título, incluídos e analisados os textos que faziam referência à IU feminina, sendo excluídos os que focalizavam a IU infantil e a masculina; (b) triagem dos artigos, por meio da leitura acurada dos resumos, sendo separados os estudos realizados sob o enfoque da metodologia qualitativa, ou seja, aqueles que abordavam as vivências e restrições relatadas decorrentes da perda urinária. Foram então eliminados trabalhos de cunho epidemiológico, de validação de instrumentos e de avaliação da qualidade de vida com uso de escalas; (c) na busca dos artigos na íntegra para a localização das publicações, foram utilizados o serviço de comutação bibliográfica e acervo da Biblioteca da Faculdade de Ciências Médicas Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a consulta ao Portal de Periódicos da Capes por meio do sistema de busca à Biblioteca Eletrônica da Unicamp e na Scientific Electronic Library Online (SciELO) e (d) processo de avaliação crítica dos artigos, após leitura dos trabalhos na íntegra, foram, assim, incluídos para análise final 17 estudos realizados segundo o método qualitativo, bem como 2 publicações brasileiras recentes em que a fundamentação e argumentação abrangiam o recorte do tema proposto e complementavam os temas relevantes da abordagem qualitativa. Por fim, 19 referências bibliográficas foram consideradas pertinentes para este artigo.

Após releituras do corpus (conjunto do material coletado), na presente revisão, observou-se estudos apontando upolissemia de significados, tal como esperado nos resultados de pesquisas em Ciências Humanas. Os dados foram tratados através da análise de conteúdo dos resultados que emergiram nos estudos publicados e agrupados em categorias/tópicos. Visando a compreensão dos significados atribuídos pelas mulheres nas questões pertinentes à vivência com a perda urinária, a análise dos dados baseou-se nos ditos referenciais psicodinâmicos.

A categorização dos estudos consistiu na definição das informações, levando-se em conta as vivências relatadas nos estudos qualitativos, agrupados por relevância do tema, eventualmente na repetição do assunto abordado, bem como na experiência clínica e conhecimento teórico dos profissionais pesquisadores. Os trabalhos levantados foram agrupados em três categorias vistas como proeminentes: (1) vivências segundo a faixa etária; (2) vivências cultural-religiosas e, (3) vivências quanto ao autocuidado.

Tabela 1

VIVÊNCIAS SEGUNDO A FAIXA ETÁRIA

Tem-se investigado, atualmente, com maior freqüência, a vivência da IU pelas mulheres mais velhas, provavelmente pela maior prevalência após a menopausa, embora as alterações psicossociais pareçam ser expressivas em todas as faixas etárias. Os aspectos simbólicos, no entanto, demonstram ser diferentes de acordo com a faixa etária e as particularidades da IU.

Para mulheres acima de 60 anos, os sentimentos da perda urinária vêm construídos e "negociados" como resultado de experiências individual e compartilhada(8), associam-se a certa idéia de que se tratariam de fenômenos inevitáveis em conseqüência da idade avançada e de implicações do número de partos havidos. As mulheres descrevem a incontinência como processo do tipo degenerativo(9) e condição inerente à sua história de vida(8).

Entre mulheres jovens e de meia-idade (abaixo dos 50 anos), o problema vem percebido como um descontrole pessoal, com determinada perda das propriedades saudáveis do corpo, havendo assim dificuldade significativa para o enfrentamento da doença. Por considerarem a IU como tabu, percebem esse fenômeno como não aceitável para a vida social e se sentem socialmente desprezadas e culpadas frente à eventual repulsa do grupo e abandono por parte da sociedade(10).

As mulheres idosas explicaram que os acidentes ou outros problemas relacionados à UI eram ameaça para a sua auto-estima, sendo que essa ameaça fornecia fortes incentivos para desenvolver sistemas eficazes do cuidado com a continência, os quais ajudavam a proteger sua auto-estima. Se fossem bem-sucedidas possivelmente poderiam aceitar a IU e conduzir uma vida "normal"(11).

Algumas mulheres mais jovens relataram vivenciar os sentimentos característicos dos sintomas urinários com indiferença ou mesmo subestima. É notável que mantenham certa normalidade, pois parece existir reações defensivas de negação, uma vez que envolve grande ajuste de esforços com comportamentos característicos de pessoas continentes e, freqüentemente, não seguem os caminhos racionais para enfrentar o problema(10).

A falta de domínio da IU durante atividades sociais se mostra presente, havendo evidências de implicações psicológicas na vivência familiar, profissional e no lazer. As mulheres narram medo de perder o emprego ou de mudar de função por restrições laborais causadas por limitações das atividades que demandam esforços físicos e das constantes interrupções para ir ao toalete, devido à maior freqüência das micções(4-5). Para as idosas, o medo ao odor demonstrou ser de alto impacto na restrição social, sendo as práticas mais afetadas o ato de ir a lugares onde não há toalete e a realização de viagens mais longas(5). Entre as mais jovens, além dessas queixas, relatam vergonha quando essa 'desgraça' sucede em público, principalmente em eventos sociais com amigos e familiares e durante a prática de esportes(4-5).

Uma vez que ao corpo se aplicam cuidados de beleza na freqüente idolatria da forma física, somado ao fato de que geralmente as mulheres tendem a desejar com o corpo inteiro, com a sexualidade distribuída por todo o corpo e não centrada apenas nos órgãos genitais(12), a perda urinária restringe a interação sexual por se imaginarem pouco atraentes. Para as jovens, apontaria 'uma velhice prematura' que normalmente tendem a repudiar, havendo vergonha ante a evidência clara da perda da auto-estima, ressaltada pelo medo de sofrer rejeição diante da incontinência na atividade sexual, culpa por não sentir desejo e prazer e por perder urina durante o orgasmo(5). O impacto da IU era sentido nas relações íntimas, a vida sexual era inibida uma vez que não podia ser espontânea, necessitava ser planejada, interferindo sobre a sexualidade tanto das mulheres como de seus parceiros(13).

As diversidades relatadas pelas mulheres estariam relacionadas aos significados psicodinâmicos e culturais atribuídos ao corpo. Significados referidos a esse se alteram com o envelhecimento, haja vista que, para as mulheres idosas, a IU foi vista como problema natural para a idade. Entre as mais jovens, parece significar perda do controle sobre o corpo. Observou-se que ao corpo se associam sentimentos, discursos e práticas que estão embutidos nas relações interpessoais, alterando os aspectos emocionais das mulheres incontinentes.

VIVÊNCIAS CULTURAL-RELIGIOSAS

A literatura aponta com maior freqüência estudos realizados com mulheres ocidentais, principalmente nos Estados Unidos e Europa. Entre aqueles que estudaram mulheres de Marrocos, Turquia, Paquistão e Índia, a população foi composta por imigrantes que viviam em países europeus(14-16). Parece haver semelhança nos significados psicológicos da IU para mulheres que vivenciam diferentes culturas, etnias e condições sociais; no entanto, quanto à prática religiosa, as experiências como portadoras de incontinência podem interferir no seguimento de algumas religiões(15-16).

Na busca de estudos sobre relatos de mulheres orientais que vivenciam a IU, os aspectos psicossociais indicaram que as diferenças culturais não alteram os significados da perda urinária, uma vez que demonstraram similaridades com as narrativas de mulheres ocidentais e orientais. Assim como as mulheres dos países americanos e europeus(7-11), o corpo foi experimentado como sendo descontrolado e a insegurança, desespero e impotência foram experimentados quando não podiam controlar os acidentes e, em algumas situações, levava a sentimentos de desamparo e angústia(17).

As chinesas relataram sentimentos de culpa, solidão e isolamento emocional(18), descreveram como perda de controle pessoal cada vez que se molhavam de urina, sentiam estresse quando ocorria em público e perante os amigos o sentimento de vergonha e humilhação era maior do que o medo(19). Para as indianas que vivem em Leiscester, UK, é possível que estigmas sociais da população do Sul da Ásia contribuam para a dificuldade que elas podem ter em discutir os cuidados da continência com outras pessoas(14).

No subgrupo em que se analisou a identidade religiosa, como a Islâmica e Judaica, a perda urinária constituiu problema no seguimento do preceito religioso(15). Para algumas mulheres muçulmanas, ser portadora de IU significa permanecer reservada, isolada e com sentimentos de baixa auto-estima(16). Assim como para as judias, a incontinência para as muçulmanas conduziu à limitação da vida religiosa, relacionada à necessidade de limpeza para a prática da oração(15-16).

As muçulmanas, entretanto, recorrem às orações para minimizar suas angústias, mas esse conforto pode ser negado por não estar limpa, aumentando assim seu estresse(16). Perder urina representaria um fenômeno sujo e pecaminoso, vivenciando a limpeza pessoal como um grande fardo, uma vez que se sentem sujas fisicamente quando ocorre perda urinária e o ritual de asseio se faz mais freqüente para se manterem limpas(15). Experimentar a incontinência durante o cerimonial de purificação torna-as imundas e impuras, sendo que, após a limpeza corporal, torna-se imprescindível repetir orações antes de reiniciar os rituais de purificação(15-16).

VIVÊNCIAS QUANTO AO AUTOCUIDADO

As mulheres, freqüentemente, desvalorizam o sintoma quando o incômodo causado pela incontinência é pequeno, têm constrangimento em relatar seu problema a um profissional, omitem o fato no convívio familiar e geralmente sofrem em silêncio(4).

Para algumas mulheres, o significado da valorização do corpo que tem força e saúde, induz certa resistência à dor e é muito comum tornar-se fator determinante para não buscarem consulta médica. Muitas vezes, esperam que a doença alcance uma intensidade tal a ponto de impedir o uso normal do seu corpo, sendo que as dificuldades enfrentadas ao exprimir e descrever os sintomas ao médico faz com que o problema seja até mesmo relevado(20).

O acanhamento e a timidez, associados ao desconhecimento e à falta de compreensão da incontinência como uma doença, e a vivência de diferentes significados da perda urinária para cada pessoa geram múltiplas maneiras de autocuidar-se, desprezando o auxílio de um profissional de saúde. As pessoas idosas, mesmo aquelas que têm contato regular com profissionais da saúde, raramente falam de sua perda urinária, provavelmente por vergonha e certa concepção errônea de que não seja um problema de saúde(8,18). Entre aquelas que acreditam que a IU é um problema irreversível e decorrente do envelhecimento, parece haver melhor aceitação dos sintomas e, embora haja custos sociais, psicológicos e algumas vezes para com a própria saúde física, o sucesso nas estratégias utilizadas para minimizar a incontinência também contribui para não revelar o problema a outros(21).

As interferências da IU na restrição das atividades diárias das mulheres mais jovens parece não ter significado expressivo na busca do autocuidado para solucionar o problema(13), sendo que os fatores psicológicos chamam a atenção ao reagirem à perda urinária com apatia ou quando se abstêm de ações reparadoras(9). Outras vivem a perda urinária como tabu, tentam manipular a incontinência de diferentes formas e reconquistar o poder do corpo descontrolado e continuar a viver normalmente(17).

Para as muçulmanas imigrantes, que vivem em países europeus, as inibições e limitações da língua as impedem de relatar claramente aos profissionais de saúde e de compreender inteiramente as orientações que recebem, sugerindo que cuidados inadequados podem ser adotados(14-16). As inibições podem ser reduzidas quando tratadas por um profissional de saúde do sexo feminino. Essas mulheres enfrentam a perda urinária compartilhando o problema com outras mulheres, e assim desenvolvem estratégias para conviver com a incontinência, tal como tentar reduzir o número da incidência gerenciando os episódios(16,18). A deficiência na procura de ajuda parece estar também relacionada à carência de conhecimentos sobre sua anatomia, fisiologia e os tratamentos disponíveis(15).

Por outro lado, a postura de alguns profissionais da saúde pode causar inibição e impedir que a mulher expresse suas queixas durante a consulta, assim como é necessário compreender as identidades culturais e religiosas da população atendida. As atitudes e práticas desses profissionais são, notadamente, barreiras para que as pessoas busquem conselho ou ajuda. Se os profissionais perguntassem rotineiramente sobre os sintomas urinários provavelmente as mulheres verbalizariam e procurariam mais ajuda(21-22).

As mulheres idosas com IU, que viviam em instituições de longa permanência, expressaram preocupações comuns nas experiências vivenciadas com a perda urinária e relataram que a cultura institucional pode influenciar em mudanças na prática de enfermagem, relacionadas ao cuidado individualizado, sugerindo oportunidades para proporcionar medidas educativas de saúde relacionadas à qualidade de vida(23).

Entre as pessoas que procuram o auxílio do profissional de saúde, essas desejam mais informação sobre as causas, os tratamentos e os mecanismos para lidarem com o problema. As mulheres solicitaram melhor interação com esses profissionais e identificou-se a necessidade de discussão e maior conhecimento a respeito do assunto(24). A forma de se realizar essa comunicação é relatada como prioridade para o diagnóstico e estabelecimento de vínculo e empatia para buscar e determinar o método de ensino mais adequado para facilitar a compreensão e, assim, a adesão ao tratamento(25).

É necessário envidar maiores esforços, em especial dos profissionais da saúde, para conhecer o que cada pessoa sente sobre a sua condição, como lida com o problema cotidianamente e como se rege em relação aos significados simbólicos desse fenômeno.

As barreiras pessoais e dos profissionais da saúde encontradas pelas mulheres no momento da procura por ajuda estimulam a improvisar meios para adaptação da perda urinária, muitas vezes pouco adequadas e até ineficazes. As mulheres adotam medidas de autocuidado como forma de minimizar a perda urinária, embora elas reconheçam que muitas são prejudiciais à saúde, tal como o uso contínuo de absorventes higiênicos e a restrição hídrica, que podem desencadear problemas dermatológicos e infecções urinárias(4,5,21).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dado importante na revisão da literatura da saúde e biomédica foi a constatação de que as pesquisas publicadas sobre a incontinência urinária, em geral, oferecem poucas referências de relatos colhidos com mulheres sobre como seria angustiante essa doença e os diversos problemas psicossociais decorrentes, uma vez que se molhar de urina consiste em experiência pessoal bastante embaraçosa.

Os estudos aqui considerados revelam que o grau de angústia experimentado e a amplitude das dificuldades não estão somente relacionados com a idade, etnia, religião. Mas também com as reações de cada pessoa e como cada indivíduo percebe a sua incontinência, pois os significados relacionados aos problemas de saúde são estruturantes em nossas vidas. Sabe-se que reações com diferentes graus de transtorno emocional frente a esse problema urinário podem destruir a confiança e o respeito que o individuo tem por si e impedir a procura por ajuda.

No que tange às implicações para a prática de enfermagem, esses resultados podem ser usados como guia de procedimentos para diminuir ou eliminar as barreiras percebidas na manutenção do autocuidado, facilitar a execução das intervenções para a redução da perda urinária e promoção da continência, com um desejado enfoque educativo que privilegie discussões abertas, durante as quais as mulheres possam relatar e compartilhar suas vivências e sentimentos.

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  • Significados psicoculturais da incontinência urinária feminina: uma revisão

    Rosângela HigaI; Maria Helena Baena de Mores LopesII; Egberto Ribeiro TuratoIII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2008

    Histórico

    • Recebido
      23 Set 2007
    • Aceito
      16 Jun 2008
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