Acessibilidade / Reportar erro

Pobre, idoso e na rua: uma trajetória de exclusão

Resumos

Este estudo exploratório teve por objetivo investigar e descrever a população idosa em situação de rua, usuária de um abrigo exclusivo para esse segmento, na cidade de São Paulo. Os sujeitos do estudo foram 20 idosos. Os dados foram coletados por meio das técnicas da entrevista e observação de campo. Foram analisados à luz dos referenciais das áreas da Gerontologia e Saúde Coletiva. Os principais resultados mostram que a vulnerabilidade do idoso às ruas se dá tanto no nível macro, caracterizado por laços trabalhistas e habitacionais frágeis, quanto no nível micro, caracterizado pela falta de apoio familiar. Concluindo, esse estudo propocia a reflexão sobre os valores humanos no que diz respeito às desigualdades sociais e banalização da injustiça social. Aprende-se a ver o idoso de rua como sujeito e não um objeto passivo de caridade e assistencialismo.

idoso; sem teto; saúde; saúde pública; pobreza


This exploratory study aimed to investigate and describe the homeless elderly population user of a shelter specifically designed for them in Sao Paulo. A total of 20 elderly participated in the study. The data were gathered through interviews and field observation. The data analysis was based on Collective Health and Gerontology references. The main results reveal that the vulnerability of the elderly to become homeless occurs in a macro level, characterized by fragile work and residence ties. The micro level is characterized by the lack of familiar support. In conclusion, this study led us to rethink the human values regarding the social inequalities as well the trivialization of social injustice. We learned to view the homeless elderly as subject and not just passive object of charity and assistance.

aged; homeless; health; public health; poverty


Este estudio exploratorio tiene por objetivo investigar y describir la población anciana que vive en las calles, usuaria de un abrigo exclusivo para este segmento social en la ciudad de Sao Paulo. Los sujetos estudiados fueron veinte ancianos. Los datos fueron recolectados mediante técnicas de entrevista y observación de campo. Estas informaciones fueron analizadas mediante referenciales de las áreas de Gerontología y Salud Colectiva. Los principales resultados muestran que la vulnerabilidad del anciano en la calle ocurre tanto en el nivel macro, caracterizado por lazos de cuestiones laborales y habitacionales frágiles, como en el nivel micro, caracterizado por la falta de apoyo familiar. En conclusión, este estudio llevó a repensar los valores humanos respecto a desigualdades sociales y canalización de la injusticia social. Aprendimos a ver al anciano que vive en la calle como sujeto y no objeto pasivo de caridad y asistencialismo.

anciano; personas sin hogar; salud; salud pública; pobreza


ARTIGO ORIGINAL

IGraduanda, Bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq/UNIFESP 2005-2007, e-mail: flaviaslf@gmail.com

IIGraduanda, e-mail: miveigaraizer@bol.com.br

IIIOrientador, Enfermeira, Sanitarista, Professor Adjunto. Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo, Brasil, e-mail acbretas@denf.epm.br

RESUMO

Este estudo exploratório teve por objetivo investigar e descrever a população idosa em situação de rua, usuária de um abrigo exclusivo para esse segmento, na cidade de São Paulo. Os sujeitos do estudo foram 20 idosos. Os dados foram coletados por meio das técnicas da entrevista e observação de campo. Foram analisados à luz dos referenciais das áreas da Gerontologia e Saúde Coletiva. Os principais resultados mostram que a vulnerabilidade do idoso às ruas se dá tanto no nível macro, caracterizado por laços trabalhistas e habitacionais frágeis, quanto no nível micro, caracterizado pela falta de apoio familiar. Concluindo, esse estudo propocia a reflexão sobre os valores humanos no que diz respeito às desigualdades sociais e banalização da injustiça social. Aprende-se a ver o idoso de rua como sujeito e não um objeto passivo de caridade e assistencialismo.

Descritores: idoso; sem teto; saúde; saúde pública; pobreza

INTRODUÇÃO

Em outubro de 2003, foi sancionada pelo presidente da República Brasileira a Lei nº. 10.741, que dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências(1). É necessário destacar que surge após longos anos de tramitação e discussão no Congresso Nacional, e é resultado de ampla mobilização do segmento dos idosos e técnicos comprometidos com a causa do envelhecimento. Não só consolida os direitos garantidos em outras legislações, entre elas a Política Nacional do Idoso(2), Política Nacional de Saúde do Idoso(3) e o Sistema Único de Saúde(4), como amplia, aprimora e define medidas de proteção às pessoas com 60 anos ou mais de idade.

O Estatuto do Idoso(1) considera como direito individual e social a vida, assim como o envelhecimento. Obriga o Estado a garantir ao idoso a proteção à vida e à saúde, por meio de implementação de políticas sociais públicas que assegurem envelhecimento saudável e digno. Entretanto, depara-se, freqüentemente, com idosos em situação de miserabilidade, desprovidos de tal proteção capaz de lhes assegurar a manutenção das necessidades básicas de vida. Observa-se continuamente o despreparo do próprio Poder Público e da sociedade para atender os preceitos legais.

Este estudo fundamenta-se na crença de que as políticas públicas, no âmbito social, são instrumentos capazes não apenas de aliviar a miséria, mas, sobretudo, de redefinir os acessos e oportunidades. Sob essa lógica, introdu-se, aqui, a questão do envelhecimento em situação de rua, buscando salientar a diferença entre caridade e justiça no cumprimento da legislação.

Na cidade de São Paulo, a Câmara Municipal aprovou a Lei nº. 12.31/97, que dispõe sobre a atenção ao povo de rua. Apesar de assistencialista, busca na medida de seu alcance assegurar os direitos constitucionais que visam garantir a igualdade entre os brasileiros. Prevê serviços e programas para essa população, objetivando, pelo menos, a assistência à situação de pobreza absoluta.

Em 2003, a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), por solicitação da Secretaria de Assistência Social (SAS), realizou censo dos moradores de rua em São Paulo, registrando 10.394 pessoas - dessas, 6.186 foram localizadas nas próprias ruas, e 4.208, em albergues(5).

O envelhecimento é fenômeno natural, logo todos os seres envelhecem, uma vez que seus corpos são finitos. É também fenômeno processual, vai do útero ao túmulo, envelhece-se porque se vive. A noção de finitude da vida é dada pelas vicissitudes do corpo e deveria fazer parte da existência humana, entretanto, nem todos percebem e/ou aceitam o envelhecimento.

O processo de envelhecimento inclui a fase da velhice, mas não se esgota nela. As qualidades de vida e de envelhecimento relacionam-se com a visão de mundo do indivíduo e da sociedade em que ele está inserido. Assim a velhice passa a ser não apenas um fenômeno biológico, mas, sobretudo, a confluência de fatores socialmente construídos, que conferem status diferenciado às pessoas que envelhecem(6). Tal colocação é de fundamental importância no processo de trabalho com o idoso de rua.

Introdu-se, nesta discussão, o preceito de que existem diferentes formas de envelhecimento e, conseqüentemente, de velhice. O lugar que o indivíduo ocupa na sociedade interfere na maneira como obtém condições para manejar o cuidado que dispensa a si. Tal fato remete à afirmação de que a injustiça social impacta nessa relação do cuidado, portanto, não pode ser desprezada na análise do objeto deste estudo.

A conjuntura social atual apresenta pontos em comum com uma situação de guerra, porém, não se trata de um conflito armado e sim de uma "guerra econômica". Tem como cenário o mercado e o mundo do trabalho, sendo os prejudicados as pessoas não aptas a combater, pois não conseguem atingir a produtividade, disponibilidade, disciplina e abnegação ditadas pelo sistema econômico. Excluídos do mercado de trabalho, compõem o exército de reserva - os idosos que não possuem agilidade dos jovens, os jovens que não possuem experiência dos mais velhos, os que não possuem acesso à informação e à educação(7). Nessa perspectiva, coloca-se, aqui, à discussão o idoso de rua, que é duplamente excluído: por ser idoso e pobre. Este estudo, portanto, tem como objetivo investigar e descrever a população idosa em situação de rua usuária de um abrigo exclusivo para idosos na cidade de São Paulo.

METODOLOGIA

É um estudo exploratório, uma vez que foi desenvolvido com o objetivo de proporcionar maior familiaridade com o objeto do estudo(8), fornecendo uma visão geral, de tipo aproximativo, acerca da velhice em situação de rua. Essa escolha se deve ao fato da escassez de publicação sobre a temática. Visa aprofundar conhecimentos sobre a velhice na rua para subsidiar outros estudos junto ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Saúde, Políticas Públicas e Movimentos Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Unifesp (CEP 0835/04).

Os sujeitos do estudo foram idosos, com 60 anos ou mais, de ambos os sexos, usuários do abrigo, conscientes e aptos para manter diálogo. Fizeram parte da pesquisa 20 idosos (oito homens e 12 mulheres) que preencheram os quesitos descritos e concordaram em participar da pesquisa, após terem sido informados sobre o objeto, objetivos, metodologia e forma de divulgação da mesma, e assinado o termo de consentimento livre e esclarecido.

Os dados foram coletados utilizando as técnicas de entrevista e observação por meio da aplicação de um instrumento e registro em diário de campo.

Os dados foram submetidos à análise de distribuição de freqüência simples e analisados por meio de leitura interpretativa(8), à luz de referenciais teórico-conceituais selecionados das áreas temáticas da Gerontologia e da Saúde Coletiva.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A escassez de estudos sociodemográficos nas últimas décadas, capazes de traçar um cenário sobre o perfil da população de rua na cidade de São Paulo, impedem a correlação com os achados obtidos nesta pesquisa, porém, dados subjetivos - ancorados na observação de campo e em conversas com trabalhadores que atuam com essa população, leva a crer que esse segmento tem envelhecido.

Segundo estudo realizado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social(9) com 621, albergues há tendência ao envelhecimento da população albergada: em 2000, 12,7% das pessoas tinham 55 anos ou mais, em 2003, 19,9%, e, na atual pesquisa, de 2006, a população idosa representa 23,1% . Enquanto em 2000 a idade média dos adultos albergados era de 41,2 anos, hoje essa média é de 44,7 anos.

O envelhecimento da população geral brasileira, assim como do mundo, já mereceu muitos tipos de análises e justificativas para seu processo. Porém, como citado anteriormente, pela pequena quantidade de estudos nessa área há dificuldade em explicar o fenômeno na população de rua. Não se sabe nem porquê o morador de rua envelheceu e nem o que acontece com ele depois disso.

O aumento do número de idosos na rua foi alvo de pesquisa em São Francisco, nos Estados Unidos, na qual foi analisada a tendência ao envelhecimento da população de rua local. A média de idade dos moradores de rua da região aumentou de 37 para 46 anos ao longo de um período de 14 anos, entre 1990-2004. Fato semelhante foi encontrado em outras cinco cidades americanas(10).

Na cidade de São Paulo, esse fenômeno do envelhecimento na rua se repete, levando a pensar que o aumento da média de idade dos moradores de rua tem se cronificado nas sociedades capitalistas, de maneira geral. Os antigos adultos moradores de rua envelheceram e se encontram em condição estática. O adulto agora é idoso, e suas chances de reinserção social diminuem gradativamente.

O que acontece com a população de rua depois que envelhece também é algo pouco conhecido. Apesar do abrigo - lócus da pesquisa - ser para pessoas de 60 anos ou mais, não se encontra nenhum idoso acima de 70 anos. Não há a explicação para esse fato, porém, hipóteses podem ser levantadas. O indivíduo deve estar hígido a fim de poder sobreviver na rua. A maioria é andarilha, em busca de comida, acolhimento e proteção. Uma vez perdida a capacidade física de se locomover pela cidade, as estratégias de sobrevivência são prejudicadas. Daí o questionamento, aqui: eles morrem ou são acolhidos por alguma entidade, alguma instituição de longa permanência, por exemplo?

Quanto à procedência, a SMADS detectou que pequena parte dos albergados é proveniente da própria capital e a maioria provém das Regiões Nordeste e Sudeste(9). No abrigo estudado, constata-se que nove idosos são da Região Nordeste e dez da Sudeste, e que apenas dois nasceram em São Paulo.

Dezesseis idosos moram nessa cidade há mais de 20 anos, o que leva a pensar que deveriam ter estabelecido vínculos afetivos ou algum tipo de rede social de suporte na cidade. Porém, o suporte social que se identifica foi apenas institucional: o abrigo. Nas trajetórias de vida dos moradores de rua há a ruptura de laços familiares, abandono de papéis carregados de responsabilidade e de afetividade. Isso reflete na efemeridade dos vínculos afetivos que estabelecem na rua. Ao mesmo tempo em que há a ruptura familiar, a dependência institucional se torna evidente(11). Essa dependência, caracterizada pelo uso de equipamentos de assistência, pode favorecer a fixação dessa população nas ruas. A existência desses projetos é de suma importância para a sobrevivência dos moradores de rua, no entanto, ela pode interferir negativamente no processo de (re)inserção social, contribuindo para a falta de estímulos para a busca por sua autonomia. Com isso, ao invés de prepará-lo e instrumentalizá-lo para o resgate de sua cidadania, impede-o de desenvolver sua autonomia necessária para o rompimento de laços de dependência e, conseqüentemente, a saída das ruas(12).

Sendo a família o agente primário de socialização, e servindo como rede de apoio em momentos de crise do indivíduo, a falta dela pode levar a sérias conseqüências. A assistência familiar é inexistente na maioria da população de rua(13). Assim, a ruptura dos vínculos familiares acrescida da ruptura dos laços trabalhistas é considerada o "ponto zero" no processo de rualização(14), principalmente no caso da sociedade brasileira, em que a unidade familiar é o suporte para as relações sociais da classe trabalhadora pobre, a sua ausência pode ser um fator determinante nesse processo(11). Pode-se observar esse fato quando se identificou que doze dos entrevistados têm parentes na cidade de São Paulo, porém, apenas três mantêm contato freqüente. Onze têm parentes fora da cidade e apenas um mantém contato. Concomitantemente a esse dado, cinco dos entrevistados afirmaram que o desajuste familiar foi o motivo que os levou para rua. Além disso, apesar da falta de apoio familiar não ser considerada como fator limitante da ida para as ruas dos demais entrevistados, ela esteve presente em diversas outras narrativas.

Dois conjuntos de fatores interagem quando se pensa os motivos pelos quais as pessoas se tornam moradores de rua. Primeiro, há as tendências amplas, estruturais no nível macro e, segundo, há fatores biográficos ou no nível individual(13). No caso da população estudada, o fator de nível individual foi identificado como a falta de apoio familiar, já mencionada.

Quanto ao nível macro, não se pode estabelecer relação direta entre desemprego, fragilização de vínculos trabalhistas e a moradia na rua. Porém, em muitos depoimentos sobre trajetórias de vida o desemprego é citado e eleito a razão pela ida para as ruas(11,13). Nessa perspectiva, vê-se a vulnerabilidade das pessoas frente ao mercado de trabalho, uma vez que oito dos entrevistados foram para as ruas devido a problemas financeiros, dentre eles o desemprego.

A vulnerabilidade dos vínculos de trabalho previamente a ida às ruas também é encontrada, e é caracterizada pela baixa ou nenhuma qualificação específica. Isso impõe à população identidades ocupacionais frágeis, caracterizadas por atividades com alto potencial de substituição e renda limítrofe para os níveis de sobrevivência(11). Identifica-se essa vulnerabilidade, quando se constata que grande parte, 18 idosos, havia exercido mais de uma atividade remunerada, e que essas não requeriam qualificação específica, a maioria no ramo do comércio e serviços como, por exemplo: domésticas e eletricistas.

Pode-se observar o mesmo padrão nas atividades exercidas atualmente pela população de rua, quando as têm, entre os adultos e idosos que trabalham e trabalharam 96% não possuem carteira assinada(9). Na pesquisa, dos 20 entrevistados cinco trabalhavam no mercado informal, sem carteira assinada, entretanto, 14 dos entrevistados referiram a necessidade e o desejo de trabalhar. O trabalho, além de prover a subsistência física, provê a identidade profissional que é uma parte da constituição da identidade pessoal. Na sociedade atual, no sistema capitalista, a identidade profissional é muito valorizada. O indivíduo é reconhecido pela sua profissão. Portanto, a falta dele ou qualquer empecilho que ocorra na inserção do indivíduo no mercado de trabalho traz estigmatização e culpabilização, comumente isso que acontece com a população de rua(15).

A cultura capitalista é observada também nos discursos dos próprios moradores de rua em um trabalho fundamentado na economia solidária, no qual o cooperativismo foi de difícil implantação e pouco aceito entre os moradores de rua de uma organização não-governamental (ONG) da cidade de São Paulo. O trabalho e geração de renda pela cooperativa eram vistos por eles como atividades temporárias, que se afastariam uma vez que fossem empregados. A perspectiva de empregar-se, de vender sua força de trabalho, era maior do que gerar renda pela cooperativa, demonstrando o reconhecimento do emprego como uma única forma de trabalho desejável(12).

Neste estudo, a população estudada é extremamente vulnerável financeiramente e depende da assistência estatal. O auxílio de seguridade/promoção social é fonte de recursos para oito idosos, enquanto oito não possuem rendimento, contando exclusivamente com o abrigo para suas necessidades fisiológicas, acolhimento e proteção.

Acrescido à dificuldade de inserção no mercado de trabalho, há a vulnerabilidade habitacional que atinge a sociedade como um todo, em particular aos brasileiros mais pobres. Esse problema é potencializado no caso de uma população pouco qualificada com laços tênues no mercado de trabalho, aumentando a probabilidade de ir para as ruas. Nessa perspectiva, encontrou-se cinco idosos que elegeram o desalojamento como a causa de sua rualização.

A inserção precoce no mercado de trabalho e a baixa escolaridade são fatores que influenciam a condição de vulnerabilidade dos vínculos laborais e/ou habitacionais(14). Na população estudada, foi constatado que dois eram analfabetos, oito têm curso fundamental completo, seis incompleto e dois ensino médio.

Além disso, causou perplexidade a presença de uma advogada e um professor, o que leva à reflexão sobre a relação entre escolaridade e vulnerabilidade social. A educação é um bem individual, no entanto, não se pode tê-la como garantia de segurança social. Uma vez que se encontra profissionais com ensino superior em albergues e ruas, é necessário reconsider o valor de um diploma superior. Ele facilita as relações trabalhistas estáveis e formais, mas será que manterá o indivíduo nesse estado e prevenirá o risco do desemprego, dificuldades financeiras e da ida às ruas nesse contexto contemporâneo do desemprego estrutural? Diante disso, é seguro afirmar que a vulnerabilidade à exposição do indivíduo à rua decorre da interferência de um conjunto de fatores individuais, coletivos, sociais e contextuais, e não de um fator pontual. Porém, deve-se investigar se esse fato é recente, ou não, uma vez que estudos mostram que a escolaridade entre os albergados é mais alta entre os adultos mais jovens (até 30 anos de idade). Desses, 33% ingressaram no ensino médio(9).

Observa-se que os idosos com menos tempo de albergue são mais críticos quanto a sua situação. Acredita-se que haja relação direta entre a satisfação que o indivíduo atribui à sua condição de vida e suas expectativas para com ela. Ou seja, maior será a satisfação, quanto mais próximo se estiver das expectativas. O saber aumenta e multiplica os desejos, e quanto menos um indivíduo deseja, tanto mais fácil se torna satisfazer suas necessidades.

No que diz respeito à saúde, o abrigo é contemplado pelo Programa de Agentes Comunitários de Saúde de Rua da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Portanto, os idosos lá abrigados têm acesso à Unidade Básica de Saúde (UBS), sem dificuldades para marcar consultas. Dos entrevistados, sete têm hipertensão arterial e três diabetes melitus, e todos fazem controle periódico na UBS.

Quando perguntados sobre algum problema de saúde, nenhum deles identificou a doença crônica de base como um problema. Relataram fatos agudos como gripe, dor de cabeça, pneumonia, entre outros, e agravos à saúde, como dois atropelamentos. Percebe-se que, para eles, um problema de saúde é algo que os faz procurar imediatamente os serviços - Pronto-Socorro e/ou a UBS. Esse fato leva a crer que a doença crônica não os faz se sentirem doentes.

Quando se pensa que a saúde e o adoecer são experiências singulares vivenciadas pelos indivíduos, e que são formas pelas quais a vida se manifesta(16), pode-se entender um pouco mais as respostas dadas. Não se pode analisar essas respostas com a definição de saúde dada pela OMS - o completo bem-estar biopsicossocial - pois percebe-se-ia que ninguém possui saúde, ela viraria utopia. Se se considerar que a saúde não é apenas a ausência de enfermidades, nem o completo bem-estar ou normalidade total e sim uma quantidade moderada de sofrimento, com predomínio de sentimentos de bem-estar, ela se torna um ideal, mas também a realidade concreta(17).

A doença não é apenas o desaparecimento de uma ordem fisiológica, mas o aparecimento de uma nova ordem vital. Ser sadio não é apenas ser normal na situação determinada, mas ser normativo em diversas situações. A saúde é o estado de harmonia e equilíbrio das funções físicas e psíquicas do indivíduo, considerando seu meio natural e social. Essa harmonia e equilíbrio são capazes de adaptar o organismo quando submetidos a novas condições de ambiente, seja ele natural ou social(18).

Considerando que o organismo possui normas que lhe permite a adaptação ao meio, ser sadio não é apenas ser normal na situação determinada, mas ser normativo em diversas situações. Por outro lado, a doença não pode ser considerada a ausência de norma. Ela é, em si, uma norma da vida, que não é capaz de adaptar o organismo a condições do meio em que ele é inserido em sua vida atual(18). O ser humano não sente o bem-estar, pois é a consciência de viver, é o impedimento em gastar a vida que é sentida e percebida. Os moradores de rua hipertensos e diabéticos não se consideram doentes, pois se adaptaram à nova norma instituída por seus corpos, e não sentem seu bem-estar.

Outra categoria que emergiu na análise dos dados diz respeito ao tempo de rua. A esse respeito, tomou-se por referência uma tipologia fundamentada nos moradores de rua, abordando, entre outras, a categoria dos "recém-deslocados", caracterizada por pessoas que têm medo da companhia das ruas, não sabem em quem confiar e não sabem se irão sobreviver. Os recém-deslocados tendem a se dirigir às instituições assistenciais onde são fornecidos comida e abrigo. Relembram suas memórias com alegria que dão origem a um forte desejo de voltar à antiga condição. Além de terem planos de sair, seus comportamentos são direcionados de modo coerente para atingir tal objetivo, são os que mais procuram emprego. Negam a identidade social de morador de rua e enfatizam para outros que não são como seus colegas de rua(13).

Tendo como base os discursos da população estudada, pode-se considerá-la recém-deslocada, uma vez que não viveu a experiência de morar na rua, foram todos albergados em pouco ou nenhum tempo de rua. O abrigo foi a primeira instituição para oito idosos, e sete passaram por apenas um albergue anteriormente. Dezessete relataram que há menos de três anos tinham uma casa para morar, o que denota o curto período na situação. Muitos ainda possuem planos de sair do abrigo, e ainda procuram emprego.

A população de rua é definida como o segmento de baixíssima renda que, por contingência temporária ou permanente, pernoita nos logradouros da cidade, em albergues públicos ou de entidades sociais(19). Essa definição traz à reflexão a homogeneização aparente desse grupo populacional, pois coloca no mesmo segmento moradores de logradouros públicos e rua, propriamente dita, e os albergados. No caso da população estudada, não se sabe se pode ser considerada moradora de rua, pois não vivenciou a experiência de viver na rua propriamente dita. Acredita-se que isso interfere na constituição de identidade social, assim como condições de se autocuidar e de ter a perspectiva de sair da situação. A ida às ruas significa desenvolver um processo compensatório em relação às perdas e usar outros recursos de sobrevivência, até então ignorados, e assimilar novas formas de organização que permitem a satisfação das necessidades e a superação dos obstáculos que a cidade apresenta(20). Essa "cultura da rua" não foi observada nos idosos.

Além de não serem percebidos como moradores de rua, os mesmos não se consideram como tal. Diante disso, amplia-se esta pesquisa, com o objetivo analisar a existência de diferenças entre moradores de rua propriamente dita e albergados. Partiu-se do pressuposto que a saúde individual está diretamente relacionada com as condições de vida dos seres humanos e sofre influências das políticas sociais e econômicas(21), portanto, o enfoque de intervenções tanto na área da saúde quanto na área social não pode ser o mesmo entre um grupo e o outro. Uma vez que o albergado possui segurança, abrigo, condições de higiene, o indivíduo que se encontra na rua deve encontrar meios estratégicos não convencionais para a sua sobrevivência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dada a natureza exploratória do estudo, não é possível fazer grandes generalizações. No entanto, os nossos achados, aqui, levam a reflexões, embora particulares, sobre a situação da velhice na rua.

A decomposição e a ruptura com vínculos familiares e sociais estão presentes nas trajetórias de vida dos moradores de rua estudados. Observou-se que as fragilidades de ordem habitacional, afetiva, exposição à discriminação e à violência estão associadas às vulnerabilidades prévias dessa população.

No que tange à família, os sujeitos do estudo apresentam desvinculação e/ou atenuação de laços familiares, podendo ser essa uma referência à distância. No contexto brasileiro, no qual a família é considerada unidade de pertencimento imprescindível, ficar sem lugar é perder vínculo familiar.

No que diz respeito ao Estatuto do Idoso, a proteção social dos moradores de rua estudados está garantida, uma vez que estão amparados pela seguridade social e/ou pela assistência institucional. Isso não assegura incremento na qualidade de vida, pois se relaciona diretamente às expectativas e sentidos atribuídos por cada um, influenciados por crenças e valores individuais construídos ao longo da existência.

Esse estudo levou a repensar os valores humanos no que diz respeito às desigualdades e banalização da injustiça social. Enquanto acadêmicas da área da saúde, aprende-se a enxergar o idoso de rua como sujeito detentor de características individuais e não um objeto passivo de caridade e assistencialismo. Ao desnudar esse objeto, espera-se contribuir para aumentar a intolerância à injustiça social, o que demanda ação política e não caridade.

Continua-se este estudo, introduzindo novos olhares na perspectiva qualitativa para compreender a relação existente entre as mentalidades presentes em diferentes segmentos das sociedades sobre os diversos significados de ser morador de rua. Enquanto pesquisadoras comprometidas com o Sistema Único de Saúde visa-se, aqui, ao compreender as diferenças, subsidiar programas de saúde voltados a esse segmento.

Acredita-se que este estudo pode agregar valor à produção do conhecimento na enfermagem, principalmente, introduzindo novos indicadores e olhares na assistência sistematizada, prestada ao povo de rua nos diferentes equipamentos de saúde.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 22.3.2007

Aprovado em: 27.8.2007

  • 1
    Lei nº 10.741, de 01 de outubro de 2003 (BR). Dispõe sobre Estatuto do Idoso e dá outras providências. Brasília; [Acesso em 2007 agosto 25]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/2003/L10.741.htm
  • 2
    Lei nº 8.842, de 04 de janeiro de 1994 (BR). Dispõe sobre a Política Nacional do Idoso, cria o Conselho Nacional do Idoso e dá outras providências. Brasília; [Acesso em 2007 agosto 25]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8842.htm
  • 3. Ministério da Saúde (BR). Política Nacional de Saúde do Idoso. Portaria 1395/GM. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 1999.
  • 4
    Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 (BR). Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília; [Acesso em 2007 agosto 25]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8080.htm
  • 5
    Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas. Censo dos moradores de rua na cidade de São Paulo. Relatório Executivo. São Paulo (SP): FIPE; 2003.
  • 6. Beauvoir S. A velhice: o mais importante ensaio contemporâneo sobre as condições de vida dos idosos. Rio de Janeiro (RJ): Nova Fronteira; 1990. p.711.
  • 7. Dejours C. A banalização da injustiça social. 3Ş ed. Rio de Janeiro (RJ): FGV; 2000.
  • 8. Gil AC. Como elaborar projetos de pesquisa. 4Şed. São Paulo (SP): Atlas; 2006
  • 9. Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas. Estudos dos usuários dos albergues conveniados com a prefeitura. São Paulo (SP): SMADS/ FIPE; 2003.
  • 10. Hahn JA, Kushel MB, Bangsberg DR, Riley E, Moss AR. The aging of the homeless population: fourteen-year trends in San Francisco. J Gen Intern Med 2006; 21:775-8.
  • 11. Escorel S. Vidas ao léu: trajetórias de exclusão social. Rio de Janeiro (RJ): FIOCRUZ; 1999.
  • 12. Ghirardi MG, Lopes SR, Barros DD, Galvani D. Vida na rua e cooperativismo: transitando pela produção de valores. Interface 2005 setembro-dezembro; 9(18):601-10.
  • 13. Snow D, Anderson L. Desafortunados: um estudo sobre o povo da rua. Petrópolis (RJ): Vozes; 1998.
  • 14. Mattos RM, Ferreira RF. O idoso em situação de rua: Sísifo revisitado. Estudos de Psicologia 2005 janeiro-março; 22(1):23-32.
  • 15. Mattos RM, Ferreira RF. Quem vocês pensam que (elas) são? - Representações sobre as pessoas em situação de rua. Psicol Soc 2004 maio-agosto; 16(2):47-58.
  • 16. Czeresnia D. O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexos, tendências. Rio de Janeiro (RJ): Fiocruz; 2003. p.39-53.
  • 17. Coelho MTAD, Almeida N. Análise do conceito de saúde a partir da epistemologia de Canguilhem e Focault. In: Goldenberg P, Marsiglia RMG, Gomes MHA, organizadoras. O Clássico e o Noco: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro (RJ): Fiocruz; 2003. p.101-13.
  • 18. Canguilhem G. O normal e o patológico. 4Ş ed. Rio de Janeiro (RJ): Forense Universitária; 1995.
  • 19
    Fundação Instituto de Pesquisa Econômicas. Censo de moradores de rua na cidade de São Paulo. Relatório Executivo. São Paulo (SP): FIPE; 2000.
  • 20. Varanda W, Adorno RCF. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saúde & Soci 2004 janeiro-abril; 13(1):59-9.
  • 21. Rosa AS, Cavicchioli MGS, Brêtas ACP. O processo saúde-doença-cuidado e a população em situação de rua. Rev Latino-am Enfermagem 2005 julho-agosto; 13(4):576-82.
  • Pobre, idoso e na rua: uma trajetória de exclusão

    Flávia Saraiva Leão FernandesI; Milena Veiga RaizerII; Ana Cristina Passarella BrêtasIII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2007

    Histórico

    • Recebido
      22 Mar 2007
    • Aceito
      27 Ago 2007
    Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
    E-mail: rlae@eerp.usp.br