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As representações sociais do sistema único de saúde no município do Rio de Janeiro, Brasil, segundo a abordagem estrutural

Resumos

O Sistema Único de Saúde (SUS) enfrenta dificuldades para a sua efetiva implementação. Este estudo objetivou caracterizar os conteúdos e a estrutura das representações dos profissionais acerca da implantação do SUS no município do Rio de Janeiro. Adotou-se como eixos orientadores a Teoria de Representação e de Memória Social, sendo desenvolvido em 5 instituições de saúde, com 100 profissionais. Os dados foram coletados através de evocações livres e analisados pelo software EVOC 2000. Os resultados revelam um núcleo central caracterizado por atitudes negativas frente ao SUS. Na zona de contraste, observa-se atitude negativa referida à funcionalidade e positiva relativa ao atendimento dos usuários. Na periferia, percebe-se a incorporação de novos posicionamentos à representação. Conclui-se que os profissionais apresentam representações sociais que reconhecem o SUS como um novo sistema. No entanto, essa incorporação não vem ocorrendo de forma naturalizada, mas desperta julgamentos sobre a pertinência dos princípios do sistema.

memória; sistemas de saúde; sistema único de saúde


The Brazilian National Health Care System The Single Health System (SHS) [SUS-Sistema Único de Saúde] faces difficulties for its effective implementation. This paper aims to characterize the contents and the social representation structure of the Brazilian health care system among health care professionals in the city of Rio de Janeiro. The concept of social memory and the theory of social representation were adopted as frameworks. Five health care institutions were included in this research, with 100 professionals altogether. The free-association technique was used to collect data and the EVOC 2003 software was used analyzed for data analysis. The results signal to a central nucleus, characterized by negative attitudes regarding the SUS. In the contrast area, there is a negative attitude towards the effectiveness of the system and a positive attitude towards the care provided to service users, also showing other principles. At its periphery, the implementation of new opinions about the representation could be observed. It is concluded that the professionals present social representations that recognize the SUS as a new system, eliciting negative attitudes among the professionals, and that is in a process of formation or progressive transformation, raising judgments about the pertinence of the system's principles.

memory; health systems; single health system


El sistema único de salud (SUS) enfrenta dificultades para una efectiva implementación. Este estudio tiene por objetivo caracterizar los contenidos y la estructura de las representaciones profesionales sobre la implementación del SUS en la ciudad de Río de Janeiro. Fueron adoptadas como guías la Teoría de Representación y Memoria Social, desarrolladas en cinco instituciones con cien profesionales. Los datos fueron recolectados a través de narraciones espontáneas y posteriormente analizados por el software EVOC2000. Los resultados muestran un núcleo central que se caracterizan por actitudes negativas frente al SUS. En el área de contraste se observa una actitud negativa que se refiere a la funcionalidad y una positiva, relacionada a la atención de los usuarios. En las zonas periféricas de la ciudad fue observada la incorporación de nuevos posicionamientos frente a la representación. Se concluye que en los profesionales se observan representaciones sociales que reconocen al SUS como un nuevo sistema. Sin embargo, esta incorporación no se da de forma natural, generando críticas sobre la importancia de los principios del sistema.

memoria; sistema de salud; sistema único de salud


ARTIGO ORIGINAL

As representações sociais do sistema único de saúde no município do Rio de Janeiro, Brasil, segundo a abordagem estrutural

Antonio Marcos Tosoli GomesI; Denize Cristina de OliveiraII; Celso Pereira de SáIII

IDoutor em Enfermagem, Professor Adjunto, e-mail: mtosoli@gmail.com

IIDoutora em Saúde Pública, Professor Titular, e-mail: dcouerj@gmail.com. Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

IIIDoutor em Psicologia, Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, e-mail: cpsa@uerj.com.br

RESUMO

O Sistema Único de Saúde (SUS) enfrenta dificuldades para a sua efetiva implementação. Este estudo objetivou caracterizar os conteúdos e a estrutura das representações dos profissionais acerca da implantação do SUS no município do Rio de Janeiro. Adotou-se como eixos orientadores a Teoria de Representação e de Memória Social, sendo desenvolvido em 5 instituições de saúde, com 100 profissionais. Os dados foram coletados através de evocações livres e analisados pelo software EVOC 2000. Os resultados revelam um núcleo central caracterizado por atitudes negativas frente ao SUS. Na zona de contraste, observa-se atitude negativa referida à funcionalidade e positiva relativa ao atendimento dos usuários. Na periferia, percebe-se a incorporação de novos posicionamentos à representação. Conclui-se que os profissionais apresentam representações sociais que reconhecem o SUS como um novo sistema. No entanto, essa incorporação não vem ocorrendo de forma naturalizada, mas desperta julgamentos sobre a pertinência dos princípios do sistema.

Descritores: memória; sistemas de saúde; sistema único de saúde

INTRODUÇÃO

Após 15 anos da sua implantação, o Sistema Único de Saúde (SUS) se apresenta como política que deve possibilitar tanto o acesso universal a cuidados básicos de saúde, quanto a disponibilização de tecnologia de ponta. No entanto, sofre dificuldades associadas à insuficiência de recursos financeiros e materiais e à disparidade de salários e cargos, dentre outras. Essa realidade caracteriza tensão interna do sistema, vivenciada pelos profissionais de saúde, gerando a construção de forma particular de visualizar e de enfrentar tais dificuldades.

O SUS reveste-se de importância no quadro sanitário brasileiro, não somente como estrutura de organização institucional da área da saúde e modelo de atendimento à clientela, mas especialmente pela mudança impressa por ele nas formas de direcionamento, de conceber, de pensar e de fazer a assistência à saúde no país(1). Apesar dos avanços que o SUS alcançou na última década, coexistem ainda aspectos inovadores e conservadores desse sistema como característica da atenção à saúde no Brasil.

O aspecto inovador refere-se aos princípios e ao próprio perfil da proposta do sistema, bem como a qualidade dos debates e da produção intelectual do campo específico. O caráter conservador se expressa na baixa institucionalidade alcançada, entre a formulação e a execução efetiva de ações transformadoras das práticas de saúde. Percebe-se não haver permeabilidade entre a modernidade conceitual e legal e o conservadorismo das práticas de saúde, centradas num modelo assistencial circunscrito a respostas a demandas imediatas, na medicalização da saúde e na alta tecnologia de caráter hospitalocêntrico(2).

Conforme discutido, a formulação do SUS envolveu grande participação social, mobilizando movimentos sociais, como a organização da sociedade civil em seus diversos setores de atuação (usuários, prestadores de serviço e agentes institucionais públicos, dentre outros), que se expressaram em acontecimentos concretos como a realização das Conferências Nacionais de Saúde, no transcorrer do acalorado debate acadêmico em torno do tema(3).

Entre as diretrizes políticas consolidadas pela Constituição Federal no cenário nacional, encontram-se os fundamentos da transformação do sistema de saúde brasileiro. A Constituição de 1988 definiu a criação do SUS, que tem como princípio básico o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da atenção à saúde. O texto constitucional expressa, ainda, clara intenção de deslocar o poder do centro para a periferia, tendo como eixo central a descentralização, reforçando a autonomia municipal e a participação da comunidade. O município tem a incumbência específica de prestar serviços de atendimento à saúde da população, e à União e aos Estados cabem prover a cooperação técnica e financeira.

A plena regulamentação do SUS efetivou-se apenas em 1990 (com a aprovação das Leis 8.080 e 8.142) e sofreu vetos presidenciais importantes em diversos artigos, especialmente no que se refere aos mecanismos de transferência de recursos financeiros. Assim, o Artigo 35, parte da Lei Orgânica 8.080, coloca-se como ponto de partida para a construção de sistema de financiamento que favoreça, e não dificulte, a implementação dos postulados principais do SUS. O Sistema de Saúde deve ser efetivado a partir de um conjunto de ações e de serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicas Federais, Estaduais e Municipais, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo poder público e, de forma complementar, pela iniciativa privada(1).

Os objetivos finais do SUS se caracterizam como prestar assistência à população a partir do modelo de promoção da saúde, que implica em ações que buscam eliminar ou controlar as causas das doenças e agravos, ou seja, que determinam ou condicionam o aparecimento de doenças; proteger a saúde da população, que consiste em ações específicas para prevenir riscos e exposições às doenças e agravos à saúde, ou seja, manter o seu estado de saúde; e desenvolver ações de recuperação da saúde de forma a evitar mortes e seqüelas em pessoas já acometidas por processos mórbidos. Assim, esses objetivos propostos pelo sistema único se caracterizam por ser orientados pelos princípios organizativos da descentralização, regionalização, hierarquização, resolutividade, participação social e complementaridade do setor privado, e constituem objetivos estratégicos, que buscam dar concretude ao modelo de atenção à saúde(4-5).

O SUS é, então, definido como um sistema único porque segue a mesma doutrina e os mesmos princípios organizativos em todo o território nacional, sob a responsabilidade das três esferas autônomas do governo: federal, estadual e municipal. Dessa maneira, ele não se caracteriza como serviço ou instituição, mas um sistema que se efetiva por um conjunto de unidades, de serviços e de ações que interagem para o fim comum.

A sua construção é norteada por alguns princípios doutrinários, quais sejam: a universalidade, a eqüidade e a integralidade das ações de saúde. A universalidade implica em que todas as pessoas tenham direito ao atendimento, ou seja, a saúde é considerada direito de cidadania e dever dos governos municipal, estadual e federal; a eqüidade parte da premissa de que todo cidadão é igual perante o SUS e será atendido conforme as suas necessidades, permitindo a diminuição das desigualdades existentes; a integralidade implica em que todas as ações de promoção, proteção e de recuperação da saúde formam um todo indivisível, que não pode ser compartimentalizado. As unidades prestadoras de serviços, com seus diversos graus de complexidade, formam também um todo indivisível, devendo configurar em sistema capaz de prestar assistência integral.

Simultaneamente, a organização do SUS é regida por cinco princípios, sendo eles: a regionalização e a hierarquização, a resolutividade, a descentralização, a complementariedade e a participação dos cidadãos. A regionalização e a hierarquização implicam que a rede de serviços do SUS deve ser organizada de forma que todas as regiões contem com serviços de saúde de diferentes níveis de atenção que se articulam a partir da sua hierarquização, permitindo conhecimento maior dos problemas de saúde em uma área delimitada, favorecendo ações de vigilância epidemiológica, sanitária, controle de vetores e educação em saúde, além das ações de atenção ambulatorial e hospitalar em todos os níveis de complexidade.

A resolutividade é definida como a exigência de que, quando um indivíduo busca o atendimento ou quando surge um problema de impacto coletivo sobre a saúde, o serviço correspondente esteja capacitado para enfrentá-lo e resolvê-lo até o nível exigido pela sua complexidade. A descentralização representa a redistribuição das responsabilidades pelas ações e serviços de saúde entre os vários níveis de governo, chegando até o municipal.

A participação dos cidadãos, ou o controle social, por sua vez, implica na garantia constitucional de que a população, através de entidades representativas, deverá participar do processo de formulação das políticas de saúde e do controle de sua execução, em todos os níveis desde o federal até o local. Por fim, a complementariedade do setor privado está prevista quando há a necessidade de contratação de serviços privados para a complementação dos serviços públicos.

No Brasil, após a Constituição de 1988, o SUS institucionalizou, através dos Conselhos de Saúde, a ação dos grupos de interesse, possibilitando a participação de grupos sociais organizados, como sindicatos, associações de moradores e igrejas junto a representantes diretos do executivo, como secretários de saúde e técnicos graduados. Essa participação se desenvolve a partir de legislação específica, que define seus contornos, escopo de decisões e participantes(1-2,5-7).

O sistema está sob responsabilidade federal, estadual e municipal, uma vez que segue, em todo o país, os princípios de eqüidade, universalidade e integralidade da atenção à saúde, como já citado acima. Outro aspecto que caracteriza a organização do sistema é a sua descentralização político-administrativa, uma vez que institui o processo de municipalização, definindo que o próprio município realize ações de saúde voltadas diretamente para os cidadãos.

Diversos autores concordam que, apesar das dificuldades, houve avanços no modelo de descentralização adotado pela política de saúde, em direção à municipalização da gestão e da explicitação das funções estaduais como coordenadores do sistema de referência municipal. Quanto ao nível federal, ampliou-se o seu poder indutor e regulador, ao introduzir novos mecanismos de transferência vinculados às ações e programas assistenciais(8-9).

Apesar do avanço do processo de municipalização, observa-se distribuição de recursos federais inter-regionais e interestaduais, que privilegia os Estados mais desenvolvidos, principalmente nos procedimentos de média e alta complexidade, sendo que aqueles relacionados à atenção básica mostram-se mais eqüitativos(9). Aliado a isso, nota-se que o processo de descentralização, fundamentado nos princípios constitucionais de universalização, eqüidade e participação social, tal como previsto na Lei Orgânica da Saúde de 1990, apresenta avanços e retrocessos em função das ambigüidades, conflitos e contradições em relação às mudanças no papel do Estado Brasileiro a partir da década de 90(10).

A partir das considerações traçadas, definiu-se como objetivo geral desta pesquisa caracterizar e comparar os processos de constituição e os conteúdos das representações sociais e das memórias dos profissionais de saúde acerca da implantação do Sistema Único de Saúde, junto a instituições hospitalares, ambulatoriais e centros de saúde do município do Rio de Janeiro, buscando identificar e caracterizar as políticas de saúde efetivadas e as diferentes práticas de saúde desenvolvidas.

ABORDAGEM METODOLÓGICA

A pertinência da associação do referencial teórico da memória social(11-13) a este estudo se justifica pela importância política, econômica e estratégica do sistema de saúde para as políticas públicas no Brasil, assim como pelo tempo decorrido desde a implantação do SUS e a municipalização da saúde no Rio de Janeiro, o que possibilita a análise desse processo a partir das memórias construídas pelas instituições de saúde e pelos profissionais enquanto interlocutores institucionais(13).

Buscar conhecer as políticas municipais e as práticas de saúde desenvolvidas nas cidades, portanto, reveste-se de importância e implica na definição de um referencial teórico que possibilite visualizar a implantação do SUS, não apenas a partir do olhar normativo-institucional, mas também a partir de diferentes pensares, que permitam retraduzir o cotidiano das relações dentro desse complexo sistema. Dessa forma, buscar acessar a memória e as representações sociais dos diferentes grupos sociais que aí interagem e, de certa forma, reconstroem o SUS no cotidiano dos serviços de saúde pode ser caminho profícuo para a compreensão dos aspectos psicossociais que se somam aos tantos outros elementos, resultando no sistema corporificado dos serviços de saúde(14-15).

Associado a esse referencial, adotou-se também a Teoria das Representações Sociais no âmbito da psicologia social, utilizando, inclusive, proposta complementar a essa teoria, qual seja, a abordagem estrutural ou a teoria do núcleo central(13-14,16).

Ressalta-se que uma representação é constituída de um conjunto de crenças, informações, opiniões e atitudes a propósito de um dado objeto social. Esse conjunto de elementos se organiza, estrutura e se constitui num sistema sociocognitivo de tipo específico. A abordagem estrutural considera que a organização de uma representação social apresenta característica específica, a de ser organizada em torno de um núcleo central, constituindo-se em um ou mais elementos que dão significado à representação(13).

Dessa maneira, os elementos presentes nesse núcleo oferecem seu sentido fundamental e inflexível. Sendo assim, como característica ontológica do núcleo de determinada representação, ressalta-se a natureza do objeto representado, o tipo de relações que o grupo mantém com esse objeto e o sistema de valores e padrões sociais que constituem o ambiente de vida, em sua dimensão objetiva ou subjetiva, do indivíduo e do grupo.

O desenho metodológico envolveu cinco instituições de saúde localizadas na cidade do Rio de Janeiro, que tinham sido constituídas há, pelo menos, 15 anos, de modo que tivessem construído uma história dentro do Sistema de Saúde brasileiro. A escolha das instituições obedeceu aos seguintes critérios: um hospital público federal de grande porte; um hospital estadual, geral, de grande porte; um hospital municipal; um hospital privado, conveniado com o SUS, há pelo menos 15 anos, de grande porte; e um centro de saúde de grande porte, pertencente à rede pública municipal de saúde.

A coleta de dados foi realizada no primeiro semestre de 2003, com 100 profissionais, que desenvolviam ações no âmbito das instituições selecionadas, 20 para cada unidade e que atuavam nas respectivas instituições há pelo menos 15 anos. A escolha dos profissionais obedeceu aos seguintes critérios de inclusão: 5 sujeitos ocupando postos administrativos não diretivos; 5 sujeitos ocupando postos administrativos diretivos; 10 sujeitos envolvidos em atividades operacionais, 5 de nível superior e 5 de nível médio ou básico.

As cinco instituições localizam-se no município do Rio de Janeiro, todas de fácil acesso à população e com história de prestação de assistência anterior à implantação do SUS. A coleta de dados foi realizada através da técnica de evocações livres que busca apreender a percepção da realidade a partir de uma composição semântica preexistente, composição essa normalmente não só concreta, mas também imagética, organizada ao redor de alguns elementos simbólicos simples. Nesse sentido, a aplicação prática do teste consiste em pedir aos sujeitos que associem, livre e rapidamente, a partir da audição, ou visualização, de palavras indutoras (estímulos), outras palavras ou expressões(16).

A evocação livre apresenta-se como técnica importante para coletar os elementos constitutivos do conteúdo de uma representação e ressalta-se que o caráter espontâneo e a dimensão projetiva dessa técnica de coleta de dados permite o acesso de forma mais rápida do que a entrevista, por exemplo, aos elementos que constituem o universo semântico do objeto estudado(16). O termo indutor para a coleta de evocações livres foi a expressão Sistema Único de Saúde (SUS), à qual os sujeitos deveriam associar cinco palavras ou expressões que viessem imediatamente à cabeça.

A análise das evocações livres combina dois aspectos acerca das palavras evocadas, que são a freqüência e a ordem em que foram evocadas, procurando assim criar um conjunto de categorias organizadas em torno desses termos, para confirmar as indicações sobre o seu papel organizador das representações. O cruzamento desses dois critérios produz o quadro de quatro casas ou quadro de quatro divisões(13,16).

Para o tratamento dos dados coletados, foi utilizado o software EVOC (Ensemble de programmes pemettant l'analyse des evoctions), versão 2000, que possibilita efetuar a organização dos termos produzidos em função da hierarquia subjacente à freqüência e à ordem de evocação e favorece a construção do quadro de quatro casas(17).

O produto das evocações foi organizado previamente, conforme já mencionado, constituindo um corpus para análise, sendo preservada a ordem natural das evocações produzidas pelos sujeitos. O material foi, então, tratado pelo software Evoc 2000, que calculou a freqüência simples de cada palavra evocada, as freqüências hierarquizadas de cada palavra e a média das ordens médias de evocação e, ao final, gerou o quadro de quatro casas. No tocante aos aspectos éticos da pesquisa, foram respeitados os princípios da resolução 196/96. Nesse sentido, cada instituição autorizou o desenvolvimento do estudo em seu interior e cada sujeito participante assinou o termo de consentimento livre e esclarecido - TCLE.

RESULTADOS

A análise do corpus, formado pelas evocações de todos os sujeitos, revelou que foram evocadas 444 palavras e a média das ordens médias de evocação foi de 2,7, numa escala de 1 a 5. Considerando que foram desprezadas as evocações cuja freqüência foi igual ou inferior a 8, encontrou-se a freqüência média de evocação igual a 13. A análise combinada desses dados resultou no quadro de quatro casas a seguir.

Considerando as premissas da Teoria do Núcleo Central(13,16-17), as palavras agrupadas no quadrante superior esquerdo são aquelas que tiveram as maiores freqüências e foram mais prontamente evocadas, formando, portanto, o núcleo central da representação. Esses elementos exercem a função de defesa da representação e caracterizam a parte dura da mesma, menos sensível a mudanças em função do contexto externo ou das práticas cotidianas dos sujeitos. As palavras que formam o núcleo central da representação do SUS e revelam posicionamento negativo dos profissionais frente ao sistema de saúde, especialmente no que se refere à qualidade e à funcionalidade do mesmo, representadas como ruim e que não funciona.

Por outro lado, o núcleo central se apresenta mais complexo na medida que dele participam palavras que revelam o reconhecimento dos objetivos preconizados para o SUS, especificados pelos sujeitos como atendimento e condições de saúde; sendo o atendimento o elemento que parece conferir identidade ao sistema.

Ao mesmo tempo, o termo ruim traz agrupado um conjunto de expressões como caos, precário, porcaria, sucateado, não atender bem, carência de atendimento, falta de condições, deixa a desejar e deficitário, por exemplo. A expressão não funciona abrange idéias como não foi para frente, não posso contar com ele, na prática tem falhas, não implantado satisfatoriamente e não está dando certo, dentre outras e condições de saúde abarca idéias como condições de saúde adequadas para a população, não faltar nada, saúde, saúde da pessoa e saúde pública.

Dessa forma, observa-se que o termo ruim é o elemento com maior freqüência e o terceiro menor rang, e parece expressar a forma como os sujeitos representam o SUS em seus aspectos gerais, inferência essa que pode ser reforçada pela expressão não funciona. Parece estabelecer relações, ainda, com a evocação atendimento, reforçando a noção de pouca funcionalidade, má qualidade e estrutura deficitária do Sistema de Saúde.

O contraponto a essa relação entre ruim e atendimento se expressa através da expressão condições de saúde, que parece indicar a importância do SUS para o atendimento à população. A sigla SUS indica uma dimensão imagética dos sujeitos com relação ao sistema público de saúde, uma vez que sua denominação é evocada.

Outro ponto importante a ser destacado nesse quadrante é a relação apontada pelos sujeitos entre sua representação do sistema de saúde e o atendimento recebido. Ou seja, o atendimento parece conferir identidade ao SUS, estabelecendo-se como seu objetivo. Esse termo aponta para a reafirmação do princípio de universalização do atendimento previsto para o SUS na sua Lei Orgânica(1,3).

O fato da centralidade representacional se apresentar como caracteristicamente negativa parece expor as construções mentais dos profissionais acerca do sistema dentro do qual trabalham. A representação mostra-se permeada pelo aspecto prático do sistema, em que a oferta de ações e serviços não têm sido suficientes para suprir as demandas oriundas da população.

De forma paralela, a circulação de informação acerca do sistema de saúde (importante dimensão para a construção das representações sociais), normalmente veiculadas pela mídia (televisiva, impressa e digital), expõe, com preferência, as mazelas do sistema, ainda que algumas conclusões sejam apressadas e superficiais, mas repassadas e apreendidas como verdade. A estrutura representacional sofre a influência dessa situação, sendo fundamental também considerar a importância das deficiências e dificuldades presentes no seio do sistema e que se encontra revelada na representação deste grupo(4,8).

No quadrante superior direito localizam-se as palavras que também tiveram alta freqüência, mas cuja posição média na ordem de evocação não foi suficiente para que integrassem o núcleo central, sendo denominada de primeira periferia. Nesse espaço da representação, observa-se a afirmação de atitude positiva com relação ao SUS, especialmente no que se refere à funcionalidade do mesmo, revelando contradição com os elementos do núcleo central.

A positividade presente na primeira periferia apresenta-se desdobrada na segunda (quadrante inferior direito) e relaciona-se à interface da representação com a realidade. O aspecto positivo dessa parte da estrutura representacional parece indicar as soluções fornecidas pelo sistema aos principais problemas de saúde da população. Nesse sentido, pode-se destacar a possibilidade de acesso às ações e serviços de saúde como direito de cidadania e apreendido simbolicamente como recuperação de facetas importantes da dignidade por parte de parcelas da população, independente de classe social ou de inserção no mercado de trabalho(5).

No quadrante inferior esquerdo ocorre situação inversa, sendo aí situadas as palavras com menores freqüências, mas que foram mais prontamente evocadas. Portanto, em função das freqüências abaixo da média, não estão inseridas no âmbito do núcleo central, sendo denominada de zona de contraste, comportando elementos diferentes do núcleo central e caracterizando variações da representação entre subgrupos(16).

Observa-se, nesse espaço da representação, duas atitudes presentes: uma atitude negativa referida à funcionalidade do sistema (desorganizado e mentira), e uma positiva referida ao atendimento dispensado aos usuários dos serviços (ajuda e facilidade). Ainda, na zona de contraste, pode-se evidenciar a incorporação, pelos profissionais pesquisados, dos princípios de unificação e igualdade previstos para o sistema de saúde brasileiro pela sua Lei Orgânica(4,18).

Dois destaques são importantes nesse quadrante, quais sejam, o primeiro relacionado à presença de elementos negativos que reforçam outras palavras presentes na estrutura nuclear, fornecendo caracterização ainda mais negativa à representação. O segundo, pela apreensão de alguns princípios do sistema de saúde em seus aspectos principais, o que tende a indicar que a construção teórica acerca do SUS está se integrando à estrutura da representação.

Esse fato chama a atenção uma vez que, apesar do desenvolvimento de ações cotidianas por parte dos profissionais em seu interior, a integração do sistema à cartografia mental do grupo não ocorreu de forma plena. Nesse momento, os aspectos negativos, advindos de sua operacionalização, parecem se sobrepor às orientações principais presentes em seu arcabouço teórico e legal, especialmente quando se considera que 15 anos se passaram desde a sua regulamentação e implementação.

Por outro lado, a ampliação da rede básica e os esforços contínuos para a construção de uma rede integrada de atendimento permitiram o aumento da cobertura em saúde da população e a sua aproximação física com os profissionais e as unidades de saúde, ora explicitados pelos elementos positivos da representação social. Cabe destacar, ainda, que a presença da positividade e da negatividade na estrutura da representação não se apresenta como contradição teórica, mas sim como exposição das tensões existentes em seu interior. Essas tensões explicitam, dentre outras coisas, a mútua implicação entre representações e práticas, em que o núcleo central fornece sentido às ações cotidianas e essas, por sua vez, podem influenciar a transformação da representação(16).

As palavras localizadas no quadrante inferior direito são aquelas com menores freqüências de evocação e evocadas mais tardiamente, compondo os elementos da segunda periferia da representação. Nesse espaço da representação do SUS, observa-se atitude positiva frente ao SUS, reconhecendo-o como um direito e necessário, mas, ao mesmo tempo, revela como objetivos o atendimento aos pobres e à doença, negando o caráter de unicidade destacado na zona de contraste, assim como o seu direcionamento para as condições de saúde, revelado no núcleo central. Deve-se considerar, no entanto, que os elementos aí presentes são os mais mutantes da representação, ou seja, oscilam e revelam, mais claramente, as agressões sofridas pela representação em função das práticas desenvolvidas e das variações do contexto externo, o que pode explicar a presença dos termos citados(6-7,16).

Nesse quadrante, os sujeitos destacam tanto as suas questões e demandas como profissionais inseridos no sistema, quanto às questões e demandas da população observadas no seu cotidiano. Assim, o SUS aparece como necessário e direito, conferindo importância ao sistema no contexto da atenção à saúde, especialmente quando ele é também apresentado como atendimento aos pobres. Ao mesmo tempo, desdobra-se, de forma pragmática e concreta em expressões evocadas, como atuação profissional, a parte prática do atendimento localizado no núcleo central, e o atendimento aos pobres, sugerindo o público-alvo desse atendimento. Outra idéia trazida por essa expressão é a de que somente os pobres, que não possuem outra alternativa, aceitam ser atendidos em um sistema ruim e que não funciona(7).

CONCLUSÕES

Considerando que a construção de uma representação implica na incorporação de diversos elementos, tais como conhecimentos relativos aos objetivos do SUS, aos seus princípios e à sua dinâmica interna, mas também implica em se posicionar diante dele, aceitando-o ou não, observa-se que a representação caracterizada revela, através da sua estrutura, um processo representacional em formação, caracterizada por atitudes negativas mais fortemente marcadas e atitudes positivas que começam a ser incorporadas à representação, daí a sua presença na zona de periferia e na zona de contraste e não no núcleo central.

Por outro lado, elementos relativos à incorporação de conhecimento sobre os preceitos do SUS podem também ser observados, tanto em nível central, quanto periférico da representação, confirmando a hipótese lançada de uma representação em formação. Deve-se destacar, ainda, que a presença das noções de não universalidade do SUS e do seu direcionamento à doença reflete parte do pensamento social, que associa políticas públicas à pobreza e à falta de qualidade, noções arcaicas que ainda se manifestam no pensamento profissional.

Os dados observados na análise estrutural da representação não permitem visualizar todas as características do sistema de saúde brasileiro, como os recursos humanos, o financiamento e a participação da população. No entanto, permitem vislumbrar o posicionamento dos sujeitos frente às condições do atendimento à saúde, ao acesso da clientela ao sistema, bem como revelam, pelo grupo estudado, conhecimento fragmentado dos objetivos e princípios que regem o SUS.

Conclui-se que os profissionais apresentam memórias e representações sociais que reconhecem o SUS como sistema diferente do anterior, refletindo conteúdo coerente com os princípios propostos, o que aponta para o progressivo processo de incorporação dos mesmos. No entanto, essa incorporação não vem ocorrendo de forma naturalizada, mas desperta julgamentos por parte dos profissionais de saúde sobre a própria pertinência desses novos princípios da atenção pública à saúde, na realidade brasileira.

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Recebido em: 7.3.2007

Aprovado em: 7.12.2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2008
  • Data do Fascículo
    Fev 2008

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2007
  • Aceito
    07 Dez 2007
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