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Aprendizagem nos espaços informais e ressignificação da existência de graduandos de enfermagem

Resumos

OBJETIVO:

descrever a percepção de docentes e graduandos em enfermagem sobre a experiência dialógica nos espaços informais e sua relação com a formação em saúde.

MÉTODO:

foram colhidas descrições vivenciais, no contexto de uma universidade pública do interior da Bahia, Brasil, por meio de entrevista aberta. Tais descrições foram analisadas segundo os princípios da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty.

RESULTADOS:

os resultados revelaram que os espaços informais contribuem significativamente para a construção de conhecimentos e formação profissional, potencializam o ensino formal e favorecem a ressignificação da experiência dos sujeitos.

CONCLUSÃO:

evidencia-se que há relevância da experiência dialógica para se repensar o processo de ensino-aprendizagem na universidade, a fim de que os espaços informais sejam incluídos e valorizados como produtores de significados para a vida pessoal e acadêmica de discentes e docentes, com capacidade para ressignificar a existência.

Aprendizagem; Educação em Enfermagem; Educação Superior; Filosofia em Enfermagem


OBJECTIVE:

to describe the perception of lecturers and undergraduate nursing students regarding the dialogic experience in the informal spaces and its relationship with training in health.

METHOD:

experiential descriptions were collected in the context of a public university in the non-metropolitan region of the state of Bahia, Brazil, using open interviews. These descriptions were analyzed according to the principles of the phenomenology of Maurice Merleau-Ponty.

RESULTS:

it was revealed that the informal spaces contribute significantly to the construction of knowledge and professional training strengthening teaching and promoting the re-signification of the subjects' experience.

CONCLUSION:

it is evidenced that the dialogic experience has relevancy for rethinking the teaching-learning process in the university, such that the informal spaces should be included and valued as producers of meanings for the personal and academic life of lecturers and students, with the ability to re-signify existence.

Learning; Education, Nursing; Education, Higher; Philosophy, Nursing


OBJETIVO:

describir la percepción de docentes y estudiantes de enfermería sobre la experiencia dialógica en los espacios informales y su relación con la formación en salud.

MÉTODO:

fueron recolectadas descripciones vivenciales, en el contexto de una universidad pública del interior del estado de Bahia, en Brasil, por medio de entrevista abierta. Esas descripciones fueron analizadas según los principios de la fenomenología de Maurice Merleau-Ponty.

RESULTADOS:

revelaron que los espacios informales contribuyen significativamente para la construcción de conocimientos y formación profesional, potencializan la enseñanza formal y favorecen la resignificación de la experiencia de los sujetos.

CONCLUSIÓN:

se evidenció que existe relevancia de la experiencia dialógica para el repensar del proceso enseñanza-aprendizaje en la universidad, con la finalidad de que los espacios informales sean incluidos y valorizados como productores de significados para la vida personal y académica de discentes y docentes, con capacidad de resignificar la existencia.

Aprendizaje; Educación en Enfermería; Educación Superior; Filosofía en Enfermería


Introdução

O estudo emergiu da percepção de que o diálogo nos espaços informais precisa ser reconhecido no contexto universitário como oportunidades de (re)produção de saberes que contribuem para a formação do profissional em saúde, especialmente em enfermagem, tanto no que refere ao desenvolvimento da competência pessoal, no domínio afetivo, da inteligência emocional e das relações intersubjetivas e humanitárias quanto no que refere à competência técnica e profissional, já que favorece a articulação do conhecimento teórico/científico com as vivências cotidianas, com vistas à construção de habilidades para o planejamento e a execução de ações práticas efetivas, conforme as demandas sociais emergentes.

Neste estudo, o espaço informal é compreendido como todos os espaços do contexto universitário, incluindo o campus universitário e seus arredores, em que os educadores e educandos reúnem-se sem a finalidade específica de desenvolver conhecimentos de forma sistemática, por exemplo, cantinas, corredores, pátio, bancos distribuídos pelo campus, escadarias, lanchonetes, padarias, barzinhos próximos ao campus, bem como os espaços reconhecidos como privativos para a educação formal como biblioteca, laboratórios, salas de aula e outros, desde que sejam usados para conversas informais.

A aprendizagem nos espaços informais ultrapassa os limites propostos pela educação formal, tecnicista e instrumentalista e dissociada do contexto sociocultural, e apresenta-se como modalidade de aprendizagem inovadora, que proporciona um instrumental intelectual mais próximo e concreto das práticas sociais, perpassando a ação e a reflexão, na perspectiva da construção da cidadania e criticidade dos sujeitos( 1. Freire P. Pedagogia do oprimido. 42 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005. - 2. Cecchetto F, Monteiro S, Fernandes E. Formação de agentes comunitários em ambiente e saúde na colônia Juliano Moreira: uma abordagem etnográfica. Trab Educ Saúde. 2010; 8(2):267-83. ).

É inadmissível que, na atualidade, o egresso de cursos da área de saúde não seja capaz de desenvolver o cuidado humano de forma contextualizada, diante da complexidade que o engendra, demandando competências e habilidades que promovam a saúde em sua integralidade, que façam ver os problemas e colaborem para a solução e que valorizem a pessoa como cidadã( 3. Woods NN, Mylopoulos M, Brydges R. Informal self-regulated learning on a surgical rotation: uncovering student experiences in context. Adv Health Sci Educ Theory Pract. 2011;16(5):643-53. ).

Nas experiências acadêmicas da autoria deste estudo, o conhecimento compartilhado nos espaços informais contribuiu com o processo de ensino-aprendizagem, principalmente no que refere à adoção de posturas mais críticas e reflexivas, ao desenvolvimento de habilidades comunicacionais e relacionais, vivência interdisciplinar com diversas áreas do conhecimento como educação, filosofia, arte, dentre outras, que podem ser angariadas na formação, na prática profissional, mas, também, na vida pessoal.

A partir dessas vivências, acredita-se, aqui, que as experiências pessoais que envolvem o cotidiano dos acadêmicos precisam ser mais exploradas por discentes e docentes ao longo da formação, a fim de ampliar os cenários educacionais e valorizar a experiência como força motriz e enriquecedora do processo pedagógico na construção do conhecimento.

Nessa perspectiva, definiram-se como objetivos do estudo que fundamentou este artigo a descrição do modo como docentes e discentes, do curso de graduação em enfermagem, percebem a experiência dialógica nos espaços informais no contexto universitário e a relação que estabelecem (se o fazem) com a formação em saúde.

Em sua obra Fenomenologia da percepção, o filósofo Maurice Merleau-Ponty refuta a crença de que há uma subjetividade interior que confere individualidade à pessoa, distinguindo-a das outras. É exatamente essa compreensão que Merleau-Ponty tenta superar, inserindo a teoria da intersubjetividade, segundo a qual a natureza sensível confere ao homem uma generalidade e, por isso, ele é sempre interpessoal, intersubjetivo( 4. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011. 662 p. ).

Nesse sentido, a teoria merleau-pontyana adequa-se perfeitamente à sustentação do presente estudo, pois se trata de descrever a percepção e, para o filósofo, a existência se inscreve na experiência perceptiva, e essa se efetiva por meio do diálogo, o qual é completamente intersubjetivo. Por conseguinte, o conhecimento produzido neste estudo não visa explicar os resultados alcançados, mas descrever as vivências que se mostraram à percepção por meio da intersubjetividade entre pesquisadoras e sujeitos do estudo.

A relevância do estudo consiste, principalmente, em fornecer subsídios teóricos, baseados em experiências de docentes e discentes de enfermagem, para que os sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem de áreas da saúde utilizem as vivências do cotidiano universitário no âmbito dos diálogos informais, a fim de potencializar o plano curricular formal e produzir conhecimentos capazes de transformar a práxis do trabalho em saúde.

Método

Este estudo é de natureza qualitativa e fenomenológica. Participaram da pesquisa quatro docentes e cinco discentes do curso de graduação em enfermagem de uma universidade pública do interior da Bahia, todas do sexo feminino. O processo de obtenção das descrições vivenciais ocorreu no campus universitário, durante um encontro, em momentos distintos para docentes e discentes, tendo em vista agrupar experiências de pessoas que participam do mesmo grupo social.

As discentes foram selecionadas da seguinte forma: apresentação do projeto de pesquisa às turmas de Enfermagem a partir do VI semestre, considerando que, dessa etapa em diante, eles já possuem mais experiência de participação e convívio nos espaços informais no contexto universitário e, com isso, maior condição de descrever a experiência dialógica e relacioná-la à formação acadêmica; convite para participar da pesquisa; sorteio de dez estudantes dentre as que aceitaram o convite, considerando a inclusão do VI ao IX semestres da graduação. As turmas foram informadas de que participariam da pesquisa apenas os cinco primeiros sorteados, a fim de facilitar a entrevista em grupo, garantindo a participação de todos; os demais seriam convidados caso fosse necessário.

Para a seleção dos docentes, utilizaram-se os seguintes critérios: estarem ministrando disciplinas profissionalizantes a partir do VI semestre. Em seguida, realizou-se sorteio de dez docentes, e os cinco primeiros contemplados foram convidados para participar da pesquisa. Na impossibilidade dos primeiros sorteados, foram convidados os subsequentes. Apesar de se ter agendado com cinco docentes, no dia da entrevista compareceram apenas quatro.

Nesse processo, foi utilizada a entrevista aberta em grupo, sendo que se realizou um encontro com cada categoria, separadamente, discentes e docentes. A entrevista fui subsidiada por um roteiro com os seguintes temas norteadores: o que o diálogo nos espaços informais da universidade e seus arredores significa para você? Você acha que as conversas informais nesses espaços contribuem para a formação acadêmica? Se você acredita que as conversas nos espaços informais contribuem para a formação acadêmica, elas são reconhecidas como tal e valorizadas pelos docentes e discentes?

A entrevista em grupo ocorreu de forma processual e intersubjetiva; à medida que as perguntas eram lançadas pela pesquisadora, os participantes respondiam de forma dialógica sem, necessariamente, obedecer uma ordem, considerando que, na intersubjetividade, a fala de um sujeito mobiliza a do outro. O grupo foi mediado por uma das autoras, que intervinha no sentido de aprofundar e esclarecer questões, visando o alcance do objetivo proposto.

Em todas as etapas da pesquisa foram respeitados os preceitos éticos, sendo o projeto aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, sob Protocolo nº008/2011, e os dados foram coletados após o consentimento, por escrito, dos sujeitos. Para manter o sigilo com relação à identidade dos sujeitos, eles escolheram codinomes para os representarem, sendo que os docentes optaram por nomes de flores e os discentes, por personagens de desenho animado.

As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, e a descrição da experiência perceptiva foi realizada por meio da analítica da ambiguidade, técnica desenvolvida para a análise de descrições empíricas que tem como matriz teórica a filosofia da experiência de Maurice Merleau-Ponty. Essa técnica ocorre sob a perspectiva de que, enquanto se está lendo as descrições vivenciais, há o esforço para converter o irrefletido à reflexão e para articular um pensamento a ser objetivado, lançado ao exterior como objeto percebido( 5. Sena ELS, Gonçalves LHT, Granzotto MJM, Carvalho PAL, Reis HFT. Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2010;31(4):769-75. ).

Investida desses pressupostos filosóficos, com base na fenomenologia, diz-se que o pesquisador encontra-se em regime de redução fenomenológica, visto estar convencido de que está diante de teses dogmatizadoras, caracterizadas por convicções de que as coisas e os outros já são em si mesmos, isto é, que já são objetividades a priori. No entanto, ao realizar a leitura exaustiva do material, o pesquisador fica convencido de que, não obstante as ambiguidades serem inúmeras, por se tratar de uma experiência perceptiva, que se insere em um campo fenomenal, efetivam-se objetivações como operações expressivas. Essas consistem em uma transmutação do polo pré-reflexivo ao reflexivo, processo realizado pela fala, utilizando-se de palavras, formas, síntese e um gênero literário, aos quais se juntam o estilo próprio do escritor e os sentimentos que o habitam( 5. Sena ELS, Gonçalves LHT, Granzotto MJM, Carvalho PAL, Reis HFT. Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2010;31(4):769-75. ).

Resultados e Discussão

O ser humano está em constante busca para conferir significados para a vida e ressignificar a existência, tanto pessoal como coletiva, sendo que a principal ferramenta utilizada para alcançar esse objetivo é a construção de conhecimentos. Nesse sentido, a experiência dialógica é imprescindível na relação com o semelhante e na criação de contextos de intersubjetividade - aspectos característicos dos espaços informais -, pois as pessoas se reúnem sem um propósito definido, o diálogo flui de forma espontânea, os pensamentos se vão articulando nas falas e as vivências cotidianas se convertem em significações existenciais.

O depoimento a seguir evidencia o desejo de que o educador aproxime o conhecimento científico da vivência cotidiana, visto que o conhecimento, quanto mais próximo do saber prático e da experiência, tornar-se-á mais lógico e significativo.

[...] o que há de mais importante na formação em saúde, na nossa formação como enfermeiro, é contextualizar o que a gente aprende. [...] não há lugar melhor prá se contextualizar do que na nossa vivência diária, no bate-papo, quando a gente relaciona as nossas experiências. Quando a gente constrói conhecimento no espaço informal, a gente relaciona mais com a nossa realidade, por exemplo, eu tava conversando sobre previdência social no bar. Se fosse um tema que surgisse aqui na sala de aula, ia começar com as legislações, os direitos... Lá começou eu falando de minha família, de como a gente vai ter que conseguir um emprego logo. Meu pai e minha mãe, eles não pagam INSS... aí que entrou o assunto, quer dizer, aí torna essa construção de conhecimento mais pessoal, relaciona mais com a nossa realidade, mais próxima da nossa vivência (Felícia).

A descrição desvela o anseio discente de que o educador aproxime o conhecimento científico da vivência cotidiana, visto que o conhecimento, quanto mais próximo do saber prático e da experiência estiver mais lógico e significativo se tornará. Além disso, a valorização da experiência empírica favorece o desenvolvimento não apenas acadêmico, mas pessoal, o que expande o potencial criativo e intensifica a participação do educando no processo de ensino-aprendizagem, ao perceber que a experiência de vida não está dissociada da formação, mas que tem contribuição significativa( 6. Zhang J, Peterson RF, Ozolins IZ. Student approaches for learning in medicine: what does it tell us about the informal curriculum?. BMC. 2011;21(11):87. ).

Dessa forma, o pensamento freiriano destaca que o papel do educador não é dissertar sobre sua visão de mundo ou tentar impô-la ao educando, mas dialogar com ele sobre os dois pontos de vista, constituídos pela ação dos respectivos atores no mundo( 1. Freire P. Pedagogia do oprimido. 42 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005. ), pois tudo o que se sabe a respeito do mundo, mesmo por ciência, é dado a conhecer a partir de um ponto de vista ou de uma experiência, sem a qual os símbolos científicos não significam nada( 7. Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify; 2012. 192 p. ).

Não se deve, portanto, limitar a aprendizagem apenas ao ato de assimilar conteúdos, mas servir à sua finalidade primordial que é o desenvolvimento integral do ser humano, fenômeno que acontece não só na relação educador/educando, mas nos diversos contextos de intersubjetividade que são estabelecidos, tanto em reflexões monológicas como aquelas resultantes do contato com outras pessoas e, dessa forma, o homem vai aprendendo e reaprendendo na relação.

Semelhantemente, aparece nas falas a importância de não apenas valorizar a experiência de vida, mas, também, valorizar o cotidiano dos serviços de saúde como forma de contribuir para a aprendizagem significativa. Por outro lado, é criticada a excessiva teorização dos conteúdos e a falta de contextualização com a realidade.

É teoria pura e teoria não constrói tanta coisa quanto a gente com a prática, com a nossa vida, na nossa realidade, com as coisas mais reais, mais próximas, é isso que nos ajuda a fazer essa conexão, do que é teórico, daquilo que está posto, que foi colocado, que foi estudado e trazer prá nossa vida. Então eu acho que é um sentido que traz. Traz vida à sua teoria (Docinho).

O aprendizado deixa de ser prazeroso porque a gente chega no serviço e vê que está tudo tão diferente do que a gente aprende. A teoria é uma coisa e na realidade a gente acaba esquecendo a teoria e, já que as práticas são tão rápidas e poucas, a gente tem que aproveitar aquele momento ali prá aprender o que a profissão obriga e pronto. Só dá tempo disso e a gente esquece. Vamos esquecer e vamos lá! Tem coisas que a gente não vê na sala de aula porque é a teoria, algumas vezes existem as discussões, mas os espaços informais vão promover uma condição que a sala de aula não dá e aí é que as pessoas vão se soltar, elas vão se identificar com aquele ambiente ali de alguma forma e vai se sentir mais à vontade prá expor, criticar, a gente aprende a ter senso crítico (Pequeno Príncipe).

Quando os discentes são postos em contato com a prática profissional e a realidade dos serviços, desde o ingresso na faculdade, expandem o ambiente de aprendizado para além da sala de aula, utilizando a realidade como embasamento teórico-conceitual, o que desenvolve uma visão mais concreta da complexidade do sistema de saúde, gestão e organização dos serviços e amplia a abordagem individual para a compreensão das necessidades de grupos populacionais( 8. Paranhos VD, Mendes MMR. Competency-based curriculum and active methodology: perceptions of nursing students. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2010;18(1):109-15. ).

Os espaços nos quais os cursos se propõem a formar enfermeiros precisam ser preenchidos por conhecimentos científicos articulados com o cotidiano do trabalho, a fim de surpreender os aprendizes, mobilizar seu imaginário e produzir ciência sem cair no objetivismo e banalização dos conteúdos científicos e tecnológicos. Com esse entendimento, é possível valorizar a cultura, o saber popular, a experiência e a liberdade de discussão, o que favorece o resgate do prazer de aprender, assim como a responsabilidade social de criação, compartilhamento e divulgação da ciência visando ação consciente e cidadã( 9. Jacobucci DFC. Contribuições dos espaços não-formais de educação para a formação da cultura científica. Rev Em Extensão. 2008;7(1):55-66. ).

Os docentes participantes do estudo destacam os efeitos positivos da participação discente em espaços, para além da sala de aula, na formação acadêmica, por exemplo, em projetos de pesquisa e extensão, que têm por finalidade o pleno desenvolvimento do educando e o seu preparo para o exercício da cidadania, além da qualificação para o trabalho.

Ele [um discente com experiência em projeto de pesquisa] sempre está buscando humanizar o ambiente devido à experiência que tem com esse tipo de paciente [psiquiátrico]. Ele mostra detalhes que o enfermeiro que estava lá não percebeu e ele, com uma semana de estágio, já estava fazendo um diagnóstico situacional e identificando aquilo que realmente é muito grave (Cravo).

Tenho o exemplo de uma discente, minha orientanda da graduação na monografia, [que] foi minha bolsista de pesquisa e está dando continuidade ao mesmo objeto de estudo no mestrado. Na verdade, houve uma sequência, e a gente percebe que houve um crescimento, que existe esse envolvimento e isso fortalece essa formação profissional, enriquece e dá um embasamento maior (Rosa).

Nessa perspectiva, a participação dos educandos em atividades não obrigatórias estimula a busca de informação e o processo de autoaprendizagem, envolvendo situações diversificadas como identificação, análise e resolução de problemas, em distintos cenários, tanto no espaço acadêmico como nos serviços de saúde e comunidade; estimula também a discussão crítica e reflexiva sobre as práticas desenvolvidas visando sua transformação( 1010 . Koltermann AP, Gasparetto A, Vendrusculo AP, Sagrillo MR. Oficina sobre orientações pedagógicas no ensino superior: ação do programa pró-saúde Rev Ciênc Saúde. 2012; 5(1):33-40. ).

As atividades não obrigatórias que incluem ações de pesquisa e extensão também são comumente compartilhadas entre os acadêmicos nos espaços informais, o que possibilita aos discentes que não estão engajados nesses projetos ampliarem seus conhecimentos sobre diversos temas, além de serem despertados e motivados para também se integrarem a tais atividades.

Nos primeiros semestres, acabava uma aula eu ia logo prá casa porque eu achava que ia perder tempo se ficasse conversando aqui na faculdade, que eu não ia estar estudando. Só que, pelo contrário, eu não conhecia ninguém, só o pessoal da minha sala. Hoje eu já conheço mais pessoas e vi que estava perdendo meu tempo em ficar tão restrita aos estudos, porque eu acho que o diálogo permite você saber um curso que vai ter, um evento, um projeto de que você pode participar. Então, pelo contrário, além de você achar que vai perder tempo, não, você vai estar se informando sobre coisas novas, alguma coisa que mudou... (Sininho).

Ao se envolver com essas atividades, os discentes têm a oportunidade de desenvolver novas reflexões que o plano curricular não consegue promover, como desenvolver projetos pessoais e ações diferenciadas das rotineiras, e passam a se empenhar em algo que se aproxima de seus interesses existenciais, bem como vivenciam experiências inovadoras que podem potencializar o currículo formal e fornecer elementos criativos às atividades acadêmicas formais( 3. Woods NN, Mylopoulos M, Brydges R. Informal self-regulated learning on a surgical rotation: uncovering student experiences in context. Adv Health Sci Educ Theory Pract. 2011;16(5):643-53. , 1111 . Seminotti NA, Moraes MLA, Rocha FM. Pequenos grupos informais nas instituições: exercício da cidadania e da dimensão instituinte. Psico-Usf. 2009;14(3):329-40. ).

Os depoimentos revelam que a trajetória acadêmica que inclui as experiências informais no ambiente universitário tem importância fundamental na construção do ser humano, pois extrapola a formação técnica, produz significado e ressignifica a existência de discentes e docentes.

Costumo dizer que eu aproveitei tudo o que a universidade tinha prá me oferecer. Prá mim, esse aqui é um espaço de crescimento pessoal, político, coletivo, visão de coletivo, de trabalho, de relações profissionais. Porque uma monitoria que a gente pega, é uma bolsa que a gente pega, que enfrenta desafios de trabalho com o outro... Tudo isso é crescimento (Felícia).

A gente não para prá pensar que isso [o diálogo nos espaços informais] é tão importante, que vai estar contribuindo tanto prá formar um profissional, que talvez seria um fator imprescindível. Se eu não tivesse tido isso durante a minha formação, se não participasse desses espaços, eu não seria o profissional que vou ser lá na frente, porque muito da experiência, muito daquilo que eu consigo conciliar na minha prática profissional, eu aprendi ali, durante aquela conversa, durante uma experiência (Docinho).

Tive oportunidade de vivenciar situações que foram marcantes em minha vida, e me fizeram refletir o meu jeito de ser enquanto ser humano mesmo. Foi uma das experiências mais gratificantes que eu tive nesses oito anos de universidade como docente. Depois que eu vivenciei isso, com certeza, meu jeito de ser e de encarar não só o aluno, mas a vida, se tornou diferente. Eu sou grata por ter tido a oportunidade, sou grata porque me fez crescer enquanto profissional e enquanto pessoa. E isso não foi um conhecimento formal, foi mesmo nas conversas informais, onde se estabeleceu esse diálogo, e um diálogo de confiabilidade, de confidências até, onde houve um respeito por ele [discente] e por mim, enquanto ser humano (Lírio).

O contexto acadêmico oferece um universo de opções ao discente para que ele tenha desenvolvimento integral, porém, nem todos aproveitam. Embora a experiência educativa na universidade desafie e produza crescimento de forma processual e imperceptível, tal processo não ocorre de maneira linear ou vertical que nos atualiza com o tempo, mas se realiza em um emaranhado de possibilidades a devires inesperados da invenção( 1212 . Ratto CG, Silva SCM. Educar para a "Grande Saúde" - Vida e (trans) formação. Interface (Botucatu). 2011;15:177-84. ).

As oportunidades de aprendizagem e crescimento afetam não apenas os discentes, mas também os docentes, ao estabelecerem relações com os estudantes no cotidiano acadêmico, um fenômeno que Merleau-Ponty definiu como eu posso, a vivência de tornar-se outro sem perder a identidade como pessoa( 4. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011. 662 p. ). Trata-se de um processo de transcendência, que ocorre por meio da intersubjetividade característica da relação dialógica. Os sujeitos envolvidos estabelecem uma relação de cumplicidade, compartilham sentimentos, revelam sua humanidade e tornam-se generalidade intercorporal. Docente e discentes podem unir-se e revelar uma identidade na diferença.

Uma docente destaca a limitação do espaço formal da sala de aula para promover a intersubjetividade, mas entende que o tempo produz amadurecimento para perceber que as experiências de vida possibilitam o aprendizado, e valoriza o ambiente informal como oportunidade de conhecer o outro. Além disso, destacou-se, ainda, que a convivência fortalece as relações sociais e permite a dissolução de preconceitos.

O tempo e a experiência faz com que a gente amadureça e a gente vai aprendendo com cada aluno, cada experiência, com cada grupo que a gente trabalha. Então isso leva a gente a refletir e a ver o quanto é importante esses espaços, porque a gente conhece o outro, já que em sala de aula não dá(Girassol).

Quando iniciava o estágio já rotulava o estudante, esse vai ser bom, esse vai ser ruim! Depois comecei a perceber que tinha que começar a mudar isso desde o primeiro dia, que não poderia trabalhar nessa perspectiva, porque sempre eu conseguia captar, no final do estágio, as potencialidades, as capacidades, e até mesmo comecei a perceber a inserção profissional de vários deles que eu achava que não tinha essa capacidade toda. Então comecei a me aproximar mais, a dialogar mais com eles, a buscar realmente essa confiança, essa amizade. Hoje já não faço mais isso, mudou muito meu jeito de ser. De uns anos prá cá eu consegui realmente ter esse outro olhar (Rosa).

A aproximação e a informação da pessoa com quem se convive é essencial para estabelecer relações sociais de confiança, mesmo aquelas mais formais, como as de trabalho, já que o desconhecimento pode criar falsa expectativa em relação à capacidade do outro, podendo subestimá-lo ou supervalorizá-lo - tendência natural do ser humano de emitir juízo de valor quer seja positivo, quer seja negativo.

Nesse sentido, o resultado da vivência das docentes no contexto da vida foi positiva, pois permitiu que mudassem sua visão de mundo, convertendo o preconceito em potência criativa, e que a experiência com o outro revelasse suas percepções e não permitindo que os conceitos pré-determinados guiassem seu trabalho, maneira de ser e suas relações com os discentes.

A vivência, ao mesmo tempo em que revelou a necessidade de criação de estratégias para mobilizar o potencial que existe em cada discente como ser humano, tornou imperiosa a reconstrução da identidade pessoal e profissional da educadora. O evento foi capaz, segundo o pensamento merleau-pontyano, de dissolver opacidades e solicitar ao corpo a atenção da existência inteira, confirmada inclusive pelos desencontros que fizeram ver a facticidade do homem e do mundo( 7. Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify; 2012. 192 p. ).

Nessa perspectiva, as discentes consideraram ainda que os espaços informais favorecem a comunicação, auxiliam os discentes no enfrentamento dos desafios e mudanças cotidianas, além de serem opção agradável de produção de conhecimento, promotora de saúde e bem-estar.

A gente pode ir prá qualquer lugar desse mundo que a gente vai entender como um processo de adaptação, de uma coisa que a gente aprendeu na universidade, a gente vai poder colocar em prática o conhecimento que a gente absorveu aqui e vamos lá, o que vier é construção, é desafio, um aprendizado! São coisas que a gente vai levar prá toda a vida (Pequeno Príncipe).

Prá mim, a construção da experiência dialógica no contexto universitário e a formação do profissional de saúde nos espaços informais é isso: bem-estar! É saúde, é construção de conhecimento como uma coisa positiva, agradável, gostosa. Na verdade, primeira escolha, porque, muitas vezes, na construção do conhecimento... Por exemplo, a gente escolher vir prá uma faculdade é uma questão de necessidade, de se especializar prá se dar bem profissionalmente. Mas eu entendo essa construção nos espaços informais como uma coisa agradável, como uma coisa que a gente escolhe, não por necessidade, mas por bem-estar mesmo(Felícia).

Tomando como ponto de partida as vivências e práticas dos sujeitos envolvidos é que a aprendizagem informal vem ganhando território nas discussões pedagógicas, e as repercussões estão sendo paulatinamente ampliadas, contribuindo para a construção de pontes entre o saber popular e o científico na experiência universitária, o que caracteriza um processo de formação para além de um aprendizado técnico, mas uma formação para a vida, na qual os egressos sentem-se mais seguros para enfrentar os desafios futuros( 3. Woods NN, Mylopoulos M, Brydges R. Informal self-regulated learning on a surgical rotation: uncovering student experiences in context. Adv Health Sci Educ Theory Pract. 2011;16(5):643-53. , 6. Zhang J, Peterson RF, Ozolins IZ. Student approaches for learning in medicine: what does it tell us about the informal curriculum?. BMC. 2011;21(11):87. ).

Sendo assim, os espaços informais, no contexto da formação em saúde, podem constituir-se em recurso de grande potencial para uma formação mais ampla, produtora de ações e interações que dimensionam o elo entre o teórico e o vivencial, aproximando o mundo do trabalho do mundo da vida.

A formação mais ampla deve agregar outras modalidades de saberes nos domínios da ética, da estética, da afetividade, da hospitalidade e da convivência. Sendo assim, a intercessão do ensino formal - contrato didático de conteúdos e comportamentos - com o informal - características subjetivas e estruturais do ambiente de aula e arredores que contribuem ou influenciam o processo de educação/socialização, tornando evidente a coexistência de aprendizagem colateral ao currículo explícito formalmente( 1313 . Mathias AC. Currículo oculto X currículo formal: práxis pedagógica e a formação do educador. EFDeportes.com - Revista Digital (Buenos Aires) [Internet]. 2011. [acesso 7 jun 2012]; 16(161):1. Disponível em: http://www.efdeportes.com/efd161/curriculo-oculto-x-curriculo-formal.htm.
http://www.efdeportes.com/efd161/curricu...
) - possibilitará a formação integral e mais humanista, já que favorece a construção da identidade profissional e existencial( 1414 . Spadini LS, Souza MCBM. O preparo de enfermeiros que atuam em grupos na área de saúde mental e psiquiatria. Esc Anna Nery. 2010;14(2):355-60. ).

Diante disso, as descrições vivenciais das discentes fizeram crer que os conhecimentos teóricos e práticos necessários à formação do enfermeiro extrapolam os currículos formais de graduação, de pós-graduação, de educação permanente em serviço e outros que proporcionam saberes e habilidades técnicas para lidar com as diversas situações no campo da saúde. Dessa forma, a construção da carreira deve entrelaçar-se ao crescimento dos sujeitos, já que pessoas mais abertas à aprendizagem na vida tendem a desenvolver trabalhos significativos, aliando realização profissional à satisfação pessoal.

Conclusão

Os resultados desvelam que os espaços informais são percebidos como promotores de conhecimento significativo que potencializa o ensino formal e favorece a ressignificação da experiência dos sujeitos em percurso de vida, aprendizagem e trabalho. Desse modo, contribuem para a formação do enfermeiro, mas também das demais profissões de saúde, na medida em que produzem a intersubjetividade, agregam saberes e virtudes, proporcionando uma construção profissional mais ampla, já que o aprendizado encontra-se entrelaçado às experiências de vida dos sujeitos.

Porém, para que sejam proveitosamente utilizados, torna-se necessário que a academia reconheça o potencial dos espaços informais e incentive os educandos a estabelecerem relações dialógicas em contextos de intersubjetividade durante sua formação. Sendo assim, o estudo mostra-se relevante para se repensar o processo de ensino-aprendizagem na universidade, a fim de que os espaços informais sejam incluídos e valorizados como produtores de significados para a vida pessoal e acadêmica de discentes e docentes, com capacidade para ressignificar a existência.

O olhar fenomenológico para os espaços informais no contexto da formação do enfermeiro fez ver que a produção de conhecimento e aprendizagem nesses espaços extrapola o estabelecido nos planos curriculares de graduação, pós-graduação e educação em serviço - cujo foco é o aspecto técnico-científico - uma vez que agregam outras competências e virtudes essenciais para o cuidado de si e do outro, a exemplo da generosidade, do respeito e da tolerância, as quais conduzem à ressignificação da existência.

References

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    Freire P. Pedagogia do oprimido. 42 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2014

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2013
  • Aceito
    17 Jun 2014
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