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Qualidade de vida de pacientes com doenças auto-imunes submetidos ao transplante de medula óssea: um estudo longitudinal

Resumos

O objetivo deste estudo foi avaliar a qualidade de vida de pacientes com doenças auto-imunes (DAI), submetidos ao Transplante de Medula Óssea (TMO), em dois momentos distintos: na admissão do paciente e por ocasião da alta hospitalar (30 dias após o transplante). Foram selecionados pacientes atendidos na unidade de TMO, maiores de 18 anos, que apresentaram condições e disponibilidade para colaborar voluntariamente. Para a coleta de dados utilizou-se roteiro de entrevista semi-estruturada e o Questionário de Avaliação de Qualidade de Vida - SF-36. A amostra foi composta por 19 pacientes atendidos em um hospital-escola do interior do Estado de São Paulo, Brasil. Os dados obtidos sugerem depreciação da qualidade de vida desses pacientes antes da realização do transplante, acompanhada da progressão de suas enfermidades. Imediatamente após o transplante já se percebe melhora da capacidade para realizar atividades do cotidiano e a possibilidade renovada de traçar planos futuros.

qualidade de vida; transplante de medula óssea; doenças auto-imunes; transplante de célula-tronco hematopoéticas


This study aimed to assess the quality of life of patients with autoimmune diseases (AID) submitted to Bone Marrow Transplantation (BMT) at two different moments: when the patient is admitted at the hospital and at the moment of hospital discharge (30 days after the transplantation). Patients who attended the BMT unit, were older than 18 years, with conditions and availability to voluntarily collaborate to the study were selected. Data were collected through a semi-structured interview and the Medical Outcomes Study 36-Item Short-Form Health Survey (SF-36). The sample consisted of 19 patients attended at a university hospital in the interior of São Paulo State, Brazil. The collected data suggest these patients' quality of life is reduced before the realization of the transplantation, followed by a progression in their diseases. Immediately after the transplantation, an improved capacity to perform daily activities is observed, as well as a renewed possibility of making future plans.

quality of life; bone marrow transplantation; autoimmune diseases; hematopoietic stem cell transplantation


El objetivo de este estudio fue evaluar la calidad de vida de pacientes con enfermedades auto-inmunes (EAI), sometidos al Transplante de Médula Ósea (TMO), en dos momentos distintos: en la admisión del paciente y durante la ocasión del alta hospitalaria (30 días después del transplante). Fueron seleccionados pacientes atendidos en la unidad de TMO, mayores de 18 años, que presentaron condiciones y disponibilidad para colaborar voluntariamente. Para recolectar los datos se utilizó un cuestionario de entrevista semi-estructurado y el Cuestionario de Evaluación de Calidad de Vida - SF-36. La muestra fue compuesta por 19 pacientes atendidos en un hospital-escuela del interior del Estado de San Pablo, Brasil. Los datos obtenidos sugieren depreciación en la calidad de vida de esos pacientes antes de la realización del transplante, acompañada de la progresión de sus enfermedades. Inmediatamente después del transplante ya se observa una percepción de mejoría en la capacidad de realizar actividades del cotidiano y la posibilidad renovada de trazar planos futuros.

calidad de vida; trasplante de médula ósea; enfermedades autoinmunes; trasplante de células madre hematopoyéticas


ARTIGO ORIGINAL

Qualidade de vida de pacientes com doenças auto-imunes submetidos ao transplante de medula óssea: um estudo longitudinal

Fabio Augusto Bronzi GuimarãesI; Manoel Antônio dos SantosII; Érika Arantes de OliveiraIII

IPsicólogo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Brasil, e-mail: fabio_bronzi@yahoo.com.br

IIPsicólogo, Docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Brasil, e-mail: masantos@fflcrp.usp.br

IIIPsicóloga, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Brasil, e-mail: erikaao@ffclrp.usp.br

RESUMO

O objetivo deste estudo foi avaliar a qualidade de vida de pacientes com doenças auto-imunes (DAI), submetidos ao Transplante de Medula Óssea (TMO), em dois momentos distintos: na admissão do paciente e por ocasião da alta hospitalar (30 dias após o transplante). Foram selecionados pacientes atendidos na unidade de TMO, maiores de 18 anos, que apresentaram condições e disponibilidade para colaborar voluntariamente. Para a coleta de dados utilizou-se roteiro de entrevista semi-estruturada e o Questionário de Avaliação de Qualidade de Vida - SF-36. A amostra foi composta por 19 pacientes atendidos em um hospital-escola do interior do Estado de São Paulo, Brasil. Os dados obtidos sugerem depreciação da qualidade de vida desses pacientes antes da realização do transplante, acompanhada da progressão de suas enfermidades. Imediatamente após o transplante já se percebe melhora da capacidade para realizar atividades do cotidiano e a possibilidade renovada de traçar planos futuros.

Descritores: qualidade de vida; transplante de medula óssea; doenças auto-imunes; transplante de célula-tronco hematopoéticas

INTRODUÇÃO

As doenças auto-imunes (DAI) constituem um grupo heterogêneo de afecções com apresentação e gravidade variáveis, tratadas com drogas antiinflamatórias, imunossupressoras e imunomoduladoras, com resultados satisfatórios na maioria dos pacientes(1). No entanto, os avanços na terapêutica farmacobiológica das DAI não impediram que uma subpopulação de pacientes com formas progressivas dessas doenças tivesse um mau prognóstico. A baixa qualidade e expectativa de vida desses pacientes justifica o emprego de terapias agressivas como a quimioterapia em altas doses, com ou sem transplante de medula óssea (TMO)(2).

O TMO autólogo apresenta-se nesse cenário como possível tratamento para doenças como a esclerose múltipla(3-4), lupus eritematoso sistêmico(5) e diabetes mellitus tipo 1(6).

Não obstante, cumpre assinalar que o TMO não se afigura como um método plenamente resolutivo. Trata-se de um procedimento agressivo, que pode tanto recuperar a vida do paciente quanto conduzi-lo ao óbito. Esse paradoxo ocorre basicamente porque a imunossupressão induzida pelo regime de condicionamento pré-TMO torna o paciente temporariamente vulnerável a complicações que acarretam riscos não apenas à sua integridade física, mas também à sua própria vida(7).

Em decorrência desses fatores, a qualidade de vida (QV) mostra-se um critério importante na avaliação da efetividade de determinadas intervenções na área da saúde. Nesse estudo utilizamos o conceito de qualidade de vida relacionada à saúde, que é a percepção que a pessoa tem de sua saúde mediante avaliação subjetiva de seu estado de saúde e dos tratamentos a que é submetida. Para analisar o impacto das doenças crônicas no cotidiano das pessoas, bem como das intervenções, é necessário avaliar indicadores de funcionamento físico, aspectos sociais, estado emocional e mental, da repercussão dos sintomas e da percepção individual de bem-estar(8).

OBJETIVO

O objetivo desse estudo foi avaliar a qualidade de vida relacionada à saúde de portadores de doenças auto-imunes que foram submetidos ao TMO, em dois momentos distintos: na admissão do paciente e por ocasião da alta hospitalar (cerca de 30 dias após a infusão da medula). Nessa avaliação buscou-se: 1) compreender o significado da qualidade de vida para os pacientes com DAIs através de entrevistas semi-estruturadas (abordagem qualitativa); 2) avaliar a qualidade de vida relacionada à saúde (por meio do SF-36), 3) estabelecer ligações entre os dados obtidos por meio dos instrumentos utilizados.

JUSTIFICATIVA

Nas últimas décadas a literatura científica tem dedicado atenção aos aspectos da qualidade de vida relacionada à saúde em indivíduos portadores de condições crônicas de saúde.

Por se tratar de uma terapêutica inovadora no tratamento das DAI, urge a necessidade de estudos no intuito de avaliar não apenas a efetividade da técnica, mas também o seu impacto causado na vida dos pacientes. A maioria dos estudos tem objetivado apenas o enfoque clínico e por isso nota-se a importância também da avaliação dos aspectos emocionais e psicossociais que envolvem essa terapêutica no tratamento de uma doença auto-imune.

Em especial, a qualidade de vida relacionada à saúde, se adequadamente mensurada, possibilita avaliar o efeito das intervenções terapêuticas, permitindo o repensar de algumas modalidades, tendo-se em vista os seus efeitos a médio e longo prazo na vida do paciente(9).

Esse estudo se insere no cenário em que o Brasil desponta como pioneiro na aplicação do TMO em algumas dessas enfermidades e focaliza os resultados obtidos na UTMO do HCFMRP - único serviço público de saúde que tem realizado essa terapêutica no país.

MÉTODO

O método quantitativo evidencia-se por formular hipóteses prévias e técnicas de verificação sistemática, na busca de explicações causais para os fenômenos estudados(10). Esse método tenta conhecer e controlar variáveis, eliminando os fatores de confusão. Preocupa-se com a validade e a confiabilidade, a fim de produzir generalizações teóricas. No contexto da saúde esse modelo é freqüentemente relacionado às pesquisas epidemiológicas, deixando para as disciplinas da área de humanas as preocupações com os fatores subjetivos implícitos(11).

No contexto da metodologia qualitativa aplicada à saúde, emprega-se a concepção trazida das ciências humanas, segundo as quais não se busca estudar o fenômeno em si, mas entender seu significado individual ou coletivo para a vida das pessoas. Assim, torna-se indispensável saber o que os fenômenos da doença e da vida em geral representam para elas(12).

A opção metodológica desse estudo procurou integrar as vantagens do método quantitativo com as do qualitativo. Essa integração se deu através da triangulação dos dados, ou seja, buscou-se articular teorias e técnicas, bem como estabelecer ligações entre os dados obtidos por meio dos instrumentos utilizados(10).

O projeto foi aprovado pela coordenação do serviço e pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da FMRP-USP (processo HCRP nº 9613/2003).

A amostra foi composta por 19 pacientes com enfermidades auto-imunes, de ambos os sexos, submetidos ao TMO na UTMO do HC-FMRP-USP. Foram incluídos todos os pacientes que preencheram os critérios de inclusão e que passaram pela Unidade no período de dezembro de 2003 a dezembro de 2005. Os critérios de seleção foram: ter diagnóstico de DAI; possuir idade mínima de 18 anos; estar em atendimento no ambulatório pré e pós-TMO da UTMO no período delimitado pela avaliação; apresentar condições e disponibilidade para colaborar voluntariamente com a pesquisa e estar preservado do ponto de vista das habilidades cognitivas e de outras funções psíquicas básicas.

A Tabela 1 apresenta uma caracterização dos pacientes que participaram da investigação segundo o perfil sociodemográfico.

Observa-se, na Tabela 1, que dentre os 19 participantes, 11 eram do sexo feminino. A média de idade da amostra foi de 39,7 anos (dp= 9,04), com amplitude de variação de 26 a 54 anos. Os pacientes eram, em sua maioria, casados e desempenhavam atividades profissionais remuneradas, que variavam quanto ao grau de qualificação e instrução exigido, sendo que 10 participantes possuíam nível universitário. Observa-se também que a doença de base predominante nessa amostra era a Esclerose Múltipla (13 pacientes) e o tempo de diagnóstico variou de 3 meses a 13 anos (X=7,3 anos; dp=3,2). Nesse estudo todos os participantes foram referidos com nomes fictícios.

A UTMO - HC-FMRP-USP foi criada em 1992. É uma unidade constituída por sete leitos e que conta com uma equipe multiprofissional composta por médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, assistente social, fisioterapeuta, nutricionista, psicólogo, terapeuta ocupacional e cirurgião dentista. O TMO em DAI iniciou suas atividades em junho de 2001, sendo realizados, em média, dois transplantes ao mês.

A participação do paciente na pesquisa foi voluntária e não houve recusa. Cinco participantes foram a óbito em um período de 7 a 15 dias decorridos do transplante.

Instrumentos

Questionário Genérico de Avaliação de Qualidade de Vida Relacionada à Saúde (SF- 36)

O SF-36 é um instrumento de avaliação genérica do estado de saúde percebido ou, mais recentemente chamado de qualidade de vida relacionada à saúde, multidimensional, originalmente criado na língua inglesa(13), traduzido e validado para o Brasil(8), de fácil administração e compreensão. É constituído por 36 itens, que avaliam dois componentes: o componente de saúde física (CSF) e o componente de saúde mental (CSM). O CSF apresenta as seguintes dimensões: capacidade funcional (avalia tanto a presença, quanto as limitações relacionadas às atividades físicas); aspectos físicos (avalia as limitações físicas e quanto essas dificultam a realização de trabalho e de atividades diárias); dor (avalia a extensão e interferência das dores físicas nas atividades de vida diária); estado geral de saúde (trata-se da percepção subjetiva do estado geral de saúde). O CSM é constituído das seguintes dimensões: aspectos sociais (avalia a freqüência da interferência nas atividades sociais devido a problemas físicos ou emocionais); vitalidade (avalia os sentimentos de cansaço e exaustão e sua persistência durante o tempo); aspectos emocionais (avalia as limitações como: para trabalhar ou realizar outras atividades devido a problemas emocionais); saúde mental (avalia os sentimentos de ansiedade, depressão, alteração do comportamento, descontrole emocional e sua persistência durante o tempo). Os resultados de cada dimensão variam de 0 a 100, no qual zero corresponde ao pior estado de saúde e 100 ao melhor estado de saúde(8,13).

Entrevistas semi-estruturadas

Foi utilizada entrevista semi-estruturada, elaborada a partir da experiência prática dos autores, com a finalidade de caracterizar os sujeitos quanto à idade, estado civil, escolaridade, ocupação e tempo de diagnóstico e identificar as mudanças físicas, corporais, bem como as mudanças nos relacionamentos sociais após o surgimento de uma doença auto-imune na vida da pessoa. Essa identificação é importante pois o SF-36 não permite especificar essas mudanças. Além disso, a entrevista permitiu conhecer as expectativas com relação ao TMO, as dificuldades esperadas (pré-TMO) e realmente encontradas (pós-TMO), assim como as expectativas e projetos futuros desses pacientes.

Coleta de dados

Na etapa pré-TMO os instrumentos foram aplicados no momento da internação, na própria enfermaria da UTMO. Os dados do pós-TMO foram coletados nos retornos ambulatoriais, cerca de 30 dias após o transplante, no Ambulatório da UTMO ou na casa do GATMO (Grupo de Apoio ao Transplantado de Medula Óssea).

As entrevistas foram audiogravadas mediante consentimento. Foi seguido um roteiro semi-estruturado previamente estabelecido, aplicado individualmente, em situação face-a-face.

Análise dos dados

As entrevistas foram transcritas na íntegra e, em sua análise, foi utilizada uma abordagem qualitativa, visando identificar as concepções, crenças, valores, motivações e atitudes em relação ao convívio com a doença e ao transplante. Foi utilizado como método a análise de conteúdo temática, que consiste de: pré-análise (organização do material e sistematização das idéias); descrição analítica (categorização dos dados em unidades de registros) e interpretação referencial (tratamento dos dados e interpretações com base na literatura da área)(14). A análise dos resultados do SF-36 seguiu as instruções da literatura(8). Depois de cotados, os dados obtidos por meio dessa escala foram submetidos a uma análise estatística. Foi adotado como nível de significância p£0,05. Inicialmente foi verificado se as diferenças entre os momentos (pré-TMO e pós-TMO) apresentavam distribuição normal, por meio do teste de Kolmogorov-Smirnov. Não rejeitada a hipótese de normalidade, compararam-se os dois momentos, com a finalidade de detectar diferenças significativas entre os dados obtidos, mediante o teste não paramétrico de Wilcoxon para amostras pareadas.

RESULTADOS

Foram comparados os resultados dos 14 sujeitos avaliados nas etapas pré e pós-TMO. Os resultados dos demais sujeitos, que foram a óbito, foram excluídos da análise, uma vez que o intuito do trabalho era comparar os resultados obtidos nos dois momentos do tratamento.

Qualidade de vida relacionada à saúde

As médias dos resultados da escala SF-36 na avaliação das etapas pré e pós-transplante aparecem sistematizadas na Tabela 2.

De acordo com a análise estatística não houve alteração significativa em nenhum dos componentes de qualidade de vida avaliados por esse instrumento. Por outro lado, no componente Capacidade Funcional, o nível de significância é próximo do adotado (p£0,05), o que demonstra uma tendência dos valores do Pós-TMO serem significativamente superiores aos valores do Pré-TMO.

Entrevista Pré-TMO

A análise das entrevistas permitiu não só o conhecimento de aspectos da história de vida desses pacientes, mas também constatar as dificuldades que eles enfrentam ao longo de tantos anos de convívio com enfermidades crônicas e de curso progressivo e incapacitante.

As entrevistas realizadas na etapa pré-transplante possibilitaram obtenção de dados da história de vida dos participantes, convívio com a doença e expectativas quanto ao TMO.

Longo convívio com a doença e dependência dos serviços de saúde: Dentre os 14 pacientes sobreviventes, 12 chegaram ao transplante já diagnosticados há bastante tempo. Haviam passado por diversos tratamentos, empreendendo uma longa peregrinação pelos serviços de saúde. Em alguns casos, as terapêuticas serviram como paliativos durante certo tempo; em outros, nenhum tratamento surtiu o efeito desejado. Notou-se que esses pacientes, invariavelmente, chegavam ao transplante referindo cansaço após sucessivas tentativas mal-sucedidas de tratamento: A decisão foi de eu testar todos os imunossupressores e não fazerem efeito mais. Eu ter dor o tempo todo, nunca acordar, abrir os olhos numa manhã sem uma dor. Então a dor, assim, minha companheira constante? Não! Eu penso assim, é um tratamento agressivo? É! Infelizmente também pra células boas. Mas a doença é muita agressiva, então com ela nós vamos ter que usar a artilharia pesada. (Neiva, 41)

Limitações do cotidiano e mudança de vida: Para esses pacientes a doença é fator desencadeador de diversas modificações em suas vidas. Surgem, então, as dificuldades de desempenhar atividades de vida diária. As limitações decorrentes das perdas progressivas de habilidades levam ao afastamento da atividade profissional por não serem mais capazes de exercê-las, ou ainda à aposentadoria precoce. Do ponto de vista psicológico, há uma escalada gradual do desânimo e dos sentimentos negativos em função da frustração, intensificada pela dependência de outras pessoas no auxílio das atividades do cotidiano. Por outro lado, em alguns casos a doença aparece como oportunidade de reflexão sobre o viver, levando a uma reavaliação de crenças e valores e à percepção mais apurada de sua condição humana: Me ajudou a encará a vida com muito mais facilidade, com muito menos medo. Eu tinha medo de tudo. Hoje eu sou segura. Eu era uma pessoa que não ia ali porque eu podia passá mal, eu podia tropeçá. Agora, eu tenho minhas dificuldades, então tenho que me adaptá pra resolvê melhor os meus problemas. (Soraya, 43)

Na análise das entrevistas, merecem destaque também algumas falas referentes às mudanças ocorridas. Todos os pacientes demonstraram ter vivenciado profundas mudanças na organização do cotidiano com o agravamento gradual da enfermidade. Hoje, por causa dessa parte física, eu tenho uma dependência muito grande de tudo, né? De pequenas coisas, como pegá uma copo d'água, dependência de grandes coisas como ajudá no banho, tá? Então, eu me vejo às vezes realmente mais irritado, mais ansioso, mais chato, mais impertinente, justamente por não poder tá fazendo isso sozinho. (Álvaro, 50)

De fato, as mudanças mais notadas são as físicas e corporais. Entretanto, as percepções de mudanças, por vezes sutis, no jeito de ser e de se relacionar consigo mesmo, com o mundo e as pessoas, assim como no modo de lidar com os problemas, também apareceram de forma recorrente nas falas: Eu tô aprendendo a lidá com as minhas limitações. Cada dia eu tenho que aprendê um pouquinho, porque cada dia evolui um pouquinho a doença. Que nem eu te falei anteriormente, dirigir era uma coisa automática e que não faço mais há mais de dois anos, então eu vou me adaptando, né? (Roberval, 54)

Reorganização familiar: No que diz respeito às possíveis mudanças percebidas na interação com familiares e amigos, três aspectos diferentes podem ser destacados, a saber:

- A percepção de que a família se uniu após o surgimento da doença: A família começou a se unir um pouco mais. Começou a ficá mais atenta às minhas coisas. Dessa forma até eu acho... bom, benéfico, porque é uma coisa que... se não fosse a doença, talvez eu tivesse que chamá a atenção por algum motivo. (Álvaro, 50)

- A percepção de que os amigos se distanciaram: Muitas pessoas se afastaram de mim. No início isso me doía e eu chorava. É que eu convivia com muita gente quando eu piorei. Eu achava assim: Nossa! Agora que eu não vou poder mais trabalhar, as pessoas vão me ver, vão ligar pra saber de mim. E isso não aconteceu, então, no início, isso me chocou muito. Depois eu entendi que, cada um reage de uma maneira e quem acabou ficando do meu lado foram as pessoas com quem eu tinha realmente mais afinidade. (Neiva, 41)

- A percepção de que o próprio paciente se distanciou dos familiares e amigos: Eu fico mais recolhida, não quero me chegá muito nas pessoas, achando que vão ficá com preconceito, sei lá. Fugi, mas é tudo da minha cabeça. (Lícia, 32)

Reconfiguração do projeto de vida: É nesse contexto de perdas acumuladas que os pacientes vêem no transplante de células-tronco a expectativa de poderem reconquistar a vida que desfrutavam antes do surgimento da doença e retomar os planos e projetos de vida que ficaram pelo caminho. Embora muitos desses pacientes demonstrem conhecimento de que o procedimento não é uma promessa de cura, mas uma tentativa de interrupção do curso progressivo da doença, e afirmem que ficarão satisfeitos se puderem alcançar esse objetivo, fica implícita e algumas vezes explícita nos seus discursos a esperança de que esse tratamento inovador possa ser a solução definitiva para seus problemas: Quero ter um vida nova! Uma qualidade de vida melhor! Se meu cabelo vai voltar a crescê ou não, aí é o destino que vai dizer. Se eu vou ficar barrigudo ou não, é o tempo que vai dizer, mas eu sei dizer uma coisa pra você, serei feliz ao lado da minha família. Eu acho que é o mínimo que você possa fazer. O resto é resto! (Saulo, 38)

Entrevista Pós-TMO

Redimensionamento das expectativas: A análise das entrevistas do momento pós-transplante apontam para um envolvimento intenso dos pacientes no redimensionamento das suas próprias expectativas com relação ao resultado do procedimento. Nesse sentindo, alguns demonstram uma percepção de melhora, outros se mostram frustrados diante da manutenção do estado físico anterior: 1a) Eu tenho notado aqui nas pernas... Antes eu não tinha força, eu caía. Agora, eu consigo ficar em pé! E a coluna também, a tendência era dobrá e agora não. Só quando tô muito cansada ou tá muito quente. (Soraya, 43); 1b) Tá difícil de ver melhora, né? Porque eu tenho sentido muita dor nas pernas, mas... É um tratamento que eu achei que não fosse tão longo, né? Eu não me programei pra isso. (Silvana, 42)

Permanência das limitações: Foi muito destacada não somente nas entrevistas pós-TMO, como também nas entrevistas do momento anterior ao transplante, a dependência de outras pessoas para realização de atividades simples do cotidiano. Esse foi um dos fatores inconvenientes mais apontados pelos participantes do estudo, que continua limitando suas vidas no pós-TMO: O que mais me incomoda é a possibilidade de dá trabalho pros outros. Isso me incomoda muito. E as pessoas ficarem presas no meu problema. Isso me deixa muito chateado. (Roberval, 54)

Desenhando o futuro: Em relação às expectativas quanto ao futuro, todos os pacientes demonstraram esperar melhoras. Na verdade, ficou claro que o desejo acalentado era de que o tratamento pudesse realmente curá-los e permitir-lhes retomarem suas vidas no ponto em que foi interrompida: Eu não sou uma pessoa que quero ficá só numa cama, esperando gente pôr comida na minha boca... não que eu vá tentá me matar por causa disso, mas eu acho que eu tenho potencial pra fazê muita coisa, então... achava que não fazia mal perdê os movimentos, mas a cabeça tava boa. Agora a cabeça começou a falhá, então vamo começá a fazê movimento porque não tá dando muito certo (riso ansioso). (Silvana, 42)

DISCUSSÃO

De forma geral, um olhar retrospectivo sugere uma depreciação contínua e constante na qualidade de vida desses pacientes, com o curso insidioso da enfermidade. Nesse cenário devastador, o transplante apresentou-se como uma possibilidade heróica para que pudessem retomar não apenas os movimentos, mas a vida normal que haviam perdido para a doença.

Em resumo, no pós-TMO imediato, apesar do alívio da saída da enfermaria e, portanto, do ambiente hospitalar, a qualidade de vida parece continuar prejudicada em diversos aspectos.

Na avaliação com o SF-36, os dados sugerem uma percepção de melhora dos pacientes após o procedimento, com relação à capacidade de realizarem as atividades do cotidiano.

Mediante a análise dos dados das entrevistas pôde-se perceber que os pacientes, antes de serem acometidos pela doença, apresentavam boa adaptação psicossocial, desfrutavam de uma vida produtiva e desempenhavam satisfatoriamente seus papéis sociais, atividades profissionais e de vida diária. Tratam-se, em sua maioria, de pessoas com nível cultural e econômico no mínimo médio, o que demonstra, do ponto de vista evolutivo, que puderam desenvolver sua capacidade de autonomia, tomada de decisões e execução de tarefas conforme o esperado para pessoas adultas. Nesse contexto, a perda da condição de saúde desencadeou prejuízos na capacidade adaptativa e de organização do cotidiano, acrescidos de um desarranjo na rede social de apoio, mobilizando sentimentos de decepção, raiva, negação e frustração, o que coloca essas pessoas frente a frente com a própria impotência diante de eventos adversos sobre os quais não têm domínio. A despeito das marcantes dificuldades acarretadas pela doença, demonstravam habilidade de superação dos desafios, preocupações comuns do dia-a-dia e preservação do envolvimento afetivo com familiares e amigos.

O surgimento da doença implicou um cortejo bastante amplo de sintomas que se agravaram progressivamente. Pôde-se perceber que as principais queixas relacionam-se à perda da capacidade funcional, impossibilitando-os de continuarem a exercer suas rotinas com o mesmo empenho e dedicação a que estavam habituados. Nesse sentido, destaca-se a percepção de dificuldades e limitações na realização de atividades simples do dia-a-dia, a impossibilidade de continuarem exercendo a atividade profissional regular, a exposição a dores contínuas e as mudanças percebidas nos relacionamentos interpessoais.

Por outro lado, notou-se a abertura de novas possibilidades, como a de refletirem sobre o sentido de suas vidas, valores, crenças e projetos. Assim, constatou-se que o diagnóstico de uma enfermidade auto-imune, apesar da esperança de cura expressa por alguns pacientes, interfere substancialmente na qualidade de vida que, no presente estudo, aparece prejudicada, principalmente nos componentes capacidade funcional e aspectos físicos. Diferentemente do apontado na literatura(15), no presente estudo notou-se que os pacientes mostraram-se bastante determinados quanto à realização do transplante, caracterizando-o sempre como um tratamento-salvador e desconsiderando a possibilidade igualmente provável de tratamento-ameaçador. Isso pode decorrer do fato de que esses pacientes já conviviam há muito tempo com suas doenças, tendo sofrido um rebaixamento acentuado na qualidade de vida em conseqüência da progressão dessas enfermidades, além de terem tentado diversos tratamentos sem obterem um resultado satisfatório. E, principalmente, do fato de se sentirem nos limites de suas forças, próximos à exaustão física e psíquica, o que os leva a revelarem que estão muito "cansados" de se sentirem tão limitados em seu viver.

O transplante, portanto, aparece como uma possibilidade redentora, uma esperança de cura e de retomada dessa qualidade de vida tão comprometida, corroborando os achados de alguns autores(16), que pontuam que essa expectativa impulsiona a resolução pelo TMO.

No momento de saída da enfermaria, após o transplante, os pacientes retomam índices de qualidade de vida muito próximos aos apresentados na etapa anterior, não ocorrendo diferença estatisticamente significante entre essas duas fases do procedimento. Esse resultado, em si mesmo, pode ser visto como positivo, se considerarmos as tremendas conseqüências do TMO. Já os dados obtidos com as análises das entrevistas apontam para a percepção de melhora dos aspectos físicos e da capacidade funcional logo após a alta hospitalar. A maior parte dos pacientes demonstrou uma retomada na disposição de realizar atividades do seu cotidiano, mesmo diante da contra-indicação médica, o que indica melhora no estado emocional. Assim, apesar do sentimento de impotência e frustração presente no portador de uma doença auto-imune, a possibilidade desse paciente se sentir capaz de lidar com desafios e superar condições adversas, buscando não se restringir às limitações da condição crônica, é vivenciada como sentimento de capacidade e potência diante da vida(17).

Um dado que deve ser considerado quando se refere à qualidade de vida desses pacientes é a modificação na forma de viver a vida. Os pacientes recuperam a qualidade de vida anterior ao procedimento, mas não a qualidade da mesma vida, sendo comum modificações tais como maior apreciação da vida e busca de maior proximidade afetiva nos relacionamentos interpessoais(18). Foi possível constatar essas mudanças por meio dos dados das entrevistas, nas quais a maioria apontou a própria vida como o bem mais precioso.

CONCLUSÕES

Pode-se concluir que o TMO, ao ser aplicado como técnica terapêutica para o tratamento das enfermidades auto-imunes, contribui, após a saída da enfermaria, para uma percepção de melhora na capacidade para realizar as atividades do dia-a-dia. Os pacientes se sentem mais animados com a possibilidade de reorganizarem sua vida profissional, retomarem seus planos futuros e reviverem seus sonhos há tempos interrompidos pelo adoecer.

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    Fabio Augusto Bronzi GuimarãesI; Manoel Antônio dos SantosII; Érika Arantes de OliveiraIII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Dez 2008
    • Data do Fascículo
      Out 2008

    Histórico

    • Aceito
      10 Ago 2008
    • Recebido
      27 Abr 2007
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