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A fantasia e "a condição humana": a psicanálise em contato com a obra de René Magritte

Fantasy and "the human condition": psychoanalysis in contact with the work of René Magritte

Le fantame et "la condition humaine": la psychanalyse au contact de l'oeuvre de René Magritte

La fantasia y “la condición humana’: el psicoanálisis en contacto con la obra de René Magritte

O artigo se propõe a incitar reflexões sobre a função da fantasia na psicanálise a partir do contato de Lacan com a obra do artista René Magritte, e especificamente, com o quadro La condition humaine (1933). Analisam-se algumas vertentes do funcionamento fantasístico como realidade do sujeito e, acima de tudo, como "condição humana" ligada a uma evitação do contato com "a janela para o real", em relação à falta de objeto último para a satisfação pulsional, à inconsistência do Outro e ao desamparo fundamental. Para tanto, examinam-se os dilemas da relação subjetiva com o objeto a e com das Ding, investigando o funcionamento ambíguo da fantasia e o seu possível entendimento como obra de arte para uso interno do sujeito. Propõe-se, finalmente, uma ressonância entre a compreensão da arte na obra de Magritte e a direção do tratamento conforme proposta por Lacan.

Palavras-chave:
Magritte; psicanálise; fantasia; real


Resumos

The article aims to incite reflections on the function of fantasy in psychoanalysis based on Lacan's contact with the work of the artist René Magritte, and specifically with the painting "La condition humaine" (1933). It analyzes some aspects of the functioning of fantasy as the subject's reality and, above all, as the "human condition" related to an avoidance of contact with "the window to the real," in relation to the lack of ultimate object for drive satisfaction, to the inconsistency of the Other and to fundamental helplessness. To this end, the dilemmas of the subjective relation with the object a and with das Ding are examined, investigating the ambiguous functioning of fantasy and its possible understanding as a work of art for the subject's internal use. Finally, a resonance is proposed between the understanding of art in Magritte's work and the direction of treatment as proposed by Lacan.

Key words:
Magritte; psychoanalysis; fantasy; real

L'article réfléchit sur la fonction du fantasme dans la psychanalyse à partir du contact de Lacan avec l'œuvre de l'artiste René Magritte, et plus particulièrement avec le tableau « La condition humaine » (1933). Il analyse certains aspects du fonctionnement fantasmatique comme réalité du sujet et, surtout, comme « condition humaine » liée à l'évitement du contact avec « la fenêtre du réel », en relation avec le manque d'objet ultime pour la satisfaction des pulsions, avec l'inconsistance de l'Autre et avec l'impuissance fondamentale. À cette fin, on examine les dilemmes de la relation subjective avec l'objet a et das Ding, en étudiant le fonctionnement ambigu du fantasme et sa compréhension possible en tant qu'œuvre d'art destinée à l'usage interne du sujet. Enfin, on propose une résonance entre la compréhension de l'art dans l'œuvre de Magritte et l'orientation de la cure telle que proposée par Lacan.

Mots clés:
Magritte; psychanalyse; fantasme; réel


Este artículo pretende incitar a la reflexion sobre la función de la fantasía en el psicoanálisis desde el contacto de Lacan con la obra del artista René Magritte, más específicamente el cuadro "La condition humaine" (1933). Analiza algunos aspectos del funcionamiento de la fantasía como realidad del sujeto, sobre todo, como "condición humana" ligada a una evitación del contacto con "la ventana a lo real", con relación a la falta de objeto último para la satisfacción pulsional, con la inconsistencia del Otro y con el desamparo fundamental. Para ello, se examinan los dilemas de la relación subjetiva con el objeto a y das Ding, investigando el funcionamiento ambiguo de la fantasía y su posible comprensión como obra de arte para uso interno del sujeto. Por último, se propone una resonancia entre la comprensión del arte en la obra de Magritte y la dirección del tratamiento que propone Lacan.

Palabras clave:
Magritte; psicoanálisis; fantasía; real


A fantasia modela nossa realidade

A descoberta de que vivemos sob influência de fantasias inconscientes, a cada momento de nossas vidas, é eminentemente psicanalítica. De Freud a Lacan, a psicanálise demonstra que a realidade material, ou dita objetiva, não é exatamente comum para todos: cada qual estabelece uma relação com o mundo e com os outros por meio de fantasias particulares.

Muito além de ser uma observação restrita à psicopatologia, há uma onipresença da fantasia na vida psíquica que se estende, na verdade, a todos os seres falantes. À noite, encenamos nossas fantasias sob formas distorcidas nos sonhos e, à luz do dia, sob o feitio de devaneios. Por certo, há também formas específicas do fantasiar em cada uma das estruturas psíquicas — neurose, psicose e perversão. No prisma psicanalítico, portanto, é coerente dizer que essas cenas governam nossas vidas sem que delas tenhamos consciência — o sujeito constitui sua realidade a partir da fantasia. Isso tem a ver, fundamentalmente, com o fato de sermos seres de linguagem.

Considerando o exposto, cabe perguntar qual função exerce a fantasia em nosso psiquismo. Pergunta esta que certamente orientou grande parte da obra de Freud e Lacan. O caminho escolhido neste artigo para a busca de respostas — sempre parciais — é o das interações da psicanálise com o campo das artes.

Justifica-se essa abordagem no fato de que desde seus primórdios a psicanálise se nutre, em grande medida, na fonte dos insights artísticos acerca da vida anímica, com claros testemunhos de Freud e Lacan a esse respeito (Lima, 2009Lima, M. M. (2009). Freud, Lacan e a Arte: uma síntese. In M. M. Lima, & M. A. C. Jorge (Eds.), Saber fazer com o real. Cia. de Freud/PGPSA/IP/UERJ.), indicando, inclusive, que o artista costuma se antecipar ao psicanalista na produção de um saber sobre a vida anímica (Brousse, 2009Brousse, M-H. (2009). O saber dos artistas. In M. M. Lima, & M. A. C. Jorge (Eds.), Saber fazer com o real. Cia. de Freud/PGPSA/IP/UERJ.). Destaque-se que o diálogo com o campo das artes não é mera aplicação ou extensão da psicanálise, e sim um recurso metodológico fundamental para a reflexão metapsicológica (Rivera, 2016Rivera, T. (2016). O sujeito está na arte. In S. Leite, & T. Costa (Eds.), Letras do sintoma. Contra Capa.). Como diz Regnault (2001)Regnault, F. (2001). Em torno do vazio – a arte à luz da psicanálise. Contra Capa., não é o caso de aplicar a arte à psicanálise ou ao artista, mas, sim, fazer avançar a teoria psicanalítica a partir do contato com a arte.

Orientado pela discussão sobre as relações da fantasia com a realidade e com a tópica do real, este estudo objetiva suscitar reflexões sobre a função da fantasia a partir do contato de Lacan com a obra de René Magritte e, especificamente, com sua tela A condição humana (1933). Para chegarmos ao período de sua obra em que essas reflexões são realizadas, iniciaremos com uma breve introdução sobre a função da fantasia sob o prisma das suas relações com a noção de realidade.

Ademais, como conclusão deste estudo, propõe-se possíveis ressonâncias entre a compreensão da arte no pensamento de Magritte e a direção do tratamento psicanalítico conforme proposta por Lacan.

Fantasia e realidade, de Freud a Lacan

Ainda sob a influência da teoria da sedução, as fantasias são definidas por Freud como estruturas e ficções "protetoras" (Freud, 1897/1996, p. 296Freud, S. (1996). Carta 61. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (v. 1). Imago. (Trabalho original publicado em 1897).) construídas com a finalidade de obstruir o caminho para as lembranças das cenas primevas de origem sexual. Destaca-se, já nos primórdios da psicanálise, essa função da fantasia ao lado do tamponamento de algo de difícil subjetivação.

Segue-se, então, um novo estatuto conceituai para a fantasia. Com o abandono confesso de sua "neurótica", há um reconhecimento de que, mesmo que não baseadas em acontecimentos reais, as fantasias têm para o sujeito o mesmo valor patogênico. Essa percepção será gradualmente valorizada ao longo de sua obra.

O aprofundamento dos estudos sobre os sonhos e a histeria conduzirá a um período de intenso desenvolvimento sobre a função da fantasia em termos clínicos e teóricos. Em "Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade" (1908/1992a), Freud enfatiza a existência de fantasias inconscientes de caráter bissexual cujo poder patógeno está relacionado com a formação dos sintomas e dos ataques histéricos.

Mas as fantasias são vistas igualmente por ele como aquilo que media a relação do sujeito com uma realidade pouquíssimo tolerável. Nesse sentido, são também trabalhos importantes, nesse período áureo, "O poeta e o fantasiar" (1908/1992b) e "Romances familiares" (1909/1992c), nos quais destaca que o que motiva as fantasias são desejos insatisfeitos, sendo toda fantasia uma correção da realidade insatisfatória.

Em "Sobre as teorias sexuais das crianças" (1908/1992d) observa as fantasias infantis como respostas aos enigmas da sexualidade e da diferença entre os sexos. Isso é desenvolvido ao longo de sua obra, também, por meio da análise das fantasias originárias (Urphantasien). Em suma, trata-se de fantasias que, para a criança, tentam dar conta dos enigmas de suas origens. Sobre aquilo que não se tem resposta, portanto, a fantasia cria uma, mas também, por outro ângulo, esconde uma ausência de saber insuportável. Sendo, por exemplo, a própria castração uma fantasia comum a ambos os sexos para lidar com a ausência de inscrição no inconsciente acerca da diferença sexual.

Portanto, não só Freud percebe que podemos igualar realidade e fantasia no que se refere às consequências psíquicas das experiências da infância, mas que a fantasia revela realidade psíquica, a qual, no mundo das neuroses, é a realidade decisiva (1916-1917/1992g). Finalmente, em "A perda da realidade na neurose e na psicose" (1924/1992h), Freud sustenta que o mundo da fantasia fundamenta, tanto na neurose como na psicose, as tentativas de substituir uma realidade desagradável por outra que esteja mais de acordo com os desejos do homem. Trata-se de sua formulação máxima sobre o poder da fantasia como aquilo que modela nossa realidade.

Conforme exposto, na obra freudiana a fantasia está vinculada a um distanciamento ou evitação da realidade: evitação do impacto traumático da sexualidade; do princípio de realidade; de tudo aquilo que faz enigma para a criança como ausência de um saber instintivo. Para dar conta disso em termos conceituais, ele separa a realidade em duas, uma externa e outra interna, a realidade psíquica, a qual é governada pela fantasia.

Assim como na obra de Freud, também para Lacan a fantasia ocupa grande destaque ao longo de sua obra, sendo constantemente desenvolvida nos seus escritos e seminários. A partir do Seminário 5 – As formações do inconsciente (1957-58/1999), há um desenvolvimento fundamental que será insistentemente retomado e aprofundado, acerca da importância de compreendê-la a partir da obra freudiana "Bate-se em uma criança" (Freud, 1919/1992fFreud, S. (1992f). Pegan a un nino. In Obras completas (v. 17). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1919).).

Essa obra de Freud versa sobre uma de suas descobertas mais importantes nessa temática: a existência de fantasias masoquistas em seus pacientes. Lacan se inspira nesse artigo, precisamente, para desenvolver sua concepção de fantasia, a qual indica, na neurose e na perversão, o ponto mais sintético de gozo de um sujeito, a que chamará de fantasia fundamental ou terminal. A fantasia fundamental seria construída ao final de análise, sendo uma espécie de estrutura geral situada para além das fantasias individuais associadas aos sintomas.

Em sua releitura da fantasia de espancamento, o que está em jogo, acima de tudo, é a submissão do sujeito ao Outro dos significantes. Nesse sentido, Lacan demonstra, ao longo de sua obra, que a fantasia é determinada pelo registro simbólico, embora seja percebida subjetivamente como sendo de ordem imaginária. Essa compreensão segue, pois, também no seminário A lógica da fantasia (1966-67), no qual chega a afirmar que ela é estruturada como uma linguagem de forma ainda mais estreita que todo o resto do inconsciente, na medida em que é uma frase com uma estrutura gramatical com a qual se pode articular uma lógica.1 1 Inédito. Aula de 14 de junho de 1967.

Com sua proposição do funcionamento psíquico a partir de três registros interligados — real, simbólico e imaginário —, Lacan traz novas formas de compreensão sobre a questão da fantasia e da realidade. Falamos da diferença entre a realidade e o registro do real — resistente à representação. Como ao real não temos acesso senão por breves e fugidios contatos, o que podemos vivenciar é tão somente uma realidade construída e compartilhada por meio dos registros simbólico e imaginário.

Observamos que, em Lacan, fantasia e realidade estão do mesmo lado, há uma homologia estrutural visto que ambas são situadas nos registros do simbólico e do imaginário e, igualmente, mediadas pelo desejo. Como diz o psicanalista, "para tudo que concerne pelo menos ao ser falante, a realidade é assim, quer dizer, de fantasia" (Lacan, 1972-73/1985, p. 118Lacan, J. (1985). O seminário. Livro 20. Mais, ainda. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73).).

Já o registro do real encontra-se para além, em uma relação de mútua exclusão com o campo da representação. Para Jorge (2010)Jorge, M. A. C. (2010). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan: a clínica da fantasia (v. 2). Zahar., a oposição freudiana entre realidade externa e realidade interna é substituída, em Lacan, pela oposição entre real e fantasia. Nesse sentido, a função da fantasia permanece, de alguma forma, relacionada a um velamento, a ocultar algo sentido como insuportável — embora esse véu também seja, em certa medida, permeável ou translúcido. Abordaremos essa questão a partir do diálogo com a obra de René Magritte.

La condition humaine

O artista belga René Magritte (1898-1967)Magritte, R. (1967). René Magritte: révolution et scandale. Disponível em: <https://www.ma.fr/ina-eclaire-actu/video/i05286888/rene-magritte-revolution-et-scandale>.
https://www.ma.fr/ina-eclaire-actu/video...
, grande expoente do movimento surrealista, nos presenteou com uma imagem paradigmática e seminal para refletir acerca da função da fantasia em uma pintura batizada, muito apropriadamente, de A condição humana (La condition humaine, 1933). Na obra, observa-se um cavalete e um quadro colocados defronte de uma janela, de maneira que a paisagem ali pintada parece mimetizar e esconder, simultaneamente, a paisagem que se supõe existir atrás da janela, "lá fora", no mundo exterior.

A condição humana de Magritte intitula uma série de pinturas e desenhos com o mesmo motivo principal: um cavalete e um quadro colocados defronte de alguma paisagem, criando uma aparente igualdade ou continuação entre o mundo exterior e a sua representação. Outras obras, como La clef des champs (1936), L'appel des cimes (1942) e a série La belle Captive (1931-1967) têm motivos semelhantes. Em muitas, a partir de um simples procedimento de pintura — algumas linhas definindo a presença de um cavalete na imagem pintada — provoca questionamentos devastadores no espectador, entre eles: como se distingue realidade e representação?

Consagradas como um amálgama único entre arte e filosofia, pode-se dizer que muitas obras de Magritte, ao longo de sua carreira, tiveram uma incisiva função filosófica de questionamento sobre os dilemas da representação, como a famosa A traição das imagens (La trahison des images, 1928-29), na qual se observa a inscrição "Isto não é um cachimbo" (Ceci n’est pas une pipe) — que inclusive inspirou estudo homônimo de Michel Foucault em 1966.

A questão da representação e da coisa representada tem certeira implicação para a psicanálise de Lacan, pois "o símbolo manifesta-se em primeiro lugar como assassinato da coisa" (1966/1998, p. 320). Para o sujeito, de saída, há uma escolha forçada na perda do ser pelo sentido advindo do Outro. De acordo com Hollender (2018)Hollender, P. (2018). La condition humaine. La cause du desir, 98(1), 92-96., Magritte coloca o sujeito como perdido em sua existência por sua alienação simbólica, à maneira desse sujeito/espectador um tanto intermitente, em desvanecimento, de que fala Lacan.

Sabemos do grande interesse que Lacan nutria pelo surrealismo, desde o período anterior à elaboração de sua tese de doutorado "Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade" (1932) — a qual, diga-se de passagem, foi inclusive influenciada por texto de Salvador Dali, seu amigo (Roudinesco, 2008Roudinesco, E. (2008). Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. Companhia das Letras.; Rivera, 2005Rivera, T. (2005). Arte e psicanálise. Zahar.) —, a uma série de menções ao movimento artístico e seus expoentes, como André Breton e Louis Aragon, ao longo de seus escritos e seminários.

Os surrealistas, como é de conhecimento comum, assumiram grande influência do pensamento freudiano em seu movimento artístico, em especial valorizando e fazendo o elogio da noção de inconsciente (embora não necessariamente igualável ao conceito freudiano e buscando métodos próprios para acessá-lo), do irracional, da histeria e da loucura, assim como da vida onírica.

Não obstante, o próprio Magritte, embora tenha lido e em alguns momentos valorizado a obra de Freud, não demonstrava ser entusiasta da psicanálise, especialmente da tendência existente na sua época para interpretações inesgotáveis e tentativas de explicar o artista a partir de sua obra.2 2 Tendência que o próprio Magritte exemplifica em carta de 12 de março de 1937 aos amigos sr. e sra. Loius Scutenaire, quando descreve que seu quadro Le modèle rouge (1935) foi interpretado por dois psicanalistas como um caso de "castração". Desabafa: "É terrificante ver o que se está exposto ao fazer uma imagem inocente" (conforme citado por Torczyner, 1978, p. 58; tradução nossa). Voltaremos a esse ponto.

Roudinesco (2011)Roudinesco, E. (2011). Lacan, a despeito de tudo e de todos. Zahar., que demonstra uma influência certeira do surrealismo no pensamento de Lacan (assim como do freudismo e da psiquiatria dinâmica) — e muito embora a proximidade pessoal dele fosse mais patente com outros expoentes do movimento —, chega a traçar uma analogia entre sua obra e a de Magritte. Vale a pena citá-la na íntegra:

A prosa de Lacan faz pensar em certos quadros de Giorgio de Chirico ou Salvador Dali, seu velho amigo e cúmplice, mas sobretudo, e de maneira estarrecedora, nos de René Magritte. [...] Intrépida e cinzelada, essa prosa interroga a defasagem entre o objeto e sua representação, ao mesmo tempo em que reduz a realidade a uma irrupção selvagem atravessada por fórmulas e arabescos. Segundo Lacan, toda realidade deve ser expressa de maneira objetai, sem o menor lirismo, uma vez que toda realidade é, em primeiro lugar, um real, isto é, um delírio. Lacan descreve a realidade como um pintor cujo modelo fosse um ovo sobre a mesa, mas que desenhasse na tela uma ave abrindo as grandes asas. (p. 26)

Importa dizer, a cena mencionada por último na citação é precisamente de uma tela de Magritte, La Clairvoyance (1936). Como temas que aproximam esses dois pensadores, Roudinesco menciona a questão da defasagem entre objeto e representação, assim como a relação entre a realidade e o real.

Felizmente, o próprio Magritte nos legou alguns comentários que auxiliam a compreensão de sua arte. O caso de A condição humana é explicado pelo artista em conferência intitulada La ligne de vie, realizada em 20 de novembro de 1938 no Museu Real de Belas Artes da Antuérpia:

O problema da janela levou a A condição humana. Eu coloquei na frente de uma janela vista do interior de uma sala, um quadro representando exatamente a parte da paisagem mascarada por esse quadro. A árvore representada por esse quadro escondia, assim, a árvore situada atrás dele, fora da sala. Ela se encontrava para o espectador, ao mesmo tempo, no interior da sala, no quadro, e também no exterior, na paisagem real, no pensamento. É assim que vemos o mundo. Nós o vemos no exterior de nós mesmos, todavia não temos mais que uma representação dele em nós [...]. (Magritte, 2009, p. 121Magritte, R. (2009). Écrits complets. Flammarion.; tradução nossa)3 3 Há duas versões do texto, sendo que ambas finalizam comparando o efeito causado pelo quadro a uma espécie de déjà vu ou fausse reconnaissance: "Situamos, da mesma forma, às vezes no passado, algo que está acontecendo no presente. O tempo e o espaço perdem então aquele sentido grosseiro que só a experiência cotidiana leva em conta" (Magritte, 2009, p. 122; tradução nossa).

Trata-se, portanto, de um questionamento incisivo sobre a relação humana com a representação e com a realidade. Nosso suposto contato com o mundo, na verdade, não passa de um contato com a representação psíquica dele. Isso vai bem ao encontro da noção de realidade trazida por Lacan.

Em carta endereçada a André Breton em 1934, Magritte diz: "Pode-se supor que por trás da pintura o espetáculo seja diferente do que se vê, mas o essencial era suprimir a diferença entre uma vista que vemos do exterior e do interior de um quarto" (conforme citado por Sylvester, 1992, p. 298Sylvester, D. (1992). Magritte: the silence of the world. The Menil Foundation.; tradução nossa). Lembremos da questão da separação entre a realidade interna (a fantasia) e a externa para Freud. Pelo exposto, uma maneira de interpretar o efeito inquietante que o quadro certamente nos gera é que a obra parece forçar uma confirmação da tessitura simbólica e imaginária da nossa realidade — constatação que costumamos evitar, uma vez que conduz, justamente, à percepção da fantasia subjacente à nossa relação com o mundo.

O quadro da fantasia e a janela evitada

Entendemos que Lacan ficou bastante impressionado pela série A condição humana, tendo a abordado diretamente em algumas oportunidades. Possivelmente, a primeira de suas menções foi realizada nas "Jornadas sobre a fantasia" da Sociedade Francesa de Psicanálise, em 21 de outubro de 1962.4 4 Segundo Sauval (2008), dessa comunicação de Lacan se tem registro apenas das notas tomadas por Claude Conté e Irene Roublef anexadas à versão crítica transcrita por Michel Roussan do Seminário 10 – A angústia (1962-63). Trabalhamos com a versão dessas notas traduzidas para o espanhol na versão crítica de Ricardo E. Rodriguez Ponte do mesmo seminário: "Lacan, J. Jornadas de Otoño de 1962 (Octubre). Introducción al seminario sobre La angustia. Intervención en las Jornadas Provinciales de la Sociedad Francesa de Psicoanálisis, el 21 de Octubre de 1962. Notas tomadas Claude Conté y Irene Roublef. In Lacan, La Angustia (versión crítica), establecimiento del texto, traducción y notas de Ricardo E. Rodriguez Ponte" [Inédito]. Serge Leclaire (1977)Leclaire, S. (1977). Psicanalisar. Perspectiva. menciona, de forma precisa, esta comunicação na qual Lacan teria, certa feita, ilustrado a estrutura da fantasia através de quadros de Magritte, dentre os quais, La Lunette d'approche (1963),5 5 Destacamos aqui um possível engano, uma vez que essa obra tem data de criação posterior à comunicação de Lacan. La condition humaine (1933) e Le clé des champs (1936), "em que uma janela, aberta ou fechada, se inscreve no quadro" (1977, p. 17).

A referência direta a essa comunicação e ao quadro (embora sem mencionar o nome de Magritte) figuram em seu célebre seminário A angústia (1962-63): "Os que ouviram minha intervenção nas Jornadas Provinciais dedicadas à fantasia [...] podem lembrar-se da metáfora de que me servi: a de um quadro que acaba de ser colocado no caixilho de uma janela" (Lacan, 1962-63/2005, p. 85Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).). No que se refere à relação do quadro com a fantasia, a questão chave desenvolvida será essa: "Seja qual for o encanto do que está pintado na tela, trata-se de não ver o que se vê pela janela" (p. 85).

O que está sendo evitado ao não se olhar pela janela? Aprofundando essa questão, Lacan relaciona esse quadro ao sonho paradigmático do caso clínico freudiano do "Homem do Lobos". Para ele, esse sonho é "fantasia pura, desvelada em sua estrutura" (p. 85), mostrando cabalmente a relação da fantasia com o registro do real.

No sonho, o paciente está deitado na sua cama. A janela ao pé do leito abre-se sozinha e ele fica aterrorizado ao ver alguns lobos brancos sentados em uma árvore, os quais apenas o fitam em silêncio, com grande atenção. Acorda em terror de ser devorado pelos animais. Suas associações e lembranças culminam na construção da cena primária em análise (Freud, 1918/1992eFreud, S. (1992e). De la historia de una neurosis infantil. In Obras completas (v. 17). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1918).).

Argumenta o psicanalista francês que a fantasia é sempre enquadrada, tal como a angústia. No sonho da observação do "Homem dos Lobos", "a fantasia é vista além de um vidro, e por uma janela que se abre. A fantasia é enquadrada" (1962-63/2005, p. 85). Nesse sentido, trata-se da relação da fantasia com o registro do real — o irrepresentável. Lembremos Freud, quando demonstra que a protofantasia da cena primária é uma produção da criança para dar conta de um enigma, uma impossibilidade de saber. Na tela de Magritte, a representação da pintura em um cavalete alude ao enquadramento da fantasia, enquanto, logo atrás, a janela deixa entrever o mundo "lá fora" — uma possível evocação do real.

Segundo Amigo (2012)Amigo, S. (2012). Clínica de los fracasos del fantasma. Letra Viva., há ao menos três movimentos da conformação da fantasia que essa tela de Magritte permite elaborar. O primeiro diz respeito a que o real deve estar fora, expulsado, tal como no quadro vemos uma paisagem que aparenta estar atrás da janela. Para que um sujeito experimente o real como exterior a si mesmo faz-se requisito a primeira identificação à linguagem, o que nem sempre acontece. Trata-se do ingresso na ordem simbólica.

Em segundo lugar, o sujeito deve poder acessar esse real por um espaço limitado, uma borda, o que vai se traduzir posteriormente como as bordas dos orifícios do corpo. Na tela, isso seria a moldura da janela. Isso é outro requisito essencial da construção da fantasia.

Por último, segundo Amigo, somente após esses requisitos prévios, é que o sujeito pode representar imaginariamente um objeto qualquer na tela defronte da janela, ou melhor, pode pintar algo na tela da sua fantasia, tal como Magritte o fez em sua obra.

Pelo exposto, a imagem proposta por Magritte é inspiradora para refletir acerca dos dilemas da função da fantasia em psicanálise. A partir das coordenadas de Freud e Lacan, pode-se considerar, portanto, que a fantasia é nossa realidade, sendo análoga ao quadro no caixilho da janela, enquanto a paisagem atrás do quadro e da janela alude ao registro do real. Nossa "condição humana", portanto, é evitar o contato com o que se entrevê por detrás.

Também em A luneta de aproximação (La lunette d'approche, 1963), Magritte retrata uma janela entreaberta em cujo reflexo observa-se um céu azul com nuvens. Para além da estrutura da janela de vidro e do reflexo existe apenas a escuridão e o vazio. Eis outra representação pictórica instigante para pensar a relação entre a fantasia simbólico-imaginária e o fundamento real que ela esconde e, de alguma forma, também revela.

Da constituição da fantasia e o objeto que falta

A constituição da fantasia é etapa estruturante para o sujeito. Em termos estruturais e lógicos, a fantasia inconsciente tem origem muito precoce, sendo identificável aos primórdios do psiquismo enquanto fundação do inconsciente por meio do recalque originário (Jorge, 2010Jorge, M. A. C. (2010). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan: a clínica da fantasia (v. 2). Zahar.). O fato é que a relação do sujeito com o significante exige a estruturação do desejo na fantasia (Lacan, 1962-63/2005Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).).

A dimensão real da sexualidade em psicanálise indica a inexistência de objeto capaz de trazer a satisfação completa ao ser humano — constatação já presente na teoria freudiana por meio do conceito de pulsão (Trieb), que não corresponde ao instinto presente nos outros animais. Nesse sentido, a função da fantasia também pode ser compreendida como de ocultação dessa ausência de objeto pelo recurso à criação de algo em seu lugar. Em outros termos, a fantasia "enquadra" a pulsão de maneira a circular em torno de determinado objeto, visto que o objeto último de satisfação falta. Uma maneira de aprofundar essa questão é por meio da relação entre o objeto a — causa de desejo — e das Ding — conceituada de maneira discreta, na obra freudiana, como o objeto perdido de uma satisfação mítica.

Das Ding pode ser definida como aquilo que falta em cada encontro do sujeito com um objeto suposto a satisfazê-lo. Por mais satisfatória que seja a experiência, sempre faltará algo, sempre falta alguma outra coisa. "A Outra coisa é, essencialmente, a Coisa" (Lacan, 1959-60/1988a, p. 149Lacan, J. (1988a). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60).). Das Ding, o objeto absoluto, falta. E deve-se compreender que ele falta não no sentido de uma carência momentânea ou acidental, mas no sentido de nunca haver existido — é uma espécie de mito criado como efeito de nossa inserção no mundo da linguagem. Como diz Hollender (2018)Hollender, P. (2018). La condition humaine. La cause du desir, 98(1), 92-96. em relação ao quadro de Magritte: "a nominação significante é uma aparência, mascara um horror mais fundamental: se procuramos saber o que está escondido atrás do quadro, talvez seja para evitar saber que não há nada" (p. 94; tradução nossa).

Por sua vez, o objeto a também é um objeto faltoso, perdido, que o sujeito busca incessantemente reencontrar — é o pedaço do ser que cai em consequência de sua introdução na ordem simbólica. Mas ele tem a característica essencial de ser uma negatividade preenchível por qualquer objeto da realidade. Por esse motivo, ele também é definido por Lacan não como objeto do desejo, mas como objeto causa do desejo.

Quaisquer objetos do desejo humano não podem ser mais que tentativas frustradas de positivação de um cavo que é o objeto a. São, pois, facetas imaginárias e simbólicas deste. Mas é a dimensão real do objeto a, isto é, aquela impossível de simbolizar, a sua configuração por excelência. No seminário A ética da psicanálise (1959-60/1988a), Lacan comenta que essa dimensão real do objeto a foi chamada por Freud de das Ding, a Coisa.

Em suma, o sujeito busca reencontrar o objeto a via inúmeros substitutos em seus deslocamentos simbólicos e investimentos libidinais imaginários, porém, nessas tentativas de reencontro irá sempre se deparar com a ausência da Coisa perdida.

Em seu comentário sobre a tela de Magritte, Lacan (1962)6 6 Inédito, ver nota de rodapé n. 4. teria mesmo indicado a função da fantasia como de manter estável a paisagem da realidade dentro de sua moldura. A Coisa se oculta atrás da tela, sendo que a fantasia lhe faz barreira — é uma espécie de defesa —, tal como o quadro que impede ver o que há (ou não) atrás.

A fantasia como obra de arte para uso interno

Mas as referências de Lacan ao quadro de Magritte não são circunscritas ao Seminário 10 e às jornadas que o antecedem. Em O objeto da psicanálise (1965-66), o psicanalista descreve com precisão o quadro A condição humana e, inclusive, cita o nome de Magritte. Em suma, menciona ser essa a imagem provocativa "à qual recorrer para explicar o que concerne à função da fantasia". E no que se refere à relação entre a fantasia e o real, deixa claro: "O artista, como cada um de nós, renuncia à janela para ter o quadro" (Lacan, 1965-66; tradução nossa).7 7 Inédito. Aula de 25 de maio de 1966.

Lacan compara, portanto, o artista e o sujeito comum. E no mesmo seminário chega a sugerir que a fantasia é uma obra de arte para "uso interno" do sujeito.8 8 Inédito, aula de 11 maio de 1966. Essa comparação de Lacan é observada por Quinet (2002) e Rivera (2013). Nesse sentido, entendemos que a função da fantasia é, até certo grau, comparável àquela que se observa na relação do artista com a obra de arte. Falamos aqui novamente de das Ding e do objeto a, porém nas coordenadas do processo sublimatório.

De acordo com Lacan, a sublimação caracteriza-se como um trabalho em torno de um vazio. Em A ética da psicanálise (1959-60), ele afirma que sublimar é elevar um objeto qualquer "à dignidade da Coisa" (Lacan, 1959-60/1988a, p. 141Lacan, J. (1988a). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60).), tal como nos mostram, no campo do surrealismo, os famosos ready-made de Marcel Duchamp.

O próprio Magritte tem uma definição para sua arte que muito se aproxima daquela do psicanalista: trata-se de trazer em cena o "mistério" na banalidade comum de todas as coisas — "o supremo sentimento é o sentimento não familiar de mistério evocado por coisas que são oficialmente 'muito naturais', familiares [...]" (Magritte, 2016, pp. 170-171Magritte, R. (2016). Selected writings. University of Minnesota Press.; tradução nossa). Voltaremos à sua definição do mistério.

Para Lacan, o criador confronta-se aos efeitos maléficos de um vazio constituinte, e sua resposta ao vazio da Coisa é criar um objeto no seu lugar. Essa tentativa de reencontro do objeto — investido pelas facetas imaginária e simbólica do objeto a — permite que a Coisa seja perdida. Um exemplo excelente dessa criação a partir do vazio seria a arte do oleiro, que modela as paredes de um vaso a partir de seu espaço vazio central. O vaso remete ao próprio significante, pois à medida que o vaso-significante é modelado, cria-se o cavo no seu centro.

Pensando mais uma vez na tela de Magritte, podemos hipotetizar que o quadro da fantasia é pintado precisamente em resposta a esse vazio da Coisa, representado pela janela. A insuportável inexistência do objeto último para nosso desejo convoca o ato de criação.

Destaque-se, ademais, que a Coisa exerce um fascínio incomparável, um empuxo, uma força de atração tão irresistível quanto o é sua evitação. Ela puxa o sujeito em direção ao campo do gozo absoluto, mítico, aquele que foi perdido por ocasião de nosso ingresso no mundo da linguagem. Mas caso fosse encontrada, a Coisa aspiraria o sujeito, doravante abolido de sua condição desejante — lembremos que o gozo na teoria lacaniana fundamenta-se na pulsão de morte freudiana. Por conseguinte, o quadro da fantasia também tem a função de fazer barreira aos efeitos mortíferos de das Ding.

Devemos lembrar, por outro lado, que a fantasia, a rigor, busca enquadrar a pulsão por meio do recalcamento, e não pela via da sublimação. O quadro da fantasia seria, no limite, uma obra de arte do sujeito do inconsciente, sendo que seus efeitos são muito diversos daqueles advindos da sublimação per se, que se faz sem recalcamento. Essa natureza da fantasia traz-lhe efeitos subjetivos muito singulares caracterizados pela ambiguidade, conforme veremos a seguir.

O caráter ambíguo da fantasia

A fantasia inconsciente, como estrutura simbólica, recebe do significante uma natureza ambivalente, um duplo sentido. Isso é patente na fórmula lacaniana da fantasia ($ <> a), onde o articulador lógico da punção (<>) pode indicar duas direções, ou melhor, todas as relações pulsionais possíveis entre o sujeito — barrado pelo significante — e o objeto a – causa do desejo.

A fantasia, sendo o suporte do desejo, é uma estrutura que permite um lugar para o objeto a se alojar. Mas para funcionar como causa de desejo, o objeto a precisa ser invisível ao sujeito, o que nem sempre acontece. Segundo Lacan (1962-63/2005)Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63)., ele "apaga-se e desaparece numa dada fase do funcionamento fantasístico" (p. 240). Observe-se, portanto, que há "fases" do funcionamento da fantasia, o que nos leva a concluir que ela nem sempre funciona como suporte do desejo.

Como Lacan indicou nas jornadas introdutórias ao seminário sobre a angústia (1962),9 9 Inédito, ver nota de rodapé n. 4. o desejo articulado como fantasia opera na experiência de forma retroativa, invertendo o seu materna: a <> $. De forma exemplificativa, se o objeto de desejo do sujeito é sempre, em última análise, o desejo do Outro, ao fomentar esse desejo, torna-se o sujeito também objeto a — causa do desejo do Outro. Paradoxalmente, portanto, só podemos desejar e sustentar-nos como desejantes no lugar de causa do desejo do Outro.

Desse modo, é a partir do objeto que se foi para o Outro que se dá a constituição do sujeito. A fantasia, portanto, possui sempre dois momentos, dois sentidos. Em uma palavra, nela cada qual se alterna entre sujeito do desejo e objeto de desejo do Outro.

Quando o sujeito atravessa para o outro lado do quadro da fantasia, envereda para o polo do gozo. Entendemos que esse seria o "verso do quadro", mais próximo da janela para das Ding, ou seja, marcado, de alguma forma, pela maior proximidade com o real do gozo — o qual, embora buscado, apresenta uma face mortífera, conforme já mencionado.

Diga-se a propósito, essa ambiguidade da função da fantasia é evocada em outra obra de Magritte, Les jours gigantesques (1928), na qual se observa uma mulher nua tentando afastar um homem que a toca, sendo que esse homem está desenhado, de forma precisa, em sua própria silhueta — imagem que evoca, perfeitamente, a bissexualidade das fantasias histéricas conforme esclarecidas por Freud (1908/1992a)Freud, S. (1992a). Las fantasías histéricas y su relación con la bisexualidad. In Obras completas (v. 9). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1908)..

Ainda em relação ao sonho do "Homem dos Lobos", Lacan menciona que a moldura da janela aberta é identificável, em sua forma, com a "função da fantasia em sua modalidade mais angustiante" (1962-63/2005, p. 284). Quando o sujeito se vê como o objeto que é para o desejo do Outro, surge a angústia como falta da falta — quando o objeto a, que na fantasia não deveria aparecer, subitamente surge (Lacan, 1962-63/2005Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).).

Essa é a vertente sinistra da fantasia, cujo resultado é a angústia, que acontece quando o sujeito se encontra colado demais na fantasia. Para Lacan, a angústia se traduz fenomenologicamente na Unheimlichkeit esclarecida por Freud. O sujeito se observa nesse instante, então, como o objeto a em que se transforma para o desejo do Outro, tornando-se assim um duplo sinistro para si mesmo (Terêncio, 2022Terêncio, M. G. (2022). A angústia e o estranho: um estudo psicanalítico em diálogo com a ficção de horror. Appris.). A angústia alerta sobre a proximidade excessiva ao campo do gozo, onde o sujeito desejante se abole em posição de objeto.

Fantasia, desamparo fundamental e o Outro consistente

Analisando a questão sob outro vértice que complementa os anteriores, o fato é que todos começam a vida totalmente submetidos ao desejo de outro sujeito, ou melhor, daquele que assume a função de Outro, inserindo o infante forçosamente no mundo da linguagem.

Como Freud salientou, a criança nasce em profundo desamparo (Hilflosigkeit), sendo esse o fato gerador da angústia mais fundamental e primária do ser humano. O neonato está em condições de absoluta dependência para sobreviver, à diferença de outros animais. Isso criará a demanda de ser amado, que acompanhará o sujeito durante o resto de sua vida.

O desejo do adulto é, para o infante, um grande enigma: o que quer ele de mim? Como não há resposta, o sujeito em formação apenas recebe de volta outra pergunta: Che vuoi? É a interpretação infantil do desejo do Outro que vai constituir sua fantasia. A resposta inconsciente é, basicamente, colocar-se como objeto privilegiado de desejo.

Portanto, a fantasia é a cena que, para a criança, tem a função de encobrir sua angústia relativa ao desamparo. Isso porque, na fantasia fundamental, ela coloca-se em posição fálica, ou seja, como o objeto que completaria a falta do Outro (Lacan, 1957-58/1999Lacan, J. (1999). O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente. Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58).). É o que Lacan vai apontar, por exemplo, em sua interpretação do sonho de observação do "Homem dos Lobos", que é pura fantasia, no qual "o sujeito não passa de uma ereção nessa tomada que faz dele o falo" (1962-63/2005, p. 284).

De forma simplificada, por meio da fantasia a criança sente-se indispensável ao Outro, o que aplaca seu sentimento de desamparo. Ao mesmo tempo, o Outro é imaginariamente tornado um ser completável, ou seja, não barrado pela castração. Trata-se, portanto, de nada querer saber sobre a inconsistência do Outro, sobre seu caráter barrado pela linguagem ou, ainda, acerca de sua castração e seu desejo. Como diz Quinet (2002)Quinet, A. (2002). Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Zahar., a fantasia fabrica a ilusão de uma relação de completude do sujeito com o objeto, assim como a ilusão de completude do Outro.

Na fantasia, portanto, o Outro se torna consistente, não barrado. Em seu poder de modelar a realidade, ela pode ser definida como uma tela ou véu usado na forma de anteparo contra a percepção insuportável da castração do Outro — ausência do pênis/falo para Freud ou falta do Outro consistente para Lacan. Nessa tela o neurótico deposita a fantasia, ou seja, aquilo que melhor lhe serve para se defender da angústia, para encobri-la (Lacan, 1962-63/2005Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).).

Destarte, a função da fantasia se adequa perfeitamente como metáfora da imagem retratada por Magritte em A condição humana: a tela faz anteparo a uma janela que, caso contrário, demonstraria um exterior insuportável — o desamparo do sujeito e a castração do Outro. Esse é mais um prisma, precisamente, de nossa "condição humana".

Travessia – o intervalo entre o quadro da fantasia e a janela para o real

Em interessante comentário acerca da função do fenômeno da "tela" sobre a qual está centrada a experiência psicanalítica, Lacan discorre sobre sua condição problemática: "A tela não é somente o que oculta o real, o é seguramente, mas ao mesmo tempo o indica".10 10 Seminário 13 – O objeto da psicanálise (1965-66, inédito), aula de 18 de maio de 1966. Destarte, a tela da fantasia assume uma dupla vertente — ao mesmo tempo oculta e revela a inconsistência do Outro, e sem essa tela tampouco se pode atravessar o tempo do gozo para chegar ao tempo do desejo. Em outros termos, embora a fantasia neurótica falhe em sua função de apaziguamento da angústia, tampouco se pode dela prescindir totalmente.11 11 É importante lembrar que Freud e Lacan indicaram também outro importante destino da pulsão, a sublimação, que não passa pelo recalcamento. Ademais, Lacan considerou a existência de outras formas de amarração possíveis entre os três registros psíquicos: citando o exemplo de James Joyce, chega a comunicar a possibilidade de se fazer suplência ao Nome-do-Pai por meio do sinthoma (Lacan, 1975-76/2007). Como diz Lacan, o desejo é um remédio para a angústia (Lacan, 1960-61/2010, p. 451Lacan, J. (2010). O seminário. Livro 8. A transferência. Zahar. (Trabalho original publicado em 1960-61).). E o desejo, por sua vez, só se manifesta sob o suporte da cena fantasística.

Segundo as coordenadas de Lacan, a fantasia fundamental deve ser reconstruída em análise para, em seguida, ser atravessada. O materna do significante da falta no Outro, S(Ⱥ), representa, em outros termos, a castração e a inconsistência do Outro. Essa é a resposta derradeira ao Che vuoi?. Absolutamente insuportável, a angústia é o sinal de que o sujeito se aproxima dessa resposta e, como tal, a fantasia é a última das barreiras que o protege desse contato.

Para sair do polo do gozo e chegar ao do desejo, a suposição do Outro onipotente deverá cair — todos estão em falta, a satisfação é parcial para todos os seres marcados pela linguagem. O Outro deseja e, precisamente por esse motivo, é tão barrado como o próprio sujeito. A psicanálise, de Freud a Lacan, demonstra a dificuldade do humano em reconhecer a falta de consistência do Outro.

Por todo o exposto, é importante que o sujeito seja capaz de tomar certa distância de sua fantasia — a criação de apenas um intervalo — de maneira a não ser mais tão iludido por ela. A sustentação do desejo exige um espaço entre o sujeito e o quadro da sua fantasia, conforme explanado abaixo, o que guarda íntima relação com o conceito de travessia da fantasia

No seminário sobre a angústia, referindo-se à tela de Magritte, e especificamente sobre a representação de um quadro justaposto à janela, Lacan (1962-63/2005)Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63). comenta que a técnica é "absurda, sem dúvida, caso se trate de ver melhor o que está no quadro [...]" (p. 85). O comentário fica mais claro adiante, em O objeto da psicanálise (1965-66), no qual, também referido à tela de Magritte, diz que nessa imagem haveria uma contradição, na medida em que, ao se colocar um quadro precisamente defronte à janela, o resultado somente poderia submeter o ambiente interno à escuridão.

Nesse sentido, menciona a importância de haver uma diferença, um espaço, entre a janela e o quadro. Assim, aponta para a separação necessária entre o que conceitua como plano do sujeito — a janela — e o plano da fantasia — o quadro.12 12 Inédito. Aula de 25 de maio de 1966. Complementa Quinet (2002): "É a partir da distância entre a janela e o quadro, ou seja, entre o plano do sujeito e o quadro de sua fantasia, que é possível postular que a fantasia possa ser afastada do sujeito [...]. A travessia da fantasia nada mais é senão essa tomada de distância a partir da qual o sujeito não confunde mais a janela e o quadro" (p. 162)

Observa-se na obra de Magritte, conforme o próprio relato do artista, a intenção de suprimir a diferença entre o conteúdo do quadro e o da janela. É isso, precisamente, que acontece na fantasia, pois sabemos que o sujeito tende a tomar o quadro da fantasia como sua janela para o mundo. Em um processo analítico, todavia, é o caso de criar um intervalo entre o quadro e a janela para não os confundir. A travessia da fantasia é aquilo que permite ao sujeito essa constatação libertadora, embora também penosa. Para sair do gozo e chegar ao tempo do desejo o neurótico deverá atravessar, sempre balizado pela angústia, a sua fantasia fundamental.

Considerações finais: mistério, real e desamparo

Ao longo de sua vida, Magritte deu uma série de testemunhos sobre sua arte. Neles, encontramos de forma reiterada um elemento central que orienta a produção de sua obra, o qual é referido simplesmente como o "Mistério" — "Para mim, a arte é o meio de evocar o mistério" (Magritte, 2009, p. 532Magritte, R. (2009). Écrits complets. Flammarion.; tradução nossa).

Em seus escritos, ele declara que esse mistério não é derivado de nenhuma doutrina, e que a ele nada pode ser comparado. Ao mesmo tempo, trata-se de um mistério sem o qual nenhum pensamento ou mundo seria possível, ou seja, que é absolutamente necessário para a realidade existir (Magritte, 2009Magritte, R. (2009). Écrits complets. Flammarion.).

Ao contrário da acepção comum, o mistério para Magritte não é algo solucionável, não é cognoscível. Seria algo como o sentimento do desconhecido, como de uma criança que vê pela primeira vez o mundo (2009).

Continuando este raciocínio, sabemos de sua rejeição a interpretações reducionistas e explicações totalizantes de sua arte, a qual estaria além de todo simbolismo — "Não há mistério 'explicável' nos meus quadros" (Magritte, 2009, p. 472Magritte, R. (2009). Écrits complets. Flammarion.; tradução nossa). Afirma ainda que "uma imagem que evoca o mistério evoca algo que não levanta perguntas e não satisfaz nenhuma curiosidade" (p. 504; tradução nossa). O mistério, portanto, está além do saber, do que pode ser capturado pelo simbólico.

Magritte via também o recurso à metáfora como um "passatempo de exegetas" — "Se eu pinto um céu de sangue ele realmente é aquilo. Não há metáfora" (p. 720; tradução nossa). Em suma, o mistério seria algo que o artista busca evocar nos inúmeros objetos que sua pintura representa, mas que é elusivo, sempre escapa, está além de toda representação.

Com base nessa descrição, muito embora sumária, entendemos que sua noção de mistério pode ser considerada uma intuição artística sobre aquilo que Lacan viria a desenvolver nas trilhas do registro do real, ao que sempre escapa à simbolização, ao que não cessa de não se escrever, apesar do cabal esforço subjetivo em "costurá-lo" por meio das palavras. Algo para além das palavras evocado pelo próprio esforço de representar.13 13 Por outro lado, entendemos que para o artista, assim como para o místico, esse contato com a ausência de sentido radical ligada ao registro do real acaba sendo mediada, de alguma forma, pelo campo do sentido (imaginário), encontrando formas de expressão, por exemplo, na noção de "mistério" (Terêncio, 2011). Por óbvio não se trata de igualar noções distintas, senão apenas de apontar suas ressonâncias — falamos de uma confluência entre arte e psicanálise no sentido da proposta de uma organização em torno do vazio (Regnault, 2001Regnault, F. (2001). Em torno do vazio – a arte à luz da psicanálise. Contra Capa.).

Curiosamente, em entrevista concedida em 1967, eis que o próprio artista trouxe uma definição do real à diferença da realidade que muito se aproxima da psicanalítica: "[...] mas o real não é essa coisa vulgar e fácil que nos rodeia imediatamente. O real em si mesmo, é apenas em certos momentos que se tem a sensação disso. E é esse real que eu tento evocar com minhas pinturas" (Magritte, 1967Magritte, R. (1967). René Magritte: révolution et scandale. Disponível em: <https://www.ma.fr/ina-eclaire-actu/video/i05286888/rene-magritte-revolution-et-scandale>.
https://www.ma.fr/ina-eclaire-actu/video...
; tradução nossa).

Compreendemos que sua orientação ao "mistério do mundo" o distanciou da psicanálise comumente praticada em sua época, afirmando que a disciplina freudiana só permitia interpretar o que estava aberto à interpretação. Suas palavras são duras:

A arte, conforme a concebo, é refratária à psicanálise: ela evoca o mistério sem o qual o mundo não existiria, isto é, mistério que não se confunde com um tipo de problema, por mais difícil que seja. [...]. Ninguém em sua melhor razão acredita que a psicanálise poderia elucidar o mistério do mundo. A natureza do mistério, precisamente, aniquila a curiosidade. A psicanálise também não tem nada a dizer sobre as obras de arte que evocam o mistério do mundo [...] (Magritte, 2009, p. 558Magritte, R. (2009). Écrits complets. Flammarion.; tradução nossa)

Conforme aludido, Magritte parecia se contrapor a essa determinada psicanálise na qual imperava um afã interpretativo sem limites, a qual se transformara em uma espécie de hermenêutica, em busca incessante pelo campo do sentido, isto é, do outro sentido para todo conteúdo manifesto (inclusive nas artes). Lembremos que o mistério, para Magritte, aniquila a curiosidade — a procura pelo saber, pelo sentido, sempre restrito ao campo simbólico-imaginário.

Mencionamos anteriormente que o artista se antecipa ao psicanalista na ciência da alma. No compasso da aproximação proposta por Roudinesco entre Magritte e Lacan,14 14 Observamos que também Latour (2017) salienta algumas confluências entre os pensamentos de Magritte e de Lacan. entendemos que o artista propõe uma reflexão no campo das artes que encontra ressonâncias naquilo que Lacan traria, mais tarde, para o seio da psicanálise — a torção da direção do tratamento ao "saber fazer" (savoir faire) com o não sabido, com o não sentido radical.

Sabemos que na última fase de sua clínica, a interpretação e a direção do tratamento não se situam mais do lado da busca infinita de mais significação, de outro sentido implicado na fala no sujeito (o "fazer saber" [faire savoir] na medida em que não há "Outro do Outro". Há um ponto oco no sintoma que não permite mais interpretações. A partir daí só se pode "saber fazer" (savoir faire) com ele, com o sintoma agora elevado ao estatuto de sinthoma (Lacan, 1975-76/2007Lacan, J. (2007). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1975-76).).

Por todo o exposto, seria mesmo esse "mistério" mencionado por Magritte, no sentido de uma evocação ao real em sua relação de mútua exclusão com o simbólico e o imaginário, que parece ter capturado Lacan na tela A condição humana. Imagem ímpar de nossa condição trágica como falantes: orientamo-nos à janela para o real, mas esse contato — tão buscado quanto evitado — precisa necessariamente ser mediado pelo quadro da fantasia. Esta é estruturante para o sujeito, no entanto, a proximidade excessiva de seu quadro tende a constituir uma realidade tecida por sentidos muito fixos e incapacitantes, afastando-o, em última análise, do campo do desejo que a própria fantasia suporta.

A travessia da fantasia, representável como a criação de um intervalo entre o quadro da fantasia e a janela para o real, leva o sujeito ao contato, ainda que fugidio, com o real da pulsão,15 15 Lacan (1963-64/1988b) comenta a respeito na forma de uma interrogação: "A saber, depois da distinção do sujeito em relação ao a, a experiência da fantasia fundamental se torna a pulsão. O que se torna então aquele que passou pela experiência dessa relação, opaca na origem, à pulsão? Como, um sujeito que atravessou a fantasia radical, pode viver a pulsão?" (p. 264). para além do enquadramento ou encarceramento da satisfação pulsional. Falamos do confronto com o real da ausência de objeto último da pulsão, do Outro inconsistente, e da ausência de sentido radical. Real, também, do desamparo, do desarvoramento absoluto — da morte.

Sobre a condição humana e o fim de análise, Lacan (1959-60/1988a)Lacan, J. (1988a). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60). sustenta, em bela passagem:

Coloco a questão — o término da análise, o verdadeiro, quero dizer aquele que prepara a tornar analista, não deve ela em seu termo confrontar aquele que a ela se submeteu à realidade da condição humana? É propriamente isso o que Freud, falando da angústia, designou como o fundo onde se produz seu sinal, ou seja, o Hilflosigkeit, a desolação, onde o homem, nessa relação consigo mesmo que é sua própria morte [...] não deve esperar a ajuda de ninguém" (p. 364; grifos nossos)

A essa realidade da condição humana, o desamparo diante da morte, uma psicanálise não pode, certamente, se furtar a conduzir. Por outro lado, haveria, quiçá, uma fruição possível de nossa condição, por assim dizer, sem "véu"? Finalizamos com o testemunho do artista: "O mistério continua intacto, mesmo que a morte seja apenas a morte" (Magritte, 2009, p. 720Magritte, R. (2009). Écrits complets. Flammarion.; tradução nossa).

  • 1
    Inédito. Aula de 14 de junho de 1967.
  • 2
    Tendência que o próprio Magritte exemplifica em carta de 12 de março de 1937 aos amigos sr. e sra. Loius Scutenaire, quando descreve que seu quadro Le modèle rouge (1935) foi interpretado por dois psicanalistas como um caso de "castração". Desabafa: "É terrificante ver o que se está exposto ao fazer uma imagem inocente" (conforme citado por Torczyner, 1978, p. 58Torczyner, H. (1978). René Magritte: le veritable art de peindre. Draeger.; tradução nossa).
  • 3
    Há duas versões do texto, sendo que ambas finalizam comparando o efeito causado pelo quadro a uma espécie de déjà vu ou fausse reconnaissance: "Situamos, da mesma forma, às vezes no passado, algo que está acontecendo no presente. O tempo e o espaço perdem então aquele sentido grosseiro que só a experiência cotidiana leva em conta" (Magritte, 2009, p. 122Magritte, R. (2009). Écrits complets. Flammarion.; tradução nossa).
  • 4
    Segundo Sauval (2008)Sauval, M. (2008). Referencias – sesión del 14 de noviembre de 1962. "La angustia" – J. Lacan. Disponível em: <https://www.sauval.com/angustia/referenciasl.htm>.
    https://www.sauval.com/angustia/referenc...
    , dessa comunicação de Lacan se tem registro apenas das notas tomadas por Claude Conté e Irene Roublef anexadas à versão crítica transcrita por Michel Roussan do Seminário 10 – A angústia (1962-63). Trabalhamos com a versão dessas notas traduzidas para o espanhol na versão crítica de Ricardo E. Rodriguez Ponte do mesmo seminário: "Lacan, J. Jornadas de Otoño de 1962 (Octubre). Introducción al seminario sobre La angustia. Intervención en las Jornadas Provinciales de la Sociedad Francesa de Psicoanálisis, el 21 de Octubre de 1962. Notas tomadas Claude Conté y Irene Roublef. In Lacan, La Angustia (versión crítica), establecimiento del texto, traducción y notas de Ricardo E. Rodriguez Ponte" [Inédito].
  • 5
    Destacamos aqui um possível engano, uma vez que essa obra tem data de criação posterior à comunicação de Lacan.
  • 6
    Inédito, ver nota de rodapé n. 4.
  • 7
    Inédito. Aula de 25 de maio de 1966.
  • 8
    Inédito, aula de 11 maio de 1966. Essa comparação de Lacan é observada por Quinet (2002)Quinet, A. (2002). Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Zahar. e Rivera (2013)Rivera, T. (2013). O avesso do imaginário. Cosac Naify..
  • 9
    Inédito, ver nota de rodapé n. 4.
  • 10
    Seminário 13 – O objeto da psicanálise (1965-66, inédito), aula de 18 de maio de 1966.
  • 11
    É importante lembrar que Freud e Lacan indicaram também outro importante destino da pulsão, a sublimação, que não passa pelo recalcamento. Ademais, Lacan considerou a existência de outras formas de amarração possíveis entre os três registros psíquicos: citando o exemplo de James Joyce, chega a comunicar a possibilidade de se fazer suplência ao Nome-do-Pai por meio do sinthoma (Lacan, 1975-76/2007Lacan, J. (2007). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1975-76).).
  • 12
    Inédito. Aula de 25 de maio de 1966. Complementa Quinet (2002)Quinet, A. (2002). Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Zahar.: "É a partir da distância entre a janela e o quadro, ou seja, entre o plano do sujeito e o quadro de sua fantasia, que é possível postular que a fantasia possa ser afastada do sujeito [...]. A travessia da fantasia nada mais é senão essa tomada de distância a partir da qual o sujeito não confunde mais a janela e o quadro" (p. 162)
  • 13
    Por outro lado, entendemos que para o artista, assim como para o místico, esse contato com a ausência de sentido radical ligada ao registro do real acaba sendo mediada, de alguma forma, pelo campo do sentido (imaginário), encontrando formas de expressão, por exemplo, na noção de "mistério" (Terêncio, 2011Terêncio, M. G. (2011). Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan. EdUFSC.).
  • 14
    Observamos que também Latour (2017)Latour, M.-J. (2017). La psychanalyse d'après Freud. Champ lacanien, 20(2), 111-126. salienta algumas confluências entre os pensamentos de Magritte e de Lacan.
  • 15
    Lacan (1963-64/1988b)Lacan, J. (1988b). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1963-64). comenta a respeito na forma de uma interrogação: "A saber, depois da distinção do sujeito em relação ao a, a experiência da fantasia fundamental se torna a pulsão. O que se torna então aquele que passou pela experiência dessa relação, opaca na origem, à pulsão? Como, um sujeito que atravessou a fantasia radical, pode viver a pulsão?" (p. 264).

Referências

  • Amigo, S. (2012). Clínica de los fracasos del fantasma. Letra Viva.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2022
  • Aceito
    08 Mar 2023
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