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História filosófica da hipocondria e da histeria (1833)

ENSAIO

História filosófica da hipocondria e da histeria (1833)* * Publicado originalmente em Dubois, E.F. Histoire philosophique de l'hypocondrie et de l'hystérie. Paris: Librairie de Deville Cavelin, 1833. Tradução das páginas 11 a 23, realizada por Sophie Maurissen. Revisão técnica de Mário Eduardo Costa Pereira.

Frédéric Dubois d'Amiens

Nasceu em Amiens (França) em 30 de dezembro de 1799 e faleceu em Paris em 10 de janeiro de 1873. Médico e membro da Academia de Medicina de França na qual ocupou o cargo de secretário perpétuo durante 37 anos, Dubois d'Amiens destaca-se pelo seu papel decisivo desempenhado na história do magnetismo e foi vencedor do concurso da Sociedade Real de Medicina de Bordeaux graças ao seu estudo realizado sobre a hipocondria

II Denominações diversas – Definições dos autores – Classificações

Um rápido olhar sobre as diversas denominações sucessivas impostas à hipocondria bastaria para ter a convicção de que ora se quis designar a sede precisa da lesão primitiva, verdadeiro ponto de partida dos fenômenos mórbidos, ora assinalar um sintoma predominante, podendo por si só constituir ou no mínimo caraterizar esta afeção.

Num sentido etimológico, tal como Georget, não pretendemos encontrar a sede e penetrar na natureza íntima da hipocondria; contentar-nos-emos em fazer algumas observações sobre as principais variações desta sinonímia.

Relativamente à sede, a região do epigástrio e os hipocôndrios foram sempre especialmente designados; ainda que não possamos realmente encontrar a sede da hipocondria nessa região, é de realçar que não é sem razão que a atenção dos observadores tem estado particularmente orientada para esse ponto. Com efeito, é daí que surgem os sintomas mais propícios a afetar o comum dos mortais, ou seja, os sintomas predominantes do segundo período.

A palavra hipocondria indicava então a sede aproximativa, tal como o morbus mirachialis dos árabes. Mas qual era o órgão especialmente e primitivamente afetado? Qual era a natureza da afeção? Existem várias vísceras nos hipocôndrios. Aqui segue uma observação de Mercurial, precisamente no caso que aqui nos interessa: in hypochondriis complura sunt viscera, segundo ele (de Melan, cap. IV ) e não sabemos a que tipo de lesão se referem os autores et quo affectu afficiantur viscera.

Relativamente ao sintoma designado por patognomónico, as variações são mais numerosas; por vezes o foco era posto nas disposições morais dos doentes, por vezes na cor tênue da sua pele, na emaciação da economia, por vezes ainda somente na secreção insólita de gás, que às vezes tem lugar no estômago e nos intestinos dos hipocondríacos. Daí as expressões morbus niger, morbus resiccatorius, morbus corruptorum, παθοζ φυστωδεζ etc.

No que diz respeito à histeria, ponto de partida dos sintomas, ainda que bastante obscuro, pelo menos na maioria dos casos, não existiram muitas variações. O órgão primitivamente lesionado foi quase sempre designado pelos autores; os erros não foram menos numerosos, mas se concentraram sobretudo no gênero de lesão de que supúnhamos o órgão afetado. É por essa razão que podemos também encontrar uma multidão de sinonímias entre os diversos autores, que passamos a analisar:

Nos gregos: η πυιζ υστεριχη, η πυιε τη ευ γαστρι, υπερχιυυισιζ etc. Nos latins: hysteria, hystericismus, hysteriasis, hysteris, malum hystericum, morbus hystericus, adfectio hysterica, uteri adscensus, morbus strangulatorius, suffocatio uterina, hysteralgia, passio hysterica, uteri dolor, hysterergia medica, vapores uterini, dyspnœa hysterica, strangulatio vulvœ, strangulatio hysterica, asthma uteri etc., etc.

Nos franceses: hystérie, hystéralgie, mal de mère, vapeurs utérines, névroses utérines etc.

Nos alemães: die hysterie, mutterbeschwerde, mutterkrankheit, mutterweh, hysterisches webel, mutterkrämpfe** ** Sic (N. da T.) etc., etc.

Nos ingleses: hysterical fits, hysteriok passion, rising of the mother etc.

Assim, por vezes, os autores pensaram ter encontrado a causa de todas as desordens da histeria na constrição, no estrangulamento do útero, por vezes ainda no deslocamento desse órgão, ou então nas lesões orgânicas; a escolha de uma palavra que não fosse tão carregada de preconcepções talvez devesse ter sido preferida; ela teria pelo menos o mérito de não ter contribuído para atrasar os progressos da ciência reeditando erros passados. No entanto, atualmente, um acordo sobre a acepção a atribuir à palavra histeria seria suficiente para conservar e justificar o seu uso gen eralizado . Apesar das explicações de M . Louyer-Villermay, a palavra histeralgia, renovada desde há algum tempo, não convém, o seu significado é demasiadamente vicioso e ela também não convém à inflamação da matriz. Não nos atardaremos mais sobre estas distinções que, afinal de contas, não são mais do que distinções de palavras.

III. Passemos à classificação . Hoje em dia, é mais difícil que nunca encontrar-se um entendimento sobre o lugar a atribuir, num quadro nosológico, à hipocondria e à histeria.

Da mesma forma que se obscureceram os dados diagnósticos ao querer simplificá-los, isto é, ao querer fazer corresponder diretamente, e em todos os casos patológicos possíveis, uma série bem determinada de sintomas a uma lesão material igualmente determinada, assim como, ao procurar continuamente diminuir os quadros nosológicos, acabou por se tornar impossível a classificação de uma multidão de doenças, especialmente das duas que nos interessam.

Após a eliminação das febres essenciais seguiu-se a eliminação das neuroses; depois desta veio a eliminação das alterações orgânicas: as duas primeiras, devido a nossa negação da sua existência, as últimas porque foram olhadas como formas variadas ou como produtos da inflamação. Se só consultássemos alguns autores modernos, encontraríamos somente a hipocondria e a histeria na ordem das hidroflegmasias abdominais (Pujol, Broussais etc.); o que repugna aos fatos de observação, como veremos mais adiante.

Mas vejamos mais adiante, sem no entanto aí atribuir, por enquanto, outra importância que a autoridade de alguns autores relativamente à classificação destas duas doenças.

A classe das vesânias, na qual Sauvages inseriu, com a hipocondria, tanto simples sintomas quanto doenças de uma natureza essencialmente diferente, tornou-se tão extensa nas suas mãos que somos forçados a admitir que ela não permite conjeturar em nada as diferenças da hipocondria e da histeria: basta dizer que a vertigem, o escotoma, a demonomania etc., etc., se encontram incluídos nessa classe. Reconheçamos, no entanto, que este nosologista entrevia vagamente na hipocondria um desvio das faculdades intelectuais como ponto de partida e origem primeira de todas as desordens, e a histeria parecia-lhe em primeiro lugar estar mais relacionada com os espasmos, fora da esfera da inteligência e independente das volições.

Joseph Franck manteve a histeria nas afeções espasmódicas. Haase quis especificar esse tipo de lesão, mas a sua divisão é mais arbitrária.

É evidente que M. Louyer-Villermay se perdeu nas ramificações da sua árvore nosológica: ele situa primeiro a histeria na classe das neuroses, seguindo o exemplo de Cullen e Pinel; em seguida insere-a na lista das vesânias e isto porque alguns autores confundiram esta doença com a hipocondria, que para M. Louyer é também uma vesânia. Mas ainda não é tudo; tendo necessidade de um gênero e mesmo de uma espécie, este autor volta às neuroses e considera que as neuroses da generação formam o gênero e as neuroses genitais da mulher, a espécie. Um autor estrangeiro (Lowenthal) exclama com razão: Hone classificationem mirati sumus! Compreendemos talvez, então, que M. Louyer-Villermay – que se declarou inteiramente partidário da distinção das nossas duas doenças, com ideias tão pouco rigorosas – nos será de bem fraca ajuda na sequência do nosso trabalho.

Ao ver o quanto este autor desconhece a natureza da hipocondria, na definição que deu a esta doença, este pressentimento será mesmo justificado.

Em vez de seguir o caminho vislumbrado por Sauvages e indicado por Linnée, isto é, em vez de determinar, como tentaremos fazer, qual é o estado de inteligência no início dessa afeção, M. Louyer-Villermay diz seriamente que é uma afeção eminentemente nervosa que reside numa maneira de ser do sistema nervoso, que vivifica os órgãos digestivos: daí se conceba que ele a situe na classe das neuroses, para voltar à ordem das vesânias etc., etc. Seguindo a expressão de Georget, raciocinar assim é seguramente ensinar muito pouca coisa. Sem ter atingido a meta, segundo nós, Georget diz com razão que os fenômenos característicos da hipocondria vêm da cabeça, enquanto que para a histeria encontramos o seu fenômeno característico nos ataques convulsivos. Confessemos, no entanto, que a sede desta última doença lhe parece ainda estar na cabeça: é um erro que procuraremos combater noutros lugares. Por enquanto, queremos apenas tomar em consideração essa confissão e mostrar que um bom observador é sempre útil na ciência, mesmo deduzindo falsas consequências porque os fatos permanecem; enquanto que, ao sustentar uma boa tese, um autor pouco judicioso não terá qualquer utilidade.

Ainda há mais, e podemos dizê-lo hoje, procurar minuciosamente a ordem à qual deve pertencer tal doença e em seguida o gênero, depois a espécie, a variedade etc., etc. é dedicar-se a um trabalho estéril. Apesar destes métodos serem úteis aos naturalistas para agrupar as famílias de seres organizados, em medicina eles podem ser nocivos, inspirando insensivelmente falsas ideias sobre a natureza das doenças e sobre as suas analogias. O espírito, de fato, acaba por esquecer que se tratam apenas de simples modificações impressas pela economia animal; de certa forma, familiariza-se com esta ideia de que se trata de distribuir metodicamente individualidades abstratas, e emprega todas as suas forças a meditar sobre seres de razão.

Não procuraremos, portanto, classificar a hipocondria e a histeria à maneira dos nosologistas, procuraremos ainda menos defini-los; contentar-nos-emos em resumir a ideia geral que nos fazemos dessas duas doenças e indicaremos assim qual o sentido a que serão dirigidos todos os nossos trabalhos; é como uma solução que desde já assinalamos, mas cujos elementos serão sucessivamente discutidos em cada capítulo do nosso livro.

III. A hipocondria consiste, na nossa opinião, primitivamente num desvio, ou melhor, numa importuna aplicação das forças da inteligência humana; veremos mais adiante que tudo parte daí nessa doença, que tudo pode ser referido a isso; é nesse sentido que podemos considerar esta afeção como uma monomania bem distinta, visto que ela se caracteriza por uma preocupação dominante, especial e exclusiva, quer dizer, ou por um medo excessivo e contínuo de doenças bizarras e imaginárias, ou pela íntima convicção de que as doenças, na verdade reais, mas sempre mal apreciadas, só poderão acabar de forma funesta.

No estado primitivo dessa doença, não existe outra coisa; e mais tarde, isto é, nos últimos períodos, é ainda o que existe de melhor caracterizado, de mais positivo e de mais constante; o resto encontra-se sempre sob a dependência dessa lesão primordial do intelecto.

Esta doença é exclusiva do espírito humano; é mais específica aos homens que às mulheres, devido às causas que daremos a conhecer; como constataram os mais antigos observadores, ela é apirética, absque febre sitique, obscura e, por fim, pouco conhecida quanto à filiação dos seus caracteres fenomenológicos, porque ainda não foi rigorosamente analisada.

Para ser bem apreciada, a histeria deve ser seguida em todos os seus acidentes sintomáticos; é muito difícil dar uma ideia tanto geral como precisa da histeria. Todavia, podemos dizer que vemos como caráter fundamental dessa doença uma perturbação violenta, ordinariamente brusca, sempre intermitente da inervação geral; perturbação determinada por uma sobre-excitação ou irritação nervosa local que, mais adiante, daremos a conhecer particularmente, mas que, em todos os casos, é bem distinta das irritações vasculares.

Esta doença é igualmente apirética, exclusiva das mulheres e perfeitamente distinta da hipocondria por todos os elementos que constituem as doenças.

Este é o julgamento que acreditamos poder enunciar a priori sobre estas duas afeções, reservando-nos demonstrar rigorosamente a sua exatidão no prosseguimento deste trabalho.

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    Publicado originalmente em Dubois, E.F.
    Histoire philosophique de l'hypocondrie et de l'hystérie. Paris: Librairie de Deville Cavelin, 1833. Tradução das páginas 11 a 23, realizada por Sophie Maurissen. Revisão técnica de Mário Eduardo Costa Pereira.
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    Sic (N. da T.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012
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