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A temporalidade da metapsicologia freudiana: algumas contribuições sobre a transmissão*1 *1 Trabalho extraído da dissertação de Ruth Arielle Nascimento Viana, intitulada A historicidade da pulsão e a transmissão da cultura, orientada pela profa. dra. Caciana Linhares Pereira. Expressamos nossa gratidão à subvenção da CAPES.

On the temporality of Freud’s metapsychology: some thoughts about transmission

La temporalité de la métapsychologie freudienne: quelques contributions sur la transmission

La temporalidad de la metapsicología freudiana: algunas contribuciones sobre la transmisión

Resumos

O artigo parte da hipótese de que a pulsão estabelece relações fundamentais com a transmissão. O estudo desta relação pode trazer contribuições para o avanço da psicanálise no que a mesma aposta numa dimensão historicizante do advento do sujeito. Assim, articulamos noções fundamentais para a psicanálise, como as de mito, ficção e trauma, em sua relação com as condições de surgimento particulares que constituem a metapsicologia. Tais desenvolvimentos visam contribuir para estudos que enfrentam dilemas tão presentes nos debates em torno da história e da memória, culminando em um questionamento da noção de representação. O artigo se situa, então, num campo de problematização em torno da transmissão buscando apreender quais as consequências que noções que são vitais à metapsicologia, como as de inconsciente e pulsão, podem aportar ao debate em torno da história e do tempo.

Palavras-chave:
Psicanálise; transmissão; metapsicologia; tempo


This article is based on the hypothesis that the concept of drive establishes fundamental relations with transmission. Studying this relation may contribute to the advancement of psychoanalysis as it relies on a historicizing dimension of the subject’s advent. Thus, we associate fundamental psychoanalytical concepts, such as myth, fiction and trauma in their relation to the particular conditions of emergence that constitutes metapsychology, aiming to contribute to the studies that face the dilemmas of debates on history and memory, and eventually question the concept of representation. Therefore, this article discusses transmission and seeks to understand which consequences of vital concepts of metapsychology, e.g. the unconscious and the drive, may contribute to the debate on history and time.

Key words:
Psychoanalysis; transmission; metapsychology; time


Cet article suppose que la pulsion établit des relations fondamentales avec la transmission. L’étude de cette relation peut contribuer à l’avancement de la psychanalyse en ce qu’elle signale une dimension historisante de l’avènement du sujet. Ainsi, nous articulons des notions fondamentales pour la psychanalyse, telles que celles de mythe, de fiction et de traumatisme, dans leur relation avec les conditions d’émergence particulières qui constitue la métapsychologie. Ces développements ont pour but de contribuer aux études qui se heurtent aux dilemmes dans les débats sur l’histoire et la mémoire, aboutissant fondamentalement à une remise en question de la notion de représentation. Donc, l’article se situe dans un champ de problématisation autour de la transmission cherchant à comprendre les conséquences que des notions essentielles à la métapsychologie - telles qu’inconscient et pulsion - peuvent contribuer au débat sur l’historicité et le temps.

Mots clés:
Psychanalyse; transmission; métapsychologie; temps


El artículo asume que la pulsión establece relaciones fundamentales con la transmisión. El estudio de esa relación puede hacer importantes contribuciones al avance del psicoanálisis en el sentido de que esta apuesta por una dimensión historizante del advenimiento del sujeto. Así, articulamos nociones fundamentales para el psicoanálisis, como las de mito, ficción y trauma, en su relación con las condiciones de emergencia particulares que constituyen la metapsicología. Esos desarrollos tienen como objetivo contribuir a los estudios que enfrentan dilemas tan presentes en debates sobre la historia y la memoria, culminando en un cuestionamiento sobre la noción de representación. Por lo tanto, el artículo se sitúa en un campo de problematización sobre la transmisión y busca comprender cómo las consecuencias y nociones que son vitales para la metapsicología, como las del inconsciente y la pulsión, pueden contribuir al debate sobre la historia y el tiempo.

Palabras clave:
Psicoanálisis; transmisión; metapsicología; tiempo


Introdução

Condições de surgimento da metapsicologia e o lugar da experiência e do conhecimento na psicanálise

O tratamento que a psicanálise conferiu ao advento do sujeito na cultura promoveu, no século XX, um modo de pensar a acepção da temporalidade, a partir da inclusão do inconsciente, que reverberou em campos diversos como o da História, Antropologia e Literatura (Certeau, 2016Certeau, M. (2016). História e psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte, MG: Autêntica.). Em sentido inverso, a psicanálise também sofreu os efeitos das profundas transformações que abalaram noções como as de historicidade e representação, desembocando em um novo tipo de consideração da temporalidade produzida nesse momento histórico.

O inconsciente, como figura que estabelece a novidade do saber psicanalítico (Rudge, 2009Rudge, A. (2009). Trauma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.), traz, para o tratamento da experiência e do conhecimento, a possibilidade de ficcionar. Nesse modo de operar com o conhecimento, há também um modo específico de conceber a interveniência do tempo na constituição da realidade:

Freud chega a uma surpreendente conclusão e transforma o que poderia ser um impasse numa abertura para o campo da psicanálise. Sua conclusão é que o inconsciente funciona de forma tal que é impossível distinguir a verdade da ficção investida de afeto. (Rudge, 2009Rudge, A. (2009). Trauma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 24; grifo nosso)

A partir dessa observação, Freud enunciará a recomendação de que se deve equacionar realidade e fantasia abandonando qualquer preocupação de avaliar se os acontecimentos infantis relatados por seu analisando são realidade ou fantasia.

No movimento de tornar indissociáveis, então, a realidade e a fantasia, o indivíduo e a coletividade, intervindo no limite da apreensão da experiência humana entre a simples oposição entre verdade ou mentira, através da criação da noção de “realidade psíquica”, Freud recorre ao mito como uma ferramenta que promove uma báscula entre a ficção e o modo como a ciência aborda o conhecimento. Aqui se apresenta a importância da ferramenta mitológica, que permite à metapsicologia se desfazer de contradições e oposições dicotômicas finais, como essa da verdade ou mentira, ou a do individual e coletivo.

Acerca do que é próprio, então, da metapsicologia, encontramos em Assoun (1991)Assoun, P. L. (1991). O freudismo. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. importantes apontamentos sobre como sua construção implica uma forma de trabalho que dialoga com uma dimensão “mítica” e que, ao mesmo tempo, produz reformulações a partir da experiência. Assim, para ele, “não existe exposição metapsicológica completa” (p. 41).

A metapsicologia, work in process [trabalho em andamento, grifo do autor, tradução livre] por excelência, deve sua fecundidade ao aprofundamento de uma coerência que caminhou de mãos dadas com uma exploração em “rede” [...] O sentido heurístico do freudismo se sustenta nessa retomada incessante que contém a lógica das inovações metapsicológica ulteriores. (p. 39)

Em “O Inconsciente” (1915/2006), sobre o modo da metapsicologia trabalhar, Freud também afirma:

Nesse aspecto, nosso trabalho é livre e que podemos proceder segundo as necessidades que forem se impondo. Contudo, é útil lembrar que, antes de tudo, nossas suposições têm apenas sentido figurado, são esquemas descritivos para que visualizemos melhor os processos. (p. 26)

A metapsicologia, além de ser marcada por uma incompletude (o que garante que a experiência seja passível de trazer novos dados para a teoria), também tem por característica a impossibilidade de uma representação completa ou de uma correspondência ideal entre a simbolização e a experiência. O reconhecimento dessa impossibilidade produz efeitos no interior da teoria e permite situar a importância epistemológica e ética do mito, intrínseca a esse “proceder segundo as necessidades que forem se impondo”, cujo modo de formalizar implica “esquemas descritivos para que visualizemos melhor os processos”. A possibilidade de abstração do mito e, ao mesmo tempo, a simbolização integral da experiência ser sempre tida como impossível, provocam um outro modo de fazer ciência que exige levar em conta o resto do encontro da psicanálise com o ordenamento próprio do ideal da ciência.

Freud insistia na afirmação de que a psicanálise não é uma Weltanschauung (Assoun, 1991Assoun, P. L. (1991). O freudismo. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 30). Vejamos, com Assoun, três importantes apontamentos presentes em uma das últimas conferências de Freud (p. 30): “1) Não existe uma Weltanschauung psicanalítica. 2) A psicanálise não adere a nenhum outro credo senão ao da ‘Weltanschauung científica’. 3) A ideia de Weltanschauung como explicação totalizante é incompatível com o conceito de ciência”. Considerando essa provocação de Assoun sobre a metapsicologia se configurar como a possível visão de mundo psicanalítica, é exatamente por esse modo particular de considerar a visão de mundo que afirmamos que a metapsicologia, necessariamente, precisa estar inacabada, posto que a única Weltanschauung possível para a psicanálise, segundo Freud, seria a científica, e esta, apenas pode ser científica, enquanto tal se encontra inacabada. O limite de simbolização integral da experiência, é o caso de sublinhar, não implica um limite situado no interior de um aparelho psíquico que se posicionaria diante de uma realidade anteriormente dada, mas um limite na realidade mesma que, enquanto realidade psíquica, estrutura-se em torno desse núcleo impossível e destitui as fronteiras entre interior e exterior a partir da tomada da fala e do corpo como superfícies que não comportam tal modo de divisão.

Assoun (1991, p. 39)Assoun, P. L. (1991). O freudismo. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. relembra Freud quando o mesmo afirma que “sem uma especulação e uma teorização - por pouco eu não disse um fantasiar (Phantasieren [no alemão]) - metapsicológica, não daremos um passo adiante” (“Análise terminável e interminável”, G.W., vol. XVI, 69 [E.S.B., vol. XXIII]). Esse elemento do fantasiar e da consideração de novos elementos que possam movimentar a estrutura teórica especulativa não seria a consideração da dinâmica própria à pulsão? Não seria um modo de tratar a experiência que a manteria passível de leitura - como metapsicologia - e que, ao mesmo tempo, manteria seu estatuto (ético) de abertura e transformação? A metapsicologia e a proposição do inconsciente inaugurariam, assim, um novo modo de tratar a experiência humana e o conhecimento. Mas, de que modo a construção do aparelho psíquico produziu novas possibilidades e um novo tipo de inteligibilidade em torno da experiência?

Em “O inconsciente” (1915/2006), a metapsicologia é tomada a partir da delimitação que produz - e suporta - entre razão e mito, suportando o tensionamento entre razão (logos) - “que consiste em ordenar” - e mito (mythos) - “que assume o caráter de ficção, de narrativa fantástica” (Mieli, 2013Mieli, P. (2013). Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In C. Basualdo, N. A. Braunstein & B. B. Fuks (Orgs.), 100 Anos de Totem e tabu. (pp. 125-139). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa., p. 126). Freud (1915/2006)Freud, S. (2006). O inconsciente. In L. Hanns (Ed.), Obras psicológicas de Sigmund Freud: escritos sobre a psicologia do inconsciente (Vol. 2, pp 13-74). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1915). postula nesse texto que “nossa tópica psíquica por enquanto [grifo do autor] nada tem a ver com a anatomia; ela se refere a regiões do aparato psíquico, onde quer que elas de fato possam estar localizadas no corpo [grifo nosso], e não a localizações anatômicas” (p. 27). Nesse sentido, há uma preocupação com essa dimensão de interminável da experiência que se encontra articulada à exigência de precisar a distinção entre a anatomia e o corpo. Distinção operada na formulação mesma da noção de “aparato psíquico”. Se a teoria do aparelho psíquico não se propõe a dizer a realidade última sobre, por exemplo, a localização de cada fenômeno que surge na materialidade corporal, é porque considera, o tempo todo, a tensão entre o corpo, o saber e a verdade.

Assoun (1991)Assoun, P. L. (1991). O freudismo. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. também retorna a Freud no que situa como o ato de fundação da psicanálise - ato singularmente ligado a Freud. Retomando diversos deslocamentos presentes no movimento de criação da psicanálise em relação a outras áreas de conhecimento, como o próprio corte envolvendo o conceito de sexualidade, Assoun atrela a importância do “freudismo” principalmente à indissociabilidade para com o ato de seu criador. O inacabamento formal que estamos indicando seria, portanto, sustentado por um vestígio crônico ligado ao seu ato de fundação. Assim, uma característica fundamental da psicanálise é a de estar como que estruturalmente ligada a seu ato de fundação: “Designaríamos no freudismo, nesse sentido, não mais um ‘suplemento de subjetividade’ da psicanálise, porém o que permanece presente na psicanálise como vestígio crônico, material e irrecusável, de seu ato constitutivo de fundação” (Assoun, 1991Assoun, P. L. (1991). O freudismo. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 8; grifos do autor). Podemos recolher daí que Assoun (1991)Assoun, P. L. (1991). O freudismo. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., atribuindo a originalidade da psicanálise à sua vinculação imediata ao singular do freudismo, ou seja, ao que é freudiano por excelência, indicou, nessa vinculação, a particularidade de um modo de operar com o conhecimento que inclui a experiência mesma de seu criador. A singularidade do seu ato de fundação “continua presente - não eternamente, mas hic et nunc - na efetuação da psicanálise” (p. 9).

Freud (1915/2006)Freud, S. (2006). O inconsciente. In L. Hanns (Ed.), Obras psicológicas de Sigmund Freud: escritos sobre a psicologia do inconsciente (Vol. 2, pp 13-74). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1915). situa a hipótese do inconsciente como uma suposição “necessária e legítima diante de atos psíquicos que, para serem explicados, pressupõem a existência de outros atos para os quais, no entanto, a consciência não fornece evidências” (p. 19). Continuando, observa que não haveria a possibilidade de identificar a totalidade do psíquico com a consciência, assim como não existiriam processos químicos ou físicos que pudessem explicar essa “falta de evidências” dos processos psíquicos. Os processos psíquicos deixam de ser tratados como se todos fossem conscientes (Freud, 1915/2006Freud, S. (2006). O inconsciente. In L. Hanns (Ed.), Obras psicológicas de Sigmund Freud: escritos sobre a psicologia do inconsciente (Vol. 2, pp 13-74). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1915).). James Strachey sublinha o fato de que, para Freud, “a tentativa de restringir os fatos mentais aos que são conscientes e entremeá-los de fatos puramente físicos e neurais rompe ‘as continuidades psíquicas’ e introduz lacunas ininteligíveis na cadeia de fenômenos observados” (Freud, 1915/2006Freud, S. (2006). O inconsciente. In L. Hanns (Ed.), Obras psicológicas de Sigmund Freud: escritos sobre a psicologia do inconsciente (Vol. 2, pp 13-74). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1915)., p. 14). Freud percebe uma descontinuidade entre o sujeito emissor da fala e o que esse próprio sujeito identifica como pertencendo ao estatuto de consciente, o que torna problemático considerar a totalidade do psíquico como apenas da ordem da consciência. Ele coloca que Freud (1915/2006)Freud, S. (2006). O inconsciente. In L. Hanns (Ed.), Obras psicológicas de Sigmund Freud: escritos sobre a psicologia do inconsciente (Vol. 2, pp 13-74). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1915).:

Assim como Kant nos alertou para que não nos esquecêssemos das contingências subjetivas de nossa percepção e para que não tomássemos nossa percepção como idêntica ao objeto percebido - objeto perceptível, embora de fato incognoscível -, também a psicanálise nos alerta para que não coloquemos a percepção da consciência no lugar do próprio objeto dessa percepção: o processo psíquico inconsciente. (p. 24)

Ao alertar para essa dimensão de descontinuidade que os fenômenos psíquicos apresentam com relação ao que é da consciência, Freud também resguarda, na distância entre o perceptível e o cognoscível, a dimensão do objeto como não passível de total tradução e/ou compreensão. Há um limite intransponível, na formalização da teoria, entre a percepção da consciência e o próprio processo psíquico inconsciente como objeto dessa percepção. Tudo se passa como se o inconsciente fosse o que aponta para o que é indestrutível e impossível de ser totalmente conhecido, mas também para uma abertura no interior da experiência mesma, já que diz respeito ao “aparato”, ao aparelho que realiza as operações psíquicas. Quando Freud (1915/2006)Freud, S. (2006). O inconsciente. In L. Hanns (Ed.), Obras psicológicas de Sigmund Freud: escritos sobre a psicologia do inconsciente (Vol. 2, pp 13-74). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1915). cria a “mitologia” do aparelho psíquico com a fundação do inconsciente sistemático para além de apenas descritivo, ele indica também que o humano é marcado por uma dimensão da experiência em relação à qual não pode ser totalmente consciente.

O inconsciente freudiano: a função da memória como frustração

Como Freud demonstra em seu pequeno, mas muito esclarecedor, artigo “Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico” (1911/2004), é a partir da problemática da existência do corporal como função real que se engendram as primeiras possibilidades de função psíquica. A questão em torno do princípio do prazer e do princípio de realidade, nesse momento da obra freudiana, assume um lugar importante no que tange à dificuldade de elucidar o que se encontra no núcleo da experiência humana, e que aparece sob a forma de um resto entre os mecanismos produtores do prazer e da realidade.

Em um primeiro tempo, Freud (1911/2004, p. 65)Freud, S. (2004). Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico. In L. Hanns (Ed.), Obras psicológicas de Sigmund Freud: escritos sobre a psicologia do inconsciente (Vol. 1, pp. 63-78). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1911). demarca o princípio do prazer como um núcleo duro da experiência do indivíduo, onde “[...] processos aspiram à obtenção de prazer“, e “dos atos que possam provocar desprazer a atividade psíquica se recolhe (recalque)”. Retoma a sua importante suposição de que o indivíduo teve “desde o início exigências imperiosas oriundas de necessidades internas do organismo que perturbavam o estado de repouso psíquico” (p. 65-66). Seguindo essa construção metapsicológica, aninha-se aqui uma importante problemática: a das relações entre experiência e trauma. O trauma comparece, nessa relação, apontando para uma impossibilidade do corpo em dar um destino que seria total ao afluxo de estímulos - externos, mas, sobretudo, internos - que constituem a experiência acontecida consigo.

O trauma é justamente o que aponta para esse núcleo da experiência, impossível de ser dito, que Freud sempre apontava no coração de sua teoria metapsicológica (Rudge, 2009Rudge, A. (2009). Trauma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.). Na arquitetura metapsicológica, essa impossibilidade exige ser lida a partir da separação entre o organismo e a fala -separação que marca a passagem decisiva, na espécie humana, do instinto à pulsão. A abertura que a metapsicologia comporta em sua definição encontra-se profundamente articulada à abertura que a pulsão comporta em sua diferença radical frente ao instinto.

No decorrer de sua escrita, Freud aponta que “foi preciso que não ocorresse a satisfação esperada, que houvesse uma frustração”, para provocar uma mudança na atividade psíquica, fundando a própria função do “mundo exterior” no psíquico (p. 66). O mundo exterior manteria, assim, relação com a criação de uma descontinuidade com as necessidades internas vinculadas às pulsões - descontinuidade visceral à noção de psíquico.

Rudge (2009)Rudge, A. (2009). Trauma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. afirma que, “Freud reconhecerá que as experiências traumáticas são inevitáveis na existência” (p. 34) sob o deslocamento da teoria da sedução para a da fantasia, passando a tomar o trauma como constituinte da experiência. O trauma em Freud seria, antes de tudo, “tomado como trauma necessário, que comparece na própria estruturação de toda subjetividade, que é a entrada na ordem da sexualidade” (p. 27). O contato com o fundamental da experiência humana, que é sempre experiência de corpo, é um contato sempre marcado por uma dimensão de frustração. Em um primeiro tempo, mítico, a função da “frustração” seria como a de uma serva quase que orgânica do princípio do prazer. Porém, percebe-se no texto freudiano que a função do “desagradável”, interna a esse princípio, no que marcado pela dimensão de desencontro com o objeto, teria como um de seus efeitos a produção do que seria “real” pelo psiquismo. Ou seja, não por uma agregação de informações ou maior contato acerca do objeto de prazer, mas sim por uma disjunção para com esse, pela sua possibilidade de não concordar instintivamente em ser “agradável”. O “real” se introduz numa operação de separação que extrai o objeto do que seria uma assimilação irrestrita dos estímulos. Essa experiência nodal, traumática, é crucial para que se possa considerar a possibilidade de criação psíquica.

Acerca da acepção de que “foi preciso” que isso ocorresse ao modo de uma “frustração”, Freud aponta para um modo específico de operar do aparelho psíquico pela via de um objeto que se apresenta como estritamente ausente. Isso nos leva a elaborar que o que está em questão não é que o objeto em um primeiro tempo se apresente e, em um segundo tempo, se ausente, mas que há uma função intrínseca ao modo de apresentação do objeto para o humano pela via da criação da falta. O tempo que é fundante da linguagem e da possibilidade de psiquismo é primeiramente o da ausência em si, para que a possibilidade posterior da presença do objeto possa ser suposta. Desse modo, enfatizamos que, já no tempo da presença, há um movimento de produção de uma ausência, para que seja possível a invenção da linguagem por cada humano. Temos aqui, então, a frustração não como um efeito a ser tomado como qualitativamente bom ou ruim, do ponto de vista da consciência, mas como uma operação que situa o objeto como ausente, como um procedimento necessário à produção da fala que, do ponto de vista lógico, sempre supõe uma continuação dela mesma. E isso, por quê? Vejamos com Freud (1911/2004)Freud, S. (2004). Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico. In L. Hanns (Ed.), Obras psicológicas de Sigmund Freud: escritos sobre a psicologia do inconsciente (Vol. 1, pp. 63-78). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1911).:

A remoção dos estímulos, pela via motora, que sob o domínio do princípio do prazer se incumbia de aliviar o aparelho psíquico da sobrecarga de estímulos acumulados, e para esse fim utilizava-se de inervações enviadas para o interior do corpo (mímica exteriorização de emoções), recebeu agora uma nova função, passou a ser utilizada para modificar a realidade de modo eficaz. Transformou-se em agir. (pp. 66-67)

Freud liga esse processo psíquico à possibilidade de criação do pensamento e, logo, após ao que se condensa como “realidade psíquica” e como “fantasia”. A partir da citação acima, temos que o que gera a possibilidade de ação própria desse humano é, justamente, a entrada da função do “desagradável”, a função de disjunção e desencontro do objeto (pulsional).

Podemos depreender a centralidade da experiência corporal na medida em que articula essa disjunção fundamental entre o organismo e o psiquismo. A experiência corporal se configura como motor da experiência - e o que resta dessa operação é a possibilidade de uma experiência temporal no psiquismo. E, vale ressaltar, essa experiência temporal é sempre considerada pela via de um a posteriori, por uma perda, e esta se localiza necessariamente no passado, posto que a percepção operada pelo psiquismo só pode ser realizada pela consciência em um momento posterior, pela via da lembrança, fundando a própria possibilidade da cronologia da fala. Apontamos aqui para a relação entre o modo freudiano de trabalhar com a metapsicologia e a possibilidade de compreendermos o efeito de acepção de tempo pelo psiquismo. Por hora, pensamos que a teoria da memória, em Freud, demarca um importante momento da metapsicologia no que tange a um modo específico de trabalhar com a forma como o humano apreende o conhecimento, pois exige um outro modo de apreender o tempo. Acerca de uma das conclusões que produz sobre o funcionamento da memória, Freud (1925/2007)Freud, S. (2007). Uma nota sobre o “bloco mágico”. In L. Hanns (Ed.), Obras psicológicas de Sigmund Freud: escritos sobre a psicologia do inconsciente (Vol. 3, pp. 135-144). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1925)., já posteriormente em sua obra, diz que:

Por um lado, possuiríamos um sistema P.-Cs, que recepciona as percepções, mas delas não conserva traços permanentes, de forma que a cada nova percepção ele se comporta como uma tela em branco, e por outro haveria, localizados mais atrás, “sistemas de memória” [Einnerungsysteme] responsáveis por produzir os traços permanentes dos estímulos [Erregungen] captados. Posteriormente [“Além do princípio do prazer (1920, ESPI, vol. II, p. 150)] ainda acrescentei a observação de que o fenômeno tão inexplicável da consciência [Bewusstseins] se produziria no sistema perceptivo no lugar dos traços permanentes. (p. 138)

Primeiramente, ele localiza, nesse texto, que o sistema psíquico não se comportaria apenas inscrevendo tudo o que percebe diretamente. Há aqui, desde já, a concepção da emergência de um sujeito e este em uma disjunção com o que seria a concepção de uma realidade pré-existente a ele e com a possibilidade de registrá-la por completo, já que a percepção da consciência captaria determinados traços e não a realidade como um grande bloco. Assim como, ao mesmo tempo, o que é escolhido para ser inscrito não deixa de ficar, de algum modo, em relação com o que é registrado. E no que ele indica, sobre o aparelho psíquico, que “a cada nova percepção ele se comporta como uma tela em branco”, introduz aí, desde seu texto A interpretação dos sonhos (1900[1899]/1991a), a função da memória como própria do humano e esta como produtora e capaz de engendrar a própria realidade a partir do trabalho que realiza com os traços inscritos. A memória não seria, então, apenas um reservatório desses traços, como também não totalmente apenas uma folha em branco, posto que algo se registra. O que resta, então, dessas duas concepções que não se anulam?

A partir desses questionamentos, Freud faz o movimento de supor - de um ponto de vista metapsicológico - um aparelho que poderia dar conta desse movimento duplo. Sobre esse caminho e o modo como ele encontra uma possibilidade ficcional de construir um sistema que possa de algum modo responder a esse problema, afirma que (1900 [1899]/1991a):

Há manifestas dificuldades supor que um mesmo sistema deva conservar fielmente alterações sobrevindas aos seus elementos e, apesar disso, manter-se sempre aberto e receptivo às novas ocasiões de alteração [...] Suponhamos que um sistema do aparato, o dianteiro, recebe os estímulos perceptivos, porém nada conserva deles e portanto carece de memória, e que atrás dele há um segundo sistema que transpõe a excitação momentânea do primeiro a impressões permanentes. (pp. 531-532)

Há algo, então, que possibilita esse deslizamento das impressões entre a percepção e a possibilidade de seu registro, assim como seu caminho inverso. Vale lembrar que a função do Inconsciente aqui é fundamental para desvendarmos algo acerca do que seria a memória, posto que lembrar-se implica que algo foi anteriormente esquecido, mas, ainda assim, que algo estava ou está registrado. É interessante demarcarmos que, do ponto de vista da temporalidade, isso que estava registrado antes só poderia ser acessado pela via da fala em um momento no futuro, sendo assim, a linguagem, no humano, seria o que possibilitaria de antemão um modo de compreender o tempo que faria um corte na cronologia linear.

Ainda em A interpretação dos sonhos (1900/1991a), Freud explica que:

É bem sabido que das percepções que têm efeito sobre o sistema perceptivo conservamos como duradouro algo mais que seu conteúdo. Nossas percepções se revelam também enlaçadas entre si na memória, sobretudo de acordo com o encontro na simultaneidade que em seu momento tiveram. Chamamos associação a este feito. Agora é claro que se o sistema perceptivo não tem memória alguma, tampouco pode conservar impressões para a associação; os elementos perceptivos singulares se veriam intoleravelmente impedidos em sua função se contra cada percepção nova se fizesse valer um resto de enlace anterior. Portanto, teremos que supor que a base da associação são, mais exatamente, os sistemas mnêmicos. O feito da associação consiste, então, no seguinte: a consequência de reduções na resistência e de facilitações é que desde um dos elementos mnêmicos (Mn) a excitação se propaga melhor até um segundo elemento mnêmico que até um terceiro. (p. 532)

O que resta aí, então, dessas duas concepções inventadas por Freud para dar conta do que da memória perdura e, ao mesmo tempo, da possibilidade de produzirmos mais percepções do “mundo exterior”? No que Freud (1925/2007)Freud, S. (2007). Uma nota sobre o “bloco mágico”. In L. Hanns (Ed.), Obras psicológicas de Sigmund Freud: escritos sobre a psicologia do inconsciente (Vol. 3, pp. 135-144). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1925). acrescenta à sua tese sobre a memória que “o fenômeno tão inexplicável da consciência [Bewusstseins] se produziria no sistema perceptivo no lugar dos traços permanentes” (p. 138), acreditamos que resta nos perguntarmos qual operação psíquica possibilitaria, então, o fenômeno chamado de associação. Que relação haveria entre os “novos fenômenos percebidos” e o que já estava registrado anteriormente para que haja uma operação de associação ou mesmo de “identidade” entre esses dois elementos?

Freud, ao se voltar para esse problema, indica a importância, também, do lugar da excitação ligada aos elementos percebidos e a relação disso com a dimensão de registro da experiência e, ainda, da simultaneidade envolvida na relação entre esses dados. O centro da experiência estaria ligado, então, à excitação - fenômeno corporal, por excelência - mas no qual ocorre uma relação de temporalidade (simultaneidade e, logo, frequência) entre elementos percebidos e registrados. Sublinhemos, por ora, que é a partir de uma descontinuidade entre os dois sistemas (perceptivo e mnêmico) que o “fenômeno da consciência” pode operar, como explicitado no final do texto “Uma nota sobre o ‘Bloco Mágico’” (1925/2007).

Em sua metáfora - mais uma construção ficcional metapsicológica com vistas a operar um avanço no trabalho com os dados da experiência, posto que esta não poderia, por si, ser trabalhada tal como é, posto que há um sujeito que a produz a cada vez a partir do que dela, inclusive, resiste em ser trabalhada - do aparelho psíquico em analogia com um “bloco mágico”, Freud conclui que:

Como notamos, se no bloco mágico as pausas na escrita ocorrem de fora para dentro, gerando interrupções, em nosso aparato perceptivo as interrupções são causadas por descontinuidades das ondas do fluxo de inervação; e se no bloco há periodicamente a efetiva destruição dos pontos de contato entre folha e placa de cera, em nosso sistema perceptivo há um estado de inexcitabilidade que periodicamente se instala. Finalmente, também fazia parte dessa minha hipótese a ideia que essa forma de trabalho descontínuo do sistema P.-Cs. Originalmente embasou a concepção que o ser humano tem da temporalidade. (p. 141)

Resta também, então, discutirmos a dimensão da excitação, ou seja, da importância e da frequência corporal com o qual determinado acontecimento é provido. Acreditamos que talvez seja exatamente por isso que Freud denomina o fenômeno da consciência como “inexplicável”, pois este se instala em uma descontinuidade a partir dos contrastes do “fluxo de inervação” corporal. O que gera um núcleo de uma impossibilidade mesma na compreensão da origem da consciência e, logo, da memória, posto que esta é fruto de uma descontinuidade e de uma “falha” entre os contrastes e as tentativas do organismo em produzir uma identificação direta. Desta fonte inesgotável de estímulos e acontecimentos inexplicáveis que é o corpo emerge uma função: a da linguagem.

Freud (1900/1991a)Freud, S. (1991a). La interpretación de los sueños (continuación). In J. Strachey (Ed.), Obras completas Sigmund Freud (Vol. 5, pp. 345-612). Buenos Aires, AR: Amorrortu. (Originalmente publicado em 1900 [1899]). diz, ainda, que tudo se passa como se “nos sistemas psíquicos, memória e qualidade para a consciência se excluíssem entre si” (p. 533; grifo do autor) e que, a partir disso, “abrir-se-ia para nós uma promissória perspectiva sobre as condições de excitação dos neurônios” (p. 533). Ou seja, é na descontinuidade entre o trabalho que o corpo realiza em direção ao psíquico que se funda o próprio psíquico e, em consequência, o sujeito. Há também, aí, a pressuposição de que o corpo não pode registrar estímulo ou sofrer uma excitação e, ao mesmo tempo, perceber, ou mesmo, pensar sobre. A lembrança só pode se produzir, já desvinculada, em algum nível, da estimulação corporal que a originou. Daí a necessidade da inferência lógica da existência do inconsciente, pois o que é percebido não pode ser, ao mesmo tempo, lembrado. Não há como o sujeito estar presente no momento da percepção. Apenas recordá-la na forma de um tempo passado. O momento do afeto exclui o pensamento, mas, ao mesmo tempo, o funda a posteriori, posto que só podemos pensar um acontecimento como estando no passado, avançando, concomitantemente, para o futuro. E é nessa descontinuidade entre corpo e pensamento que, como resto da operação, surge a materialidade da palavra e o sujeito como fruto, momentâneo, desse constante trabalho envolvendo pensamento e corpo. O psíquico sendo aí uma resposta e uma tentativa de dar conta da experiência corporal, no fundo, sem explicação, posto que afetação corporal, por excelência.

A realidade psíquica, corpo e trauma a partir da noção de Nachträglichkeit

Abordaremos agora a relação entre corpo e pensamento a partir da exclusão entre memória e qualidade consciente. Paola Mieli (2013)Mieli, P. (2013). Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In C. Basualdo, N. A. Braunstein & B. B. Fuks (Orgs.), 100 Anos de Totem e tabu. (pp. 125-139). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. diz que “o pensamento herda do desejo sua qualidade messiânica e sua tendência em dar respostas, seu amor pelo sentido, rumo ao recobrimento de uma completude miticamente perdida” (p. 138). O objeto perdido demarca essa função de causa para a produção desse pensamento.

Mieli (2013)Mieli, P. (2013). Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In C. Basualdo, N. A. Braunstein & B. B. Fuks (Orgs.), 100 Anos de Totem e tabu. (pp. 125-139). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. explica que em “Totem e tabu” (1912-13/1991c) há, para além de uma importante conceituação da “realidade psíquica”, uma “revolução copernicana” feita por Freud em torno da “concepção de sujeito” (p. 125). Ela chama atenção para um importante dado: o de que a “concepção metapsicológica do pensamento” presente ali “subverte a separação res cogitans e res extensa”. Mieli (2013)Mieli, P. (2013). Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In C. Basualdo, N. A. Braunstein & B. B. Fuks (Orgs.), 100 Anos de Totem e tabu. (pp. 125-139). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. demonstra, nesse seu artigo, que essa subversão “anima [...] o realismo metafísico, predominante na ciência moderna e ainda pregnante no discurso da ciência contemporânea” (p. 125). Ou seja, temos aqui um importante momento do pensamento freudiano, significativo para trabalharmos com um outro modo de conceber, por exemplo, não só a relação entre corpo e pensamento, mas a própria concepção de sujeito. A autora (Mieli, 2013Mieli, P. (2013). Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In C. Basualdo, N. A. Braunstein & B. B. Fuks (Orgs.), 100 Anos de Totem e tabu. (pp. 125-139). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa.) deixa claro que:

Desmerecê-lo [Totem e tabu] como um texto errôneo e ultrapassado em razão de suas referências etnológicas e antropológicas obsoletas, desmentidas ou politicamente incorretas, ou em razão do caráter essencialmente mítico da teoria do assassinato do pai primordial, significa não apenas ignorar o espírito investigativo característico da reflexão de Freud, como também desconhecer a questão que ele propõe a respeito da natureza do pensamento. (pp. 125-26; grifos nossos)

Esse modo de tratar as questões relacionadas à origem pela via do mito e de tratar o tempo com a noção do só-depois (Nachträglichkeit, no alemão), resulta em igualar a dimensão da “hipótese” científica com a da criação da “ficção” que, para Mieli (2013, p. 126)Mieli, P. (2013). Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In C. Basualdo, N. A. Braunstein & B. B. Fuks (Orgs.), 100 Anos de Totem e tabu. (pp. 125-139). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa., possibilita “novas contribuições in progress, que é tanto um retorno a hipóteses admitidas quanto uma nova elaboração”. Além de indicar um outro tipo de consideração da temporalidade, que inclui não só a cronologia linear que a consciência facilmente considera e reconhece, na construção teórica, ela sublinha que há também algo de específico e característico nesse modo particular de tratar a natureza da teoria, que seria o modo de apontar sempre para as limitações e impossibilidades desta. Por isso Freud admite a utilização do mito como ferramenta teórica através da metapsicologia, posto que toda teoria seria por si mesma uma mitologia, se considerarmos a dimensão de criação a partir da “realidade psíquica” do sujeito ou de uma coletividade.

Ainda com Mieli (2013, p. 127)Mieli, P. (2013). Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In C. Basualdo, N. A. Braunstein & B. B. Fuks (Orgs.), 100 Anos de Totem e tabu. (pp. 125-139). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa., retomamos Freud quando afirma que:

Não esperamos mesmo atingir esse estado real das coisas, mas entendemos que, ainda assim, devemos traduzir toda nova aquisição na linguagem de nossas percepções, da qual jamais nos libertamos por completo. Residem justamente aí a natureza e as limitações de nossa ciência [...] Podemos, de todo modo, tentar aumentar as possibilidades fornecidas pelos órgãos de nossos sentidos, valendo-nos ao máximo de meios artificiais, mas não devemos esperar que todos esses esforços alterem de algum modo o resultado final. O real permanecerá sempre “incognoscível”. (Freud, 1938, pp. 126-127)

Freud aborda que o único modo possível de tratar com as limitações da nossa percepção, da qual jamais estaríamos completamente livres, seria por meios artificiais - aqui a noção de artifício pode ser situada no nível do que é propriamente pulsional, ou seja, humano. A possibilidade de perceber e registrar de modo artificial a realidade, mas jamais ela por completo, implica então que, do ponto de vista freudiano, perceber a realidade é, ao mesmo tempo, construí-la. É por isso que ele pôde escrever textos como “Totem e tabu” (1912-13/1991c) e “Moisés e a religião monoteísta” (1939 [1934-38]/1991b), colocando em voga e em ato que o que há de próprio no humano é a capacidade de artificializar e ficcionar o real e que a realidade do sujeito vem, justamente, da sua implicação nessa possibilidade de criar seu mito individual. Há um deslocamento, aqui, no que podemos considerar como verdade, provocando, em nossa leitura, importantes consequências éticas, posto que não haveria aí mais nenhum tipo de verdade absoluta que poderíamos alcançar, assim como, ao mesmo tempo, não se relega a verdade a uma obscuridade impossível, propondo a ferramenta mitológica como uma tentativa de falar o real sem supô-lo como totalmente passível de assimilação.

Nesse caminho, retomamos também o conceito freudiano de “verdade histórica“ em oposição à “verdade material” (Freud, 1939 [1934-38]/1991bFreud, S. (1991b). Moisés y la religión monoteísta. In J. Strachey (Ed.), Obras completas Sigmund Freud (Vol. 23, pp. 1-132). Buenos Aires, AR: Amorrortu. (Originalmente publicado em 1939 [1934-38]).).Acerca deste importante e difícil tema, Mieli resume a proposta freudiana (2013, p. 128):

A realidade exterior é igualmente realidade material. Mais precisamente, com base na natureza do aparelho psíquico, pode-se definir algo como “exterior”, se ele é veiculado por uma percepção que pode desaparecer em decorrência de determinada ação. “Uma percepção que desaparece por causa de uma ação muscular é reconhecida como uma percepção exterior, como uma realidade; em contrapartida, o fato de uma ação desse tipo não causar nenhuma alteração indica que a percepção provém do interior de nosso próprio corpo, que ela não é real. (Freud, 1915b, p. 423)

A partir daqui podemos apontar para o que é da ordem da realidade, por excelência, estabelecendo algum nível, sim, de oposição ao que seria de natureza psíquica. Porém, a oposição é construída em torno das possíveis respostas da percepção do sujeito e das operações do aparelho psíquico decorrentes disso. Nesse momento verdade material e histórica se dissolvem em torno da ação do sujeito. Na concepção freudiana, então, a oposição é deslocada para os modos como o sujeito responde às suas percepções, inclusive, criando-as, ao invés de ser em torno de realidades últimas, sejam elas internas ou externas.

Mieli também esclarece sobre isso que o que está em questão é, justamente, que “um fato pensado e, portanto, desejado (entre outros, a morte de alguém, exemplo amplamente debatido em “Totem e tabu”) pode ter tanta importância na vida de um indivíduo quanto um ato realizado” (2013, p. 128). É por isso que Freud desarticula realidade material e psíquica como se fossem dois modos diferentes de realidade. A noção de realidade psíquica, e sua necessária articulação com a de fantasia, nos proporciona uma leitura dos fenômenos do pensamento como “um movimento tanto conservador, como inovador” (Mieli, 2013Mieli, P. (2013). Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In C. Basualdo, N. A. Braunstein & B. B. Fuks (Orgs.), 100 Anos de Totem e tabu. (pp. 125-139). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa., p. 129). Ela responde a um núcleo irrepresentável na constituição mesma do corpo, mantendo a “tensão sexual”, posto que, justamente, comporta, num mesmo passo, “a promessa de uma satisfação adequada” (Mieli, 2013Mieli, P. (2013). Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In C. Basualdo, N. A. Braunstein & B. B. Fuks (Orgs.), 100 Anos de Totem e tabu. (pp. 125-139). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa., p. 129).

Sobre isso, Paola Mieli (2013)Mieli, P. (2013). Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In C. Basualdo, N. A. Braunstein & B. B. Fuks (Orgs.), 100 Anos de Totem e tabu. (pp. 125-139). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa., ainda, explica que essa operação do aparelho psíquico:

Se organiza inteiramente sobre a noção de imanência, sobre um princípio de causalidade psíquica que se desenrola seguindo o batimento lógico de uma temporalidade nachträglichkeit. Com efeito, tanto o princípio de prazer quanto o advento da pulsão como motor do aparelho eliminam todo e qualquer recurso à noção de um a priori, a normas ou formas preexistentes. (p. 133)

Sigamos ainda com Mieli (2013)Mieli, P. (2013). Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In C. Basualdo, N. A. Braunstein & B. B. Fuks (Orgs.), 100 Anos de Totem e tabu. (pp. 125-139). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. observando como Freud articula três grandes sistemas de pensamento à passagem da onipotência narcísica do pensamento ao incompleto, à perda, vinculada à renúncia pulsional:

Em Totem e tabu, Freud indica a sucessão de três grandes sistemas de pensamento - animista, religioso, científico - e sublinha que a passagem de uma teoria a outra marca a transição de uma visão mais exaustiva do mundo a uma visão que o é em menor medida: a passagem da onipotência narcísica do pensamento ao incompleto, à perda, a uma renúncia pulsional. Essa passagem corresponde à aceitação progressiva do incognoscível, dos limites do que pode ser simbolizado; a aceitação da natureza provisória, limitada e relativa de toda construção de pensamento. (p. 132)

Ou seja, é no centro da noção de pulsão em sua relação constitutiva com o pensamento que o mesmo é apreendido em sua função de mascarar a função do incognoscível - ou mesmo, em outras palavras, do inconsciente como imanência do que não é consciente - que Freud localiza a função do mito como apontando, na realidade, para a incompletude estrutural da própria visão científica. Paradoxalmente, é na própria passagem a uma visão menos totalizante do mundo, indicando a dimensão de incognoscível, que a ciência pode caminhar. De um ponto de vista lógico e material, uma visão totalizante impediria a história de produzir novos elementos.

Será que é exatamente por isso que Freud nomeia a metapsicologia de sua feiticeira? (Assoun, 1991Assoun, P. L. (1991). O freudismo. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.) Posto que a mesma é filha do modo de fazer ciência presente no século XIX e, portanto, busca o avanço mesmo da ciência - mas, ao mesmo tempo, talvez sem que ele mesmo se desse conta, aponta para novos elementos, o da incompletude e impossibilidade da própria ciência em sua promessa de salvação muito forte nessa época -, mas que perdura até hoje?

Aqui que vale ressaltar e localizar a noção de só-depois, a posteriori, Nachträglichkeit, como uma noção central para esses desenvolvimentos. A noção de temporalidade freudiana se relaciona com o que há de original em sua acepção do trauma, assim como da de pulsão como motor do aparelho psíquico. Rudge (2009)Rudge, A. (2009). Trauma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. localiza essa noção, a de só-depois, como central para a definição de trauma ao estilo de Freud e defende que essa noção, por problemáticas não só de tradução, mas também pela própria deturpação que a transmissão da psicanálise sofreu após a morte de Freud, foi relegada na teoria quando deveria ter sido colocada como central para sua operacionalidade singular.

A autora esclarece que:

Lacan foi quem alertou para o valor dessa noção, e esta foi uma contribuição valiosa de sua parte, já que Strachey, na antiga e fundamental tradução dos textos freudianos para o inglês, traduziu Nachträglichkeit como deferred action, mas não o fez de modo rigoroso nem sistemático: o termo alemão acabou sendo traduzido de formas diversas em diferentes contextos e artigos. Essa oscilação na tradução obscureceu o fato de que, no original da obra freudiana, o termo aparece com grande frequência e de forma consistente o bastante para que fique caracterizado o valor conceitual que Freud lhe atribuía, inapreensível para o leitor das traduções. (Rudge, 2009Rudge, A. (2009). Trauma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 21)

Essa questão em torno da tradução trouxe uma dificuldade ainda maior, porém, já inerente, na acepção dessa nova dimensão da temporalidade na teoria freudiana. Rudge, nesse sentido, também contribui para a definição da temporalidade no contexto da metapsicologia. Ela explica que “A ideia da temporalidade a posteriori representa uma concepção de causalidade diversa da tradicional, que prevê uma ação linear do passado sobre o presente. Ela indica que, a cada momento, o presente se associa ao passado e transforma sua significação” (Rudge, 2009Rudge, A. (2009). Trauma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 21),

Neste sentido, também esclarece que:

A fecundidade dessa ideia não se faz sentir apenas na psicanálise, mas na própria história como campo de saber. O que Freud antecipa é que não pode haver uma coincidência entre discurso histórico e acontecimento passado, de vez que as ideias, os desejos e os interesses do presente sempre influenciam a reconstrução do passado. Os historiadores atualmente também admitem que todo relato histórico está determinado por crenças, ideologias e interesses do presente, o que torna impossível presumir que o relato histórico seja um retrato fiel do que ocorreu. (pp. 21-22)

Ressaltamos que o corpo, em sua relação com a renúncia pulsional (que articulamos à frustração), comparece como um elemento central para trabalharmos com a dimensão da temporalidade implicada na noção de só-depois. Foi nesse sentido que consideramos importante o trabalho com a metapsicologia feito acima, no que frisamos algumas noções como, por exemplo, a de memória vinculada à possibilidade de frustração, e esta como inscrição que é da ordem da estimulação corporal, por excelência. Essa operação vinculada com a leitura que podemos fazer da transmissão na cultura enquanto considerando a atividade do sujeito nesse processo é o que acreditamos comportar uma espécie de particularidade no modo da psicanálise compreender e engendrar, também, ela mesma, sua transmissão na cultura.

Com os elementos postos em jogo na articulação que propomos entre metapsicologia, inconsciente e realidade psíquica, a dimensão do esquecimento pode ser colocada em relação à acepção do saber e à forma como o tempo é concebido a partir da psicanálise. Diferente de uma via em torno da conscientização somente - ou mesmo da dimensão cognitiva que seria equivalente a um mais de conhecimento de ordem apenas “eu a eu” - Freud situa o esquecimento como essa via primordial de deslocamento do tempo, vindo a desembocar, também, no que faz o humano, posto que os contrastes na memória entre conteúdo latente e consciente, esquecido e lembrado, seriam essenciais para a constituição do sujeito e, a um só tempo, da cultura. O esquecimento alcança seu estatuto ético na medida em que implica a assunção do ato e, com ele, da história. Rabinovich (2004)Rabinovich, D. (2004). Clínica da pulsão: as impulsões. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud. indica que o que aí está em questão, para a psicanálise, não é a dimensão apenas de demarcar uma “renúncia” ao objeto, por exemplo, mas, sim, “o que é novo é que haja, e nisso Lacan insiste, um discurso que promova a produção através da renúncia...” (p. 22; grifo nosso). Nesse sentido, a ruptura na temporalidade cíclica da repetição como possibilidade de produção histórica (logo, também, de transmissão) é, desde cedo, demarcada por Freud e, em Lacan, alcança o estatuto de uma proposição ética que foi, em seu percurso, cada vez mais articulada à noção de ato.

Considerações finais: o tempo do sujeito na transmissão

Como precisa Fuks (2014)Fuks, B. (2014). O homem Moisés e a religião monoteísta - três ensaios: o desvelar de um assassinato. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. , “a verdade em jogo na psicanálise não é a verdade material, aquela congruente com os acontecimentos factuais e manifestos, mas a verdade lógica distinta dela, a ‘verdade histórica’” (p. 60).

Esse modo de conceber a “origem” como impossível de ser correlata a um dizer último que se configure como “verdade” encontra-se fortemente ligado ao que Mieli (2013)Mieli, P. (2013). Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In C. Basualdo, N. A. Braunstein & B. B. Fuks (Orgs.), 100 Anos de Totem e tabu. (pp. 125-139). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. situa como:

Um elemento estrutural da sexualidade humana radicalmente diferente do elemento instintivo, animal, e que se refere à natureza do sujeito da linguagem e ao seu modo de produzir construções, fantasias, em face do impensável. A sexuação se caracteriza por um encontro com um real que não pode ser simbolizado. (p. 133)

A função de causa ou origem tomada como da ordem do impensável configura, ao mesmo tempo, uma produção que só pode ser feita na própria instauração da linguagem, não estando lá para ser reencontrada, mas sim como uma necessidade da estrutura. Ou seja, é exatamente pela origem ser da ordem do impensável, que a resposta possível ao aparelho psíquico é ficcionar, é criar um mito. Como do que se trata é de uma “completude miticamente perdida”, relembramos também que esse mítico indica essa criação da perda, apenas a posteriori (Nachträglichkeit, no alemão) (Rudge, 2009Rudge, A. (2009). Trauma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.).

Vemos aqui que a sexualidade humana representa e apresenta uma particularidade em face do que seria instintivo, estritamente. É por ela se compor em uma temporalidade diferente de uma ordem natural, linear ou causalista, que temos sempre um efeito de corte em relação ao modo de apreender o que é a unidade do aparelho psíquico. Ao criar o conceito de pulsão e a estrutura do aparelho psíquico como uma metapsicologia, ou mesmo, uma mitologia (Assoun, 1991Assoun, P. L. (1991). O freudismo. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.), a partir, exatamente, de seus estudos sobre a sexualidade, Freud estava tentando dar conta desse impossível de ser dito do sujeito e sua relação com a transmissão.

Fuks (2007)Fuks, B. (2007). Freud e a cultura. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., além de dizer que “a psicanálise inovou, de forma radical e irreversível, o modo de se refletir e pensar a cultura” (p. 7), esclarece também que, em meio ao momento histórico das grandes transformações nas ideias e no modo de apreender o conhecimento naquele momento, no Ocidente, outro passo que Freud deu foi que “o mestre de Viena abandona a clássica concepção de uma divisão entre psicologia individual e psicologia coletiva, colocando-as no mesmo espaço de esclarecimento” (p. 7). Prossegue afirmando que:

De acordo com sua experiência clínica, passou a considerar como fenômeno social toda e qualquer atitude do indivíduo em relação ao outro: a experiência subjetiva, objeto privilegiado do trabalho analítico, implica, necessariamente, a referência do sujeito ao outro (pais, irmãos, pessoa amada, analista etc.) e à linguagem (Outro) que o determina simbolicamente. (Fuks, 2007Fuks, B. (2007). Freud e a cultura. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 7)

Acerca do modo de trabalhar freudiano e das “origens” da psicanálise em sua relação com a cultura do próprio Freud, a saber, sua característica de ser um “judeu sem Deus” (Fuks, 2000Fuks, B. (2000). Freud e a judeidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 10), Fuks afirma ainda que:

Uma arqueologia da cultura do judaísmo na psicanálise só pode aparecer quando e na medida em que esta cultura tenha sido transformada pelo próprio Freud, ao melhor estilo goethiano, segundo a máxima do poeta citada por Freud em Totem e tabu: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o, para fazê-lo teu.”. (p. 10)

Ou seja, é no cerne do “devir-judeu” (Fuks, 2000Fuks, B. (2000). Freud e a judeidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 10) que podemos apreender a relação com o saber que Freud inaugura: como “sua expressão maior enquanto prática do não idêntico, prática da desidentificação e prática do desejo de diferença” (p. 10). É no fato de que Freud estava fora e dentro de sua própria cultura que o leva a emergir e evidenciar no coração da história do conhecimento, em sua época, que todo processo histórico comporta uma dificuldade em sua transmissão, uma estranheza, ou mesmo um exílio, assim como escrito na história - ou mitologia - judaica.

Fuks (2000)Fuks, B. (2000). Freud e a judeidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. indica, em sua tese, que não só há algo a notarmos como intrínseco à “relação do judeu com a escrita” pertencente ao movimento freudiano em torno da construção desse saber, mas aponta também que em diversos níveis “os desconfortos hebraicos seculares da repetição do exílio e do nomadismo são o próprio movimento da escrita” (p. 12; grifo nosso). Nesse sentido, Freud representa tanto um filho de sua época como alguém que, ao mesmo tempo, se posiciona fora da cultura da qual veio. Ele se coloca, historicamente, ao mesmo tempo como este “judeu sem Deus” e, portanto, escreve algo de interno à história judaica (da qual faz parte) como um “homem da ciência”, aberto às inovações de seu tempo, no coração da Europa, em um dos séculos de maior promessa de progresso cultural e científico (Fuks, 2000Fuks, B. (2000). Freud e a judeidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.).

Apontando para o próprio movimento da escrita, Freud inventa o saber psicanalítico como um modo do operar que inclui o mito e a experiência como duas áreas impossíveis de conciliarem-se, mas também, impossíveis de não serem consideradas no que é da ordem do conhecer para o humano, assim como não necessariamente opostas.

Não é isso que fica evidente em sua escrita de “Totem e tabu” (1912-13/1991c) e de “Moisés e a religião monoteísta” (1939 [1934-38])/1991b) ao criar ficções que se propõem a se relacionar com a verdade do sujeito e da cultura, ao mesmo tempo? Nesse movimento há, ao mesmo tempo, a renúncia, o acolhimento da perda inscrita na impossibilidade de integralização da origem. Por isso, nesses dois textos Freud se movimenta a partir de construções que visam transmitir essa ausência mesma no interior da relação do sujeito com a verdade.

Para Mieli (2013)Mieli, P. (2013). Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In C. Basualdo, N. A. Braunstein & B. B. Fuks (Orgs.), 100 Anos de Totem e tabu. (pp. 125-139). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa., no trabalho de Freud em “Totem e tabu” (1912-13/1991c), “a origem só pode ser encarada a posteriori, num segundo tempo que, buscando defini-la ou contorná-la, produz uma hipótese, uma ficção” (p. 126), portanto:

Explicação racional e mito encontram fundamento comum na própria fala e na modalidade de seu agenciamento em discurso sensato, em narrativa, sendo justamente a interrogação sobre essa modalidade de agenciamento o que atravessa as reflexões de Freud em “Totem e tabu”.

Ao passo em que Freud se propõe a tratar da experiência e da verdade judaica - como em “Moisés e a religião monoteísta” (1939 [1934-38])/1991b), onde retorna à história bíblica comumente conhecida pelo povo judeu - no mesmo passo indica um tensionamento entre “explicação racional e mito” como necessário ao se tratar de qualquer história passível de ser historicizada.

  • *1
    Trabalho extraído da dissertação de Ruth Arielle Nascimento Viana, intitulada A historicidade da pulsão e a transmissão da cultura, orientada pela profa. dra. Caciana Linhares Pereira. Expressamos nossa gratidão à subvenção da CAPES.
  • Financiamento/Funding: Este trabalho recebeu apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (Brasília, DF, Br)/ This work is supported by Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (Brasília, DF, Br).

Referências

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  • Certeau, M. (2016). História e psicanálise: entre ciência e ficção Belo Horizonte, MG: Autêntica.
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Editora/Editor: Dr. Marco Antonio Coutinho Jorge

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2020

Histórico

  • Recebido
    29 Dez 2019
  • Aceito
    14 Jul 2020
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